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Mulheres e Criminalidade


Conselho Editorial Série Letra Capital Acadêmica Beatriz Anselmo Olinto (Unicentro-PR) Carlos Roberto dos Anjos Candeiro (UFTM) João Medeiros Filho (UCL) Leonardo Santana da Silva (UFRJ) Luciana Marino do Nascimento (UFRJ) Maria Luiza Bustamante Pereira de Sá (UERJ) Michela Rosa di Candia (UFRJ) Olavo Luppi Silva (UFABC) Orlando Alves dos Santos Junior (UFRJ) Pierre Alves Costa (Unicentro-PR) Rafael Soares Gonçalves (PUC-RIO) Robert Segal (UFRJ) Sandro Ornellas (UFBA) Sergio Azevedo (UENF) Sérgio Tadeu Gonçalves Muniz (UTFPR) William Batista (Bennet - RJ)


Paulo Cesar Pontes Fraga Org.

Mulheres e Criminalidade


Copyright © Paulo Cesar Pontes Fraga (org.), 2015 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem a autorização prévia e expressa do autor.

Editor João Baptista Pinto

Capa Rian Narciso Mariano

Projeto Gráfico e Editoração Luiz Guimarães Revisão Rita Luppi

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

M922 Mulheres e criminalidade/organização Paulo Cesar Pontes Fraga. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Letra Capital, 2015. 166p. : il. ; 15,5x23 cm.

Inclui bibliografia ISBN 978-85-7785-306-9

1. Tráfico de drogas - Aspectos sociais. 2. Criminosas. 3. Mulheres - Condições sociais. 4. Narcóticos e crime. I. Fraga, Paulo Cesar Pontes.

15-25998 CDD: 364.177 CDU: 364.177

Letra Capital Editora Telefax: (21) 3553-2236/2215-3781 letracapital@letracapital.com.br


Sumário

Mulheres vítimas e autoras de crimes: relatos de pesquisa.............. 7 Paulo Cesar Pontes Fraga A participação feminina no plantio de cannabis no Vale do São Francisco.......................................................................... 9 Paulo Cesar Pontes Fraga Mulheres no tráfico de drogas: um estudo sobre os determinantes da condenação na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais......................................................................................37 Joyce Keli do Nascimento Silva As mulheres no narcotráfico mexicano. Uma etnografia...............81 José Carlos Cisneros Guzmán, Arturo Santamaría Gómez Para além do desemprego: participação feminina no tráfico de drogas enquanto alternativa de aumento da renda familiar..............................................................................111 Síntia Soares Helpes Sujeição de vítimas de estupro – o aviltamento das vítimas........................................................................................144 Rogéria Martins



Mulheres vítimas e autoras de crimes: relatos de pesquisa P au l o C esa r P ont es F r aga

As estatísticas sobre a maioria dos crimes atrelados à criminalidade comum, em vários países do mundo, não revelam as mulheres como suas principais vítimas ou autoras. Os homicídios, os latrocínios, os roubos e os furtos, geralmente são protagonizados por pessoas do sexo masculino. Em outras tipificações as vitimizações podem ser observadas em maior frequência em crimes de estupros e aqueles relacionados à violência de gênero ou doméstica, nos quais as mulheres aparecem como as mais atingidas. Também, em determinados crimes contra crianças e adolescentes, no âmbito doméstico, as mulheres aparecem com papel destacado na condição de autora. Algumas teorias sociológicas e criminológicas, do início do século XX, previam que à medida que as mulheres ocupassem lugares mais destacados no espaço público incrementaria, também, sua participação em atividades criminais, numa alusão à prática de crimes ao maior destaque em atividades no espaço urbano, notadamente. Essas previsões não se confirmaram e continua desproporcional o crescimento das taxas de ocupação feminina no mercado de trabalho, por exemplo, e a sua participação nos crimes comuns. Entretanto, nas últimas décadas, a participação feminina em crimes comuns ganhou maior destaque. Não porque a participação tenha se aproximado das taxas de crimes praticados por homens, mas porque, apesar de uma taxa ainda bem menor, o incremento é significativo. Chama a atenção, também, nessas estatísticas, a proporção do crime ligado ao tráfico de drogas em relação a outras criminalidades. No Brasil, mas igualmente em países com o México, as mulheres passaram a ter cada vez mais importantes funções no tráfico de drogas. Este livro busca, portanto, contribuir para o debate sobre o tema da relação entre mulher e criminalidade, com ênfase em sua participação como autora de crimes. Todos os capítulos são derivados de pesquisas originais desenvolvidas por seus autores.


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O Capítulo A participação feminina no plantio de cannabis no Vale do São Francisco, de autoria de Paulo Cesar Pontes Fraga, aborda as formas de envolvimento de mulheres com o plantio de cannabis na região em que o cultivo da planta mais se destaca no Brasil. Baseado em pesquisa que utiliza a técnica de história de vida, o texto evidencia os elementos que demarcam os aspectos de gênero na atividade e as estratégias das mulheres na relação lícito e ilícito. Mulheres no tráfico de drogas: um estudo sobre os determinantes da condenação na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais, de Joyce Keli do Nascimento Silva, versa acerca da análise do conteúdo das sentenças contra mulheres acusadas do crime de tráfico de drogas. O trabalho busca evidenciar as negociações discursivas elaboradas pelos magistrados diante das descrições dos fatos, visando à elaboração do juízo de valor sobre a gravidade das condutas incriminadas e sobre a responsabilidade das acusadas. As mulheres no narcotráfico mexicano. Uma etnografia, texto de José Carlos Cisneros Guzmán e de Arturo Santamaría Gómez, da Universidade de Sinaloa, no México, analisa o envolvimento de mulheres no tráfico de drogas naquele país da América do Norte. Os autores descrevem o crescente protagonismo feminino na atividade ilegal e falam, também, de sua vitimização. Síntia Soares Helpes, autora capítulo intitulado Para além do desemprego: participação feminina no tráfico de drogas enquanto alternativa de aumento
da renda familiar, faz uma original análise sobre a relação da ilicitude com renda. A autora fala da importância do tráfico de drogas para as mulheres como forma de sustento e busca evidenciar o protagonismo de suas entrevistadas que não estão vinculadas, necessariamente, a uma figura masculina na atividade ilegal. O artigo Sujeição de vítimas de estupro – o aviltamento das vítimas, de Rogéria da Silva Martins, encerra o livro partindo de uma perspectiva diferenciada dos outros capítulos. No texto, a autora enfoca as mulheres como vítimas de uma prática que as estigmatiza e as humilha, o estupro. Partindo de aspectos históricos, sociais e antropológicos, busca chamar a atenção para esse crime que atinge mulheres no mundo e, mais especificamente, no Brasil.


A participação feminina no plantio de cannabis no Vale do São Francisco P au l o C esa r P ont es F r aga

Introdução Este capítulo aborda uma questão pouco explorada pela literatura sociológica no Brasil e, também, em outros países: as funções desempenhadas por mulheres em cultivos de plantas para fins de produção de drogas consideradas proscritas. A omissão nos estudos acerca da participação feminina nos cultivos ilícitos não tem, necessariamente, a ver com o menor vínculo da mulher nessa atividade, haja vista preocupações de ONGs e agências multilaterais em relação às consequências para a saúde e para a dignidade feminina dessas atividades consideradas ilegais (UNODOC, 2014). Em 2013, uma das inquietações do Fórum “Solução ao problema das drogas ilícitas”, organizado pela ONU em parceria com a Universidade Nacional da Colômbia, era as diferenciadas formas com que as mulheres se implicam, ou são obrigadas a participarem, no circuito da produção e do tráfico de drogas na América Latina e, mais especificamente, na Colômbia, reconhecendo, assim, o impacto das políticas de drogas e o espectro das relações criminosas por ela produzidos na população feminina. No evento distinguiu-se, igualmente, que há um déficit significativo de pesquisas e de análises que permitam dar subsídios para o enfrentamento de mulheres que se deparam com a situação de serem obrigadas a se envolverem, por razões econômicas ou afetivas, com o circuito das drogas ilícitas. Considerou-se que as mulheres partícipes de atividades no negócio das drogas não são, necessariamente, submissas, com pouca capacidade de tomar decisões ou, meramente vitimizadas pela situação. Sopesaram, entretanto, as vulnerabilidades e as explorações a que estão submetidas pela sua condição de gênero, arrostados que são seus direitos humanos básicos. São diversas as formas de vínculos de mulheres ao longo da cadeia ilícita. Não podendo, ainda, serem consideradas de modo ho-


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mogêneas formas específicas de envolvimento como a participação de mulheres que estão vinculadas ao cultivo de coca, de papoula e de cannabis, geralmente mulheres camponesas, com poucas alternativas de renda, assim como da participação daquelas ligadas ao microtráfico urbano em pequenas, médias e grandes cidades. Ou, ainda, daquelas, casadas, enamoradas ou amantes de traficantes, cujo mero vínculo afetivo é visto como adesão à prática delituosa de seus companheiros, fazendo-as sofrer punições as mais variadas, seja por agentes da segurança pública ou de outro ator da rede ilícita. Cada forma de participação implica em situações mais ou menos penosas, violentas ou vantajosas, segundo as situações específicas em que estão inseridas. Independentemente das formas de implicação, questão urgente refere-se às relações estabelecidas entre os diversos atores dispostos ao longo da cadeia de produção, venda e consumo de substâncias psicoativas e a questão de gênero. A importância que a relação de gênero pode assumir no negócio das drogas não se restringe, logicamente, às questões atinentes aos papéis dos países da América Latina e nem aos países que cultivam extensivamente plantas para fins de produção de substâncias psicoativas ilícitas na geopolítica das drogas, ainda que se revelem significativamente a condição feminina desfavorável nessas sociedades. Em outros países com tradições de maiores avanços para os direitos para a mulher, também revelam importantes indícios da relação entre drogas ilícitas e gênero. Da Agra (2008) evidencia em seu importante estudo, desenvolvido em Portugal, sobre a relação entre drogas e crimes, que as mulheres, diferentemente dos homens, estavam mais envolvidas nas transações das drogas ilícitas do que nos crimes contra a propriedade. Provável razão para esse maior envolvimento poderia ser o fato de o tráfico de drogas ser uma atividade menos violenta, que se caracteriza pela diversidade de tarefas e, por isso, requerer atores que atuem diferenciadamente e segundo padrões comportamentais em que a questão de gênero possa imprimir influência. No Brasil, apesar de se reconhecer que a participação da mulher em etapas relativas à produção, ao tráfico e ao consumo de substâncias psicoativas ilegais não é tão significativa quanto a dos homens, em termos da frequência dos atores envolvidos, há um incremento nos últimos anos da repressão à mulher envolvida com as drogas, carreando em seu maior encarceramento(HELPES, 2014;


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SILVA, 2013). Entretanto, assim como relatado por Da Agra (2008) no caso de Portugal, no Brasil a maioria das mulheres que cumpre pena em regime fechado foi condenada por tráfico de drogas. Na legislação brasileira não há tipificação criminosa que distinga o plantio de cannabis ou de outra planta, cujo cultivo é proibido, da venda de drogas ilícitas. Ou seja, o plantio ou a venda são considerados crime de tráfico de drogas. Assim, apenas o usuário recebe um tratamento diferenciado, pois o plantio e a venda podem implicar na mesma punição. Entretanto, o encarceramento de mulheres devido ao seu envolvimento com o plantio é bem menor do que em relação às atividades atinentes ao comércio de substâncias psicoativas ilegais. Isso, pois as atividades de plantio estão restritas a áreas específicas no país, ao contrário das vendas do varejo das drogas praticamente disseminadas em todas as regiões. De outra maneira, o trabalho duro e as condições do plantio sempre se tornaram um obstáculo a uma participação maior das mulheres. Não obstante, as que participam estão menos expostas devido às funções que desempenham, entre outros fatores que mais à frente, no texto, iremos apontar. Feitas estas considerações iniciais, o objetivo deste texto é analisar o envolvimento de mulheres no plantio de cannabis na região que mais produz a planta no Brasil, o Vale do São Francisco. Buscar conhecer suas motivações para o envolvimento com uma atividade que reconhecem como ilícita. Compreender como os recursos advindos da atividade impactam sua renda e de sua família, e verificar como a questão de gênero se faz presente para seu ingresso e continuidade ou não na atividade. O presente capítulo está baseado em dados da pesquisa MULHERES E CRIMINALIDADE: UM ESTUDO SOBRE A PARTICIPAÇÃO DE MULHERES EM PLANTIOS ILÍCITOS NO BRASIL, desenvolvida no âmbito do “Grupo de Pesquisa Violência, Política de Drogas e Direitos Humanos”, apoiada pelo CNPq. A pesquisa original contemplou a utilização de metodologias variadas, abrangendo a análise qualitativa das sentenças e de fluxo de justiça para processos, envolvendo mulheres em duas comarcas da região do Vale do São Francisco, além de entrevistas em profundidade sobre trajetórias de mulheres que estiveram envolvidas com as atividades relativas ao cultivo de cannabis. Foram entrevistadas dez mulheres que tiveram envolvimento com o plantio em algum momento de


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suas vidas. Para compor o cenário e as práticas do cultivo foram ainda entrevistados mais cinco homens que tiveram envolvimento com o plantio, três autoridades policiais e duas do Judiciário. Todas as identidades foram preservadas e os nomes que aparecem no texto são fictícios. Neste texto iremos explorar elementos subjetivos e objetivos revelados nas entrevistas em profundidade, nas relações estabelecidas entre as mulheres e outras instituições e atores presentes ou não na cultura de cannabis, que influenciaram a entrada na atividade ilícita. Trabalhamos com a noção de trajetórias biográficas, compreendidas como a forma como cada pessoa reconstrói e atualiza, a partir de um relato, visões de si e do mundo (DUBAR, 1998). A análise considerou importante para a compreensão de processos tanto as categorias institucionais, que determinavam situações e posições objetivas, e categorias individuais utilizadas pelos atores em situação de entrevista de pesquisa (DUBAR, 1998). Utilizaremos a noção de caminhos como elemento analítico das trajetórias. A noção é empregada por Kokoreff (2005), em seus estudos sobre jovens da periferia de cidades francesas, para designar os percursos que os levam ao envolvimento com o comércio de drogas ilegais. Situado no mesmo registro semântico das noções de trajetórias, percursos, itinerários, linhas biográficas ou de vida, a noção de caminhos se coloca como alternativa. Com isso, o autor pretende enfatizar o caráter não linear, reversível, acidental, breve, da complexidade do processo vinculado à construção do desvio. Longe de se constituir um efeito do destino, os caminhos são produtos de diferentes interações e elementos, colocando em relevo temporalidades nas quais se inscrevem as práticas, os pontos de rupturas ou de bifurcações constituintes das carreiras, em mundo social dado, sempre em interação com outros mundos sociais em que estão presentes outros atores pertencentes ao universo desviante daquela prática ou não (KOKOREFF, 2005:33). Kokoreff (2005), que de certa maneira incorpora em sua análise a noção de carreira, tal qual utilizada por Hughes (1958) e Becker (2008), reconhece o limite da utilização da categoria para a compreensão mais ampla do fenômeno da delinquência, ou do tráfico de drogas, atividade investigada por ele mais especificamente. Segundo o autor francês, o conceito, ao focar os elementos que transformam o desvio em um modo de vida, como em Becker, pri-


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vilegiou análise mais contundentemente no consumo de drogas do que no tráfico de substâncias psicoativas ilegais, negligenciando os fatores atrelados às condições de vida no contexto urbano como elemento importante na configuração do desvio. Afirma o sociólogo francês serem fatores gestantes no desenvolvimento de práticas ilícitas (KOKOREFF, 2005:34) os efeitos do meio, no sentido ecológico do termo, as acumulações de dificuldades sociais e pessoais, as rupturas biográficas que elas implicam. Alerta que a análise das trajetórias de vida não pode ocultar a heterogeneidade presente nas biografias estudadas. No presente texto, portanto, a noção de caminhos é reivindicada para compreender a mobilidade das mulheres que ora estão na composição das malhas da produção e distribuição da maconha e, ora, vivem com seus vínculos institucionais e afetivos apartados dessa rede criminosa. A mobilidade é um elemento fundamental dos caminhos gestados por elas nos encontros com outras institucionalidades legitimadas ou não pela moral social. Busca reconhecer, também, a prática de plantio no cerne de questões e instituições não pertencentes, necessariamente, à prática ilícita, como o deslocamento forçado de famílias camponesas para a construção de barragens, por intervenção do poder público e a falta de uma política agrária mais consistente na região, que apoie o pequeno produtor a conviver com a seca.

As mulheres nos plantios ilícitos: uma pequena revisão Os plantios ilícitos ocupam milhões de pessoas em todo o mundo e se tornaram alternativa de renda para famílias e pessoas que experimentam a dificuldade de sobreviverem dos cultivos legais na agricultura tradicional em seus países. O cultivo da folha de coca para fins de produção de cocaína, o plantio da cannabis, largamente difundida no mundo, para a produção de haxixe e maconha, e a cultura agrícola da papoula para produzir opiáceos são responsáveis pela utilização de força de trabalho de homens, mulheres e crianças. A proibição de seus cultivos aumenta, por um lado, o preço desses produtos em relação aos cultivos legais, tornando-os atividade laboral atraente economicamente, mas, por


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