O conceito de família em freud

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O conceito de famĂ­lia em Freud



JosĂŠ Nunes Fernandes

O conceito de famĂ­lia em Freud


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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ F399c Fernandes, José Nunes (1964 - ) O conceito de família em Freud / José Nunes Fernandes. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Letra Capital, 2014. 118 p. ; 21 cm. ISBN 978-85-7785-252-9 1. Freud, Sigmund, 1856-1939. 2. Família - Aspectos psicológicos. 3. Psicanálise. I. Título. 14-10294 CDD: 150.195 CDU: 159.964.2

Letra Capital Editora Tels: 21. 2224- 7071 | 2215- 3781 www. letracapital. com. br


Ă€ minha famĂ­lia



Sumário Introdução.............................................................................9 Família: considerações conceituais e históricas.................15 A visão de Ariès (1981).................................................15 As ideias de Poster (1979).............................................22 A família em Engels (1884[1953])...............................31 O conceito de família em Freud..........................................43 Primeiras palavras sobre o conceito de família em Freud.....................................................43 Discussão dos temas de análise...................................45 A) Sexualidade infantil e complexo de Édipo.. 45 B) Incesto......................................................... 49 C) Narcisismo.................................................. 51 D) Romance Familiar....................................... 54 E) Ambivalência e sentimento de culpa........... 57 F) Totem e Tabu............................................... 61 O Caso Árpád........................................... 74 G) Moral sexual civilizada............................... 78 H) Transferência.............................................. 90 I) Grupo e vínculo............................................ 91 A jovem homossexual (Freud, 1920) e as relações familiares.................................................98 Algumas reflexões atuais sobre a família...........................107 Família: amor e ódio............................................................111 Referências............................................................................115



Introdução

A

família vem sendo muito estudada pelas Ciências sociais e pela Psicologia desde as décadas de 70 e 80, juntamente com o tema comunidade. O conceito de família pode ser abordado de diferentes formas, ou seja, podemos refletir sobre família considerando a religião, a Filosofia, a Psicologia, a Sociologia, a Antropologia, entre outros. Neste livro o enfoque parte de outras áreas, mas leitura é fundamentalmente psicanalítica, ou seja, usamos conhecimentos de outras áreas do saber para completar o entendimento do conceito de família, mas a abordagem é pisicanalítica. Reis (1984) aponta que tal preocupação – o estudo da família pelas ciências sociais e pela Psicologia –, no que se refere à abordagem psicológica, é devido a instituição “família” ser “um espaço privilegiado para arregimentação e fruição da vida emocional dos seus componentes” (p.99). O autor mostra que na literatura encontramos dois pontos de vista: os que são a favor da família, mostrando que ela é a base da sociedade e os que são contra, que alegam que ela contribui com o entrave social e sua nocividade, uma vez que ela “é o local onde as neuroses são fabricadas” (p.99). É na família que a socialização é inicialmente desenvolvida e com o capitalismo a estrutura familiar ideal passa a ser a monogâmica burguesa, tornando-se o modelo universal e imutável. Tal modelo, usado por Freud para falar da família do início do século XX, foi o que proporcionou Freud a esclarecer o “funcionamento interno da família, demonstrando os mecanismos psíquicos envolvidos na estrutura familiar e que têm como corolário a dominação e a repressão sexual” (Reis, 1984, p.100). 9


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Muitos autores criticam a postura freudiana em relação à família, como Marcuse (1990), Poster (1979), Reis (1984), entre outros. Isso acontece pois para Freud a família trata-se apenas de uma das formas que a instituição familiar assume em determinado momento histórico – a família burguesa. O reducionismo psicológico de Freud, a falta de visão social fazem-no também naturalizar e universalizar a família burguesa. Os antolhos ideológicos fazem com que o autor da grande descoberta da função repressiva da família não consiga inserir suas descobertas no contexto da História e, em conseqüência, postule uma universalidade para a família burguesa, considerando como natural e inevitável a dominação e a repressão (Reis, 1984, p.100).

Não concordamos com os argumentos de Reis (1984) na sua crítica a Freud, uma vez que ele não consegue mostrar, ou se nega a mostrar, que as relações emocionais dos componentes da família, por exemplo, se dão em qualquer modelo ou forma familiar, inclusive nas formas contemporâneas, e não somente no modelo monogâmico burguês. É difícil, por exemplo, desconsiderar que numa família na qual não exista pai (pai ausente por não ocupação da função de pai, por causa de separações, por engravidamento sem junção ou casamento, por falecimento, etc) a dominação e a repressão sexual não estejam presentes. Os mecanismos psíquicos discutidos por Freud estão, portanto, presentes em qualquer modelo ou forma familiar. Como podemos descartar a questão da sexualidade (adulta ou infantil), por exemplo, numa família, seja qual for seu tipo? Como podemos negar as neuroses, a relação com a sociedade, os tabus, a ambivalência, dentre outros, em uma 10


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família, seja do tipo monogâmico ou não? Como podemos negar o Édipo de cada um, e seus narcisismos? Além disso, Reis (1984) mostra que o modelo de família predominante na sociedade, em todos os seguimentos sociais, seja ainda o modelo da família monogâmica burguesa e que “as características fundamentais da família burguesa, típica do século passado [século XIX] (...) continuam presentes nas famílias contemporâneas” (p.122). Não desconsideramos que existem alguns padrões internos que diferenciam as famílias das diferentes classes sociais, mas muitos aspectos são gerais, ou seja, estão presentes em todas as famílias, por exemplo, o Complexo de Édipo está presente em qualquer família, a não ser que não tenham filhos. Mas mesmo assim, não podemos deixar de levar em conta o narcisismo do casal e o complexo de Édipo de cada um. Segundo Poster (1979), a família é, além de locus da estruturação da vida psíquica e onde a experiência se caracteriza, em primeiro lugar, por padrões emocionais, espaço primordial para a origem de hierarquias de idade e sexo, indicando as relações de poder, centrando-se no binômio autoridade/amor e conseqüentemente no binômio amor/ódio (ambivalência). Com todos esses aspectos, e muitos outros, surge uma questão: como Freud discute os aspectos psíquicos referentes à família? Um dos aspectos centrais é a sexualidade, que ocupa papel privilegiado na família contemporânea. Por exemplo, a virgindade da filha é preocupação primordial na família. Como Freud analisa a sexualidade (adulta e infantil) e suas relações com os componentes da família? Muitas questões podem ser descritas aqui, mas delimitaremos nossa reflexão em alguns temas que serão posteriormente definidos. 11


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Este livro tem como finalidade refletir sobre o pensamento social de Freud, mais especificamente sobre o conceito de família, através da análise de, principalmente, cinco de seus trabalhos, nomeados a seguir. Além disso, buscamos: (1) demostrar três opiniões sobre os primórdios e as modificações da família até a atualidade (Ariès, Poster e Engels); (2) discutir temas relevantes para o entendimento do que compõe o conceito de família em Freud, mais especificamente: sexualidade infantil, complexo de Édipo, incesto, narcisismo, romance familiar, ambivalência, sentimento de culpa, totem e tabu (horda primeva, tabu, totemismo na infância), moral sexual civilizada, transferência, pulsão, grupo e vínculo; (3) refletir criticamente sobre a atualidade do conceito freudiano de família. O assunto está delimitado na área do saber denominada de Psicanálise. Em relação à demarcação, ou seja, delimitação conceitual, ela está centralizada nos temas utilizados para entendimento do grupo familiar, ou seja, os temas servirão como componentes da discussão sobre o conceito de família. Em relação às obras de Freud escolhidas, delimitamos em cinco dos seus últimos trabalhos, as obras de Freud ditas sociais. Como aponta Nasciutti, “são consideradas como obras sociais de Freud seus últimos trabalhos, como Totem e tabu, O futuro de uma ilusão, Psicologia de grupo e análise do ego, O mal-estar na civilização e Moisés e o monoteísmo” (1998, p.106, grifos do original). A escolha do tema se deu por nosso grande interesse pelo trabalho de Sigmund Freud e pelo grupo social chamado de família. Além disso, a escolha também foi feita por ser um estudo relevante pela lacuna na literatura em relação ao assunto abordado dessa forma. A única obra que encontramos referente ao conceito de família em Freud trata

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de uma abordagem neo-marxista ligada à Teoria Crítica1, que não está inserida na discussão psicanalítica. Nossa “leitura” será psicanalítica, e não filosófica, como a feita por Poster (1979), Marcuse (1990) e outros. A discussão teórico-conceitual parte do que refere à conceituação de família (origem e história) nas obras de Ariès, Poster e Engels. Em seguida adota a psicanálise como referencial principal, trazendo revisão feita em obras de apoio (Khel, Roudinesco e outros) e principalmente na obra de Freud, mais especificamente as cinco obras de Freud ditas sociais, mencionadas anteriormente. Segundo Alves-Mazzotti e Gewandsznajder (1998), os temas escolhidos servirão como unidades de análise, ou temas de análise, “se refere à forma pela qual organizamos os dados para efeito de análise (...) é preciso definir o que nos interessa primordialmente”, o que nem sempre é definido no projeto, pois “é a própria análise dos dados que indica a necessidade de incluir outra unidade de análise” (p.169-170). Assim, no início tínhamos escolhido algumas unidades de análise, que foram descartadas, e no decorrer do estudo outras foram inseridas. Portanto, optamos por definir tais unidades de análise durante o próprio trabalho. Sendo assim, as unidades de análise utilizadas neste estudo foram, como já foi dito: sexualidade infantil, complexo de Édipo, incesto, narcisismo, romance familiar, ambivalência, sentimento de culpa, totem e tabu (horda primeva, tabu, totemismo na infância), moral sexual civilizada, transferência, pulsão, grupo e vínculo. A discussão, então, parte da revisão da literatura sobre família. Depois passaremos para a leitura das obras de 1 Trata-se do capítulo do livro de Mark Poster (1979), Teoria Crítica da Família (Rio de Janeiro, Zahar), intitulado “O conceito de família em Freud”.

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S. Freud escolhidas e obras de psicanálise de apoio (Khel, Roudinesco e outros). Em seguida identificaremos as unidades de análise para a organização do texto e discussão dos resultados, incluindo a análise do caso da jovem homossexual (Freud, 1920). Para concluir, discutiremos o conceito de família na atualidade, relacionando com dois pontos cruciais na relação grupal estudada: o amor e o ódio. Elementos chave para o entendimento dessa confusa trama.

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Família: considerações conceituais e históricas A visão de Ariès (1981)

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partir dos séculos XVI e XVII a família assume um lugar de destaque na vida sentimental e nessa mesma época a família passa a ter mais atenção com as crianças, e com isso sofre profundas mudanças nas suas relações internas. Até essa época, aos sete ou nove anos as crianças - meninos ingressavam na escola ou no mundo dos adultos – as crianças eram deixadas pelas mães nas casas de outras pessoas, “para aí fazerem o serviço pesado”, permanecendo por cerca de sete a nove anos (até os 14 e 18 anos de idade), sendo chamadas de aprendizes (Ariès, 1981, p. 226). As tarefas envolviam todo o serviço doméstico. Havia assim uma troca de crianças durante um tempo, ou seja, não importava a fortuna da família, ela entregava suas crianças para outra família e recebia em seu lar crianças estranhas. A noção essencial aqui era a noção de serviço. Havia, inclusive, vários manuais ingleses e franceses sobre como ser um bom servidor do mestre. Nota-se, portanto, que o serviço doméstico se confundia com aprendizagem, no qual a criança aprendia fazendo. “Era através do serviço doméstico que o mestre transmitia a uma criança, não a seu filho, mas ao filho de outro homem, a bagagem de conhecimentos, a experiência prática e o valor humano que pudesse possuir” (Ariès, 1981, p.228). A partir dos séculos XV-XVI passou-se a diferenciar o serviço doméstico subalterno dos ofícios mais nobres.

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A escola não tinha lugar nesse tipo de aprendizagem, que se transmitia de geração em geração. A regra comum a todos era a aprendizagem nesse molde, ou seja, a participação da criança na vida dos adultos. Com isso, a família não podia, na Idade Média, “alimentar um sentimento existencial profundo entre pais e filhos”. Não é que não houvesse amor entre pais e filhos, mas pelo fato da família ser uma “realidade moral e social, mais do que sentimental” (Ariès, 1981, p.231). As famílias pobres não correspondiam a nada além da sua instalação na casa dos amos ou senhores (aldeia, fazenda, pátio da casa). Já as famílias ricas se confundiam com a prosperidade do patrimônio, a honra do nome, sem sentimentos, mas a ambição predominava. A partir do século XV, as realidades e os sentimentos da família se modificam por causa da extensão da freqüência escolar, uma vez que a aprendizagem prática junto aos adultos era paulatinamente substituída pela escola, que passa a ser um meio normal de iniciação social, de passagem da fase infantil para a fase adulta. Essa evolução correspondeu a uma necessidade nova de rigor moral da parte dos educadores, a uma preocupação de isolar a juventude do mundo sujo dos adultos para mantê-la na inocência primitiva, a um desejo de treinála para melhor resistir às tentações dos adultos. Mas ela correspondeu também a uma preocupação dos pais de vigiar seus filhos mais de perto, de ficar mais perto deles e de não abandoná-los mais, mesmo temporariamente, aos cuidados de uma outra família (Ariès, 1981, p.232).

Assim presencia-se, nessa época, a substituição de uma aprendizagem por outra, a feita na prática na casa do mestre 16


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pela feita na escola. Isso gera uma aproximação da família e das crianças, do sentimento de família e do sentimento de infância, até então separados, trazendo, assim, uma verdadeira transformação da família, uma vez que sua vida confundia-se cada vez mais com as relações sentimentais entre pais e filhos. Ariès (1981) mostra que nesse momento a família concentrou-se em torno da criança. “O clima sentimental era agora completamente diferente (...) como se a família moderna tivesse nascido ao mesmo tempo que a escola” (p.232). Em relação às meninas, suas aprendizagens nem sempre eram de responsabilidade da escola. Na maioria das vezes elas eram educadas pela prática e pelo costume, muitas vezes em casas alheias, de uma parenta ou vizinha. No caso dos meninos, a aprendizagem escolar primeiro foi aderida pela classe média da hierarquia social, a nobreza e os artesãos preferiam a “antiga” aprendizagem, só caindo em desuso no século XIX (Ariès, 1981). Mesmo assim, a escola venceu. A civilização moderna tem base escolar. Uma nova luz incide sobre os problemas morais da família. O primogênito ou um outro filho escolhido pelos pais herdava a riqueza, para evitar o esfacelamento do patrimônio. Isso foi a base familiar do fim da Idade Média até o final do século XVII, mas não mais durante o século XVIII (Ariès, 1981). “ ‘Não há apenas vaidade em se doar a melhor parte dos bens ao filho mais velho da família, para mantê-lo sempre no luxo e eternizar o seu nome (sentimos aqui perfeitamente a oposição entre a família-casa e a família sentimental moderna); há mesmo injustiça. O que fizeram os mais moços para serem tratados assim?’ ” (Goussault, 1692 apud Ariès, 1981, p.235) 2. Verificamos aqui o declínio de uma prática moral/social que resultaria na igualdade do código civil. No 2

Goussault. Portarit d’um honnête homme. 1692.

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século XIX isso já era socialmente repudiado. Segundo Ariès (1981), é “uma prova de um movimento gradual da famíliacasa em direção à família sentimental moderna” (p.235). A afeição entre pais e filhos estava agora sendo questionada, passando-se a basear na afeição toda a realidade familiar. É aqui que se encontra a origem do sentimento de infância, nesse novo espírito familiar. Ainda encontramos no século XVII o envio das crianças não para a casa do mestre, mas para a casa das amas. Com isso surge a ama-de-leite, e com o passar dos anos as amas não mais recebiam crianças, mas sim iam morar nas casas das famílias. Isso se deu até o final do século XIX. Em relação à educação das crianças a prática das famílias ricas era a de contratar um mestre para ensinar em casa. Havia, mesmo com a evolução da escola, uma aversão à escola pública. Entre os motivos estavam: ela era dirigida por pedantes, a disciplina escolar era muito severa, o saber se encontrava nos livros não sendo necessário ir à escola para adquiri-lo, as crianças podem ser corrompidas por más companhias, dentre outras (Ariès, 1981). Assim, durante o século XVII existiu uma corrente de opinião contrária à escola. Mas havia também os que a defendiam, alegando que sendo educadas em casa as crianças “correm risco de ser demasiado mimadas pelos pais, (...) bajulações dos criados” (Ariès, 1981, p.244). De Grenaille3, por exemplo, admitia que os pais “ ‘são obrigados a enviar seus filhos aos colégios, preferindo que eles fiquem numa classe a permanecerem numa cozinha’ ” (1642 apud Ariès, 1981, p.244). Um aspecto importante em relação a uma reflexão sobre família diz respeito à casa, uma vez que é necessário haver um espaço mínimo, sem o qual a vida familiar se torna 3

De Grenaille, L’Honneste Garçon, 1642.

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impossível, onde ocorre e se forma o sentimento de família. Casas grandes, palácios, casas rurais ou urbanas ocupando apenas um andar de um imóvel, “encontramos o meio cultural do sentimento da infância e da família. A primeira família moderna foi a desses homens ricos e importantes” (Ariès, 1981, p.258). Os livros, manuais e tratados foram inicialmente escritos para ela e por causa dela os colégios se multiplicaram. Esse modelo de família compreendia somente o grupo conjugal, e no máximo um irmão solteiro, mas abarcava um grupo maior de servidores, amigos e protegidos. “A casa grande desempenhava uma função pública” (p.258), era o único lugar para se conversar e se encontrar (amigos, clientes, protegidos e parentes). A sala servia para dormir, comer, fazer sexo, dançar, para diversos casais e serviçais, crianças, clientes, etc, não havia intimidade. E as crianças conviviam com tudo isso. No século XVII ainda persistia o desempenho de funções domésticas pelos filhos de família, aproximandoos do mundo dos servidores. Eles eram encarregados do serviço de mesa. Isso se estendeu até o final do século XVIII. No século XVII os manuais dos educadores moralistas traziam os principais deveres de um bom pai: controlar a mulher, bem educar seus filhos e governar seus criados (Ariès, 1981). Já no século XVIII, a família passa a se distanciar da sociedade, ou seja, a se confinar num espaço limitado, e a sociedade não mais invadia a “zona particular” da família. Com isso, a organização da casa se torna uma “preocupação de defesa contra o mundo” (Ariès, 1981, p.265). Segundo Ariès (1981), essa já era a casa moderna, que preservava a independência dos cômodos através de um corredor de acesso. Isso se deu junto com o nascimento da intimidade, da 19


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discrição e do isolamento. Não havia mais camas por toda a parte, numa grande sala, as camas eram reservadas aos quartos de dormir, com armários e um “novo equipamento de toalete e higiene” (Ariès, 1981, p.265). Esse novo tipo de habitação surgiu com a burguesia e a nobreza, foi possivelmente a maior mudança na vida quotidiana, correspondendo a uma nova necessidade de isolamento. Os criados passaram a conviver em áreas exclusivas, que lhes eram determinadas. Um tipo de defesa contra os criados e intrusos. “No fim do século XVIII não se usava mais ir à casa de um amigo ou sócio, a qualquer hora, sem prevenir” (Ariès, 1981, p.266). Nesse momento havia a clara separação na habitação, a casa, entre vida privada, vida profissional e vida mundana, havia locais específicos: o quarto, o gabinete e o salão. Com essa reorganização da casa e a reforma dos costumes aparece um novo molde de família, restrito aos pais e aos filhos, da qual se excluía os criados, os amigos e os clientes. O tratamento da esposa e das crianças pelo marido também mudou, antes era Madame, agora era “minha querida mamãe”, “minha querida amiga”, “minha querida criança”, “minha querida menina” (Ariès, 1981, p.267). A emoção e o sentimento se externavam por palavras e nas cartas, na ausência do pai. Da mesma forma o tratamento frio e rígido das crianças com os pais mudou: “querida e terna mamãe”. A saúde e a educação dos filhos passaram a ser preocupação máxima dos pais a partir dessa época. “Esse grupo de pais e filhos, felizes com sua solidão, estranhos ao resto da sociedade, não é mais a família do século XVII, aberta para o mundo invasor dos amigos, clientes e servidores: é a família moderna” (Ariès, 1981, p.270). Essa família é marcada por uma característica particular: a preocupação com a igualdade entre os filhos. No século 20


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XVII isso era timidamente defendido pelos educadores moralistas, como vimos anteriormente, mas a partir do final do século XVIII, a desigualdade entre os filhos era considerada “injustiça intolerável” (Ariès, 1981, p.270). Isso foi provocado pela mudança nos costumes, não pelo código civil ou pela Revolução Burguesa. Entre o fim da idade Média e os séculos XVI e XVII, a criança havia conquistado um lugar junto de seus pais, lugar este a que não poderia ter aspirado no tempo em que o costume mandava que fosse confiada a estranhos. Essa volta das crianças ao lar foi um grande acontecimento: ela deu à família no século XVII sua principal característica, que a distinguiu das famílias medievais. A criança tornouse indispensável da vida quotidiana, e os adultos passaram a se preocupar com sua educação, carreira e futuro. Ela não era ainda o pivô de todo o sistema, mas tornara-se uma personagem muito mais consistente. Essa família do século XVII, entretanto, ainda não era a família moderna: distinguia-se desta pela enorme massa de sociabilidade que conservava. Onde ela existia, ou seja, nas grandes casas, ela era um centro de relações sociais, a capital de uma pequena sociedade complexa e hierarquizada, comandada pelo chefe de família (Ariès, 1981, p.270).

O modelo seguinte, a família moderna, separa-se do mundo e se defende da sociedade, torna-se um grupo solitário de pais e filhos, sendo que a energia do grupo se volta na promoção das crianças, sem distinção entre elas. Mas isso se deu entre os nobres e burgueses, artesãos e lavradores ricos, as famílias pobres viviam como as famílias medievais, com as crianças afastadas das casas dos pais, o 21


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sentimento da casa não existia entre elas. E esta é outra face do sentimento de família, que só aparece a partir do século XVIII, e, segundo Ariès (1981), até nossos dias o sentimento de família modificou-se muito pouco. Mas se estendeu às classes populares, às famílias agrícolas e camponesas, tornando-se modelo exemplar. “A vida familiar estendeu-se a quase toda a sociedade, a tal ponto que as pessoas se esqueceram sua origem aristocrática e burguesa” (Ariès, 1981, p.271). Concluindo, verificamos aqui o nascimento e o desenvolvimento do “sentimento de família”, desde o século XV até o século XVIII, com a lenta destruição da antiga sociabilidade, no início limitado às classes abastadas (homens ricos e importantes do campo ou da cidade, da aristocracia ou da burguesia, artesãos ou comerciantes), mas a partir do século XVIII ele “estendeu-se a todas as camadas e impôs-se tiranicamente às consciências” (Ariès, 1981, p.273). Tal fato se deu na medida em que a sociabilidade se retraiu, nas palavras de Ariès (1981), “as pessoas começaram a se defender contra uma sociedade cujo convívio constante até então havia sido a fonte da educação, da reputação e da fortuna” (p.274). O sentimento de família e toda a mudança de costumes reforçou a intimidade da vida privada “em detrimento das relações de vizinhança, de amizades ou de tradições” (p.274).

As ideias de Poster (1979) Poster (1979) apresenta quatro tipos de família no decorrer da história até o século XIX: a família aristocrática e a família camponesa (séculos XVI e XVII), a família proletária e a família burguesa4 (século XIX). O autor mostra suas características e suas estruturas emocionais pelas 4

Nascida no seio da burguesia europeia no século XVIII.

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condições sociais em que se inscrevem em determinados contextos históricos. Na família aristocrata a riqueza dependia do monarca e do controle da terra, sua habitação era o castelo, onde morava, além da família, parentes, dependentes, criados e clientes. A relação de parentesco era determinada pela linhagem, que era de fundamental importância, sendo assim, o casamento era um ato político, para a própria manutenção das propriedades das famílias. A privacidade inexistia, uma vez que a habitação não a propiciava: não existia diferenciação entre os cômodos e salas, não havia corredores, o mobiliário era multifuncional. Havia um alto índice de mortalidade infantil devido à precariedade das condições sanitárias. Segundo Poster (1979), a tradição e a hierarquização estabeleciam as relações entre os membros da casa. O homem dedicava-se à guerra e a mulher à vida social do castelo. A criação das crianças não era função das mães, mas sim das amas-de-leite e dos criados. Daí, o primeiro vínculo da criança ser a ama-de-leite, e depois os criados e outras pessoas do castelo que eram responsáveis por sua educação. Em conseqüência, a identificação não privilegiava as figuras dos pais como seus objetos, sendo que na maioria das vezes eram em geral enviadas a outras casas nobres para complementar sua educação. A família aristocrata preservava uma educação que era dirigida a obediência à hierarquia social, acompanhando-se aqui do castigo físico, desenvolvendo-se, então, um agudo senso das normas sociais externas, mas não um severo superego, uma vez que o sentimento por transgredir era a vergonha e não a culpa (Poster, 1979). Em relação à sexualidade da família aristocrática, Poster 23


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(1979) mostra que ela obedecia a padrões próprios, sendo reconhecida tanto para os adultos quanto para as crianças. Os adultos das famílias aristocráticas praticavam muito sexo entre si e também com a criadagem. O sexo não era assunto privado ou secreto e as brincadeiras sexuais das crianças eram aceitas e até estimuladas. Assim, tal família não atribuía valor à privacidade, à domesticidade, aos cuidados maternos e às relações íntimas entre pais e filhos. Já a família camponesa era mais parecida com a família aristocrática do que com a família burguesa 5, embora diferisse da sua organização. Assim como a aristocrática há alta natalidade e, por conta das condições sanitárias, alta mortalidade infantil. A aldeia era o grupo social mais significativo, mesmo havendo a pequena família nuclear. A aldeia era o grupo social na qual todos estavam integrados em fortes laços de dependência, uma vez que ela regulava a própria vida (costumes e tradição): casamentos, enterros, namoro. Da vida social de cada um participava toda a aldeia. Poster (1979) afirma que a família não era o espaço privado e os laços emocionais se estendiam para fora dela, por exemplo, as crianças aprendiam a depender da comunidade e não dos pais, participando desde pequenas de toda a rotina da vida da aldeia, aprendendo obedecer normas sociais, a custas de punições físicas. Aqui está outro ponto em comum com a família aristocrática: sua estrutura psíquica era orientada para a vergonha e não para a culpa. “A aprovação das ações era externa, baseada em sanções públicas por toda a comunidade” (Poster, 1979, p.206). A criação dos filhos era feita pela mãe, que ao mesmo tempo a integrava às relações comunitárias, sendo ajudada por parentes, por mulheres mais velhas e por moças mais 5

Poster (1979) limita-se às famílias camponesas que viviam nas aldeias.

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novas. Mas, segundo Poster (1979), as crianças não ocupavam o centro da vida conjugal, uma vez que a mulher trabalhava no campo, fazendo com que elas não tivessem a mesma atenção dada pela família burguesa, como veremos a seguir. As crianças, como na família aristocrática, se familiarizavam desde cedo com os atos sexuais, uma vez que muitas pessoas dormiam no mesmo quarto, e muitas vezes os filhos dormiam na mesma cama dos pais. Os objetos de identificação das crianças, por causa desse vínculo com a aldeia, não eram somente os pais, tais objetos estavam espalhados por toda a aldeia, assim como na família aristocrática era comum a criança passar um tempo na casa de outra família, um tipo de período de aprendizagem. Portanto, apesar de existirem pequenas unidades nucleares, a aldeia era a grande família, ou seja, a família camponesa não voltava a atenção para si, mas para a comunidade como um todo, desconhecendo a privacidade e a domesticidade. A família proletária, por sua vez, é considerada por Poster (1979) como tendo três fases, que vão da sua constituição até a adoção do modelo familiar burguês. Tal família surgiu com o período inicial da industrialização (início do século XIX), numa época de pobreza sócio-econômica. Todos os membros da família trabalhavam e as crianças iam para as fábricas a partir de aproximadamente 10 anos de idade (Poster, 1979). As condições sanitárias eram altamente precárias, favorecendo a alta mortalidade infantil. Para resistir ao capitalismo o proletariado lança mão dos costumes camponeses. Essa etapa da família proletária foi, então, marcada por várias formas comunitárias de dependência e apoio mútuo. Para Poster (1979), as crianças eram criadas de maneira informal, sem atenção e fiscalização dos pais, pois não tinham tempo para se dedicar aos filhos. A higiene, a saúde, a masturbação infantil, a educação, nada causava preocupação. 25


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Nesse momento as crianças proletárias conviviam com uma enorme rede de relacionamento com adultos, uma vez que eram criadas por parentes, vizinhos ou soltas pelas ruas do bairro. Na segunda fase (segunda metade do século XIX), segundo Poster (1979), a família proletária passa a compartilhar com melhorias de vida, advindas da própria melhoria das condições da vida operária, que ao mesmo tempo é marcada por uma aproximação dos padrões burgueses de diferenciação de papéis sexuais: a mulher passou a ficar mais tempo em casa com os filhos e os homens circulavam entre a fábrica e o bar, mas as mulheres formaram uma rede social feminina (mães, filhas e outras parentas). Na terceira fase, já no século XX, a família operária (proletária) muda-se para o subúrbio e a partir daí rompe-se os vínculos com a comunidade. A mulher larga a rede feminina da fase anterior e fica isolada no lar e o homem passa a valorizar a domesticidade e a privacidade. Há nessa fase uma profunda valorização da educação e da preocupação com o futuro dos filhos, acompanhados de um “reforço da autoridade paterna e de um incremento do conservadorismo por parte de toda a família proletária” (Reis, 1984, p.109). Com o passar dos anos tal modelo familiar já não se diferenciava do modelo de família burguês “em termos de padrões emocionais que caracterizavam as suas relações internas. Isso significa que houve um aburguesamento ideológico da classe operária no que concerne à vida familiar” (Reis, 1984, p.109). O modelo familiar burguês, ou seja, a família burguesa, se originou na Europa no início do século XVIII, quebrando os modelos familiares existentes e criando novos padrões de relações familiares. Para Poster (1979), tais padrões correspondiam às novas exigências da classe em ascensão, a nova classe dominante, que já estavam plenamente fixados no começo do 26


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século XIX. Nada mais era que o fechamento da família em si mesma e isso marcou a separação entre a residência e o local de trabalho, ou seja, entre a vida pública e a privada. Entre as mudanças a que mais merece destaque está a rígida divisão de papéis. O marido passou a ser o provedor material da casa e a autoridade maior, racional e absoluta, conforme o ideal burguês. A esposa burguesa era responsável pela vida doméstica, pela casa e pela educação dos filhos. Era inferior ao marido, pois era considerada como menos capaz e mais emotiva que o homem e dependia totalmente do marido. Sua função era obedecer e servir ao marido para que ele prosperasse nos negócios, uma vez que o sucesso dele também seria o seu. O cerne do casamento burguês era a educação dos filhos, nos padrões exigidos pela burguesia: autonomia, autodisciplina, capaz de progredir nos negócios e dotado de perfeição moral (Poster, 1979). Se a mulher era responsável pela educação dos filhos, qualquer desvio seria de sua responsabilidade, isso gerava grandes tensões. Em relação aos aspectos sanitários, o desenvolvimento das cidades e o próprio espírito burguês exigia padrões específicos de higiene, que com isso a taxa de mortalidade infantil diminuiu, e a taxa de natalidade também. Via-se a importância do asseio, da alimentação, do aleitamento, e a fiscalização por parte dos pais de tudo isso. Assim, a criança burguesa passou a aprender a identificar no seu corpo algo que seria objeto de constante fiscalização. Os padrões de sexualidade também mudaram, sendo os papeis sexuais foram levados às últimas conseqüências, uma vez que, por exemplo, colocou-se em prática a interdição à sexualidade feminina fora do casamento (tão comum nos tempos anteriores) e a restrição ao desfrute do prazer sexual feminino, já que tal prática era exclusiva para a procriação 27


José Nunes Fernandes

(Poster, 1979). As mulheres passaram a ser angelicais, fazendo com que o casamento passasse a abarcar uma diferenciação entre sexualidade e afetividade, uma vez que a família era o lugar do afeto e não do prazer sexual. Este, por sua vez, passou a ser buscado pelos maridos fora do lar, com mulheres das classes inferiores (Poster, 1979). Ainda em relação à sexualidade, a sexualidade infantil, mais especificamente, ganha lugar de destaque no cenário da família burguesa. A masturbação, por exemplo, horrorizava os pais e provocava vigilância constante. Poster (1979) diz que nessa época Freud relatava sobre as ameaças de castração feitas pelos pais, que muitas vezes não tinham caráter metafórico6. Em relação às meninas o combate a qualquer manifestação de sexualidade também era rigoroso. Havia recomendações médicas para combatê-la, que incluía até cirurgias. Isso marca a chegada de um novo quadro familiar estabelecido pela burguesia, caracterizado pela total dependência dos filhos aos pais, inclusive em relação à sua sexualidade, fazendo com que existisse uma enorme diminuição das possíveis fontes de identificação para a criança (Poster, 1979). Ao contrário da criança aristocrata, da camponesa ou mesmo da proletária, que tinham uma série de possibilidades de identificação, desde os criados, as amas-de-leite, as vizinhas, os mestres, alguém da aldeia que ajudasse a criar ou a educar, a criança burguesa passou a ter apenas as figuras parentais: o progenitor do mesmo sexo para os meninos e a dona do lar submissa, vigiadora, para as meninas, devido à rigorosa divisão de papéis sexuais de sua vida familiar. Isso faz com que entendamos que tal criança não tinha contato Nessa época era comum encontrar à venda instrumentos que feriam o pênis ou faziam soar um alarme quando o menino tinha ereção (Poster, 1979).

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O conceito de família em Freud

com ninguém antes de entrar na escola, somente com os pais. Instalou-se aqui, por causa do total isolamento da família nuclear e da intensificação das relações afetivas entre os membros da família, uma absoluta dependência dos pais para a satisfação das necessidades de afeição da criança. Segundo Poster (1979), a criança era ensinada sobre a importância da vida emocional e ficava dependendo dos genitores para receber sua cota de afeto, que era associado às condutas que se esperavam dos filhos, regidas pela burguesia. A primeira conduta era aprender a controlar o próprio corpo – isso está intimamente relacionado à higiene (limpeza e controle das esfíncteres)7 e à sexualidade. A renúncia ao prazer corporal em troca do afeto dos pais. Isso tudo gerava uma grande tensão para os filhos, uma vez que o “recebimento” do afeto dos pais estava vinculado a isso. Amar seria submeter-se e não amar seria intolerável. Isso faz com que o amor parental seja traduzido em submissão do corpo dos filhos. Poster (1979) mostra que isso continuava conforme a criança vai se desenvolvendo, tornando-se mais conflitivo, pois a masturbação era mais reprimida. Nada mudava: o controle do corpo em troca da afeição dos pais. E nesse estágio há o maior esforço dos pais para postergar a satisfação sexual dos filhos. O conflito culminaria com o aparecimento da ambivalência (sentimentos afetuosos e hostis concomitantes) e do sentimento de culpa. “A negação dos prazeres corporais provoca a cólera dirigida àquele que impede a sua fruição, ou seja, a mãe, mas esta é ao mesmo tempo o seu principal objeto de amor” (Reis, 1984, p.113). Tal situação faz surgir o sentimento de ambivalência e culpa, fornecendo bases para a formação da moralidade psíquica, como descrito por Freud, “pela internali7 Negligenciado em outras épocas e classes sociais, passou a ter grande importância para a família burguesa (Poster, 1979).

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