Recomeço

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Tomasz Lychowski

RECOMEÇO Poesias


Copyright© Tomasz Łychowski, 2014 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem a autorização prévia e por escrito do autor.

Editor João Baptista Pinto Diagramação/Capa Francisco Macedo

Sobre pintura do Autor “Garça Carioca”

Consultores Henryk Siewierski Isabella Lychowski Rodrigo Lychowski Manoela Sawitzki Revisão Zulene Reis CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

L995r Lychowski, Tomasz, 1934Recomeço: poesias / Tomasz Lychowski. – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Letra Capital, 2014. 96 p.; 14x21 cm. Sumário ISBN 9788577852826 1. Poesia brasileira. I. Título. 14-13099

CDD: 869.91 CDU: 821.134.3(81)-1

Letra Capital Editora

Telefax: (21) 3553-2236 / 2215-3781 www.letracapital.com.br


Sumário Poema-apresentação – 9 Rio: 1500 / 1949 – 11 A liberdade é azul? – 12 O ônibus da Central I – 13 Miguel Pereira I – 14 A procura – 15 O telefonema – 17 O limiar – 18 Méier – 19 Marysia e Henio – 20 Perspectivas – 21 Ímola – 22 O personagem grego – 24 Renascimento – 25 Os pardais – 26 Turma 504 – 27 Visões do que é – 29 Inevitável – 30


Eu também – 31 Tudo – 32 Nem cedo, nem tarde demais – 33 Raio X – 34 Asas – 35 Juro – 36 Imigrante – 37 Sem perceber – 38 Arpoador – 39 Quanto mais – 40 Cidade velha de Varsóvia – 41 A bétula – 42 Por quê? Para onde? – 43 Agora – 44 Sempre – 45 Minha – 46 Um som – 47 1º de julho – 48 Entre parênteses – 49 Serei – 50 Ilumina – 51 Mais um – 52


Tu – 53 Opção – 54 Sans paroles – 55 Londres 2004 – 56 Londres 2005 – 57 E eu... – 58 Encontro do acaso (?) – 59 Aqui – 60 Para o sempre – 62 Você também – 63 Liceu Ruy Barbosa em Varsóvia – 64 Esse instante – 65 E de mim? – 66 Um homem e uma mulher – 67 Ainda! – 68 A visita – 69 O poema perdido e encontrado – 70 Proximidade – 71 O õnibus da Central II – 72 Luz súbita – 73 Amanhã Rio de Janeiro – 74 A fila – 75


Reflexões natalinas – 76 Naquele dia – 77 (Auto) Excluído – 78 O relojoeiro – 79 Homenagem – 80 A pomba branca – 81 Paixão – 82 Obrigado – 83 Eu me pergunto – 84 Há de bastar-me – 85 Chega! – 86 E também o contrário – 87 Lembranças de 1950 – 88 O tempo – 89 Leminskiana – 90 Sempre – 91 Achados e perdidos – 92 Miguel Pereira II – 93 Quatre-vingt – 94


Poema-apresentação Henryk Siewierski

OUTRA ODISSÉIA Ao Tomasz Lychowski em seu Aniversário

ao completar os oitenta ulisses abre um novo arquivo no seu velho hp para por a ordem no catatau reunir os dispersos da sua odisséia por falta de quem a quisesse compor ou mero gosto de lembrar e contar as coisas o leva a começar pelas memórias do apocalipse que era no princípio da viagem do nascido no coração das trevas campestre celeste mocidade numa ilha no mar do norte de que se parte para não voltar atravessando outro mar o sem fim e não o dos gregos ou romanos até o merecido mundo novo o lugar dos lugares e tempos vários acolhedouro em que o viajante

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encontra seus semelhantes angústias e sonhos de todos os meridianos e o lar mas agora o destino é outro outra odisséia aos oitenta ulisses abre um arquivo novo reúne os poemas dispersos pelo caminho forças para o recomeço do que não tem roteiro nem nunca terá.

N.E. Henryk Siewierski é poeta, escritor, tradutor e professor titular do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de Brasília (UnB).

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1. Rio: 1500 / 1949 Para João Baptista Pinto – o brasileiro muitíssimo cordial.

Baía da Guanabara sempre porto seguro Ingredientes: os mesmos do descobrimento o fim de uma travessia o começo de uma folha em branco Diferente, porém, a emoção não a de quem toma posse mas o abraço do desconhecido provado amigo (tantas vezes!) O Pão de Açúcar o Cristo Redentor não apenas uma paisagem A cada dia um novo horizonte adentra a retina se espraia em forte lembrança O barco balança nas ondas o avião circunda a montanha o sol ilumina (ilumina!) Não sei o que é mais verdadeiro: é meu o Rio de Janeiro ou eu do Brasil? Recomeço - 11


2. A liberdade é azul? Cavei até que o chão acima se rompeu. O sol me ofuscou, mas o seu calor me fez bem. Corri atrás do antílope. Quase o peguei. Escapou. Lá de cima, vi a onça. Também o antílope. Até mesmo a minhoca, que tinha vindo à superfície, tomar sol. Entrei na nuvem, continuei voando. O planeta, lá embaixo. Perto da lua. Eu aqui. A liberdade é azul?

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3. O ônibus da Central I O menino esfarrapado tinha algum dinheiro em sua mão olhando para o adulto palmos acima perguntou: “Qual é o ônibus pra Central?” O homem olhou com desconfiança aquele era um pequeno feixe de humanidade “Sei não” – disse o homem e lhe deu um dinheiro O ônibus chegou. “É este”, escapou-lhe sem querer de alguma forma pareciam estar próximos agora algo os unia O menino correu pro ônibus Sem saber por que, o homem virou a cabeça e olhou na direção do 121 Viu o garoto olhando pela traseira do ônibus O homem acenou o menino também

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4. Miguel Pereira I O som da terra sendo pisada e a intensidade do céu azul e do outro lado do riacho a colina coberta pela mata atlântica As arvores parecem estáticas e olham para mim das alturas olímpicas do céu As coisas me permitem penetrar neste outro mundo onde, em vez da agitação e da algazarra, flutuam no ar sintonizam com o ritmo humanizado de Deus me abraçam E quando desço à Cidade dos Homens encontro Miguel Pereira no barulho da Avenida Rio Branco e na penumbra do mosteiro de São Bento

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5. A procura

I

As encantadoras casas de tijolos da Inglaterra e aquelas chaminés que sussurram estórias ainda não contadas de Celtas e Romanos Anglos, Saxões e Normandos (todos misturados no metrô de Londres)

II

A cidade trágica – Varsóvia, a cidade sem medo e seus valentes guerreiros do século XX (de tantos séculos!) que falam pela humanidade que tantas vezes prefere silenciar

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III

A cidade do Muro (vendido a 10 DM o pedaço) onde o jovem conquistador russo canta Volga, Volga por alguns Pfennig na calçada do Kurfürstendamm onde a fartura mal disfarça as cicatrizes que latejam

IV

E então, uma volta de 1000 anos no tempo para Chorin Kloster uma aldeia, onde começou metade do seu destino e onde, nos prados, pela primeira vez, ouviu os acordes da Pastoral (mas, como o poeta, somente bem mais tarde)

V

Tudo isso ele contou à Madona Negra, mas não ousou pedir mais

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6. O telefonema “Vamos continuar em contato” disse Anita – Eu não a via há muito tempo “Vamos continuar em contato” Quando a verei de novo? Entretanto tantas coisas aconteceram a própria morte, entre outras Mas eu sabia que Anita estava lá o tempo todo Embora as nossas vidas se esvaneçam com o tempo há algo no terreno da amizade que jamais cessará de existir Algo que distante está sempre presente E assim, cercado por multidões, continuamos em frente sabendo, adivinhando que alguém, um outro ser, um amigo aguarda o nosso telefonema

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7. O limiar A serenidade do mar a agitação da multidão a criança despreocupada e o homem preocupado as ruas vazias de domingo o roncar dos aviões a esperança do leproso a confusão e a paz o massacre a adorável paisagem E acima de tudo S.O.S. Salvem nossas almas! Pelo menos uma vez colocamos nossas esperanças no limiar de um estábulo

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8. Méier Os trilhos ligam um bairro a outro e as ruas, prédios e casas são como placas de estrada Assim sabemos onde um bairro termina e outro começa Os trilhos parecem infindáveis passam ao longo de estações e bairros sempre os mesmos lisos, frios, silentes imutáveis Todavia, têm coisas pra contar afinal, gerações de passageiros viajaram sobre eles de madrugada à noite, sobretudo Inúmeros rostos em todos esses anos Alguns envelheceram, outros já se foram mas haverá novos para tentar essa viagem, essa viagem... A próxima parada é Méier está na hora de se retirar Porém os trilhos os trilhos continuam Recomeço - 19


9. Marysia e Henio Tal qual uma imagem congelada de TV eles sorriem do fundo da fotografia ou então, simplesmente olham com aquele olhar que a gente tem quando meio que percebe, meio imagina que o instante vai ser devolvido algum dia São todos muito jovens e vestem roupas que já não se vestem mais a juventude deles reverbera, ecoa na minha Juventude! Ah, juventude! E é claro, têm nomes – estranhos e sonoros nomes de outras terras: Marysia e Henio, Wanda, Haneczka Fazem parte do Zeitgeist que permeia as moléculas do que já foi O espírito do tempo se perdeu irremediavelmente – mas os amigos permanecem enquanto eu permaneço A minha nostalgia reacende a chama 20 - Tomasz


10. Perspectivas Assim de perto o bebê parecia satisfeito sua mãezinha segurava a mamadeira quase vazia de um lado recostado num pequeno travesseiro do outro protegido pelo corpo da mãe o bebê, meio adormecido, meio desperto parecia não notar o céu A mãe, jovem e bonita tinha olhos grandes, escuros e um sorriso agradecido imersa em sua maternidade tão próxima do bebê Ao abrir a janela do segundo andar o homem percebeu a mãe e a criança deitados num canto daquele prédio numa dessas ruas do Rio de Janeiro Ali a mãe havia criado um abrigo um delicado santuário um lar para o bebê (e para o seu sorriso agradecido) Por quanto tempo? perguntava-se o homem – Por quanto tempo? Recomeço - 21


11. Ímola Não! Quisera poder sussurrar ao seu ouvido: não vá! Mas ele apontava o carro de corrida contra a sua têmpora como se fosse um revólver E assim foi por anos a fio quando ele puxava o gatilho ouvia-se apenas um clique o projétil estava lá, pronto não foi daquela vez – ainda mas poderia acontecer a qualquer momento qualquer minuto agora O seu sorriso juvenil, sua simpatia nos faziam torcer por ele ano após ano, corrida após corrida e então o previsível

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Previsível, e ainda assim chocante – por causa da extinção da vida de qualquer vida que nos lembra de quão frágil é a nossa existência de como o homem é parte do homem coração do coração esperança da esperança sangue do sangue e de que a morte a morte é inaceitável Rio, 01.05.1994

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12. O personagem grego Era apenas um sonho (porém tão real!) quando na mais profunda das noites os sonhos mais caros tornam-se realidade Bem ao contrário quando, à luz do dia suspiramos, desejamos e escrevemos sobre sonhos (e deles nos precavemos!) O problema era que ele tinha conduzido a luz do dia para a mais densa das suas quimeras E as dúvidas morais que pudesse ter quando acordado ele agora as tinha na profundeza da noite Assim, como um personagem grego ele se complicou em sua humanidade

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13. Renascimento Já nascemos velhos e, por isso, procuramos alimento para o homem velho que vive em nós A juventude vem aos poucos quanto mais envelhecemos mais temos saudade do homem novo Há muitas coisas que me enfurecem e tantas maneiras com que aborreço os outros Mesmo quando consigo esconder as minhas loucuras elas estão sempre a me incomodar Mais, talvez, do que aquelas que descubro no meu vizinho Mas Ele perdoa e nos compreende Até mesmo quando o meu inimigo e eu não encontramos desculpa alguma Quando sou incapaz de perdoá-lo e também a mim mesmo Quem sabe, esse é o único modo de garantir a sobrevivência Ele vê o todo Quanto a nós, nós só nos percebemos as migalhas Recomeço - 25


14. Os pardais À toa empoleirado no peitoril da janela o pardal olhando os passantes Então, como um raio, a águia E lá estava ele em alturas jamais sonhadas nas garras de algo bem maior do que ele A águia soltou o pequeno pardal O passarinho tentou prosseguir o vôo e – maravilha – conseguiu voando, voando bem acima do seu tamanho bem além de suas forças Agora há uma fila de pardaizinhos à toa esperando a águia voltar de novo

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15. Turma 504 Cabeças inclinadas sobre provas cabeças silentes, pensantes Bocas entreabertas ou cerradas cabelo jogado para trás – Queixos descansando entre as mãos Concentração O silêncio é somente interrompido pelo ventilador no teto e pelos ecos que vêm de outras salas de aula Suspiros e pigarros contidos Até os mais capetas – verdadeiros Budas meditantes – Olhares humildes e dúvidas respeitosas voltadas para a majestade do professor lá em cima O coração se enche de afeto Sim, ele os ama A todos Mas aí toca a sineta – mais estridente do que nunca lhe parece Logo a algazarra de centenas de vozes enche todos os recantos da escola Recomeço - 27


Um dia, aqueles moleques, maduros e serenos também serão o pasto de cabritos de pumas e de elefantes Trégua e sossego? Respiro fundo – só no mês que vem

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16. Visões do que é Olhou a pedra viu pedra Do mesmo modo olhou as coisas, as pessoas, os acontecimentos e viu coisas, pessoas, acontecimentos Uma noite, na companhia de pastores sonolentos, viu anjos desvelarem a estrela acima das nuvens e o cometa além do céu Dali em diante ainda viu as mesmas coisas pessoas e acontecimentos mas tornaram-se outras coisas outras pessoas, outros acontecimentos Mais vibrantes mais significativos mais vividos Mais

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17. Inevitável A simetria entre o caminhar para mim mesmo e o contrário só percebo (e nem sempre) depois de longos anos O querer dos irreconciliáveis me acompanha tritura causa alegria há tanto tempo Estendo os braços em busca de equilíbrio olho para dois horizontes duas metas duas lógicas dois corações e não enlouqueço Sinto o movimento da saudade dupla do distanciar-se do chegar

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18. Eu também Dezenas de barcos ancorados o mar em paz A silhueta de Niterói Morro da Viúva Pão de Açucar O tráfego do amanhecer ruge pela metade do Santos Dumont aviões rumo ao sul Movimento, ruídos, sons meia agitação A plácida superfície ondula os barcos à espera – eu também

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19. Tudo Nada existindo tudo ĂŠ Nada sabendo Nada tendo Tudo! Tu, comigo

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tudo sei tudo possuo


20. Nem cedo, nem tarde demais Olho para ele e para mim Alto, baixo? De olhos azuis? Profissão, origem, domicílio Tudo bem Mas e o resto? Quanto? Exatamente 1/9 é o que dizem dos icebergs das imperscrutáveis penumbras das nuances das variáveis Aos olhos dos outros um esquema perfeitamente lógico coerente previsível Essa descoberta chega na hora certa: nem cedo, nem tarde demais Ele me conhece Recomeço - 33


21. Raio X Velhinha de perna inchada mulher ainda jovem o homem do: “Bom dia!” mulher remexendo na sua bolsa plástica duas reclamando jovem abrindo os olhos homem lendo jornal alguém lendo uma revista alguém fitando alguém Deve haver algo em comum: sendo eu mesmo também sou todos eles? “Próximo, por favor!” Chegou a minha vez

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22. Asas Valso no salão do universo Que diferença faz? A mesma elevação de asas de rodopios de não mais pertencer ao aqui e ao agora Mas é claro, a dama é fundamental ela sustenta as asas segue, indica o passo Sozinha a valsa não subsiste por mais que seduza por mais que prometa

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23. Juro Nas pupilas a mais pura verdade da mentira Indignação ânsia de aniquilar Pretexto que revela outros motivos Como descobrir o que acontece fora e dentro do coração se me minto tão bem?

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24. Imigrante (de verdade) Lentamente campos bosques rios o mar Adentraram artérias veias células sanguíneas Híbrido por dentro por fora estrangeiro Somente aquela terra sabia de verdade até que ponto ele lhe pertencia

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25. Sem perceber Há anos batia na porta da poesia – “Quem é?” – “Sou eu” – “A porta está aberta” Apertei a maçaneta puxei – continuou fechada Assim por longos anos até que, silêncio ninguém mais chamava Por fim, sem perceber esbarrei na porta Abriu-se Há tempos um filósofo havia dito que seria assim Falava do amor

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26. Arpoador O mergulho das pedras do Arpoador Na areia aquela que gostava dele aquela de quem ele gostava – que gostava de ... O anjo torto tinha razão O tempo tudo desmanchou Menos as pedras menos as areias

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27. Quanto mais Quanto mais busco o Brasil tanto mais descubro a Polônia e também o contrário Fala a terra e o espírito que nela habita Cerejas e manga a bétula e o guatambu a criança loura e o meu Curumim Sinto-me polonês de verdade um brasileiro Quando o ser humano mostra o seu rosto quando cruza o limiar de si mesmo quando me estende sua mão

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28. Cidade velha de Varsóvia Café-com-creme panquecas dia ensolarado brancura sorridente O impacto do agora Na parede, ali perto, uma placa conta uma história diferente de dias já antigos Cada pedra da rua sussurra nomes de ausentes-presentes Para os estranhos Café-com-creme para nós, para mim quase um sacrilégio

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29. A bétula Da janela do trem a paisagem passa rápido demais Expresso Varsóvia-Berlim De que lado está a bétula? A que profundidade chegaram suas raízes? que sangue, polonês ou alemão, mais lhe serviu de alimento? Alguém a plantou ali decidiu que seria ela a fronteira

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30. Por quê? Para onde? Era noite umas quatro da manhã saíram Caminhava amedrontado pequeno demais para entender Mandaram ficar quieto Caminhavam lentamente para não tropeçar para não quebrar o silêncio Depois não lembrou mais Por quê? Para onde? Logo chegou a manhã – noite estranha, noite escura

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31. Agora O tempo tridimensional – condição para sermos Dois pulmões e coração A primeira respiração para a qual estamos sempre voltando O coração batendo agora, agora, agora ao ritmo da tripla saudade A outra respiração aguarda a aurora que se aproxima

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32. Sempre No ar, maio no jardim, sobre a mesa sopa de beterraba Sempre houve um maio assim Mesmo quando as bombas os canhões as balas ameaçavam Comendo coalhada com batatas novas entre flores já faz tanto tempo com mamãe (papai tinham levado) esse maio tão lindo em Varsóvia

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33. Minha O bombardeio às três Pelas quatro, vieram-nos buscar e nos levaram para a Praça do Castelo Tivemos que subir em caminhões Os canos das metralhadoras apontadas em nossa direção Passamos o resto da noite no banheiro da prisão Então a rotina da cela 25 de manhã, a chamada café aguado, pedaço de pão fome, medo, frio Agora, sol vista para o Vístula Era assim, é assim minha Praça do Castelo

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34. Um som Instantes inspirados ardem, tão poderosos que o céu toca a Terra a Terra fica azul o coração se espraia no universo o devaneio torna-se sonho o ser, ser Um som, uma palavra a cor, o toque Evocam uma realidade que não existe mais

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35. 1Âş de julho LĂĄ estĂĄ a folhinha na parede Acabou o semestre Hora de arrancar mais uma folha Olhar para o rosto do novo dar o primeiro passo abrir fechar Pegou a folhinha hesitou nela, alĂŠm de meses, dias um prado e nele cavalos a galope

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36. Entre parênteses Um caminho que leva a algum lugar (contanto que o sigas) Uma porta que se abre ou que se fecha (ponto de vista) Uma árvore uma flor pela qual passas (inevitavelmente) Um encontro (com alguém que fica contigo) Um país (que escolhes ou és por ele escolhido) Vida (tudo entre parênteses?) Morte (.......................)

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37. Serei Meu netinho acordou chorando – no pesadelo, Dziadzio morreu virou monstro Dziadzio nunca desejou tanto não morrer tornar-se eterno Graças a essas lágrimas de sonho mau tentarei, pelo menos, não virar monstro Serei um anjo para Lucas sorrir

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38. Ilumina De repente um sinal, uma palavra tornam presente o passado ao ritmo do coração (jovem na perspectiva do envelhecer) O perdido para sempre mais do que lembra – está presente de novo no gesto de outra pessoa Entre o que foi e o que é reacende a brasa arde a chama ilumina o espaço do meu ser

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39. Mais um A casa no inverno os caminhos cobertos de neve as árvores vestidas de branco silêncio, lonjuras Lá dentro a lareira acesa os de casa e seus afazeres ele ainda não existia Agora, mês de maio em flor multidão de fãs um francês ao piano ele já não está mais lá Onde foi que ele se sentiu solitário de verdade? Longe de Paris, de Varsóvia? Ou justo lá? A melodia triste paira sobre conquista o mundo A nostalgia já não fala mais de tristeza conta-nos sobre o destino de um andarilho polonês Mais um * Lugar de nascimento de Chopin

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40. Tu Tu conheces aquela sensação ao teu lado está alguém ou algo que amas Invisível, mas próximo inaudível, mas tu o ouves Essa presença amiga desperta em ti a saudade aumenta Na memória surgem topografias rostos até mesmo animais daquela terra Que te alimentou, acalentou nunca disse adeus O angolano em ti existe ao lado do polonês do brasileiro Tu – filho daquela terra deste planeta

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41. Opção Metro Passeio (havia outros cinemas do mesmo nome) Mais adiante a Rua Senador Dantas e o cinema agora fechado Quase na esquina o Foto Preuss Maestro Eleazar de Carvalho e os Concertos da Juventude Os que permanecem: Biblioteca Nacional Theatro Municipal Museu Nacional de Belas Artes No final da Avenida Rio Branco, o Obelisco Entre o que acaba e o que continua me apego ora a um ora a outro Assim a minha vida: uma escolha

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42. Sans paroles Segui o jovem Lobo Solitário vi-o subir as pedras do Arpoador sentar-se olhando o Oceano A lua cheia despontava no horizonte as ondas batiam no quebra-mar O uivo do seu coração inaudível para os outros ressoou no meu E eu, com pena de mim mesmo, vi surgir na escuridão a miragem que o atormentava Que atormenta a todos entre os vinte e os quarenta ou mais depois sossega

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43. Londres 2004 Se buscas aconchego toma o Tube mais próximo o metrô de Londres há de te levar em segurança sempre chegarás lá Faz bem saber que enquanto lá em cima as ondas se agitam aqui embaixo o trilho te protege o trem vai e vem, vai e vem Se estás perdido, pergunta alguém te sorrirá Depois a escada rolante te desliza dessa viagem na caverna amiga à luz do dia

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44. Londres 2005* O metrô aconchegante que recordo sua quietude mágica e harmonia bem longe da turbulência de cima meu refúgio do superficial no subterrâneo Correm perigo O homem sem coração, sem carinho não apenas matou as minhas lembranças tornou a fuga impossível O acima e o abaixo tornaram-se igualmente agourentos

* Em 7 de julho de 2005 o Metrô de Londres sofreu um atentado terrorista.

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45. E eu... No cinema Metro Passeio As Neves do Kilimandjaro Ou era outro filme? Os atores, tenho certeza, eram daquela época Para entrar no cinema só de gravata havia um lanterninha – que fim levou ele? Praça Paris, Cinelândia Ingrid Bergman esperando no banco da praça Mas essa já era outra película E eu, outro alguém

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46. Encontro do acaso (?) Havia muitos: importantes variados locais intercontinentais Belos – do coração também aqueles sem Espirituais étnicos linguísticos Os simples, modestos, os tímidos Do acaso (?) Misteriosos Únicos Havia algo em cada um um sinal, uma marca negava o transitório Afirmava que cada um poderia ser aquele grande, aquele verdadeiro Encontro

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47. Aqui Papai esteve aqui ainda está porque aqui o que aconteceu perdura Piso no Túmulo Coletivo o pó miúdo de corpos queimados grudou nestas paredes para sempre Impossível libertar-se deste saber eles ainda estão aqui permanecem O grupo multilíngue de visitantes lembrará que a crueldade consegue ser cirúrgica maltrata, mata depois emite certidões de óbito informa as famílias “Conforme lei tal e tal parágrafo tal e tal...” Nessa férrea disciplina o homem se sente justificado

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Não há culpa onde impera a ordem Sim, papai esteve aqui sobreviveu – de verdade? Agora, com toda certeza, é-me mais próximo ainda

Auschwitz, 14.6.2006

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48. Para o sempre Do diário de uma prisioneira de guerra: Zellenarrest! (proibida de sair da cela) A minha mãe era Reichsdeutsche (alemã de nascimento) Agredida e maltratada por ser “mulher de polonês” Em liberdade recebia cartas de Auschwitz para lá enviava mantimentos – Lealdade colocada acima do estigma Mas, apesar de tudo, encontrou bondade em toda parte e viu o céu azul Alma heróica polonesa e alemã de coração esposa leal minha mãe para o sempre

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49. Você também “Novo Mundo” a rua ideal talvez a mais bela Conduz não em linha reta você não sabe o que adiante lhe espera lá não há arranha-céus carinhosamente protege seu espaço livre Não fosse assim não seria tão bonita Cada pedra da rua o pombo que surge de repente a folha seca entre as flores são lindos Porque são apenas eles mesmos Você também

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50. Liceu Ruy Barbosa em Varsóvia O Diretor disse: “Formulem suas perguntas! Mais um pouco e o nosso poeta não estará mais aqui” Como perpetuar esse instante para que não escape para sempre? Vejo jovens fitando o imigrante em muitos perguntas não formuladas Também o apalavrado: “A nossa juventude irá se renovar de geração em geração e aos poetas do Brasil prometemos uma inspiração que não acaba mais” Pela janela entra o verde da primavera de Varsóvia

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51. Esse instante Para Jerzy Mazurek

Como respira a aldeia polonesa? Saberás em Kosowice Pela janela vejo colinas e terra arada ao lado da casa, o vento agita a árvore Lá ceifei capim pela primeira vez! Me ensinaram como manejar a segadeira Um mesa e de ambos os lados bancos de madeira O camponês e a camponesa que oferecem quitutes Eu não me farto desse campo polonês já não com os olhos do corpo mas também com os do coração e da alma abarco esse instante de silêncio e de felicidade sobre a terra

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52. E de mim? Para Fernando Pessoa

Deixei de ser para vir a ser um outro Já não me conhecem apenas a minha aparência não o meu existir Eu – o outro – sou deles o que eles conseguem ver Deles escapo e de mim?

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53. Um homem e uma mulher Encontraram-se socialmente Conversaram Enquanto conversavam secretamente inaudivelmente (para eles, para n贸s) diziam-se coisas (?) (...)

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54. Ainda! O bebĂŞ encara sorridente o amanhecer A velhinha encantadora o dia que finda Eu (ainda!) estou na corda bamba do presente

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55. A visita Aproxima-se da nossa janela suspenso no ar mergulha o bico na flor cintilante, desaparece momento fugaz de cores O beija-flor que nos visita jรก vai embora num vai que vem num vem que vai Eu, com ele

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56. O poema perdido e encontrado Há pessoas que pertencem a um lugar também aqueles que têm o seu predileto Outros não gostam nem mesmo do lhes destinado Alguns viajam para lugares distantes exóticos, complicados Há também os utópicos Às vezes, encontro aqueles que se afastam ou se aproximam de si mesmo Hoje conheci alguém que afirma ser ele mesmo o seu lugar

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57. Proximidade Não estava lá – não estava presente às vezes deixamos de existir por não estarmos num lugar Voltou a existir – nós também quando a proximidade revelou-se na chaga aberta no leve, tímido, obediente toque na ferida Até hoje o recriminam por não ter acreditado esquecem a sua solitária tristeza – que eles também poderiam não ter acreditado Que foi ele que por todos nós dissera “Meu Senhor e meu Deus!” Páscoa, 2006

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58. O ônibus da Central II Sentou-se ao lado de uma menina tinha uns oito anos A mão dela tocou seu braço “Pode pegar uma” disse oferecendo-lhe uma bala Meio sem jeito aceitou “Tá gostosa! Aonde você vai?” “Visitar minha tia” Despediu-se dela, deu-lhe um beijo Da calçada viu a menina debruçada na janela sorria ele para ela acenaram

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59. Luz súbita Sua pureza me atingiu em cheio Ainda menina a formosura do não saber Um confiar simples certezas simples também Cansado de tanto saber – de conhecer o mundo do conhecer melhor ainda a mim mesmo senti-me atingido por esta luz súbita transformado por ela naquele que, um dia, eu também fui

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60. Amanhã Rio de Janeiro De novo o parque Łazienki a sopa de beterraba a melodia de Chopin Dois amigos tentam dizer-se algo entender alguma coisa Por fim, as palavras sobram A longa tarde de verão, anoitece claro no parque, silêncio Amanhã um outro continente amanhã Rio de Janeiro

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61. A fila Para Aleksander Laks

O menino na fila do pão sorri as outras crianças também sabiam que um dia os veríamos? Na foto podemos identificar a idade o lugar e a Estrela de Davi Desses meninos um guardou até hoje o seu sorriso Com ele pede, conclama que não haja mais crianças na fila do pão que nunca mais haja um lugar assim que a Estrela de Davi não esteja mais no peito mas dentro do coração

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62. Reflexões natalinas A questão é cabe um esquilinho na cena do Presépio? O boi, o burrinho, outros bichos tudo bem – mas um esquilo? Acontece que um deles olhou para mim no parque em Varsóvia quase alcança a mão estendida Vou colocá-lo então no Presépio quero que ele dê ao Menino Jesus a mesma alegria Natal, 2006

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63. Naquele dia Aquela flor no altar morrendo para dar vida Este é o seu exato o único momento Aquele sorriso também único para alguém triste Aquela palavra a mão estendida Só poderia acontecer então não antes não depois irrepetível Aquele encontro desencontro Aquela pessoa não outra Aquela flor naquele dia

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64. (Auto) Excluído Para um amigo judeu

A língua materna os costumes daquela terra os antepassados parentes, amigos esta e não outra arquitetura esta e não outra flor fruta, comida O que amo desde o sempre O meu sangue agora o nega nega-o a minha origem Bem queria que fosse diferente mas, mesmo sendo de casa, não o sou Opto, então, por não mais lhe pertencer Para aliviar essa dor insana conto piadas rabínicas

78 - Tomasz


65. O relojoeiro Olhou para o relรณgio estava parado o ponteiro de segundos ainda tremia Quanto tempo jรก passou? Que horas eram? Quanto ainda lhe restava? Meio perdido procurou o Relojoeiro

Recomeรงo - 79


66. Homenagem Para o 100º aniversário de Ir. Paulina

“O que é a vida?” “A vida, filhinhos – são infindas boas-vindas e uma longa despedida”

80 - Tomasz


67. A pomba branca Quis bater na porta Mas qual? O limiar que ele cruzou em Roma? A pequenina mão negra, que agarrou a sua? O Alcorão, que ele beijou? O índio do Amazonas, seu irmão? E tantos outros na Ásia na Polônia, na Ucrânia? Todos, em cada um? Línguas sem conta? Fronteiras? Rostos? “Solidarność” Os jovens de Toronto, Tor Vergata? O Muro das Lamentações? Ali Agca? Velhos, doentes? O taxista desconhecido, em alguma parte? Você, eu? A pomba branca posou no seu braço e disse “Não carece bater” Abril, 2005 Recomeço - 81


68. PaixĂŁo Este fogo queima, arde Se para, morre Se continua, tambĂŠm

82 - Tomasz


69. Obrigado Obrigado Senhor por este corpo, meu corpo por esta alma, minh´alma por este coração, meu coração Por Deus Pai Deus Irmão Deus Amigo Não somente meu

Recomeço - 83


70. Eu me pergunto Todos esses mendigos – são tantos! – Jovens e velhos com ou sem nome do passado ou do presente vivos ou já falecidos calados ou falantes os tristes e também os joviais os alegres Dividindo as calçadas com os pombos que partem em súbita revoada O que eles têm em comum além das ruas de Copacabana?

84 - Tomasz


71. Há de bastar-me Aquele ano... Aquele mês... Aquele dia... Todo ano o mês se repete volta aquele dia somente o ano não volta mais Já que é assim fico com a data do mês e quando esse vier a faltar há de bastar-me aquele dia

Recomeço - 85


72. Chega! Que culpa tenho eu – nascido em Angola – de não ser negro? Adotado pelo Brasil de ser gringo? Que culpa? De ser filho de alemã na Polônia e de polonês na Alemanha? Chega de falsas culpas! Já não bastam as verdadeiras?

86 - Tomasz


73. E também o contrário Por cima do mar ligando o Rio a Niterói com mais de 14 km uma ponte Por cima do rio Vístula ligando Varsóvia a um dos bairros com menos de meio quilômetro outra ponte Às vezes fica mais difícil atravessar essa do que aquela ou mais fácil Amiúde estou lá enquanto estou aqui e também o contrário

Recomeço - 87


74. Lembranรงas de 1950 Da nissei quase namorada do beijo nรฃo dado Do hai-kai Deste caminho sรณ meio andado

88 - Tomasz


75. O tempo O tempo, esse amigo, te diz: não te aflijas esses anos luz essas estrelas distantes não te dizem respeito A tu existência neste planeta cabe no aqui e no agora no sou, no estou aqui

Recomeço - 89


76. Leminskiana Depois de tantos eletrocardiogramas vários eco um da carótida dois Holter e três ergométricos o cardiologista, finalmente, deu o seu parecer: Tenho coração

90 - Tomasz


77. Sempre Sempre que chega o nunca e nunca chega o sempre Fico parado aguardando Simplesmente

Recomeรงo - 91


78. Quase Finalmente, chegou a tal hora, bateu à porta do paraíso “Permanência temporária”, dizia o cartaz Essa viagem – demorou tanto! e tão somente o transitório? “Acostumar-se à felicidade é o seu fim” explicou o anjo “Aqui só temos o eterno agora”

Já ia comprar a passagem de volta quando o anjo o advertiu: “Lá, o agora é nada eterno”

92 - Tomasz


79. Miguel Pereira II Quando me sinto meio triste meio cansado meio desanimado vou para Miguel Pereira meu pedaรงo de chรฃo brasileiro

Recomeรงo - 93


80. Quatre-vingt é mais do que oitenta: Vingt: o mundo a meus pés Quarante: um lugar ao sol Soixante: tempo de colheita E, finalmente, quatre-vingt: recomeço

94 - Tomasz



Esta obra foi impressa em processo digital/sob demanda, na Singular Gráfica para a Letra Capital Editora. Utilizou-se o papel pólen soft 80g/m² e a fonte Adobe Garamond Pro, corpo 13/16. Rio de Janeiro, agosto de 2014.


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