ACADÊMICa Série
Rio REvisto de suas margens
Rio REvisto de suas margens
Rosemere Maia ORGANIZADORA
Copyright © Rosemere Maia (organizadora), 2018 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem a autorização prévia e expressa do autor.
Editor: João Baptista Pinto
Projeto Gráfico: Rian Narcizo Mariano
Capa: Eduardo de Oliveira Bordoni Revisão: Rita Luppi
2ª Edição
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ R452 Rio revisto de suas margens / organização Rosemere Maia. - 2. ed. - Rio de Janeiro : Letra Capital, 2018. 264 p. : il. ; 23 cm. Inclui bibliografia ISBN 9788577856190 1. Ciências sociais. 2. Planejamento urbano. 3. Política urbana. 4. Segurança pública - Brasil. 5. Violência urbana. 6. Meio ambiente. 7. Trabalho. 8. Habitação. I. Maia, Rosemere. 18-52130 CDD: 320 CDU: 32 Leandra Felix da Cruz - Bibliotecária - CRB-7/6135
Letra Capital Editora Telefax: (21) 3553-2236/2215-3781 www.letracapital.com.br
Rosemere Maia O rganizador a
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A presentaç ão
De olho nas margens Rosemere Maia A coletânea que ora apresentamos reflete, em sua essência, os debates havidos ao longo do Seminário “Rio (re)visto de suas margens”, que teve lugar na Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em setembro de 2017. Temas como Território/ Periferia, Violência/Segurança Pública, Mobilidade urbana/Questão ambiental, Trabalho/Habitação, dentre outros, foram discutidos por acadêmicos, representantes de organizações da sociedade civil, lideranças comunitárias, todos preocupados com processos sociais, econômicos, políticos e culturais que permeiam a dinâmica dos bairros “periféricos” cariocas e afetam significativamente sua população, assim como marcam a realidade de outros municípios que compõem a Região Metropolitana do Rio de Janeiro e de outros estados brasileiros. O seminário de 2017 decorreu de uma iniciativa do Programa de Educação Tutorial (PET) Conexões de Saberes “Caminhos de Santa Cruz” e contou com o apoio do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFRJ e da CAPES (cujos recursos disponibilizados viabilizaram a publicação desta obra). Ao longo do evento, pudemos, assim, colocar o RIO em perspectiva, olhando-o a partir de suas margens. Mas que história é essa de margens? Sabemos que quando conceituadas/definidas podem parecer controversas, causar perplexidade aos olhos da academia. Quando vividas, entretanto, tendem a ganhar múltiplos sentidos para aqueles que a partir delas olham para “A CIDADE” ou que nelas vivem. “Viver à margem”, nesse sentido, torna-se uma experiência real para os que constatam que as possibilidades de “navegação” neste RIO colocam-se como desiguais, da mesma maneira que a capacidade de abastecimento por ele – seja em serviços, equipamentos, postos de trabalho, por exemplo – não é a mesma para todos os citadinos. Nos bairros periféricos e favelas, o sentimento generalizado entre os moradores é de que este RIO a que têm acesso é mais raso, estreito, assoreado, dificultando qualquer possibilidade de navegação.
6 ▪ Apresentação - De olho nas margens
Para aqueles que vivem nas áreas mais distantes, as “embarcações” que os levam ao Centro ou zona sul da cidade dita maravilhosa não detêm horários regulares, seguem sempre lotadas ao longo da semana, e restritivas, aos sábados e domingos. São horas e horas de navegação, comprometendo a saúde, as relações familiares, as práticas comunitárias, o fazer político. Nessas margens, ano após ano, têm sido depositadas pessoas que, sem bússola, sem norte, lá se estabelecem para iniciar uma nova vida, deparando-se com “ausências” de toda sorte, inclusive de identidade com o lugar. Colocar em perspectiva este RIO é, por assim ser, não só constatar essas ausências existentes nas suas margens, denunciá-las, mas pensar e propor formas de superá-las. É demonstrar que o Rio olhado das margens não é um outro, um desconhecido, uma entidade distante e inacessível, mas deve ser apropriado e vivido em sua integralidade por todos aqueles que nele navegam, seja em que direção for, seja a partir de que porto ou ponto de vista. Nesse sentido, os textos que se seguem apresentam olhares diversos sobre a relação das margens com o RIO. O livro está dividido em três seções, onde na primeira delas – OLHARES SOBRE AS MARGENS – apresentaremos artigos acadêmicos que problematizam questões que afetam diretamente o cotidiano de moradores de alguns bairros periféricos e favelas, seja no que concerne ao campo da habitação, seja no que se refere ao trabalho, ao risco, à violência, à degradação ambiental. Rafael Soares Gonçalves analisa em seu artigo as chuvas ocorridas em abril de 2010 e a forma como o evento foi coberto pela mídia, contribuindo para tornar os moradores das favelas, uma vez mais, os grandes culpados pelos impactos ambientais daí derivados, recolocando em pauta as remoções na gramática política carioca. Valéria Pereira Bastos, em seu texto, discute os impactos socioeconômicos ocorridos na vida dos catadores de materiais recicláveis, após cinco anos do encerramento do “Lixão” de Gramacho, procurando identificar até que ponto a Política Pública de Resíduos Sólidos se efetivou e se ocorreram, ou não, avanços no processo de gestão integrada desse material, indicando os desafios ainda a serem vencidos. Giselle Tanaka se utiliza de alguns casos de resistência às remoções ocorridas na Cidade do Rio de Janeiro para refletir sobre as
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lutas urbanas e sua interferência na narrativa pública sobre a cidade, bem como na produção do espaço urbano. Traz à tona os conflitos presentes nesse processo e as reações emanadas dos movimentos sociais urbanos, lideranças populares e militantes, levando à abertura de novos canais de ação política. Tainá de Paula Alvarenga, por sua vez, trata dos processos sociopolíticos e territoriais que têm marcado o bairro de Santa Cruz no Rio de Janeiro, interferindo diretamente na vida da população local a partir da chegada dos empreendimentos do Programa Minha Casa Minha Vida à localidade. A autora discute tanto as dificuldades de reprodução da vida material e social enfrentadas pela moradores, quanto os estigmas que decorrem das relações entre os antigos e os recém-chegados. Suellen Guariento apresenta, em seu artigo, duas dimensões que considera fundamentais para a compreensão das margens do Rio de Janeiro: a presença contemporânea do Estado nas áreas periféricas e as estratégias de resistência da população às suas formas de atuação, demonstrando o quanto ele (o Estado) tem se apresentado como principal violador de direitos de segmentos sociais que ocupam determinados lugares, resultando em conflitos e mortes. Mário Brum faz uma discussão histórica sobre a favela, desde seu surgimento, até os dias atuais. Sua análise refere-se a marcos e a eventos relacionados ao fenômeno, mas abarca também as políticas públicas que transitaram entre a contenção, erradicação ou utilização das favelas para fins políticos e “eleitoreiros”. O autor discute, outrossim, os estereótipos e estigmas que envolvem esse espaço e seus moradores, assim como apresenta as lutas e resistências dos favelados frente ao poder instituído. Cristiane de Oliveira, Gabriela Icasuriaga e Sônia Le Cocq d´Oliveira trazem um relato de experiência, derivado de um projeto de extensão universitária desenvolvido na ocupação denominada Portelinha, no bairro da Maré. As autoras apresentam as atividades desenvolvidas e os impasses derivados da relação estabelecida com os diferentes atores sociais e políticos existentes na área, questionando a todo momento o papel social da universidade. Bianca Wild apresenta em seu texto o Ecomuseu de Sepetiba como alternativa a um modelo de desenvolvimento excludente que não prioriza o diálogo com a população com vistas ao desenvol-
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vimento local. Nesse sentido, a autora demonstra como essa nova proposta tem fortalecido as conexões entre os moradores do bairro e enfatizado processos comunitários de gestão, reforço das identidades locais, consciência da necessidade de desenvolvimento da área e luta pelo direito à cidade, na sua acepção mais ampla. Para este livro, também convidamos pesquisadores de Portugal – cujos estudos não têm se direcionado para a realidade do Rio de Janeiro e de sua Região Metropolitana, especificamente – que se dispuseram a refletir sobre a periferia enquanto categoria sociológica/antropológica. Daí que a segunda seção desta obra, intitulada OLHARES PARA AS MARGENS, trará à luz questões que, para além se serem úteis à compreensão de uma realidade específica, permitemnos pensar em processos sociais, culturais e políticos que se apresentam em várias cidades na contemporaneidade, problematizando os desafios e indicando formas de superação. Marluci Medeiros discute em seu texto os territórios de interseção como espaços em potencial para o estabelecimento de um urbanismo de (re)contato. A autora trata das bipolaridades resultantes de oposições extremadas – e de que o par centro/periferia é um dos exemplos possíveis –, mas coloca como seu objetivo central evidenciar o que se manifesta nos territórios de interseção, possibilitando o inventar de um dinâmico e interativo processo de cocriação na restituição de um urbanismo de contato entre territórios. Carlos Fortuna, por sua vez, analisa a retração do espaço público e a fragilidade atual do espírito coletivo urbano, demonstrando que as repetidas “modernizações” urbanas continuam a criar sempre novas expressões de segregação, desigualdade e injustiça. Com pendor ensaístico, o texto sustenta a necessidade de uma renovada negociação democrática sobre a vida urbana, baseada num princípio de negatividade que inclui o empoderamento e a participação das margens e periferias na reforma da cidade, dos seus espaços e culturas. A terceira seção do livro – OLHARES A PARTIR DAS MARGENS – traz artigos, crônicas, relatos, poesias, não necessariamente comprometidos com o rigor acadêmico, com a teoria, com a “Ciência”. São muito mais VIVÊNCIAS. Refletem a forma como seus autores leem o próprio bairro, a cidade e suas dinâmicas a partir de uma posição que já os coloca em desvantagem em vários sentidos. São leituras de “ribeirinhos” que, como dito no início desta apresentação, veem o
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Rio assoreado, raso, estreito. Mas que sonham, por vezes acordados, com outras possibilidades de nele “navegarem”. Os textos – afetivos, com cara, cor, raça, risos e lágrimas – são de autoria de membros do PET Conexões – Caminhos de Santa Cruz, inclusive da coordenadora, todos oriundos de espaços populares, tendo uma contribuição especial de Adilson Dias, artista que nasceu em Santa Cruz e que nos presenteia aqui com uma poesia. Rosemere Maia apresenta o bairro de Paciência, localizado na zona oeste da Cidade do Rio de Janeiro, a partir de fatos que viveu durante sua infância e adolescência. A periferia de que trata é fruto de reminiscências, que remete a afetos, a trajetos, a referências opacas em relação à cidade. São fatos, relatos, “verdades” lidas a partir das lentes de que dispunha naqueles anos, confrontadas com referências atuais, inclusive “acadêmicas”, capazes de (cor)romper quaisquer visões pueris, românticas e saudosistas em relação ao passado. Alice Freitas do Nascimento, Cristiane Marcelino, Erica Menezes, Jonas Linhares, Karla Raymundo, Luciana Simões, Maria Alice Arrais Pereira, Maria Raquel Cavalcante Rodrigues, Stefanie Alves, Tainá Oliveira e Thais Souza falam de violência, racismo, mobilidade, educação, trabalho – todos, como tantos outros, temas e problemas que fazem parte do cotidiano dos moradores das periferias. São dramas e percalços com que se deparam cotidianamente e, talvez por isto, sejam pintados em cores e tons tão fortes. A fotografia que fazem dessa realidade não é submetida a qualquer tratamento de imagem. Não há lugar para photoshop para amenizar a crueza dos fatos. Esperamos que vocês, leitores, estejam abertos a conhecer um OUTRO RIO. Embarquem na leitura e conheçam suas margens. Elas têm muito a mostrar.
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Prefácio Maria de Fatima Cabral Marques Gomes1 A crise das cidades e, em especial, as expressões da questão urbana que se observam nas suas periferias hoje, revelam a face mais perversa do capitalismo em sua fase neoliberal. Nessa perspectiva, o neoliberalismo é identificado primordialmente com forças supralocais – por exemplo, novas formas de acumulação de capital ou novos regimes de poder do Estado. Essas forças envolvem as cidades dentro de um regime de governança cada vez mais dominado pelo mercado (BRENNER E THEODORE, 2005, p. 103). Favelas, bairros periféricos e outras formas de assentamentos precários são formados por uma massa excedente descartável, hoje parte do exército de desempregados sem possibilidades de inserção no mercado de trabalho e que constituem a pobreza periurbana. Segundo Davis (2006), “a pobreza periurbana (...) – é a nova face radical da desigualdade”. Para esse autor, essa situação não é mais uma particularidade do capitalismo periférico, mas tem sido observada mesmo nos países centrais. É importante afirmar que esse panorama desalentador, do ponto de vista da emancipação humana, é o resultado do desenvolvimento pleno do capital, ou seja, da prevalência quase absoluta do econômico que traz profundo impacto para o espaço e as relações sociais. O aprofundamento das desigualdades e a própria ideia de sociedade e cidadania ficam comprometidas nesse contexto. Isso justifica uma ampla discussão que inclua diferentes realidades com perspectivas distintas. O Rio de Janeiro passa por uma grave situação, marcada por decadência econômica, crise política e colapso dos serviços públicos. A crise se aprofundou de forma colossal a partir de uma tentativa malsucedida de refazer o lugar econômico da cidade já em tempos de crise estrutural do capitalismo. O movimento iniciado na década de 1990, na ex-capital da República, historicamente lugar de luta política com ressonância nacional, dá corpo a movimentos de resistência a um 1 Professora titular da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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projeto de cidade excludente. Tal projeto não apresenta novidades, posto que se funda na reprodução de experiências de outras cidades sem levar em conta a realidade carioca. Por meio da produção do espaço, transformaram áreas de produção decadentes em espaços de atração de negócios ligados ao setor terciário e ao turismo. Assim, a face da globalização financeira, como nova forma de acumulação, se realiza com o empresariamento urbano e traz consequências deletérias em relação às condições de vida dos segmentos mais desfavorecidos da cidade. Nesse contexto, torna-se cada vez mais importante que a universidade volte seu olhar para as periferias do espaço urbano na busca de maior compreensão de processos que assumem complexidade crescente. Esse conhecimento é fundamental para a melhoria da vida dos segmentos da população que habitam esses espaços, bem como pode alimentar as lutas sociais. A interpretação e análise dos fenômenos que se expressam na cidade contemporânea exigem um aproximação das áreas de conhecimento com a participação de diferentes disciplinas, de forma aberta e plural no sentido de problematizar questões que afetam diretamente a vida dos moradores empobrecidos. Surgem novas formas de organização e resistência que, embora fragmentadas e temporárias, revelam que o lado passivo do sujeito é continuamente pressionado. Quando a insatisfação radical apodera-se das massas de forma mais ou menos organizada, constitui-se um sujeito verdadeiramente ativo, que, lançando um desafio ao presente, finalmente decide enfrentar as forças opressoras. Os textos reunidos nesta coletânea analisam a situação extremamente perversa que atinge os segmentos mais pobres da população e procuram compreender expressões dessa realidade. Vale destacar que o tema da cidade não é o único elemento que unifica os textos desta obra, mas a perspectiva crítica que os norteia. Sem dúvida, é essa perspectiva crítica que pode orientar as transformações necessárias no sentido de tornar a cidade mais justa. A obra ora apresentada, fruto do Seminário “Rio (re)visto de suas margens”, que teve lugar na Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em setembro de 2017, é marcada pela formação e perspectiva da professora e pesquisadora Rosemere Maia, organizadora do seminário e da coletânea. Ela é professora e pesquisadora do programa de Pós-Graduação da Escola de Serviço Social da
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UFRJ, e tem, e na sua trajetória acadêmica, se destacado no debate sobre questões ligadas à CIDADE. Sua preocupação com o tema fez dela uma estudiosa que tomou sempre por base a pesquisa empírica, valendo-se de todos os espaços do exercício do magistério, desde a sala de aula na graduação até incursões pela cidade na tentativa de revelar aos alunos dimensões do espaço urbano reservado aos mais empobrecidos, que vivenciam questões muitas vezes pouco conhecidas. Inquieta com as mazelas urbanas, Rose Maia procurou através do trabalho de extensão universitária oferecer respostas às demandas postas pelos moradores que se encontram à margem da cidade. Na tentativa de ampliar o horizonte de sua formação, doutorou-se em Geografia e, mais tarde, fez pós-doutoramento no exterior (Portugal) com sociólogos também interessados na questão urbana. Sua pesquisa sobre a cidade privilegiou dimensões pouco estudadas, como bairros periféricos, sendo Santa Cruz um dos seus objetos de estudo. Assim, Rosemere Maia soube tirar proveito do espaço da universidade como um espaço de debate plural, aberto e crítico, a serviço da sociedade, oferecendo-nos nesta obra um conjunto de artigos, poesias e depoimentos que dão conta de uma diversidade de temas, observados a partir de diferentes ângulos, por meio de uma variedade de ferramentas teórico-metológicas, possibilitando-nos compreender como a questão urbana se manifesta na cidade do Rio de Janeiro e em sua região metropolitana.
Referências DAVIS, Mike. Planeta favela. Tradução: Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2006. BRENNER, Neil; THEODORE, Nik. Neoliberalism and the urban condition. City, vol. 9, n. 1, april, 2005.
Sumário
Seção 1: Olhares sobre as margens......... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .17 Desastres e favelas cariocas: a cobertura midiática das chuvas de 2010............................. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 Rafael Soares Gonçalves Jardim Gramacho: território extraordinário do lixo.. . . . . . . . . . . . . . . . 31 Valéria Pereira Bastos Resistência à remoção na “Cidade Olímpica”: repensar a cidade a partir dos conflitos urbanos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52 Giselle Tanaka O Programa Minha Casa Minha Vida e os seus impactos sociais na vida dos novos e antigos moradores de um bairro periférico... 79 Tainá de Paula Alvarenga Resistências vindas das margens............. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99 Suellen Guariento Breve história das favelas cariocas: das origens aos Grandes Eventos. . ........... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 108 Mario Brum Extensão integrada entre Arquitetura e Urbanismo, Direito e Serviço Social para requalificação urbana, habitacional e jurídico-social na comunidade da Portelinha no Rio de Janeiro. . ............ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 136 Cristiane Catarina Fagundes de Oliveira Gabriela Lema Icasuriaga Sônia Azevedo Le Cocq d’Oliveira Em meio à degradação surgiu uma alternativa: o Ecomuseu de Sepetiba como alternativa de resistência. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 146 Bianca Wild Seção 2: Olhares para as margens.. ........ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .165 Entre campos do urbano como pretexto de (re)encontro.. . . . . . . . . . 167 Marluci Menezes
Variações sociológicas em torno das cidades e da segregação. . . . . 184 Carlos Fortuna Seção 3: Olhares a partir das margens.. .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .201 Paciência! Meu tempo, numa outra estação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203 Rosemere Maia Vai e vem. . ....... ................................ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 226 Alice Freitas do Nascimento Você já viu essa cena antes.................... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229 Cristiane Marcelino TenaCIDADE. . .. ................................ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 230 Cristiane Marcelino InTREMitências. . ............................... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 232 Erica Menezes Opostos lado a lado............................ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 234 Jonas Linhares Sujeito preto (a subjetividade em ser um jovem preto). . . . . . . . . . . . . . 235 Karla Raymundo Sonho de Lua... ................................ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 239 Luciana Simões Aglomerados.... ................................ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241 Maria Alice Arrais Pereira E se eu for daqui?. . ............................. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 242 Maria Alice Arrais Pereira Tudo outra vez.................................. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243 Maria Raquel Cavalcante Rodrigues Portal............. ................................ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 248 Stefanie Alves Será que eu poderia?. . ......................... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 250 Taina Oliveira A jovem imigrante.............................. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 253 Thais Souza Lado Alto........................................ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 256 Adilson Dias Sobre os autores................................ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 259
Seção 1: Olhares sobre as margens Na periferia, até a poesia tem de ser forte. J. W. Papa.
Ilustração: Adilson Dias.
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Desastres e favelas cariocas: a cobertura midiática das chuvas de 2010 Rafael Soares Gonçalves
Introdução O Rio de Janeiro possui uma longa história com a água. Conforme nos descreve Maurício de Abreu (1992), a água era considerada um “precioso líquido”, que ora faltava, ora tinha em excesso. Conforme analisamos em trabalho anterior (GONÇALVES, 2015), apesar das recorrentes fortes chuvas da cidade, faltava água em muitas partes da cidade, o que levou os poderes públicos a buscar água em áreas cada vez mais distantes. A solução para o abastecimento da cidade foi, em parte, solucionada com a construção da Adutora do rio Guandu pelo governador Carlos Lacerda (1960-1965), mas as chuvas continuavam a “castigar” a cidade. O sítio geográfico único onde se encontra a cidade, e o acelerado processo de ocupação urbana explicam a incidência cada vez mais frequente de enchentes. Em períodos de chuvas, os rios que descem as serras da cidade em direção à baía de Guanabara, ao mar ou às lagoas extrapolam seus leitos irregulares, e o que não é absorvido pelo solo, escoa para os manguezais da cidade. As chuvas intensas de verão são, assim, fundamentais para a reprodução do ecossistema local. A intensa urbanização da cidade, a partir do modelo modernista de extinção dos fluxos hídricos lentos, levou à retificação e canalização de rios, ao aterro de manguezais e à drástica impermeabilização do solo. Esse processo, aliado à ocupação intensa dos morros, intensificou os fenômenos de enchentes e deslizamentos (GONÇALVES, 2015). As favelas se tornaram o grande problema público em contexto de desastres na cidade. É bem verdade que as favelas sempre foram associadas ao risco que podiam causar à cidade: desde o risco epidêmico, ambiental, social ao político. Essas distintas noções do risco justificaram as variadas intervenções públicas nesses espaços, tanto para urbanizá-las quanto para contê-las, regularizá-las, “pacificá-las” ou erradicá-las. O uso indiscriminado da noção de risco ambiental nos
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últimos anos vem reforçando as representações negativas das favelas e legitimando o retorno de medidas voltadas para a sua erradicação. Trata-se, assim, como sustenta Thévenot e Lafaye (1993), de uma nova forma de justificação a partir do discurso ecológico. O discurso de proteção do meio ambiente como um bem comum no Rio de Janeiro contribui ao projeto elitista e excludente da cidade “olímpica”. Apesar da mudança política na administração municipal atual, após a eleição de Marcelo Crivella, não parece que tal projeto sofreu uma substancial alteração. As favelas continuam sendo associadas ao risco e estão, por sua vez, sob o risco constante de remoções. Não há uma política eficaz de moradia que se volte para a urbanização das favelas. As intervenções públicas, quando acontecem, são muito mais como resposta a um impacto produzido pela chuva do que como uma forma de prevenção de possíveis riscos. O projeto de retorno das remoções de favelas na cidade ficou ainda mais notório depois das chuvas que devastaram a cidade na noite do dia 5 de abril de 2010. Os moradores das favelas tornaram-se, uma vez mais, os grandes culpados da assim chamada degradação ambiental da cidade, e muitas favelas foram condenadas a desaparecer. Ainda sob o choque da comoção após as chuvas, a mídia anunciou projetos da prefeitura de retomar a remoção em massa de favelas. No caso específico do Rio de Janeiro, a mídia impressa se limita a poucos grupos econômicos e que, no que tange as favelas, vêm se posicionando contrária a sua existência. O presente artigo pretende analisar a cobertura de jornais das chuvas de 2010 a partir do acervo levantado por membros do Núcleo de Terras e Habitações da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. A nossa hipótese central repousa sobre a ideia que desastres mobilizam a opinião pública e, no caso das favelas cariocas, recolocaram em pauta as remoções na gramática política carioca.
A noção de risco ambiental e a justificativa ecológica pelo retorno de remoções Ao longo das últimas décadas, a angústia da questão social, segundo a análise de Topalov (1997), se conecta a outro sentimento de temor: o do desastre ambiental. No contexto do surgimento e da consolidação do discurso ambiental, vários autores sustentam que a noção de risco é
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um fator essencial para a compreensão da sociedade atual, das relações sociais e das decisões políticas, especialmente as relativas à gestão e ao planejamento urbano (BAUMAN, 2006; BECK, 2010). Ulrich Beck defende que os riscos, sobretudo aqueles produzidos pela própria evolução da técnica, (tornou-se um) tornaram-se elementos centrais para se compreender a sociedade atual. Apesar de defender que os riscos impactam de forma distinta a população, a “sociedade de risco” relativiza o papel central que as desigualdades sociais representam na compreensão da sociedade atual, já que, segundo Beck, os riscos da modernização contêm um efeito bumerangue, que implode o esquema de classes (BECK, 2010, p. 27). Em sua crítica, as correntes de modernização ecológica e da sociedade de risco, Henri Acserald (2002), por sua vez, sustenta, a partir da perspectiva da Justiça Ambiental, que a compreensão dos riscos deve necessariamente levar em consideração que nossa sociedade é estruturada em classes. Dora Vargas (2006, p. 10) confirma tal posição quando afirma que a noção de risco ambiental deveria ser analisada num contexto de desigualdades, superando o simples discurso técnico, que associa o ambiente urbano construído nas dimensões naturais do local com a topografia acidentada e o regime de precipitações. É preciso também levar em consideração o complexo processo de ocupação das áreas urbanas, bem como as intervenções e/ou omissão das autoridades públicas que reconfiguram o desenho da cidade. O risco, finalmente, não é um dado preestabelecido, mas sim uma construção político-social. A mídia exerce um papel central na construção da noção de risco. Nesse contexto, há um conflito entre o discurso técnico, produtor de um conceito dominante de “risco”, e o contradiscurso da população, que traz uma reclassificação dessa noção. Esse conflito apresenta contornos moralizadores, estigmatizando grupos e seus comportamentos e estabelecendo uma (re)significação para os processos de ocupação desses bairros da cidade. Dentro dessa perspectiva, Adauto Cardoso (2006) defende, a partir do quadro teórico bourdiano, que o debate em torno do conceito de “risco” pode ser definido como uma “luta pelas classificações”. Nesse sentido, como sustenta Dora Vargas (2006, p. 12), a construção social do risco visa a tratar o risco não somente de um ponto de vista técnico e objetivo, mas antes como o objeto de
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uma construção social realizada por diferentes grupos sociais. O risco socialmente construído seria, assim, o produto de diferentes percepções que integram visões do mundo, das culturas e das estruturas de sociabilidade específica de determinados grupos sociais. A realidade seria, então, o fruto de um processo de construção social em que as representações sociais não apenas refletem a realidade, mas também contribuem para produzi-la. A definição ou a quantificação do “risco”, conforme analisa Lieber e Lieber (2002), não pode ser entendida como um processo “neutro” ou “isento”, pois depende de pressupostos para dar sentido, o uso do conceito de “risco” não pode ser desvinculado dos propósitos em vista. Esse processo de construção social do risco surge, então, permeável aos conflitos, implicando diversos atores que procuram impor seus próprios pontos de vista. Logo, não se trata de encontrar um consenso artificial centrado no discurso técnico, evocando o medo do risco iminente, mas sim de abrir a reflexão e a ação, sobre e contra o risco, a uma efetiva e profícua participação popular. A invocação atual do risco no Rio de Janeiro implica um repensar radical da gramática política relativa às favelas vigente desde os anos 80. A despeito dos termos “remoção” e “erradicação” de favelas estarem em desuso há tantos anos, a imprensa carioca os reintroduziu com força no léxico local no dia seguinte às chuvas de 2010, identificando o conjunto de favelas a áreas de risco ambiental, reforçando, assim, como veremos, a velha ambição de uma cidade sem favelas.
A instrumentalização da noção de risco ambiental As favelas tornaram-se, uma vez mais, o principal problema público (GUSFIELD, 1989) do Rio de Janeiro após as chuvas de abril de 2010, que atingiram fortemente a metrópole carioca na noite de 5 de abril. A maré alta, a forte precipitação e o ineficaz sistema de escoamento das águas pluviais da cidade fizeram com que os corpos hídricos, rios e lagunas, subissem rapidamente. O sistema de transportes entrou em colapso já no fim da noite, a tal ponto que o próprio prefeito pediu ao vivo nas emissoras de televisão que ninguém fosse trabalhar no dia seguinte, o que esvaziou as ruas, facilitando o trabalho das forças públicas.
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Os morros da cidade e de sua região metropolitana foram os mais castigados pela enxurrada. Neles, houve inúmeros desabamentos, dos quais o mais importante aconteceu na cidade vizinha de Niterói, no Morro do Bumba. O balanço no dia seguinte à tempestade era desanimador: quase 300 mortos e centenas de desabrigados. A opinião pública voltou-se, uma vez mais, contra as favelas e seus habitantes, fazendo destes os grandes responsáveis pela amplitude do drama. Evocando o desastre, os jornais aproveitaram para apoiar o retorno da política de remoção massiva das favelas. O jornal O Globo, de 9 de abril de 2010, anunciava que: a tragédia de 2010 tem de ser o marco zero de uma política séria de remoções de moradores de áreas de risco e de pequenas favelas, ainda em condições de ser erradicadas. Não há mais por que manter o preconceito contra remoções, quando é possível fazê-las sem os erros do passado (...). A ficar como está, a próxima catástrofe será maior que a atual, por sua vez mais extensa que as da década de 60, e assim sucessivamente. O drama se agravará ao ritmo da favelização. É inexorável.
As remoções, segundo o trecho acima, não deveriam se limitar às áreas de risco, mas abranger também as favelas pequenas, cuja erradicação seria mais simples, ou seja, a noção do risco já estava sendo usada para legitimar uma política mais ampla de remoção, inclusive daquelas favelas que não tinham sido diretamente afetadas. O mesmo jornal, no dia seguinte, afirmou que as recentes chuvas desafiavam o princípio da urbanização das favelas, especialmente devido ao fato de que certos desabamentos ocorreram em áreas que já haviam sido reabilitadas pela prefeitura, inclusive com obras de contenção de encostas. Todavia, o jornal não mencionou que os investimentos municipais contra deslizamentos no Rio de Janeiro vinham diminuindo há alguns anos, e que os últimos trabalhos em grande escala de urbanização de favelas – o projeto Favela-Bairro – ocorreram durante os anos 1990 e, desde então, pouco foi feito na conservação e manutenção dessas intervenções. O mesmo quotidiano O Globo, de 19 de abril de 2010, ressaltou que não era possível contestar o fato de que a erradicação das favelas, infladas diante da complacência do Poder Público, não poderia mais
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ser um assunto proibido para os governantes. Segundo o artigo, a tragédia daquele mês não deixava espaço algum para novas tolerâncias. Citando a noção do risco e da questão ambiental, o artigo afirmou: Há comunidades inteiras vivendo sob risco, à parte os agravos ao meio ambiente decorrentes da degradação de áreas preserváveis. (...) O combate ao problema pressupõe ações de desfavelização de áreas já ocupadas. É política a ser elaborada urgentemente, para prevenir a repetição do drama atual1.
O editorial de O Globo de 2 de maio de 2010, intitulado “Desfavelização sem preconceitos”, sublinhou que os recursos do governo do estado seriam distribuídos somente para as prefeituras dispostas “a vencer o preconceito contra remoções, e desejem implementar programas de proteção de famílias, cujas casas estejam sob ameaça”. O mesmo editorial afirma que as “favelas, defendidas por xamãs do oportunismo supostamente ideológico como alternativas a déficits habitacionais, na verdade se transformaram em redutos onde florescem interesses eleitoreiros e o clientelismo”. Por fim, o editorial reforça a ideia que a remoção é a solução: “Planejar a desfavelização é condição essencial para evitar que novas tragédias enlutem famílias”. Do risco dos habitantes, o discurso em prol da remoção das favelas já trazia a noção vaga de ameaças ao meio ambiente provocadas pela presença das favelas. Conforme nos explica Thevenot e Lafaye (1993, p. 500), um dos elementos centrais dos conflitos ambientais é ultrapassar os interesses particulares, associando a ação e os interesses ao bem comum. Nesse sentido, o hebdomadário Veja, de 14 de abril de 2010, evoca, a partir do discurso ambiental, os possíveis impactos econômicos da presença das favelas, pleiteando a erradicação dessas áreas: “Nos casos em que os moradores chegam a correr risco de vida ou em que a existência de amplas áreas degradadas têm impacto econômico negativo para a cidade, este tipo de ação, sim, se justifica”. Ora, invocando o pretenso impacto econômico ao conjunto da cidade, o artigo não faz menção aos ganhadores e perdedores da retomada das remoções.
1
O Globo, de 19 de abril de 2010, p. 2.
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Desastres: de quem é a culpa? Enrico Quarantelli (1998), por sua vez, define os desastres como acontecimentos que articulam fenômenos físicos e a elaboração cultural que os define e que levanta questionamentos no seio da sociedade, dada a ausência de medidas preventivas e as dificuldades da gestão de suas consequências. Os diferentes impactos dos desastres nas áreas urbanas revelam igualmente injustiças ambientais, estabelecendo conexões concretas entre o processo de degradação do meio ambiente e os modelos desiguais de ocupação do espaço urbano. Conforme analisa Valencio e Valencio (2010, p. 29), em termos sociopolíticos, a materialização de um desastre significa um desacordo entre as representações do risco por parte dos diversos agentes e, sobretudo, de frações do Estado, igualmente para planejar e executar ações à altura do real potencial dos fatores de ameaça e de prolongamento da vulnerabilidade. O prefeito Eduardo Paes, em reportagem do jornal O Globo de 7 de abril de 2010, explicou os desastres como um fenômeno atípico: “Para mim é algo fora da normalidade”. Por sua vez, o secretário municipal de Saúde, Sergio Cortes, afirmou, na mesma reportagem, que “é o momento de se colocar a palavra remoção novamente no dicionário. Precisamos entender que a situação não pode ser combatida apenas com ações de Defesa Civil, porque estaremos novamente assistindo mortes de famílias inteiras, vítimas das chuvas”. Além das forças da natureza, os poderes públicos e a mídia explicaram os desastres diante da leniência e populismo dos políticos anteriores. O prefeito da época anunciou a remoção de favelas e explicou essa medida, em reportagem do jornal O Globo de 12 de abril de 2010: “Solicitamos a todos os politiqueiros e demagogos de plantão que se recolham à sua insignificância, fiquem em suas casas”. Nesse mesmo sentido, o governador da época, Sergio Cabral, utilizou o mesmo discurso e culpou, em reportagem do jornal O Globo de 10 de abril de 2010, toda a sociedade: “Mas os demagogos de plantão nos criticaram. E demagogia mata, né?”. Reportagem da revista Veja, de 14 de abril de 2014, trouxe a mesma retórica: “Evidentemente, não querem sair de lá. Apoiados por políticos inescrupulosos, organizações não governamentais oportunistas e até cidadãos de bens, elas preferem morar em casebres à beira de um precipício a receber uma casa de alvenaria em uma localidade mais distante”. O jornal O Globo, de 24
de outubro de 2010, reforça esse posicionamento de limitar toda a luta contra as remoções a um debate ideológico e oportunista: O debate sobre a remoção de moradores que vivem em áreas ameaçadas e de pequenas favelas ainda em condições de serem erradicadas continua contaminando pela ideologia ou, em certos casos, pelo oportunismo – e não poucas vezes, simultaneamente pelos dois.
O desastre não pode ser analisado como mera consequência de um evento climático pretensamente imprevisível. Os desastres ligados às chuvas mostram a vulnerabilidade estrutural das áreas mais pobres da cidade. Embora as chuvas atinjam a cidade de maneira cíclica, toda nova enxurrada é divulgada como uma quebra da normalidade para justificar a incapacidade dos poderes públicos de gerenciar os riscos, enquanto que os favelados, por sua vez, são acusados de conhecer os riscos dos locais onde vivem. Da mesma forma, conforme já citamos anteriormente, as reportagens não levantavam a queda de investimentos nos últimos anos nas obras de contenção de encostas e, sobretudo, em projetos mais amplos de urbanização de favelas. Observa-se, assim, que o discurso ambiental tornou-se uma expressão vaga e perigosa. Souza (2015, p. 28) identifica que o Rio de Janeiro é o exemplo mais eloquente no Brasil de uma geopolítica urbana que se serve do discurso ecológico (“ecogeopolítica” urbana) para promover objetivos de controle do uso do solo (vale dizer, de controle social) de um modo aparentemente compatível com uma “democracia” representativa à brasileira (GONÇALVES, 2018).
Conclusão: violências e formas de resistências A mídia de grande circulação deu, em pouquíssimas situações, voz aos moradores, o que permitiu levantar as formas violentas de ação do Estado. O jornal O Globo, de 6 de maio de 2010, transcreveu reclamação de morador do Alto da Boa Vista sobre a falta de informação da ação da prefeitura: “No Alto da Boa Vista, nós levantamos que 18 moradias estão em áreas de risco. Mas a prefeitura ameaça remover todos os cinco mil moradores. Queremos é o diálogo, o que até agora não aconteceu – reclamou Roberto de Souza Filho, representante da comunidade”.
ACADÊMICa
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