Lacy Arnaud Soares
RuĂdos da Mata
Copyright©, Lacy Arnaud Soares, 2015 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem a autorização prévia e por escrito do autor.
Editor João Baptista Pinto Projeto Gráfico/Diagramação: Francisco Macedo Capa Guilherme Chaves Revisão Da Autora CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
S655r Soares, Lacy Arnaud, 1935Ruídos da Mata / Lacy Arnaud Soares. - 1ª ed. - Rio de Janeiro: Letra Capital, 2015. 150 p.; 14x21 cm. ISBN: 978-85-7785-393-9 1. Romance brasileiro. I. Título. 15-24598 CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3
Letra Capital Editora Tels: (21) 3553-2236 / 2215-3781 www.letracapital.com.br
Agradecimentos Ao meu marido (in memoria) primeiro a ler os primeiros capítulos de “Ruídos da Mata”, incentivando-me para concluí-lo. Aos meus filhos Daniel, David, Denise e Deyse (in memoria), de maneira especial ao Daniel que organizou os capítulos para remessa à editora. Ao meu neto Guilherme Chaves Arnaud Soares pela bela capa, apesar do pouco tempo que dispõe. Ao querido professor Gregório, que me emocionou com sua gentil e preciosa apresentação, minha eterna gratidão. Ao meu editor, João Batista, que sempre me acolhe com tanto carinho, tornando possível minhas publicações, que se tornou um querido amigo. Aos funcionários da editora Letra Capital, sempre prestimosos, solícitos e competentes. Aos queridos leitores(as) pela disponibilidade, assíduos e participantes, nas construtivas observações e nos elogios que me dão a alegria de externar. A autora.
Apresentação Lacy: Laços que nos enredam. Essa Lacy é narradora. Estruturas delicadas, linguagens que nos fisgam pelo encantamento. Leitores enamorados por sua voz. Sua escritura nos envolvem, também, como protagonistas das histórias aqui desveladas: somos leitores, escutadores, ouvintes, escritores e contadores de história irmanados. Lacy, a narradora, está sempre presente a nos dizer o que certamente escutou e testemunhou de seus familiares e ancestrais, a contarem em conversas em torno de uma mesa cheinha de deliciosas guloseimas amazônicas e arrodeada do vozerio das mulheres, crianças e dos velhos de saberes. Claro, aqui comigo, penso: essa Lacy leu e releu muito a obra de José de Alencar. Disto tenho certeza, ou quase, tudo por causa do sotaque de sua escrita. Será? Bom, amigos leitores convido-os então para se embrenharem nessa floresta de enredos e varadouros, ditos e registrados magnificamente por nossa querida narradora Lacy. Ainda reforço o convite para observarmos o lugar
de onde a autora nos diz de seu tempo e seu contexto cultural, com os seus paradigmas relativos. Nós, leitores protagonistas firmaremos sentidos críticos, atendendo assim ao convite formulado pela escritora. Por isto, os ruídos. Bela provocação. Agradecido, Lacy querida, por esta oportunidade. Francisco Gregório Filho Contador de histórias
Sumário
Mandacarú O Encontro A Fuga Sobre as Águas Aldeia Maruá Guy Dubois O Vencedor Cacique Muirí Arraiolos Provence Casa da Provence Lua de Mel A Chegada Muirí na Capital Janaína A partida Maurice O regresso Reencontro Desfecho
........... 11 ........... 21 ........... 30 ........... 35 ........... 41 ........... 45 ........... 55 ........... 66 ........... 76 ........... 80 ........... 83 ........... 88 ........... 92 ........... 109 ........... 115 ........... 118 ........... 121 ........... 126 ........... 140 ........... 146
Mandacarú No alto Amazonas a tribo Maruá está em festa! Maíra, a mais linda indiazinha de toda a região, filha primeira do cacique Mucoicó, recebera a dádiva de “florir o Mandacarú” naquela lua cheia e a notícia se espalhou pelos quatros cantos da mata. O rufar dos tambores anunciando o grande acontecimento, a tribo se reunindo para escutar a fala do pajé na cerimônia de iniciação, quando são escolhidos os doze índios que em doze luas cheias lutarão pela posse da nova mulher, substituindo também o cacique, quando este decidir passar-lhe o comando da tribo. De todas as ocas surgiam vigorosos índios se encaminhando para a Grande Clareira, onde se daria a esperada escolha. Só os homens participavam da cerimônia trazendo seus filhos, aqueles que tinham os requisitos necessários para aspirar à grande honra de desposar Maíra e ser do mesmo modo o futuro cacique. As mulheres se recolhiam dentro das cabanas aguardando que seus filhos voltassem com a boa nova, a escolha para participar da disputa. Também a elas era Ruídos da Mata 11
reservada a missão de cuidar do vencedor até a próxima lua, esperar a visita do pajé para orientar-lhes as ervas a serem utilizadas na cura dos ferimentos adquiridos em combate, deixando-o apto à nova luta, até a próxima lua. Desde cedo fora armada a cabana nupcial, à beira da Lagoa Cor do Céu, bem longe do centro da aldeia, onde a noiva permaneceria até o casamento, tendo apenas a companhia da mãe, além das doze cuiantãs a seu serviço. Jupira, sua mãe, encarregada de vir todos os dias lhe trazer alimentos, instruindo-a pouco a pouco nos mistérios do amor e da fertilidade e nos costumes. Os costumes que deveria assumir na próxima fase de sua vida, quando se tornasse a esposa do futuro cacique, o chefe supremo de toda a aldeia. À sua chegada, as doze cuiantãs se retiravam. Era dever de cada mãe passar as instruções, quando por sua vez sua filha estivesse numa cabana nupcial, porém de uma maneira diferente da que era reservada à Maíra, por sua condição de filha do cacique, em total isolamento. Por ora as cuiantãs eram guardiães da indiazinha, fazendo-lhe companhia durante o tempo em que permanecesse à espera do último lutador, nas doze luas de seu primeiro ano após o Mandacarú. Nem ela poderia ver nenhum dos lutadores, nem nenhum deles poderia vê-la enquanto durassem as lutas e um deles fosse escolhido. Maíra passava a maior parte do dia em companhia das cuiantãs no lago, tomando banho na água límpida 12 Lacy Arnaud Soares
que descia da cachoeira, colhendo os frutos de que mais gostava: pitomba, açaí, pupunha, tucumã, esperando Jupira com seus ensinamentos cheios de sabedoria, que ela escutava atentamente, despertando de sua inocência de menina para um comportamento mais sedutor. As lutas aconteceriam em doze luas cheias e teria muito tempo para aprender sobre os costumes da tribo, dos quais participaria mais quando se tornasse a esposa do vencedor, o futuro cacique. O tempo de menina ficara para trás. Agora começava o tempo de preparação para o futuro que o pai escolhera para ela, criando as lutas do Mandacarú e escolhendo os doze guerreiros que lutariam até a morte, vencendo o mais bravo entre todos. Mucoicó era um dos caciques mais respeitados da região. Índio nativo preparado pelo pai para exercer a função de chefe da tribo, que assumiu aos vinte anos, quando o pai envelhecido se tornou incapaz de acompanhar todas as atribuições que tinha perante seu povo. Era um homem justo, tinha valores peculiares e era um marido fiel à sua mulher Jupira, com quem vivia uma relação de afeto, cativo de sua beleza e sabedoria, desde que a trouxera de uma aldeia próxima, na Festa da Pajelança, típica de suas aldeias, para ser a mãe de seus filhos. A festiva comemoração da nova união reunindo duas tribos influentes e respeitadas, iniciando-se na aldeia de Jupira e terminando com a apresentação à tribo de Mucoicó como sua amada esposa, repudiando outras índias, como era o antigo costume. Suas almas Ruídos da Mata 13
se uniram desde o primeiro olhar e Mucoicó nunca mais olhou para outra mulher depois dela. Geraram três filhos: Maíra, Muirí e Iuriê. Jupira conservava a beleza que encantara Mucoicó e que a filha Maíra herdara ao nascer, daí a ideia do pai em casá-la com o mais bravo guerreiro da tribo Maruá. * * * * Na capital, Manaus, funcionava o Serviço de Proteção aos Índios, chefiado por Horácio Botelho, defensor ferrenho dos índios, comandando com mão de ferro o órgão que cuidava dos interesses de todas as tribos daquela região e conquistara, particularmente, a simpatia do cacique Mucoicó. Guy Dupois, pesquisador francês, acabara de chegar de Paris para estudar as plantas nativas, do alto Amazonas, as terras em que Maíra vivia. Nascido na região da Provence, nas terras do avô paterno, fora escolhido como o melhor entre os alunos da Faculdade de Botânica de Paris, para a missão que lhe foi confiada. Sério, bem preparado, falava português e entendia alguma coisa dos costumes das tribos ribeirinhas – que já vinha estudando há algum tempo, se preparando para uma possível indicação de seu nome, o que iria facilitar sua comunicação com os indígenas. Encantou-se com o mapa dos rios e igarapés, muito mais do que com a cidade de Manaus, que vira de passagem, o avião sobrevoando a cidade. Seu objetivo 14 Lacy Arnaud Soares
era partir o quanto antes para a aldeia, onde iria iniciar suas pesquisas, ansioso por começar sua missão. Respondeu com presteza às perguntas do diretorchefe do Serviço de Proteção aos Índios, de maneira educada e firme. Explicou a Horácio Botelho qual seria sua função na floresta, o tempo que pretendia demorarse entre os índios e qual seria sua zona de pesquisas na região amazônica. Horácio ouviu-lhe com atenção, examinou minuciosamente cada detalhe dos documentos remetidos pelo diretor-representante da Faculdade de Botânica de Paris designando Guy Dupois para aquela missão e concluiu que não traria nenhum inconveniente à tribo. Era bom que outras terras conhecessem o valor da mata, as ervas nativas usadas pelos índios que poderiam não só prevenir mas curar várias doenças. A par de certas providências a serem tomadas antes que conseguisse o visto necessário, de modo especial o consentimento do cacique Mucoicó, Guy tinha o desejo de iniciar logo sua missão, mas aceitou o período de espera como inevitável. Acompanhado de um funcionário do Serviço de Proteção aos Índios, aproveitou para conhecer um pouco da cidade de Manaus e admirou de perto a grandeza do Teatro Amazonas, reminiscência do período áureo da borracha; viu o monumento da Abertura de Portos às nações amigas, na Praça São Sebastião; e provou o tacacá vendido ao ar livre, uma beberagem servida em cuias, “com camarões, jambú e tucupí” – explicava-lhe Ruídos da Mata 15
Euzébio, o guia designado para acompanhá-lo. Uma tradição típica da região e apreciada por quem quer que fosse, de tão delicioso, que lhe deixou a boca em brasa pelo ardor da pimenta forte de cheiro e paladar. No mercado, próximo ao rio imenso que era o Amazonas, admirou a variedade de peixes e frutas aceitando as “provas” que lhe eram oferecidas. E o Porto Flutuante, construído de maneira a oscilar com as marés de enchente e vazante, prendeu sua atenção, admirando a obra de engenharia que lhe pareceu surpreendente numa região tão distante. Com aproximadamente duas semanas, seu requerimento foi deferido e ele partiu para o Alto Amazonas, o lugar onde Maíra vivia. Dois funcionários do Serviço de Proteção aos Índios o acompanharam – um deles, Euzébio – para apresentá-lo ao cacique Mucoicó, velho amigo de Horácio, em quem confiava desde o dia em que, numa de suas visitas à aldeia, foi salvo da picada de uma cobra cascavel (tida como uma das mais perigosas da sua espécie), matando-a com certeiro tiro de espingarda quando o bote da cobra já estava armado para atacar. – Amigo de amigo é amigo! Disse Mucoicó ao ser apresentado à Guy Dupois. A presença dele na aldeia em nada atrapalhava os preparativos para as lutas a cada lua cheia porque seu objetivo era diferente e suas pesquisas se realizariam durante o dia, sob o comando do rei sol e não da madrinha lua. 16 Lacy Arnaud Soares