Lacy Arnaud Soares
Copyright © Lacy Arnaud Soares, 2011 lacyarnaud@yahoo.com.br Editor João Baptista Pinto Capa Guilherme Chaves Arnaud Soares Ilustração Adriano Oliveira Projeto Gráfico/Editroração Francisco Macedo Revisão Rita Luppi CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
S655s Soares, Lacy Arnaud, 1935Sopro dos ventos / Lacy Arnaud Soares. - Rio de Janeiro: Letra Capital, 2011. 104p.; 21cm ISBN 978-851. Romance brasileiro. I. Título. 11-2535.
CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3
06.05.11
09.05.11
Letra Capital Editora Telefax: (21) 2224-7071 / 2215-3781 www.letracapital.com.br
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Agradecimento
A meu marido, primeiro a ler meu novo livro, surpreendendo com sugestões cabíveis no destino de alguns personagens. Aos meus filhos, Daniel e Denise, sempre prestativos, auxiliares na computação. Ao meu neto Guilherme, autor dedicado da capa do “livro da vovó”. À toda minha família, cada vez mais participante na nova “mania de escrever”. À minha amiga Antonia, escritora com vários livros publicados, pela apresentação gentil e generosa. Ao meu editor João Baptista, atencioso e amigo, extensivo aos funcionários da Letra Capital. E aos meus leitores, sempre importantes na avaliação da leitura, no incentivo e apoio. Muito obrigada A Autora
Sumário
Apresentação I II III IV V VI VII VIII IX X XI XII XIII XIV
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Apresentação
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M SEU LIVRO “Sopro dos Ventos” Lacy, novamente traz um enredo interessante. Na doçura de sua escrita revela como é feito o acervo humano: amor e desamor. Numa paisagem tranquila a ebulição acontece quando a paixão remove o equilíbrio das escolhas. As consequências alcançam as gerações trazendo frustrações e sofrimentos. A trama se acende numa fogueira de verdades que não podem ficar escondidas e muda a história de seus protagonistas. O vento leva as palavras carregando chamas e significados. Os gemidos do vento se humanizam e soam como vozes que mostram presenças. Presenças que destroem a rotina e criam novas histórias. Numa leitura prazerosa, Lacy nos dá a dimensão de quanto é importante registrar e escrever. É o que nos leva a refletir. Pensando na vida de seus personagens descobrimos que o conteúdo de uma história humana pode ser como o “sopro dos ventos” – frágil ou poderosa – ocasionando mudanças e tempestades. Mas, na graça da Redenção, surge o benefício da oração, da fé e do perdão. O sopro do Divino acalentando o ser humano em suas dores. Gentil e delicada em sua maneira de contar histórias, Lacy nos comove com seu novo livro. Antônia Krapp Tavares Sopro dos Ventos
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I
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CAIR DA TARDE, invariavelmente, encontrava Kalú no alto da Pedra Branca observando os barcos que regressavam da pesca. Entre eles, o mais bem cuidado era sem dúvida o de mestre Juca, seu padrinho e amigo maior. Fora ele quem socorrera sua mãe naquela noite fatídica e ele lhe seria eternamente grato. Após o aceno do padrinho para dizer-lhe que “estava tudo bem”, Kalú descia em disparada em direção à escola de dona Joaquina e se sentava na última fila esperando acalmar as batidas do coração, aceleradas pela corrida. Depois mergulhava nos estudos, nos ensinamentos que ia armazenando na cabeçinha inteligente, tal qual fazia com as mercadorias do armazém do pai. O senhor Jacinto era um homem rude, autoritário, temido! Arlindo, o filho mais velho, era o predileto. Dócil, quieto, não emitia opinião, não contestava as ordens do pai, totalmente diferente dele, Kalú, agitado, ansioso, como se estivesse sempre correndo atrás de alguma coisa, talvez dos sonhos que arquitetava em suas horas vagas, imaginando suas futuras realizações, arquitetando planos... Protegido pelo pai, Arlindo era poupado dos serviços mais pesados, mas a mãe estava sempre ajudando Kalú “para que Sopro dos Ventos
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tivesse mais tempo para os livros”. Orgulhava-se dele, era um menino forte, desembaraçado, fazia contas como ninguém e não raro um ou outro freguês dizia: “Este menino vai longe, um dia será doutor”. Depois, acontecera tanta coisa em sua vida! Tudo ficou tão triste após a partida da mãe. Nada mais a lembrava na casa. Não havia flores nos jarros, seus passos nos afazeres domésticos, as vezes em que a ajudava a enxugar os pratos, e sem alegria os dias iam passando como fardos, pesados e tristes. Chorava muito às escondidas, que “homem que é homem não chora, como um bezerro desmamado”, como dizia o pai. Mas, de uns tempos para cá andava animado, se arrumando todo para ir à escola, sempre de banho tomado, roupas lavadas e passadas por ele mesmo e os cabelos bem penteados, só para causar boa impressão à “menina dos olhos de mel”. Faltava-lhe coragem, porém, para dirigir-lhe a palavra, dizer-lhe de seus sentimentos. Era o primeiro amor, o primeiro interesse por alguém e o tremor que lhe corria pelo corpo quando a via fugia ao seu controle. Ficava tímido, mudo, o rosto em fogo, e não conseguia sequer responder à sua despedida ao passar por ele, no final da aula: “Boa noite, menino Kalú”. Amou-a em silêncio à distância, durante o ano inteiro, desde que ela chegara à Camocim – algum tempo depois dos tristes acontecimentos – em companhia da mãe, viúva interesseira, que sonhava para a filha um casamento abastado. Casara-se cedo, sem amar o marido muito mais velho, mas que a tratava bem, como se fosse um pai, e lhe deixara ao morrer, além da filha Belinha, algum recurso com o qual comprara a casa da rua de dentro, duas quadras acima do armazém do senhor Jacinto. Exímia costureira, logo fez uma boa clientela, e passou a observar os bons partidos da nova terra. Lacy Arnaud Soares
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Belinha era sua razão de viver, sonhava para ela o melhor dos futuros e não escondia de ninguém que não aceitaria “genro pobretão”. Mas Kalú não era, certamente, um menino pobre. Seu pai era um dos comerciantes mais prósperos da região. Possuíam uma boa casa, viviam o normal sem problemas financeiros, tinham boas roupas e boa comida, só faltava mesmo que a mãe estivesse com eles, para serem uma família feliz – pensava, enquanto esperava para lhe falar de seus planos, “qualquer dia desses”... Discretamente, fora se informando de tudo a respeito dela, pergunta aqui, pergunta ali, era como se convivesse junto o tempo todo, sua vida girando em torno de seus sonhos de amor, o dia em que se casariam e seriam felizes, para sempre. Seria um marido exemplar, deixaria o armazém do pai para ter seu próprio negócio e mandaria os filhos estudar na capital, como ele mesmo tanto desejara e, quem sabe, morariam por lá, tão logo as finanças o permitissem, deixando para trás tudo que fora sofrimento em sua vida com a ausência de sua mãe. Belinha haveria de compensar o carinho perdido, a dor da solidão, as lágrimas choradas no silêncio da noite quando deixava que a tristeza daquela vida sem esperança o dominasse. Ultimamente, com o novo afeto no coração, chorava menos. Ainda tinha muitas saudades do tempo em que tivera o carinho da mãe, mas já estava crescido. Um dia haveria de ter sua própria família e tudo lhe traria muito mais alegria. De repente, no final do ano a surpresa... — Kalú – falou-lhe o pai – quero que faças a viagem à capital em meu lugar! Pagas as mercadorias que ainda devo ao compadre Euzébio, e de volta trazes as novas encomendas; a lista é grande, em época de festas se vende mais.
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Euzébio era padrinho de Arlindo e mudara para a capital há alguns anos, se estabelecendo como comerciante de produtos agrícolas. Mas, pensou Kalú, este era um serviço do pai! Desde bem pequeno, acostumara-se com as periódicas viagens do senhor Jacinto, sempre atento em suprir de mercadorias o armazém, em permanente contato com os fornecedores, em busca de melhores preços e taxas de juros, quando a conta era parcelada. Fora numa dessas ausências que aparecera “o belo Antônio”, como o povo chamava o mascate que trazia os panos de seda, as bugigangas que tanto encantavam as mulheres, entre elas sua mãe. Era um homem bem apessoado, falante, cheio de lábia para vender as coisas que trazia, nem sempre de boa qualidade, mas conseguia passá-las adiante em pouco tempo e lá ia de volta, sem que se soubesse bem para onde, até a próxima aparição. Logo as línguas corriam soltas, sobre um suposto romance entre os dois. Kalú escutou-os pela primeira vez numa noite de chuva, em que chegara encharcado à escola e a menina Belinha ainda não morava no povoado. Teve ganas de voar no pescoço do falador e enche-lo de tabefes, defendendo a honra da mãe, mas... E se fosse verdade? Dona Lindalva não era, propriamente, de uma grande beleza, mas havia algo em seus olhos vivos que a tornava extremamente atraente quando sorria. Em casa, no convívio com o marido, ficava mais quieta. Talvez a rudeza dele intimidasse, porém nas ausências do senhor Jacinto havia risos no armazém, as pessoas se demoravam mais conversando e a simpatia de dona Lindalva certamente as fazia comprar mais coisas do que desejavam, ao ponto do marido dizer, em uma ou outra ocasião: Lacy Arnaud Soares
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— Oh, mulher, o que fazes para vender mais do que eu? De certo, ficas te fazendo de gostosa e, sem dúvida, rindo este teu riso vaidoso, de quem quer chamar atenção, heim?
Ela não respondia, e ele: — Vem! Vamos descontar meu jejum de viagem! – isso quando de bom humor, os negócios correndo bem.
Kalú sofria, sem saber bem a razão! Quando tivesse sua própria mulher haveria de tratá-la de outro jeito. Seria carinhoso, amigo, não a trataria igual ao pai que parecia não amar a esposa, tão rudemente a tratava. Sem uma demonstração de carinho, de apreciação. Ao contrário, sempre a criticava de maneira dura, muitas vezes levando-a às lágrimas. Aprendeu, sem ter bem noção, que amar era uma coisa, e desejar simplesmente, era outra. Kalú a admirava muito! Para ele, sua mãe não tinha todos aqueles defeitos apontados pelo pai. Achava-a bonita, ordeira com a casa, o braço direito do pai nos negócios. Era amorosa com os filhos, costurava as roupas para eles usarem, até mesmo camisas para o marido com os panos que ele trazia das viagens, e fazia uma galinha de cabidela como ninguém nos domingos em que seus padrinhos almoçavam com os compadres. Os filhos eram o “seu orgulho”, como costumava dizer, e Kalú lá ia todo contente buscar os cadernos para mostrar ao padrinho, que fazia questão de verificar seus progressos escolares, elogiava suas redações, o pendor para a matemática, o capricho na letra, e não raro dizia-lhe num largo sorriso: — Certamente, não te vejo como um pescador como teu Dindo. Vejo um futuro brilhante à tua espera, meu menino.
Kalú tinha maior afinidade com a mãe, talvez porque era ela quem lhe dava mais atenção, gostava de ouvi-lo falar os Sopro dos Ventos
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poucos assuntos do seu cotidiano e, por vezes, ouviam juntos as músicas e notícias do pequeno rádio que o senhor Jacinto comprara no Natal. Até riam de uma ou outra coisa, quando todos moravam juntos, antes dela partir. Por isso as palavras do pai lhe soaram estranhas! Geralmente era Arlindo o substituto do pai nas viagens. Então, por que ele agora? Era uma longa ausência ir à capital, ficaria muito tempo distante da “menina dos olhos de mel”. Por outro lado, poderia rever a mãe e a irmã, ficar um pouco com elas em casa da tia Francisca, o que seria bom, muito bom. Nessa noite não conseguiu dormir! Pensava na mãe distante, na irmã que a acompanhara, em tudo que sucedera, inesperadamente, e que o deixara órfão de mãe viva. O rancor do pai, na noite em que ele correra à casa do mestre Juca para que a socorresse da fúria do pai, desvairado a buscá-la para “acabar com a vida dessa desavergonhada”. Mas, sua mãe conseguira chegar à casa dos compadres, onde ele, Kalú, chegara pouco antes, atravessando o caminho entre as árvores, ao sopro dos ventos, sob uma lua branca no céu estrelado. E lá, em casa do padrinho, seu pai não ousaria entrar para cometer nenhum desatino. De manhã cedo, depois de uma noite em claro a ouvir os soluços da mãe, voltou à casa do pai, acompanhado do padrinho. — Vim trazer o menino! Comadre Lindalva fica conosco! – depois conversaram longamente “em particular”.
Seu padrinho não era nenhum analfabeto! Herdara o barco do pai, mas estudara na capital, e sua madrinha “era da cidade”. Tinha um ar diferente das mulheres do interior, porém não era uma pessoa esquiva, sabia fazer amizades e havia entre os dois o calor de um afeto que Kalú nunca sentira existir entre os pais. Lacy Arnaud Soares
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Jacinto respeitava o amigo e compadre, mas mesmo assim, disse-lhe entre dentes: “Não sei onde estou que não te dou uma boa surra, ires importunar teu padrinho”. Entrou de mansinho na casa. A irmã ainda dormindo, o silêncio pesado dominando o ambiente e ele, automaticamente, colocando a água na chaleira para o café, fervendo o leite, colocando o pão na mesa, as canecas de cada um, os talheres e a pequena faca para a manteiga, tudo igual a tantas outras vezes em que ajudava a mãe. De repente, num impulso, retirou da mesa a caneca em que ela tomava o café da manhã e escondeu-a no armário, atrás da pilha de pratos. Tremeu ao ver o pai entrar e sentar-se para o café, mas este parecia mais calmo agora, depois da conversa com mestre Juca. Tomaram em silêncio a primeira refeição matinal, e logo o irmão Arlindo veio reunir-se a eles. Como sempre, quieto, parecendo não perceber a gravidade de tudo, como se na noite anterior nada houvesse acontecido, sem parecer estranhar a ausência da mãe. O pai os observava de soslaio, de repente disse: — Já conversei com o compadre Juca! Mercedes acompanha a mãe para Fortaleza, os dois ficam comigo. Não se fala mais nela nesta casa, como se ontem a tivesse matado de fato, não fosse o socorro de Juca, quem sabe de Deus (ir para a cadeia por quem não merece). O trabalho é o mesmo, também. Passam para a noite o horário da escola, depois que o armazém fechar, e tomarem banho. Jantam na volta, que o tempo não será muito. “Tua mãe não volta, e não quero choro. Homem que é homem não chora e aceita a vida como ela é. Logo arranjo outra mulher, para a cama e para o serviço” – disse a Kalú. — Faça as malas com os pertences das duas, e vá depois acordar Mercedes para levá-la à mãe. Arlindo vai junto, para ajudar.
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Depois entrou no quarto e olhou, pela última vez, a filha adormecida e havia uma rudeza maior em seu rosto, quando começou o dia de trabalho no armazém, consciente de que encerrara uma página de sua vida, para sempre. Na ausência do pai, Kalú se permitiu chorar. As lágrimas lavavam seu rosto e embaçavam seus olhos. O que teria acontecido? O que fizera sua mãe? A fúria do pai chegando da viagem era justa? Um turbilhão de perguntas sem que soubesse responder; só sua intuição lhe dizia que era alguma coisa relacionada com os falatórios. Errara em não tomar a defesa da mãe. O que era verdade, o que era mentira? Não sabia, só sabia que doía dentro dele a perda da mãe, a ausência dela e da irmã. Acordou-a lentamente, afagando seus lindos cabelos aloirados, finos como papel, abraçando-a e beijando-a com uma saudade antecipada. Quando a veria de novo? Depois lhe falou, baixinho: — Maninha, vais fazer um passeio com a mãe! Que tal uns dias em casa da tia Francisca?
Logo Mercedes abriu os olhos e sorriu cheia de entusiasmo. Em sua inocência de criança, nem sequer se deu conta de que algo acontecera, e mudaria sua vida para sempre. Pegando com o irmão o mesmo atalho da noite anterior, Kalú chegou à casa do padrinho, com a irmã ao colo, cabisbaixo e triste. O abraço da mãe foi caloroso, demorado. Um abraço diferente de todos os que lhe dera antes. Um abraço de adeus, de final, de partida. “Um dia, filho, compreenderás tua mãe...”. — Algum dia, juro que vou ao teu encontro, mãe, só não sei quando.
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Depois se voltou e correu em disparada para casa, os soluços presos na garganta, a certeza do nunca mais. Não esperou pelo irmão, nem se despediu da irmã, o coração batendo forte, uma dor intensa no peito, oprimindo-o, sufocando, como se a vida não tivesse mais sentido. No armazém, nunca mais o fato foi mencionado, como se as pessoas tivessem entendido sem palavras a dor que haviam passado. Em casa não falavam nada além do essencial e o silêncio lhe pesava demasiado. Não ter com quem conversar, contar seus assuntos da escola e mostrar o dever de casa para saber se estava tudo bem. Falar de seus planos para o futuro, os muitos sonhos que arquitetava para realizar um dia... Em vão ligava o rádio em suas horas de folga, logo se entediava, porque lembrava o quanto sua mãe gostava de cantarolar as músicas da moda. “O luar do sertão” de um poeta maranhense, sua predileta. Parecia ouvi-la, ainda: “Oh que saudade do luar da minha terra, lá na serra branquejando folhas secas pelo chão.” Tinha uma voz doce, melodiosa, e sabia tudo a respeito do poeta que tanto admirou. Violinista e trovador popular, apaixonado pelo Nordeste, sobre o qual escrevia suas poesias e canções. Então fechava o rádio e ia chorar escondido, sem alento para mais nada, tentando lembrar o nome do poeta e, de repente, num estalo dizia a meia voz: Catullo da Paixão Cearense. Ah! Como sentia saudade do tempo em que a casa tinha vida, com a presença da mãe, até que cansado de tanto chorar, adormecia. O senhor Jacinto se ausentava de quando em quando, “por conta das necessidades do armazém”, dizia. As viagens se alongando mais e mais, como se não tivesse pressa para regressar. Trazia, contudo, muitas mercadorias, produtos novos lançados no mercado que vendia como água, o estoque acabando em Sopro dos Ventos
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pouco tempo. Os filhos se encarregavam de catalogar, antes de arrumarem nas prateleiras que já não eram suficientes. Passado o primeiro momento, o senhor Jacinto parecia bastante abatido, desanimado, triste, o trabalho ficando cada vez mais por conta de Arlindo e Kalú, como que alheio a tudo em volta. Arlindo, estranhamente, reagira melhor depois da partida da mãe. Ficara mais forte, mais despachado, e até parecia ser o dono da casa, assumindo as ausências do pai, surpreendendo Kalú, satisfeito da vida, por ter menos obrigações e mais tempo para estudar. Kalú dividia a vida entre o armazém, a escola e a igreja matriz, quando o padre Marinho vinha de uma freguesia próxima rezar a missa aos domingos. E os dias iam passando na mesma rotina, um desfilar de dias tristes, monótonos, sem nenhuma novidade, além do cotidiano. Isso até a chegada da “menina dos olhos de mel” ao povoado, se tornando, desde então, fonte de motivação maior no seu coração sequioso de afeto. Sua mãe se fora há mais de dois anos e ele se conscientizou de que não mais voltaria. Dedicou-se aos estudos, crescera bastante ao ponto de suas calças ficarem curtas e sua madrinha fazer-lhe nova bainha, mas era só. Nem sabia o que era ter uma namorada, alguém com quem dividir sua vidinha triste, trocar beijos, como via os pombinhos fazerem no beiral do telhado, se sentir feliz. Sentia-se muito solitário; o irmão ocupado com o armazém, o boliche dos finais de semana, os amigos da mesma idade... nunca foram muitos chegados mesmo. O pai caladão, em frente à televisão que comprara na última viagem; uns programas que não lhe interessavam nem um pouco. Preferia estudar, escrever Lacy Arnaud Soares
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poemas cheios de saudade de um tempo passado, em que se sentia mais motivado. Periodicamente ia à casa dos padrinhos, passava o domingo com eles, lia as cartas que sua mãe mandava aos compadres, dando notícias, procurando saber dos filhos. Seu padrinho lhe acenava da praia com um lenço branco, como haviam combinado, para dizer que havia carta. As cartas da mãe eram encaminhadas aos compadres; sabia que seriam rasgadas, e não lidas, caso as mandasse para a antiga casa. Parecia bem! Fora bem recebida pela irmã e sobrinhos! O cunhado Tobias, oficial da Marinha, quase sempre em viagem, mas prestativo e amigo, lhe abrira as portas: “Considere-se em sua casa e se sinta como uma irmã minha também.” Lembrava muito bem o acolhimento da cunhada sempre que levava a esposa para passar férias em Camocim. A alegria do Natal em família, onde até mesmo Jacinto se mostrava satisfeito com a visita. Os primos reunidos nos folguedos. A algazarra das crianças correndo soltas e abrindo os presentes trocados. Noite Feliz cheia de risos e abraços. A procissão das crianças trazendo o Menino Jesus para o presépio, o silêncio que se fazia, ouvindo Lindalva contar a história do Natal, os pastores de Belém, os Reis Magos, vindos do Oriente. A ceia preparada pelas duas irmãs, felizes em reunir suas famílias. E o passeio, no final das férias, no barco de mestre Juca, atravessando o rio Coreaú até a ilha do Amor, onde passavam o dia escalando as dunas, tomando banho de mar, admirando os manguezais onde havia os catadores de caranguejos. Família não é só para as horas alegres, tem que haver espírito de união. Além disso, acreditava na inocência da cunhada, vítima de falatórios maldosos e julgada pelo marido sem direito de defesa. Era bom saber que a esposa tinha a companhia da irmã em suas ausências. Sopro dos Ventos
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