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Traços e Laços da Amazônia


Conselho Editorial Série Letra Capital Acadêmica Beatriz Anselmo Olinto (Unicentro-PR) Carlos Roberto dos Anjos Candeiro (UFTM) João Medeiros Filho (UCL) Maria Luiza Bustamante Pereira de Sá (UERJ) Michela Rosa di Candia (UFRJ) Olavo Luppi Silva (USP) Orlando Alves dos Santos Junior (UFRJ) Pierre Alves Costa (Unicentro-PR) Rafael Soares Gonçalves (PUC-RIO) Robert Segal (UFRJ) Sandro Ornellas (UFBA) Sergio Azevedo (UENF) Sérgio Tadeu Gonçalves Muniz (UTFPR) William Batista (Bennet - RJ)


Luciana Marino do Nascimento Maria do Socorro Galvão Simões Organizadoras

Traços e Laços da Amazônia


Copyright © Luciana Marino do Nascimento, Maria do Socorro Galvão Simões, (Organizadoras), 2016 Os textos são de inteira responsabilidade dos seus autores, bem como as figuras utilizadas. Os erros gramaticais e as opiniões expressas isentam a editora ou os organizadores de quaisquer responsabilidades. Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem a autorização prévia e expressa do autor. Editor João Baptista Pinto

Capa Luiz Guimarães

Projeto Gráfico e Editoração Luiz Guimarães Revisão Ana Teresa Andrade

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

T761 Traços e laços da Amazônia / organização Luciana Marino do Nascimento, Maria do Socorro Galvão Simões. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Letra Capital, 2016. 222 p. : il. ; 15,5x23 cm.

Inclui bibliografia e índice ISBN 978-85-7785-462-2

1. Amazônia - Aspectos sociais. 2. Migração. 3. Geopolítica - Amazônia. 4. Territorialidade humana. 5. Sociologia. I. Nascimento, Luciana Marino do. II. Simões, Maria do Socorro Galvão.

16-33603 CDD: 307.78113 CDU: 316.334.5(811.3) 06/06/2016

07/06/2016

Letra Capital Editora Telefax: (21) 3553-2236/2215-3781 letracapital@letracapital.com.br


Sumário

Apresentação........................................................................................................7 Nós e laços da Amazônia : Caminhos da oralidade.................................9

Maria do Socorro Simões Representações da Amazônia na Ficção Brasileira - 1876 a 1908........22

Maria de Fatima do Nascimento CHÃO DOS LOBOS...................................................................................................37

Luís Heleno Montoril del Castilo Orfãos do Eldorado, de Milton Hatoum: alteridade e melancolia.......................................................................................................47

Sylvia Maria Trusen RASTROS SILENCIADOS DA MARUJADA DE SÃO BENEDITO NA NARRATIVA LITERÁRIA.....................................................................................55

Tânia Sarmento-Pantoja Larissa Fontinele de Alencar OS SABERES DA GENTE DO MAR: O IMAGINÁRIO E AS EXPERIÊNCIAS DE VIDA DOS PESCADORES DA VILA DO TREME, BRAGANÇA (PA)......................................................................................................79

Roseli da Silva Cardoso José Guilherme dos Santos Fernandes Suindara: Resgate de memórias femininas em crônicas de Leila Jalul........................................................................................................98

Margarete Edul Prado de Souza Lopes TEXTOS DE TRADIÇÃO ORAL: PERSPECTIVA INTERDISCIPLINAR NA EDUCAÇÃO INCLUSIVA...................................................................................112

Délcia Pereira Pombo Josebel Akel Fares


OS CONTADORES DE HISTÓRIAS: UMA EXPERIÊNCIA COM O GRUPO GRIOT DE BELÉM DO PARÁ..................................................................................127

Adrine Motley Santana Maria do Perpétuo Socorro Simões A VIDA SMART NA BELLE ÉPOQUE AMAZÔNICA...............................................139

Luciana Marino do Nascimento Sandra Teresa Cadiolli Basílio A POÉTICA DO VERDE - Reflexões propedêuticas......................................167

João Carlos de Souza Ribeiro NO RASTRO DO CARUMBÉ: HISTÓRIAS DO JABUTI NO BRASIL........................182

Sonyellen Ferreira Fonseca Devair Antônio Fiorotti DO SERTÃO DA AMAZÔNIA PARA O SER TÃO AMAZÔNICO: Nenê Macaggi, Desenvolvimento e Exotismo n’A Mulher Do Garimpo........................201

Roberto Mibielli


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Apresentação Pensar a Amazônia e sua imagem indelével de maior floresta equatorial do mundo, muitas vezes, leva o leitor desavisado a imaginar que essa região é una, quando na verdade, são muitas Amazônias dentro da Amazônia. Dessa forma, temos um complexo processo, ao qual Neide Gondim denominou de “ invenção da Amazônia”, o que fixou um imaginário de narrativas fantásticas dessa região como a “terra da felicidade”, a terra da promissão. Descontruindo esse imaginário mítico, os autores deste livro trazem para o debate as mais diversas facetas da Amazônia, traçando trajetos e traçados de uma cartografia literária e cultural, que longe de abarcar a totalidade, apresenta um recorte de povoados, rotas, caminhos, habitus e identidades, com seus nós e laços! As organizadoras



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Nós e laços da Amazônia: Caminhos da oralidade Maria do Socorro Simões*

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proposta de recolha e reflexão sobre lendas e mitos da Amazônia iniciou em 1994, sendo que o percurso trilhado, assegurado por pesquisadores, professores, bolsistas e profissionais de diversas áreas do conhecimento levou o projeto ao patamar em que hoje se encontra, ou seja, uma proposta institucionalizada, com o formato de Campus Flutuante. Mas, para bem se entenderem os caminhos percorridos pelo IFNOPAP, vale a pena reconstituir parte deste percurso. Inicialmente, o Projeto O imaginário nas formas narrativas orais populares da Amazônia paraense destinou-se a reunir as várias formas de narrativas orais contadas pelo amazônida, como ficou indiciado, na frase: “mapear o que se conta no Pará”, para preservação da memória da região. Assim sendo, o Projeto se iniciou em 1994, com o formato de Programa de Pesquisa, tendo sido implantado em seis dos oito Campi Universitários do Interior. Os municípios atingidos foram: Santarém, Castanhal, Abaetetuba, Bragança, Marabá, Cametá, e o Campus-sede da UFPA, em Belém. O sistema de Campi Avançados constituiu a estrutura adequada para pesquisa de tão grande alcance, permitindo uma ampla cobertura do território paraense, envolvendo grande número de professores e de estudantes de todas as microrregiões do Pará. O material recolhido possui riqueza e diversidade ímpares. Tal fato propiciou inúmeras propostas, organizadas em subprojetos de várias áreas de pesquisa, principalmente, dos Centros de Letras, *

Universidade Federal do Pará (UFPA).


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Ciências Humanas e Educação. Em 1995, o Programa foi transformado em Projeto Integrado, atendendo a uma proposta da Instituição, que se preocupava em privilegiar trabalhos que se ajustassem às chamadas atividades fins desenvolvidas na Universidade Federal do Para: ensino, pesquisa e extensão. Em 1997, a coordenação do projeto, juntamente com os professores e bolsistas, sentiram a necessidade de realizar um evento distinto do que tinha acontecido, no ano anterior, que se ateve à apresentação dos primeiros resultados da pesquisa de campo e a algumas propostas de avaliação de novos subprojetos. Naquele ano, considerou-se necessário reunir professores de outras universidades brasileiras para que a proposta pudesse ser apreciada por quem já detivesse uma experiência reconhecida, nos meios acadêmicos, considerando-se os temas, em questão. Assim foi que o primeiro encontro se organizou com apresentação de conferências, palestras e mesas-redondas para discutir temas que o grupo elegeu como os mais pertinentes do projeto, sobretudo, conceitos relacionados com: “Narrativa Oral e Imaginário Amazônico”. Em 1998, sob o tema: “A Cultura Amazônica em suas Multivozes”, o II Encontro Nacional IFNOPAP reuniu um grande número de convidados, de várias IES brasileiras, o que propiciou um brilho especial às atividades programadas em forma de palestras, oficinas, exposições e lançamentos de livros. O evento aconteceu num dos espaços mais interessantes da UFPA, o Núcleo de Arte, contou com a participação de convidados de outras instituições e teve grande destaque em mídia impressa. Sob o tema: “Memória e Comunidade: entre o rio e a floresta.” , o projeto ganhou novas dimensões. Com a preocupação de levar cada participante ao universo das narrativas, o IFNOPAP inovou fazendo o seu III Encontro a bordo do navio Catamarã-PA. O evento contou com personalidades internacionais, nacionais e regionais, que engrandeceram o encontro com palestras, oficinas, mini-cursos, exposições sobre temas variados e de interesse do público; ainda é importante referir que o público do III IFNOPAP foi agraciado com a presença de artistas paraenses premiados e reconhecidos no mundo artístico nacional e internacional. Citamos, entre eles, o violonista Sebastião Tapajós, que nos brindou com audição de alto


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nível, em noite de gala, em Santarém; a cantora lírica Márcia Aliverti, o pianista Antônio José Campos de Melo, dançarinos Eder Jastes e Jaime Amaral, os violonistas Nego Nelson e Maca Maneschy foram notáveis com a sua arte, em nossas noites de lazer e convívio social, enquanto o Catamarã Pará singrava as águas do Médio Amazonas. No retorno, vivemos uma experiência inesquecível, para a maioria: excursionamos nas cavernas de Monte Alegre, onde pudemos contemplar os exemplares de arte rupestre ancestral, em plena Amazônia paraense. A Quarta versão do Encontro IFNOPAP foi marcada por duas grandes mudanças do projeto. A primeira foi a inserção de estudos de manifestações culturais da Amazônia, como tema de reflexão e análise, e a segunda foi a parceria firmada entre as áreas de letras e biologia, inserindo, dessa forma, o estudo da biodiversidade da região mais rica do planeta, como objeto de estudo e de reflexão do IFNOPAP. A região agora escolhida para a viagem, a bordo do Catamarã, foi aquela que dispõe de um dos rios mais importantes da Amazônia – o Trombetas. A pitoresca Oriximiná constituiu o nosso alvo, onde assistimos a uma particular manifestação religiosa do Estado: O Círio noturno fluvial, que acontece no segundo domingo de agosto, em homenagem ao padroeiro Santo Antônio. A quinta versão do Encontro Nacional do IFNOPAP privilegiou o maior arquipélago do mundo, com o título: Marajó – um arquipélago sob a ótica da cultura e da biodiversidade. A importância desse evento deveu-se a certa singularidade: saímos do barco e convivemos, durante oito dias, com as comunidades de quatro municípios marajoaras, em atividades diversificadas, simultâneas e de abrangência distinta, nas diversas áreas do conhecimento. Assim sendo, ofertamos às comunidades de Breves, Ponta de Pedras, Muaná e Soure oficinas e cursos desde Iniciação à fotografia (sob a orientação da extraordinária fotógrafa Fátima Roque – SESC POMPEIA-SP) até Identificação de DNA (ministrada pela Dra. Ândrea Santos - UFPA). Foi uma experiência notável, que se repetiu nos demais encontros, tornando-se o ponto alto dos eventos IFNOPAP. O VI IFNOPAP foi quase uma ousadia. À medida que foi pensado, concebido e gestado, sentíamos que não se trataria de uma expedição comum, enfim o foco de interesse era o Xingu. Realizar este encontro nacional, dentro de um navio, com mais de cento e quarenta pessoas,


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durante oito dias, “navegando entre o rio e a floresta” foi mais que um desafio. Teríamos que enfrentar o Xingu, tentar nos aproximar do entorno de Belo Monte, depois de passar por Porto de Moz, Senador José Porfírio, Vitória do Xingu e Altamira, com uma programação intensa, assemelhada àquelas já vivenciadas nos encontros anteriores, mas com uma novidade: na primeira noite social, a bordo do Catamarã, participamos de um interessante “Baile de Máscaras”, que representavam a diversificada fauna do Xingu . Foi, sem dúvida, uma viagem cheia de surpresas, que incluíram: mudança de embarcação (em respeito aos calados dos navios), percurso rodoviário, passagem e diversão num hotel fazenda, para refazer as energias e, depois disso, um terrível suspense, no retorno, porque o Catamarã não estava aportado no lugar combinado e necessitamos fazer, numa embarcação de pequeno porte (sem aparato tecnológico de comunicação), um percurso muito mais longo do que o esperado, numa noite escura, com ameaça de relâmpagos e trovões, assediados por uma “nuvem” de insetos noturnos; mas, enfim, nem tudo foi tão ameaçador, porque no caminho entre Senador e Vitória vivemos uma experiência singular: de repente, por volta das dez horas da manhã, enquanto navegávamos próximos da margem, o navio foi invadido por número incontável de borboletas, de um verde claro uniforme. Elas atravessaram o espaço do navio, voando entre nós, absolutamente pasmos, ante o inusitado, e elas absolutamente indiferentes a nossa estupefação. E, como disse o Reitor, Dr. Alex Bolonha Fiúza de Mello, de volta ao Campus de Belém: “Tenho a impressão de que saí de um espaço mágico, o Xingu nunca mais se repetirá”. “Populações e tradições às margens do Tocantins” foi o título dado ao evento do VII IFNOPAP. A expedição fez-se em viagem pelos municípios de Abaetetuba, Cametá e Tucuruí. A imagem mais marcante do VII IFNOPAP ficou por conta do lançamento do 1º.Dicionário de Língua indígena, no Pará. O Reitor da UFPA, Dr. Alex Bolonha Fiúza de Mello, passou, em posição de reverência... quase de joelhos, frente aos nossos olhares atônitos e comovidos, o dicionário e um livro de lendas indígenas, às mãos do chefe Asurini. O chefe desculpou-se para o público por não ter palavras para agradecer a doação e, nesse momento, a nossa comoção atingiu o auge, porque aquela figura comovente, que lembrava os nossos ancestrais, pediu para cantar e, através do seu canto, expressar a sua gratidão. Não nos


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contivemos e choramos todos, ante aquele canto simples, melodioso e, particularmente, solene. “Rios do Norte, Florestas do Sul: percurso de cultura e de biodiversidade na Amazônia paraense”. Fizemos, no VIII IFNOPAP, uma viagem em torno de Belém, no primeiro dia de encontro, visitando ilhas e braços de rios que dão um toque de originalidade a essa paisagem. Nos dois dias seguintes, desenvolvemos nossas atividades em Belém, Icoaraci, Guajará-Miri, Itacoã e Barcarena. A partir do quarto dia, nossos esforços destinaram-se ao Sudeste do Pará numa extensa programação em Parauapebas. O inusitado do encontro, na parte destinada ao Sudeste do Pará, ficou por conta de um acidente, entre os dois ônibus que conduziam os participantes. Apesar do susto e dos perigos a que estivemos expostos, o encontro não sofreu solução de continuidade e foi realizado, segundo o previsto, sendo que a programação foi cumprida, com sucesso. O IX Encontro IFNOPAP atendeu a uma área do Marajó, distinta daquela que foi alvo da expedição de 2001, realizando atividades em três dos muitos municípios situados no arquipélago, considerando as necessidades de levantar dados, repassar informações e despertar interesse de estudantes e pesquisadores em questões ligadas ao desenvolvimento socioeconômico-cultural da região. O retorno do IFNOPAP, ao Marajó, foi enriquecido com a inclusão de uma vasta programação da SBPC, e apoio da Secretaria de Educação do Pará. Oficinas, cursos, palestras e mesas-redondas destinaram-se a um público-alvo, ou seja, professores do Ensino Médio da rede pública, numa média de setecentos participantes. No X IFNOPAP, projetamos fazer um “Retorno às origens: caminhos para Bragança” e a justificativa para esse percurso é bem simples e plausível – foi em Bragança que fizemos a nossa primeira investida no interior do Pará, com a finalidade de atender a uma das premissas da proposta: “mapear o que se conta no Pará”. A escolha não poderia ter sido mais acertada. Bragança é uma das cidades mais antigas do Estado e ainda guarda aquele clima de fascínio e tradição das nossas primeiras aldeias: os casarões, paralelepípedos, coretos, praças, prédios de administração pública, colégios religiosos e públicos, de tudo se respira início do século XIX. Dos recônditos destes ambientes fechados ou nos campos abertos e alagados da região


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emanaram belíssimas narrativas que nos deram conta da tradição, dos encantos e da vida do homem do Nordeste do Pará, desde as histórias vindas com o colonizador, passando por incríveis matintas e curupiras e desembocando numa figura, estritamente, bragantina – o Ataíde. O X IFNOPAP foi um sucesso, em todos os sentidos, mas vale ressaltar o apoio de um grupo de professores, que deixa os seus compromissos profissionais, em IES de todas as regiões do Brasil, e vêm ao Pará contribuir, em níveis distintos e áreas diferenciadas, para a formação de jovens professores da rede pública, universitários e público, de modo geral. Assim, mais uma vez, cumprimos a nossa missão IFNOPAP, deixando a nossa marca acadêmico-científica entre cerca de 700 pessoas, nos municípios de Bragança, Capanema e Castanhal. Os eventos XI e XII foram realizados no arquipélago do Marajó, sendo que revisitamos Ponta de Pedras, Soure, Salvaterra e Cachoeira do Arari e tivemos a oportunidade de levar para as comunidades, destes municípios, atividades relacionadas com pesquisa, ensino e extensão, nas áreas de Letras, Humanidades, Saúde, Tecnologia e Socioeconomia. Do XIII ao XVIII IFNOPAP, temos repetido a experiência de “navegar entre o rio e a floresta”, vivenciando a Amazônia paraense em parte da sua exuberância. Ainda que o Projeto se tenha espraiado da área de Letras para as demais, e se convertido num Programa de Estudos Geo-Bio-Culturais da Amazônia, com a nominação de Campus Flutuante, o objetivo primeiro, ligado às narrativas da Amazônia, mantém certo encanto e magia que nos motiva a continuar buscando esta região no que ela tem de mais legitimamente representativo, quais sejam: seus mitos e lendas. Em “Metamorfose: uma viagem pelo imaginário grego” (1994, p. 34) Leminski considera que o mito é a “palavra fundadora, a fábula matriz, a estrutura primordial, leitura analógica do mundo e da vida”. Visto sob este aspecto o mito é entendido como explicação para a vida, a natureza, a história e as relações sociais do homem em seu espaço de origem. Nós e laços da Amazônia se propõe a fazer, através das algumas incursões, uma curta discussão acerca de mito, enquanto discurso fundador – cerne da história e identidade de uma cultura, no nosso caso específico, da cultura amazônica e suas manifestações míticas.


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Não se tem a intenção de sustentar uma profunda discussão acerca de conceitos de mito, mas abrir espaço para análise de conceitos que se vinculavam, ainda que indiretamente, a nossa proposta de investigação: mitos e lendas amazônicos. As discussões nesta área são sempre muito proveitosas, mas como é de se esperar, até porque faz parte da natureza da atividade de pesquisa, nada é conclusivo, estamos sempre tentando nos aproximar da verdade e, nessa área de investigação, é tudo muito subjetivo. Ressalte-se, no entanto, que não é pelo fato de ser subjetivo, impalpável, que devamos nos contentar com as abstrações, muito pelo contrário: estamos sempre buscando e tentando sustentar e legitimar as nossas discussões. Portanto, que fique claro, não estamos a propor conceitos ou definições conclusivas sobre mito. Consideraremos, apenas, alguns pensamentos, já existentes, que se adéquem aos nossos propósitos. Chamamos, então, Mircea Eliade (Aspectos do mito, 1977, p. 86), neste primeiro momento, uma vez que ele próprio considera que a definição, a seguir, é a mais perfeita, porquanto a mais ampla: “ O mito conta uma história sagrada, narra um fato importante ocorrido no tempo primordial” . O teórico vai além, apontando três funções do mito: o mito conta, o mito explica, o mito revela. Das três funções apontadas por Eliade, nos interessa: O mito conta. O mito é uma narrativa. O mito é , portanto, animado pelo dinamismo da narrativa, do que originou a definição proposta por Gilbert Durand (As estruturas antropológicas do imaginário, 1987, p. 103) : “Entendemos por mito um sistema dinâmico de símbolos, um tema dinâmico que, sob o impulso de um esquema, tende a organizar-se em narrativa”. Revendo os gregos, encontramos mito, que remonta a “mythos”, relacionado com palavra formulada, que pode ser narrativa, diálogo ou enunciação. Desde o sentido original: (fábula), até a modernidade, a palavra tem merecido um número crescente de significados. Nesse contexto, considerar-se-á mito como fábula matriz, leitura analógica do mundo e da vida, conforme foi referido, no início deste trabalho, quando recorremos ao conceito de Leminski. Para Cassirer (1977, p. 45) o mito se enquadra na poiésis e é como atividade poética que manifesta a sua especificidade discursiva. Para Huizinga (1972, p. 154) “o mito, qualquer que tenha sido a forma em que chegou até nós, é sempre poesia. Em forma poética e com recur-


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sos de fabulação, oferece um relato das coisas que se apresentam como ocorridas”. Dentre as muitas considerações, convém reafirmar que o mito é a linguagem inaugural em que se encontram os traços fundadores da memória da humanidade e que num ininterrupto fazer-se funda os sentidos que percorrem e se traduzem na história da sociedade. Há que se levar em conta, portanto, que é a palavra relatada no e do mito que constrói no imaginário social, mediante efeitos discursivos de sentido, representações de identidade que permitem ao indivíduo afirmar a sua existência no mundo, além de ser (o mito) o elemento justificador do próprio sentido de existir do mundo . De acordo com Cassirer (1977, p. 62), a lógica do mito é “incomensurável com todas as novas concepções de verdade empírica ou científica”. Visto sob esse aspecto, o conjunto de mitos de uma sociedade adquire um valor documental que se evidencia e que não pode ser desconhecido ou relegado pelas ciências humanas e nem pelas demais ciências. A narrativa mítica, enquanto forma de discurso proferido, encontra-se diretamente associada à categoria de performance, a partir da qual “o mito deve ser entendido como cultural e socialmente contextualizado” (Shezer, 1990, p. 11). Por conseguinte, enquanto ato narrativo, o mito deve ser entendido como uma forma peculiar de arte verbal, envolvendo contadores, audiência e espaço acordado com a prática do contar. O narrador, ao contar o mito, insere-se ele mesmo numa linhagem tradicional e institucionalizada de “o contador de histórias” que, por sua vez, legitima a performance. Ao mesmo tempo, esse mesmo narrador introduz as marcas de sua individualidade, que é única e irrepetível. Na realidade, cada nova performance é uma espécie de recontar/recriar, que traz os sinais do engenho artístico de cada narrador. Uma performance verbal pode ser caracterizada por materiais diferenciados: o narrador pode ficar imerso nas fontes da tradição, ser capaz de imprimir suas marcas pessoais no que relata e pode, ainda, referir elementos relacionados com os avanços socioculturais do grupo. É nesse sentido que se afirma que cada performance verbal é irrepetível, além de mobilizar, ao mesmo tempo: a tradição e a inovação, o individual e o coletivo.


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Discorrer sobre mito, cultura e tradição, ou sobre outros temas dessa natureza, sempre se constituiu uma espécie de barreira a ser enfrentada, bem como dificuldades a serem suplantadas. E não se trata, apenas, do preconceito, em geral, colocado pelos defensores da academia elitista, comprometida com a formação e divulgação de conhecimento, a partir da mentalidade de que o erudito é o detentor de todo o crédito; trata-se, na verdade, também, das próprias dificuldades de se caminhar por uma área em que os estudos se alternam entre o eruditismo extremo e/ou a simples aventura dos que estão em busca do exótico e do “pitoresco”, o que, enfim, acaba por comprometer a pesquisa, a reflexão e os conceitos atinentes ao assunto. Apesar das dificuldades, como ficar indiferente aos encantos dos mitos, da cultura e de uma tradição como a da Amazônia, por exemplo. Como não se expor às freqüentes barreiras, quando o fascínio se deve a uma região como esta? É difícil, para não dizer “quase impossível”, quando se vive anos a fio em meio a tanta exuberância . Os mitos relatados/gravados, que fazem parte do acervo do projeto IFNOPAP, são a verdadeira expressão da multiplicidade do viver amazônico, envolvendo as emoções, sonhos, devaneios, aspirações, realizações, frustrações, ideais, encantos, desencantos...enfim, toda a vida e utopia de um homem dividido entre a floresta e a água dessa vasta planície. T.S.Eliot (1998:23), no seu Notas para uma definição de cultura, afirma, que “se perdermos algo de modo absoluto e irreparável, deveremos arranjar-nos sem ele” para mais tarde considerar que não teremos idéia de como a sociedade nos julgará ou se será desejável uma estrutura social que se assente sobre perdas. A idéia de se fazer uma pesquisa para recolher o máximo do que “se conta no Pará” não teve (ou tem) a ambição de “resgatar” a cultura regional, para evitar desmandos irrecuperáveis no futuro. Até porque somos partidária de que o decréscimo do interesse da comunidade pela sua cultura pode resultar em danos, em uma certa medida, numa visão futura e totalitária, mas não redundará na extinção de suas manifestações, em termos absolutos. Haverá sempre resíduos significativos que emergirão em algum momento e de alguma maneira. Os mitos relatados e gravados estão aí para o provar. É, ainda, Eliot que considera “que as utopias redentoras da socie-


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dade nem sempre são as projetadas para o futuro” (1998:23); a relação de identidade deve estar vinculada ao passado, ao primevo, à tradição. Assim sendo, passado e o futuro não acontecem dissociados . O que se realiza em termos de pesquisa sobre oralidade e narrativa no Pará, não tem a pretensão de ser absoluto ou totalitário, mas deve marcar a continuidade de elementos da tradição e da vida do homem amazônida entre um passado (que se faz, ainda, tão presente) cheio de magia e encanto, o presente do relato, pleno de vida, e um futuro de estudos pertinentes, instigantes e indispensáveis aos questionamentos próprios da academia, e, quiçás, da sociedade como um todo.1 Eidorfe Moreira (1960:53), em Amazônia - o conceito e a paisagem, afirma que a Amazônia é um anfiteatro, de forma “excessivamente alongada”, nesse imenso e solene anfiteatro não apenas se representa e desfila a vida em infindas manifestações performáticas, mas ele, anfiteatro, é a própria síntese de uma espécie de vida e de vivência, marcadas por experiência plena de magia e sedução. O anfiteatro assimétrico e irregular, de que fala Eidorfe Moreira, é constituído de rio e de floresta que sintetizam para o homem amazônida uma realidade com dupla função: uma imediata, lógica, objetiva fonte de vida e subsistência e outra mediata, mítica, mágica, plena de encantos e encantamento, responsável por todos os seus sonhos e devaneios. A intersecção dos dois espaços resulta numa síntese complexa e ao mesmo tempo simbólica, em que residem os substratos mais legítimos da cultura amazônica. A paisagem composta e emoldurada por rios e florestas significa para o amazônida, portanto, não apenas o espaço de vida e trabalho num cotidiano repetitivo, mas também o elemento mediador de uma ligação com o maravilhoso e com o fantástico. Nessa paisagem, homens, animais, seres, rios, florestas são vistos e observados com a perspectiva de perscrutação e captação do sentido íntimo das coisas. Os rios da Amazônia constituem uma realidade excepcional e não apenas por formarem uma bacia de 4.778.374 km de curso de 1 - Independente do que venha a ser produzido futuramente, o projeto tem subsidiado trabalhos em diversas áreas e de diversas modalidades: Livros publicados 28, Monografias 46, Dissertações de Mestrado 27, Teses de Doutorado 08, Artigos publicados 64, Oficinas e mini cursos 253, Videos 14, Curtas metragens 03, Cd- roms 08, Subprojetos 28.


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água, mas por ser o rio, nesse incomparável espaço, quase tudo, ou seja, por estar intimamente ligado à vida e à cultura da região: “Rio, pão líquido, andar em procissão de espumas, alimento de lendas, poesia - piracemas de ânsias, preamares, sílabas” (Loureiro)2 Desses rios emergem botos, iaras, boiunas, cobras-noratos e todo um mundo encantado que habita as suas profundezas para conviverem com o caboclo ou com o homem citadino, numa permanente unidade, vejamos um exemplo : “Isso aconteceu na Vila do Curuaí. Uma noite, uma moça, enquanto ela dormia, veio um homem, todo de branco... e levou a moça bem pra perto do rio. A casa dela ficava bem pertinho do rio. Então, ele levou a moça pra lá. E, quando foi de manhã, a família da moça procurou por ela e não encontrava a moça. Foram achar a moça nua, lá na beira do rio. E a moça dizia, quando ela acordou, que um rapaz gostava dela e tinha abusado dela. Só que o feiticeiro, um velho do interior, disse que tinha sido o boto. E o boto, ele sempre aparecia. Ele aparecia para os homens também. Uma vez, ele apareceu para um rapaz. O nome do rapaz era João e ele quis tirar o calção do João, mas o João conseguiu fugir. Diziam que alguns rapazes não conseguiam escapar do boto.”3 Com a extensão de 4.161.482m , a floresta amazônica é o outro lado significativo dessa fascinante paisagem. A floresta, na tradição literária, tem sido eleita como índice do espaço sintetizador das aventuras, venturas e desventuras do homem, desde a sua concepção, independentemente das discussões que se possam levantar em torno dessa origem : desde as aventuras da cavalaria medieval até as guerrilhas modernas, a floresta tem sido considerada o espaço/refúgio ideal de encantados, entidades mítico/místicas, amantes perseguidos como Tristão e Isolda, santuário natural da mitologia celta, guardadora do Santo Graal, além de se configurar como símbolo do amor eterno na mitologia indígena, paraíso edênico ou reino das trevas. 2 3

LOUREIRO, J. J. Paes. Porantim. In:Cantares Amazônicos. p.62,63 - Adaptada do livro:SIMÕES & GOLDER. Santarém conta... p.41,42


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Elemento primevo na constituição da paisagem, a floresta amazônica absorve e catalisa o comportamento do homem amazônida , imprimindo à região uma espécie de estilo de vida e cultura. Dessa floresta, vista metaforicamente, pelos que olham à distância, como um arquétipo , responsável pela sustentação da vida no planeta, nesse novo milênio, e cuja destruição representaria uma catástrofe, dessa mesma floresta assistimos à afloração de histórias cheias de encanto e magia, que o comprove o acervo IFNOPAP, de mais de 5.300 relatos. O discurso mítico é constitutivo da identidade de um povo, forma através da qual os indivíduos explicam o seu “ethos” e a sua organização sócio-econômica. Qualquer olhar sobre a imensa planície amazônica, ainda que sem muita “detença”, dará conta de que é dos mitos que os amazônidas se utilizam para enunciar seus sonhos e realidade, sua verdade e sua utopia ou, mais completamente,: quem são, o que pensam e como vêem e apreendem o seu “mundus vivendi”. Para evitar que se prive a comunidade de narrativas como esta e se inviabilize estudos sobre a arte de contar , acerca do próprio contador e cultura amazônidas é que o Projeto Integrado “O Imaginário nas Formas Narrativas Orais Populares da Amazônia Paraense” continuará perseguindo os seus objetivos na tentativa, também, de manter não apenas vívidas as lembranças da região, mas de propiciar discussões pertinentes sobre oralidade, cultura e situações narrativas no âmbito da academia.


Maria do Socorro Simões

Referências BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. S.Paulo: Martins Fontes.1989. CASSIRRER, E. Antropologia filosófica. São Paulo: Mestre Jou, 1977. CENTENO, Y.K. A simbologia alquímica no conto da serpente verde de Goethe. Lisboa, UN [ s d ] CÂMARA, Cascudo. Literatura oral. Rio de Janeiro: José Olympio, 1952. DURAND, Gilbert. As estrutura antropológicas do imaginário. ELIADE, Mircea. Mito e Literatura. S. Paulo: Perspectiva, 1978. ___________. Aspectos do mito. S. Paulo: Perspectiva, 1978. ELIOT, T.S. Notas para uma definição de cultura. S. Paulo: Perspectiva, 1988. FERREIRA, Jerusa P. Cavalaria em cordel; o passo das águas mortas. S. Paulo: Hucitec, 1979. GOMES, Lindolfo. Contos populares. S. Paulo: Melhoramentos [ s d ] HUIZINGA, J. Homo ludens. Madrid: Alianza Editorial, 1972. LEMINSKI, P. Metamorfose. Uma viagem pelo imaginário grego. S.Paulo: Iluminuras, 1994. LOUREIRO, J.J. Cultura amazônica uma abordagem poética. Belém: CEJUP, 1995. MIELIETINSKI, E.M. A poética do mito. Rio de Janeiro: Forense, 1987. NASCIMENTO, Braúlio. As seqüências temáticas no romance tradicional. Revista Brasileira de Folclore (15): 159 - 90, 1996. SHEZER, J. Verbal art en San Blas. Culture through its discourse. Cambridge: C.U. Press, 1990. SIMÕES, Ma. do Socorro & GOLDER, C. Santarém conta... Belém: CEJUP,1995. SIMÕES, Maria do Socorro. A cultura amazônica em suas multivozes. Belém: EDUFPA, 1999. ____________. Criaturas fantásticas da Amazônia. 2ª.ed. Belém: EDUFPA, 2000.

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Representações da Amazônia na Ficção Brasileira - 1876 a 19081 Maria de Fatima do Nascimento*

A Amazônia brasileira, importante região de floresta tropical

do planeta, despertou um enorme fascínio nos primeiros homens que realizaram estudos acerca da natureza e das relações entre os seres vivos desse nosso meio ambiente. Esses primeiros estudos foram empreendidos por missionários, cientistas e naturalistas, geralmente estrangeiros, como constituiu o caso de Charles-Marie de La Condamine2, autor do livro Viagem à América meridional descendo o rio das Amazonas (1745) e considerado o primeiro cientista a descer o rio Amazonas de sua nascente até o Pará, bem como o caso de Louis Agassiz (18071873) e Elizabeth Cary Agassiz (1822-1907)3, autores do livro Viagem ao Brasil 1865-1866 (1869), obra publicada inicialmente na Europa e baseada nas observações da viagem da Expedição Científica Thayer, da qual o naturalista Agassiz era o chefe. Tais obras tiveram recepção no Brasil, especialmente, na região Amazônica brasileira, sobretudo Viagem ao Brasil 1865-1866, dos Agassiz, responsáveis pela divulgação ostensiva da Amazônia, ora paradisía*

Doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora Adjunta de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Partes das ideias esboçadas neste capítulo de livro foram publicadas na revista Laterna, Marabá (PA), 2009.

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Charles-Marie de La Condamine (1701-1774), cientista francês que efetuou expedição ao Peru e à Bacia Amazônica entre 1735 e 1744, chegando a Belém do Pará em 19 de setembro de 1743. 3 Louis Agassiz e Elizabeth Cary Agassiz, naturalista suíço e sua esposa, que estiveram no Brasil entre 1865 e 1866. A partir dessa experiência, produziram o livro Voyage au Brésil (1869). 2


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ca, ora infernal, na Europa e nos Estados Unidos de 1865 a 18744, ao mesmo tempo em que a região era divulgada aos próprios brasileiros, suscitando, mais tarde, discussões e polêmicas em torno do clima, da paisagem, da natureza e do homem locais, até a atualidade. A obra Viagem ao Brasil 1865-1866 serviu como uma espécie de matriz para ficcionistas que nela beberam, a título de crítica, ou a título de motivação para suas criações. Isto porque Elizabeth Cary Agassiz, principal redatora desse livro, convocou, de certo modo, a emoção ou uma carga de subjetividade para os registros dos relatos, diários, lendas e impressões de viagem, enfim, para aquilo que por aqui viu, observou e ouviu. Ainda no século XIX, foram publicados os primeiros romances com temas sobre a região Amazônica, surgindo então representações dela nas narrativas de imaginação, bem como no prefácio do romance O Cabeleira (1876), de Franklin Távora (1842-1888), esse despontou como um dos autores que se empenharam em defender a tese de que deveria existir uma literatura do Norte e outra do Sul: As letras têm, como na política, um certo caráter geográfico; mais no Norte, porém, do que no Sul abundam os elementos para a formação de uma literatura propriamente brasileira, filha da terra. A razão é óbvia: o Norte ainda não foi invadido como está o sul de dia em dia pelo estrangeiro. (TÁVORA, 1988, p. 10)

A referida tese não se sustentou porque, embora o Brasil apresentando diversidades regionais, em Franklin Távora, segundo Antonio Candido (1986, p. 293), havia: “Desvio evidente que, levando-o a dissociar o que era uno e fazer de características regionais princípio de independência, traía de certo modo a grande tarefa romântica de definir uma literatura nacional”. Contudo, Candido assinalou ainda que: “A virtude maior de Távora foi sentir a importância literária de um levantamento regional; sentir como a ficção é beneficiada pelo contato de uma realidade concretamente demarcada no espaço e no tempo, que serviria de limite e, em certos casos, no Romantismo, de corretivo à fantasia”. 4 Dos vinte e sete textos publicados sobre o Brasil entre 1865 e 1874 pelo naturalista suíço, dezesseis apresentam em seus títulos o nome Amazônia/Amazonas. Ver Agassiz, Luís e Agassiz, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil 1865-1866. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2000, p. 510-512.


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REPRESENTAÇÕES DA AMAZÔNIA NA FICÇÃO BRASILEIRA - 1876 A 1908

Sendo assim, em termos de literatura do Norte, assunto exaustivamente debatido por estudiosos brasileiros dos séculos XIX e XX, verificou-se que Távora, naquele prefácio, propôs uma representação positiva, na literatura nacional, também da Amazônia, diferentemente da maneira depreciativa de inferno verde como ela foi majoritariamente retratada por muitos autores, a exemplo dos viajantes, o mesmo valendo para a representação do que depois passou a ser denominado de Nordeste, resgatando tais espaços enquanto ricas e grandiosas realidades naturais. Em 1876, época em que Távora escreveu o prefácio em apreço, o Brasil não era dividido pelos seus aspectos naturais. Somente em 1969, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) o dividiu em cinco regiões, a saber: Região Centro-Oeste, Região Nordeste, Região Norte, Região Sudeste e Região Sul. Portanto, no século XIX, o Nordeste brasileiro era conhecido como Norte. A esse respeito, veja-se uma observação de José Aderaldo Castello (1999, p. 245): “Com a obra e as posições assumidas por Franklin Távora, voltadas para o Nordeste do Brasil, acentuam-se então as preocupações com a representação das diversidades regionais brasileiras definidas por Bernardo Guimarães, mas inspiradas e finalmente sistematizadas por José de Alencar”. Parece que, por esse motivo, todos os críticos literários do século XIX e XX reconheceram apenas o Nordeste, região do romancista de O Cabeleira, na discussão presente no prefácio do livro, não percebendo que, em boa parte do texto, se especula sobre a representação da Amazônia brasileira, como exemplificam os fragmentos a seguir: Pará e Amazonas, que não me são de todo desconhecidos; Ceará, torrão do meu nascimento; todo esse Norte enfim, se Deus ajudar, virá a figurar nestes escritos, que não se destinam a alcançar outro fim senão mostrar aos que não a conhecem, ou por falso juízo a desprezam, a rica mina das tradições e crônicas das nossas províncias setentrionais. (TÁVORA, 1988, p. 7-8) Muito se há escrito sobre o Pará e o Amazonas desde que foram descobertos até nossos dias. Que valem porém todos os escritos e narrações de viagem a semelhante respeito? Quase nada. O que eles nos põem diante dos olhos é o traço hirto, e não o músculo vivo e hercúleo; é a ruga, e não o sorriso; é a penumbra, e não o astro; o que


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eles nos oferecem são formas tesas e secas em lugar dos contornos brandos, delicados e flexíveis dos imensos panoramas e transparentes perspectivas dessas regiões paradisíacas. (TÁVORA, 1988, p. 9)

Partindo desse ideal a respeito de uma literatura amazônica, interessa aqui investigar as representações da paisagem correspondente em cinco obras escritas entre 1876 e 1908: O Cabeleira (1876), de Franklin Távora, O cacaulista (1876), História de um pescador: Cenas da vida do Amazonas (1876), todos de Inglês de Sousa (1853-1918); À margem da História (1909), de Euclides da Cunha (1866-1909); e Inferno verde (1908), de Alberto Rangel (1871-1945), com ênfase no último autor, que teve papel fundamental nas discussões sobre a representação da Amazônia na arte verbal, conforme veremos na última parte deste trabalho.

A presença da Amazônia no prefácio do romance O Cabeleira, de Franklin Távora O prefácio do romance O Cabeleira, de Franklin Távora, estremeceu a intelectualidade da capital do Brasil daquela época, o Rio de Janeiro, centro que congregava a nata dos ficcionistas brasileiros, como Machado de Assis e José de Alencar, e que não podia aceitar “as pálidas linhas – notas dissonantes de uma musa solitária” (TÁVORA, 1988, p. 7). Conforme apreciação de Sílvio Romero, admirador e amigo do escritor cearense: Com tantos predicados de escritor, realçados por um caráter de escol, admira o afastamento em que dele se colocou sempre o faccioso público dos literatos de ofício. É que o escritor nortista apareceu no meio deles sem lhes abaixar a cabeça, e, ao demais, tendo a coragem de falar em literatura do Norte. Daí a mávontade. Mas a história lhe fará justiça. (1974, p. 1605)

Com efeito, esse prefácio, escrito em forma de carta a um suposto amigo que se encontrava em Genebra, além de criticar os escritores brasileiros por não representarem a região Norte, especialmente “a região amazônica”, destacando o Pará e o Amazonas como legítimos representantes dessa região, que, para o autor cearense,


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