Violência escolar

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Conselho Editorial Série Letra Capital Acadêmica Beatriz Anselmo Olinto (Unicentro-PR) Carlos Roberto dos Anjos Candeiro (UFTM) João Medeiros Filho (UCL) Luciana Marino do Nascimento (UFRJ) Maria Luiza Bustamante Pereira de Sá (UERJ) Michela Rosa di Candia (UFRJ) Olavo Luppi Silva (USP) Orlando Alvez dos Santos Junior (UFRJ) Pierre Alves Costa (Unicentro-PR) Sandro Ornellas (UFBA) Sergio Azevedo (UENF) Sérgio Tadeu Gonçalves Muniz (UTFPR) William Batista (Bennet - RJ)


Robert Segal

Violência Escolar perspectivas contemporâneas


Copyright © Robert Segal, 2014. Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem a autorização prévia e expressa do autor.

Editor João Baptista Pinto

Capa Rian Narciso

Projeto gráfico e diagramação Luiz Guimarães Revisão técnica Janaína Garcia Pires Revisão do grego Patrícia Aguiar Rocha

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

S461v Segal, Robert, 1970 Violência escolar: perspectivas contemporâneas / Robert Segal. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Letra Capital, 2014. 220 p. ; 15,5x23 cm.

Inclui bibliografia ISBN 978-85-7785-248-2

1. Juventude e violência. 2. Violência na escola. 3. Educação - Brasil. 4. Integração social - Brasil. I. Título.

14-09411 07/02/2014

CDD: 370.981 CDU: 37(81)

12/02/2014

Letra Capital Editora Telefax: (21) 3553-2236/2215-3781 letracapital@letracapital.com.br


Dedico esta obra a Anita, em especial, meu amor e minha cúmplice incondicional na vida e na construção desta obra, mesmo nos momentos de devaneios e insanidades. Às minhas filhas, Alice e Sofia. Ao meu sempre querido Marco Rodrigues, grande companheiro de dissidências e utopias. E a Ana Fernanda da Rosa Bernardo, Arthur Mota Di Filippo, Daniel Aguiar Páscoa Rodrigues, Gabriel Sucupira Raul Molino, Isabela Mirilli Lemos, Izadora Rocha Coelho, Heitor Rocha Coelho, João Eduardo da Rosa Bernardo, Maria Clara Almeida Rodrigues, Maria Clara Vieira David, Pedro Almeida Rodrigues, Pedro Boeing, Rafael Aguiar Páscoa Rodrigues, Sofia Lemos e Yuri Mirilli Lemos, meus jovens queridos neste mundo de violências.



Agradeço

Especialmente, a Sueli Barbosa Thomaz, minha orientadora no

curso de Mestrado em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), estimada amiga, mestre e companheira na intensa jornada que culminou nesta obra. Aos professores Maria Celi Chaves Vasconcelos e Miguel Angel de Barrenechea, pelas imprescindíveis colaborações na pesquisa que ensejou esta obra. Aos professores Ana Canen, Ângela Maria Souza Martins, Diógenes Pinheiro, Guaracira Gouvêa de Sousa, Maria Elena Viana Souza, Nailda Marinho da Costa Bonato e Sul Brasil Pinto Rodrigues, pelo valioso legado. Aos meus colegas do curso Mestrado em Educação Alexandre Ribeiro Neto, Ana Paula Passos da Silva, Andréa Aceti Gurgel, Carlos Augusto Loureiro Sampaio, Clarisse Almeida, Delma Marcelo dos Santos, Elson Luiz Barbosa Filho, Fernanda Mattos Carpinteiro dos Santos, Helen da Silva Escansette, Jessica Mara Rodrigues de Siqueira Lima, Kátia Vicente da Silva, Keila Nunes Valente, Lisi Salazar Coutinho, Luciana Borges Patroclo, Marco Aurélio Vasconcelos, Maria Ana Dias Alvarenga, Maria de Fátima Ferreira Brito, Maria Inês Pereira Guimarães, Mariana Campos Silva Mendes, Maximiliano de Souza, Roberta Guimarães Teixeira, Robledo Mendes, Samantha Aparecida Moura Martins Vieira e Vitor Soares Mann, pelas contribuições e com quem pude compartilhar angústias e alegrias. A Gustavo Pinto Alves da Silva, Joy Machado de Moraes Romão, Kenia Maynard da Silva, Selma Regina Aragão Conceição e Maria Regina Menezes da Costa, pela solidariedade e colaborações. A José da Costa Nogueira, Monique Lima de Andrade e Simone Martins Santos que, com espírito de solidariedade e companheirismo, muito contribuíram para que este trabalho fosse realizado. A Anne Marie Bouyer, Bruno de Almeida Nogueira, Maria


Fernanda Brown, Nelson Silva, Jaílton Araújo Lira e Rodolfo Targino, pelo valioso apoio. A Mário Meir, Verônica Mirilli e Zilton Lemos pelas contribuições subversivas. A Janaína Garcia, pelo incentivo, pela revisão da obra e pelas contribuições. A Patrícia Aguiar Rocha pela tradução do grego. A Valéria Rezende, por tudo. A Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio e fomento do estudo que deu ensejo a esta obra, mediante a concessão de uma bolsa de pesquisa. E a João Baptista Pinto, parceiro em mais uma obra, e a toda equipe da Editora Letra Capital.


A flor da pele e ao fundo da alma – assim é a violência no cotidiano, uma violência que corre e ricocheteia sobre as superfícies de nossa existência e que uma palavra, um gesto, uma imagem, um grito, uma sombra que seja, capta sustenta e relança indefinidamente, e que, no entanto, desta espuma dos dias, abre à alma vertiginosos abismos em mergulhos de angústias que nos fazem dizer: “sou eu mesmo toda essa violência?” (DADOUN, 1998, p. 43). Com efeito, é necessário constatar antes de tudo que as carnificinas, os massacres, os genocídios, o barulho e a fúria, ou seja, a violência em suas diversas modulações, é a herança comum a todo e qualquer conjunto civilizacional (MAFFESOLI, 1987, p. 13)



Sumário Apresentação......................................................................................... 13 Prefácio................................................................................................. 15 Introdução............................................................................................. 17 Capítulo 1. Violência: dinâmica e polissemia.................................... 43 1.1. Ficção e realidade: o côncavo e o convexo............................. 43 1.2. Definições e amplitude da violência........................................ 56 1.3. A violência e o homo violens................................................... 69 1.4. Violência e sua dinâmica na contemporaneidade.................... 75 1.5. Violência e poder..................................................................... 79 Capítulo 2. Violência Escolar: violência da escola, violência à escola e violência na escola........................................ 107 2.1. Da ficção à realidade: a violência escolar em foco................ 107 2.2. Violência e medo líquido na escola....................................... 111 2.3. Violência da escola: a violência do poder simbólico............. 119 2.4. Violência à escola: a dissidência dos Dionísios pós-modernos........................................................................ 142 2.5. Violência na escola: a orgia dionisíaca.................................. 160 Considerações Finais.......................................................................... 193 Referências.......................................................................................... 204

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Apresentação

Esta obra foi elaborada a partir de uma pesquisa realizada no Pro-

grama de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), cujo título ficou gravado como A violência escolar: perspectivas em uma era líquido-moderna. Inicialmente, o projeto de estudo tinha como um de seus objetivos a realização de uma pesquisa em uma escola localizada em um dos municípios do estado do Rio de Janeiro, o que não foi possível, devido a questões burocráticas por parte da administração pública, que provocaram a adaptação da pesquisa em tela às premissas temporais de um curso de mestrado. Desde já, uma “violência”, simbólica, pode-se dizer, mas, uma violência. Com a impossibilidade de realização de um estudo de caso, de cunho etnográfico, conforme se propunha originalmente na mencionada pesquisa, optou-se por uma pesquisa documental e bibliográfica sobre a violência escolar, valendo-se de narrativas e imagens contidas no documentário brasileiro Pro dia nascer feliz (2006), dirigido por João Jardim. Após a defesa da dissertação de mestrado e o depósito da versão original na biblioteca da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), tive acesso a outras publicações sobre a violência escolar. Assim, outras informações foram trazidas ao conjunto desta obra, razão pela qual se trata aqui de uma versão ampliada e adaptada do estudo original. Tendo como objetivo geral contribuir para a compreensão da violência escolar, a partir de suas formas descritas pela literatura tradicional como violência da escola, violência à escola (ou violência contra a escola) e violência na escola, e valendo-se do aporte teórico de antropólogos, educadores, filósofos e sociólogos sobre educação e violência, esta obra traz um estudo sobre o tema escolhido em uma linguagem acessível a pesquisadores, especialmente das áreas das ciências humanas e sociais, como educação, e aos leitores, de uma maneira geral. A perspectiva contemporânea se dá pelo fato de existirem contribuições de autores que, apesar de escritas nos séculos XIX e XX, ainda 13


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servem para que se possa compreender determinados fenômenos, entre eles, a violência. Todavia, sem banalizar a violência, esta obra traz a análise da violência escolar em suas formas, para além das abordagens que somente a associam à destruição, ao dano, ao caos, ao trauma e às questões relacionadas aos prismas econômico, ideológico e político. Em que pese a influência de fatores como narcotráfico, culturas familiares e sociedade de consumo, parece que há algo de sombrio, oculto, nas típicas das manifestações de violência no cotidiano escolar, como, por exemplo, as brigas entre alunos no pátio dos estabelecimentos de ensino, o que, mediante as contribuições teóricas aqui adotadas, somente pode ser percebido e compreendido se deixados de lado os estereótipos e as visões dicotômicas das condutas humanas, entre elas a violência. Compreender a violência e o homo violens que, encarnando o deus helênico Dionísio, habita a instituição escolar, é a principal proposta desta obra, nestes tempos em que o incessante desejo pela dissidência aos valores sociais cristalizados constitui sua marca. Ao leitor, fica o convite. Robert Segal

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Prefácio

Prefaciar uma obra é sempre um desafio, uma vez que podemos,

em poucas palavras, iluminá-la ou enfraquecê-la diante do leitor, na medida em que o “retrato” que tecemos fica restrito a nossa visão da obra. Foi pensando nisso que rascunhei mais de um prefácio no intuito de fazer valer o valor que a obra de Robert Segal apresenta. A obra trata a violência escolar numa visão multidimensional ao engajar no mesmo eixo as três grandes violências que, para alguns, pode parecer fruto de uma mesma causa – a violência da escola, a violência à escola e a violência na escola –, mas que cada uma delas tem o seu nicho e explode de diferentes maneiras, necessitando de olhares que saibam ver a amplitude e o significado que cada uma representa no cotidiano da escola. Para dar conta desse desafio, o autor buscou ir além do paradigma clássico que considera a violência como aquela declarada, instituída e estabelecida. Esse é o diferencial desta obra. O autor, com prática na área do Direito, chegou ao Programa de PósGraduação em Educação na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) na busca de investigar a questão do bullying na escola. Aos poucos, em função da busca teórica no campo da socioantropologia do cotidiano, sentiu a necessidade de buscar as causas primeiras que levam o homem à violência. Definir violência e compreendê-la na perspectiva do homo symbolicus abriu um leque que saltou da antropologia, para a sociologia, numa relação de recursividade, desaguando como um rio que corre para o mar: o mar da educação. Pesquisar sobre violência assusta àquele que pode ter o seu universo reconhecido como violento. Creio ter sido esse fato que fez com que o autor não obtivesse a permissão de levar à prática o que a teoria lhe apontava, quando buscou uma escola para pesquisa. Isso não abateu e não desviou o autor do seu objetivo. Com criatividade, inventividade e sensibilidade, o autor foi buscar no mundo do cinema as imagens e as histórias que comprovam as hipóteses estabelecidas. 15


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Desta feita, o autor elabora um texto primoroso, ao tratar a questão da violência à ótica da lente do cinema. Mas como não poderia se restringir a uma realidade que não fosse a brasileira, Robert Segal lança mão de um documentário intitulado Pro dia nascer feliz (2006), de João Jardim. Esse documentário permite a construção da teia de significados entre a realidade educacional brasileira e os teóricos. Durante todo o decorrer do trabalho, o autor se encanta com a sua obra. Sua vida se torna a obra e a obra se torna a sua vida. De uma exigência ímpar, inúmeras foram as versões da obra. Sempre faltava algo; poderia estar melhor; um retoque aqui, outro ali. A realidade é que a obra estava completa, mas o preciosismo de Robert era maior. É esse trabalho de amor, de dedicação e de competência que chega até o leitor, que poderá saboreá-lo com o tempero certo, com o recheio teórico de autores como Michel Maffesoli, Edgar Morin, Gilles Lipovetsky, Georges Balandier, Pierre Bourdieu, Manoel Castells, Michel Foucault, Norbert Elias, Zygmunt Bauman, Roger Dadoun, entre outros, e com a massa triste da realidade educacional brasileira. A obra permitirá aos leitores uma visão da violência, para além do que comumente se estuda. Convido o leitor para adentrar o caminho do labirinto que o autor construiu com maestria e explicar esse Minotauro chamado violência. Sueli Barbosa Thomaz*

Possui Graduação em Pedagogia pela Universidade Federal Fluminense – UFF (1976), Mestrado em Educação pela Universidade Federal Fluminense – UFF (1986), Doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ (2000) e Pós-Doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo – USP (2003). Professora aposentada. Ocupou o cargo de professor associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Administração de Sistemas Educacionais. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação. Foi professora dos cursos de Licenciatura em Pedagogia, Música, Teatro, História e Biologia. Desenvolve pesquisas na área da socioantropologia das organizações e educação, em educação a distância, violência, teatro-educação e imaginário, com base teórica em Edgar Morin, Michel Maffesoli, Georges Balandier, Zygmunt Bauman, Clifford Geertz, Roberto DaMatta, Gilbert Durand, entre outros. *

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Introdução Prefiro ser Essa metamorfose ambulante Do que ter aquela velha opinião Formada sobre tudo. (Trecho da música Metamorfose Ambulante, de Raul Seixas)

Em uma sala escura de cinema, tive a chance de assistir, por

aproximadamente duas horas, um filme que trata do cotidiano de uma escola localizada na periferia da cidade de Paris. O filme chama-se Entre os muros da escola (Entre les murs, 2009), dirigido por Laurent Cantet e baseado no livro homônimo de François Bégaudeau, que narra a complexidade das relações entre o diretor, os professores, os alunos e os pais destes últimos. A imagem da escola associada à paz e segurança logo é posta à prova pela narrativa que mostra alunos que brigam entre si e desafiam os professores, professores que exercem sua autoridade sobre os alunos de modos questionáveis, professores que, em alguma medida, rivalizam-se entre si, pais que exigem da escola mais daquilo que ela poderia ou deveria oferecer. Demonstra-se, pois, uma relação tensa na escola. Esse é o enredo do filme. Pelo jogo de imagens e pelos discursos nele contidos, o filme em tela trouxe-me lembranças do tempo em que eu frequentava a escola1. Quase que simultaneamente, a cada cena do filme, vieram em minha mente várias passagens da minha vida escolar. Lembrei-me da direção da escola, dos meus professores, dos colegas e o que mais minha memória permitiu-me resgatar daquele tempo2. Tive a oportunidade de recordar, ali mesmo, sentado numa das pol“[...] Toda imagem é polissêmica e a pressupõe, subjacente a seus significados, uma ‘cadeia flutuante’ de significados” (BARTHES, 1990, p. 32). 1

Segundo Holzer (2004), a câmera cinematográfica pode revelar a quem assiste a um filme, as inúmeras ligações existenciais entre o homem e seu mundo. Esse mesmo autor, citando Miltry, concebe que o real, no cinema, organiza-se no discurso, cabendo ao indivíduo discernir as essências contidas nas imagens, num procedimento hermenêutico. 2

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tronas do cinema, amizades que fiz, paixões e medos que tive, sucessos e fracassos que experimentei na escola. Mas, aquele filme despertou em minha memória uma ocasião especial. Na década de 1980, estudava numa escola particular localizada na zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Naquela época, cursava o que atualmente se entende como o sexto ano do ensino fundamental e, em uma aula de matemática, passei por uma experiência marcante. A professora Sílvia3 perguntou aos alunos quem havia feito o “dever de casa” de matemática4 e, como resposta, juntamente com tantos outros colegas de minha classe, levantei meu braço, sinalizando positivamente. Externando um sentimento de espanto, diante do fato de eu ter feito a tarefa, a mencionada professora disse, para que todos ouvissem: “olha gente, não é que ele fez o dever de casa?!” A reação dos meus colegas de classe não foi outra senão cair na gargalhada e me “zoar”, como se diz na linguagem juvenil contemporânea. E, como se não bastasse a atitude, que si só poderia ser considerada como vexatória, a professora me fez apresentar-lhe o trabalho em sua mesa, para que pudesse conferi-lo pessoalmente, na presença dos colegas de classe, além de ter-me obrigado, em seguida, a ir ao quadro para tirar qualquer sombra de dúvida de que eu efetivamente teria feito o tal “dever de casa”. Longe de afirmar se a referida professora de matemática era “boa” ou “ruim”, competente ou não, o que poderia dar ensejo a leviandades por minha parte, traz-se aqui o registro de um evento ocorrido há mais de duas décadas, em uma sociedade que ainda não usufruía das contribuições científicas e tecnológicas, como o computador (pelo menos como o que se utiliza atualmente), a rede mundial de computadores (internet), o aparelho de telefone celular, entre outras inovações. As transformações na sociedade ainda aconteciam de forma lenta e gradativa. E, nesta ocasião, o que se pretende ressaltar é o reconhecimento de que a professora de matemática aqui mencionada pertencia a tempo e Sílvia é o nome fictício da professora de matemática, para a qual se decidiu manter o anonimato. 3

Entre as disciplinas curriculares, sempre tive desempenho fraco ou mediano na matemática, progredindo nos anos ou nas séries escolares com uma nota necessária para tanto, frequentemente, após um período de recuperação, ao contrário das outras disciplinas, nas quais costumava tirar boas notas, acima do conceito médio. 4

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Introdução

lugar particulares, com valores específicos. Muito provavelmente, sua formação para lecionar deve ter exigido habilidades condizentes com as práticas pedagógicas daquela época. Talvez para ela e, muito provavelmente, para um número considerável de professores daquele tempo, pessoas com alguma dificuldade de aprendizagem, como eu (no caso das ciências matemáticas), eram consideradas como “preguiçosas”, “imaturas”, “problemáticas” etc. Além do uso de métodos e recursos hoje considerados obsoletos – tais como práticas escolares punitivas, quadro de giz etc. –, vivia-se num período em que as instituições – Estado, Igreja, família e escola – eram revestidas de uma autoridade inquestionável. No período em que eu frequentava o ensino fundamental (1º grau), vivia-se sob um governo de ditadura militar5, cambaleante, mas ainda em vigor. Neste contexto, repita-se, as autoridades não eram questionadas, inclusive aquela relacionada à figura do professor. Naquela época, a principal preocupação no plano educacional brasileiro ainda era a erradicação do analfabetismo. O Brasil era um país ainda considerado como “subdesenvolvido”, num sistema geopolítico bipolar, ocasionado pela denominada “Guerra Fria”, que partia o planeta em dois blocos: um sob a influência dos Estados Unidos da América e outro sob o jugo da então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas6, num tempo em que um muro de concreto e aço dividia a Alemanha7, privando a liberdade de locomoção de um povo inteiro, num tempo em que a comunicação e a informação não circulavam num dinamismo como na atualidade. Vivíamos numa conjuntura de dicotomias, típicas da Modernidade, A ditadura militar vigorou no Brasil no período 1964-1985. Sobre este período o autor recomenda a leitura da coleção As ilusões armadas e O sacerdote e o feiticeiro, de Elio Gaspari, composta por quatro volumes: A Ditadura escancarada (2002), A ditadura envergonhada (2002), A ditadura derrotada (2003) e A ditadura encurralada (2004). 5

A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) foi extinta em dezembro de 1991, mediante um processo de abertura econômica e política, conhecido como glasnost (transparência) e perestroika (reestruturação), dando lugar a quinze repúblicas independentes (Cf. HOBSBAWM, 1995). 6

O muro aqui referido é o Muro de Berlim, construído em 1961, que dividiu a Alemanha em duas porções: a República Federal da Alemanha (RFA), ou Alemanha Ocidental, e a República Democrática Alemã (RDA), ou Alemanha Oriental. O Muro de Berlim foi posto abaixo em novembro de 1989 (IDEM, ibidem). 7

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em que as coisas eram classificadas em “nós” ou “eles”, “os do lado de cá” ou “os do lado de lá”, “desenvolvidos” ou “subdesenvolvidos”, “capitalistas” ou “comunistas”, “direta” ou “esquerda”, “coisa de homem” ou “coisa de mulher”8 etc. Àquela época, a regra era escolher, tomar partido entre “isso” ou “aquilo”, assumindo os antagonismos. Havia a sensação de que, se não perpétuos, a “Guerra Fria”, o monolito soviético e o Muro de Berlim durariam por muito tempo, assim como (quase) tudo na vida. As transformações se davam de modo mais lento e nossa percepção de durabilidade dos fatos e das coisas era diferente da atual. Além disso, os significados de cidadania e educação eram diversos dos dias de hoje. O significado de cidadania encontrava-se atrelado à obediência às normas estabelecidas pelo Estado e vivenciada pela sociedade, visando a “ordem” e “segurança nacional”. Quanto à educação, esta visava essencialmente à diminuição do analfabetismo, à preparação dos jovens para viver em sociedade, de acordo com os ditames do Estado e da própria sociedade, e à preparação da população para o mercado de trabalho. Para se entender aquela época, basta lembrar que disciplinas como Filosofia e Sociologia não eram trabalhadas nas escolas. Ao invés disso, havia a obrigatoriedade do ensino de conteúdos ligados às disciplinas chamadas Educação Moral e Cívica (EMC) e Organização Social e Política do Brasil (OSPB), instituídas pelo Decreto-Lei n° 869, de 12 de setembro de 19699. Todos os dias, nós (alunos) éramos obrigados a perfilar no pátio da escola, em frente à bandeira do Brasil, logo na chegada e, em posição de A relação entre o masculino e o feminino ia desde comportamentos banais como, por exemplo, homens eram encorajados a não usarem roupa cor de rosa, por se tratar de uma cor dita feminina, até os papéis sociais de cada um, pois cabia ao homem dedicar-se ao trabalho e sustento da família, ao passo que à mulher cumpria o cuidado com o lar e com a família. 8

O Decreto-Lei nº 869, de 12/09/1969, foi editado quase um ano após o Ato Institucional n° 5 (AI-5), marco da censura e opressão às liberdades no Brasil, e, tendo sido regulamentada pelo Decreto nº 68.065, de 14/01/1971, fez com que as disciplinas de Filosofia e Sociologia fossem suprimidas da grade curricular das escolas em detrimento da Educação Moral e Cívica (EMC) e da Organização Social e Política do Brasil (OSPB). A Lei n° 5.692, de 11/08/1971, que dispunha das Diretrizes e Bases da Educação Nacional para o 1° e 2° grau (atualmente o ensino fundamental e médio), reforçou tal obrigatoriedade, como instrumento de doutrinação num contexto de “segurança nacional” e de valores católicos tradicionais (Cf. CUNHA, 2007). 9

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Introdução

“sentido” e com a mão direita no peito (na altura do coração), a cantar o hino nacional. Uma atitude de culto à pátria e ao símbolo que a bandeira do país representava. Tudo em conformidade com a lei e os costumes daquela época, típicos do que se entendia por “civismo”10. No âmbito cultural, as coisas eram, de alguma maneira, diferentes dos dias de hoje. Toma-se como exemplo o mercado fonográfico e de consumo de música. Um cantor ou uma banda, quando lançavam um disco de vinil11, desencadeavam uma corrida às lojas, a fim de conseguirmos um disco long play (LP), como era popularmente conhecido (um disco “Decreto-Lei nº 869, de 12 de Setembro de 1969. Dispõe sobre a inclusão da Educação Moral e Cívica como disciplina obrigatória, nas escolas de todos os graus e modalidades, dos sistemas de ensino no País, e dá outras providências. Os Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica, usando das atribuições que lhes confere o artigo 1º do Ato Institucional nº 12, de 31 de agosto de 1969, combinado com o § 1º do artigo 2º do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, decretam: Art. 1º É instituída, em caráter obrigatório, como disciplina e, também, como prática educativa, a Educação Moral e Cívica, nas estolas de todos os graus e modalidades, dos sistemas de ensino no País. Art. 2º A Educação Moral e Cívica, apoiando-se nas tradições nacionais, tem como finalidade: a) a defesa do princípio democrático, através da preservação do espírito religioso, da dignidade da pessoa humana e do amor à liberdade com responsabilidade, sob a inspiração de Deus; b) a preservação, o fortalecimento e a projeção dos valores espirituais e éticos da nacionalidade; c) o fortalecimento da unidade nacional e do sentimento de solidariedade humana; d) o culto à Pátria, aos seus símbolos, tradições, instituições e aos grandes vultos de sua historia; e) o aprimoramento do caráter, com apoio na moral, na dedicação à família e à comunidade; f) a compreensão dos direitos e deveres dos brasileiros e o conhecimento da organização sócio-político-ecônomica do País; g) o preparo do cidadão para o exercício das atividades cívicas com fundamento na moral, no patriotismo e na ação construtiva, visando ao bem comum; h) o culto da obediência à Lei, da fidelidade ao trabalho e da integração na comunidade. Parágrafo único. As bases filosóficas de que trata este artigo, deverão motivar: a) a ação nas respectivas disciplinas, de todos os titulares do magistério nacional, público ou privado, tendo em vista a formação da consciência cívica do aluno; b) a prática educativa da moral é do civismo nos estabelecimentos de ensino, através de todas as atividades escolares, inclusive quanto ao desenvolvimento de hábitos democráticos, movimentos de juventude, estudos de problemas brasileiros, atos cívicos, promoções extraclasse e orientação dos pais”. 10

Produzidos a partir do final da década de 1940, os discos LP eram confeccionados de um material plástico, em cloreto de polivinila (PVC) – daí, serem popularmente conhecidos como vinil –, tornando-os mais leves do que os disco anteriormente fabricados em gomalaca. Possuíam sulcos ou ranhuras por onde passava a agulha do aparelho conhecido como toca-discos, reproduzindo o áudio. Guardávamos os discos de vinil em uma capa plástica, introduzida em outra capa, esta de papelão. Recomendava-se guardar os discos na posição vertical, ao abrigo do sol e longe da poeira. Isso evitava empenar o disco e mantinha-o protegido da corrosão. Quando uma música era tocada, podíamos ouvir uns estalos como o barulho de um ovo sendo fritado na frigideira. Áudio não era tão nítido como o reproduzido por um CD e pela internet. 11

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de 12 polegadas, com várias músicas), ou um disco compacto, um single (um disco de 7 polegadas, geralmente, com uma música de cada lado de, no máximo 4 minutos). Uma música se mantinha “atual” por cerca de uma década. Ficava nas “paradas” por semanas. Cantores e bandas não lançavam as suas músicas com a frequência que temos atualmente. Mas, o tempo passou e, como é sabido, o próprio conceito de atualidade se transformou, devido às inovações tecnológicas. Hoje, produzem-se músicas com mais velocidades do que outrora. Os discos de vinil e as fitas cassete12 deram lugar ao compact disc (CD) e estes já são raramente usados, eis que a rede mundial de computadores (internet) se tornou o principal veículo de difusão e consumo de música. Hoje, cantores e bandas são capazes, e demandados pela indústria fonográfica e pelos consumidores, a lançar uma música a cada mês, praticamente. Não corremos mais às lojas, em busca de um LP ou CD, mas simplesmente baixamos o arquivo com a música que desejamos num aparelho (computador, celular, I-Pod, I-Pad etc.) ou lançamo-nos à concorrência acirrada por um aparelho que nos permita baixar as músicas, além de filmes, vídeos etc. Voltando à educação, quem sabe se aquela professora tivesse se formado nos dias de hoje, com sua base em métodos e práticas docentes atuais, e cuja conjuntura social, política, cultural, econômica e jurídica encontra-se de modo diverso àquela década de 1980, seu comportamento para com a minha pessoa não teria sido diferente? Mas isso está somente no plano da especulação. Além do tratamento da tal professora de matemática, durante o filme Entre os muros da escola, pude recordar as brigas e “brincadeiras” entre os alunos. Pude presenciar ou mesmo ser alvo de um apelido, de uma agressão, uma discriminação ou uma brincadeira considerada de “maugosto”. Havia uma dinâmica entre os alunos que passava despercebida pelo Fitas magnéticas, produzidas no mundo a partir da década de 1960, com base química no óxido férrico (Fe2O3) e, posteriormente, no dióxido de cromo (CrO2). Uma fita cassete era colocada em dois carretéis e inserida num estojo de plástico. Colocávamos a fita num aparelho e, com o passar da fita numa peça de metal (cabeçote), podíamos ouvir a música. Houve um tremendo alvoroço quando, na década de 1980, surgiu o walkman, um aparelho portátil que reproduzia a fita cassete, nos “libertando” dos grandes aparelhos. Podíamos finalmente caminhar pelas ruas, por exemplo, e ouvir música. 12

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Introdução

pessoal da escola, considerando a diretora, os professores e os inspetores. Mas, mesmo com a vigilância por parte dos educadores, beijos, abraços, socos, chutões e coações ocorriam com bastante frequência, bem debaixo dos olhos daqueles que tinham o dever de nos educar e proteger. Demonstrações de afeto como beijo na boca eram proibidas na escola. Para namorar, tínhamos que fazê-lo em cantos específicos da escola, escondidos, longe da vigilância da diretora, dos professores e inspetores. Procurávamos uma sala de aula vazia, o teatro ou as escadas de acesso aos outros andares. Enquanto isso, alguns alunos eram coagidos a pagar o lanche para uns alunos mais velhos e/ou mais fortes. Recordo também as ameaças que os alunos maiores e mais fortes faziam aos outros alunos para que estes deixassem aqueles “colar” nas provas da escola. Os alunos cediam à pressão dos mais velhos com o intuito de não serem perseguidos ou agredidos. Não há também como esquecer os apelidos dos alunos, dados entre si, como “baleia”, “gordo”, “bola de sebo”, “porquinho” e “rolha de poço”, a quem tinha um peso corporal acima da média; “charuto”, “fumaça”, “macaco” ou “negão”, para quem era negro (ou afrodescendente); “leitinho”, para quem tinha a pele muito clara; “quatrolho”, para aqueles que usavam óculos; “coelho”, para aquele que tinha os dentes incisivos centrais proeminentes; “Bambi” (personagem criado Walt Disney13 na figura de um cervo), para o garoto que tinha um jeito “delicado” (o que dava a esta pessoa uma conotação de homossexual); “Dumbo” (outro personagem criado por Walt Disney, na figura de um filhote de elefante com orelhas grandes e que, graças a isso, tinha a capacidade de voar), para aqueles que tinham orelhas consideradas grandes, “orelhas de abano”, além de tantos outros, como aqueles que associavam os alunos a uma personalidade ou a um povo, com o intuito de destacar suas características pessoais. “Mussum”14 para os alunos negros; Walter Elias “Walt” Disney (Chicago, 1901 - Los Angeles, 1966) foi um produtor, diretor, animador e roteirista norte-americano, cofundador (com o irmão Roy O. Disney) da companhia Walt Disney. 13

Nome artístico para o músico e ator comediante negro Antônio Carlos Bernardes Gomes (Rio de Janeiro, 1941 - São Paulo, 1994), famoso por sua participação na série humorística Os trapalhões. O personagem Mussum era retratado como um negro, amante do ócio e apreciador de bebidas alcoólicas, especialmente a cachaça, ou “mé”, como chamava. Também costumava incluir as terminações “is” ou “évis” para palavras do vocabulário nacional, tais como “cacildis” ou “forévis”. Nota do autor. 14

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“Pelé”15, para os colegas que, além de negros, jogavam bem futebol; “índio” ou “Juruna”16, para quem parecia com um índio; ou ainda “China” para designar, sem qualquer distinção, alunos de origem oriental (descendentes de japoneses, chineses, coreanos etc.); e “Jacó” para os alunos de origem judaica. Estes são alguns exemplos desses apelidos. Tudo isso servia para destacar as diferenças que cada um tinha em relação à massa dos alunos. Existia também naquela escola uma organização em grupos de afinidades. Havia grupos de pessoas que gostavam de rock (metaleiros, punks etc.), de garotos que eram atletas ligados a clubes esportivos, conhecidos como “federados”, das meninas que dançavam em academias especializadas em jazz e ballet, entre outros. Enfim, havia gente que “estava na moda”. Além disso, existiam garotos e garotas ditos “populares”, com quem “todo mundo” queria namorar. Resumindo, existiam pessoas que estavam dentro (in) dos padrões culturais daquela época e aquelas que estavam fora (out), as quais, de alguma forma, eram discriminadas. Atualmente, para mim, é possível perceber como aquele período diz respeito a uma espécie de “caldeirão” de emoções e experiências: paixões, medos, euforias, conflitos, solidariedades, egoísmos, ansiedades etc. Quando o filme Entre os muros da escola (Entre les murs, 2009) terminou e as luzes da sala de projeção do cinema se acenderam, permaneci ali, sentado naquela poltrona, por algum instante, pensando no que tinha visto e nas lembranças de minha vida escolar. Logo depois, por intermédio de um amigo, tive acesso ao documentário Pro dia nascer feliz (2006) – roteiro, direção e edição de João Jardim – que mostra os dilemas da educação no Brasil, das pessoas entrevistadas Pelé, apelido de Edson Arantes do Nascimento (Três Corações/MG, 1940- ), exjogador do Santos Futebol Clube (1956-1974) e New York Cosmos (1975-1977), além de ex-jogador da seleção brasileira de futebol (1956-1971). Nota do autor. 15

O xavante Mário Juruna (Barra do Garças/MT, 1942 - Brasília/DF, 2002) foi o primeiro deputado federal indígena (1983-1987), eleito pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), em 1982, aos 40 nos, presumidamente. Desde os tempos em que lutava pela demarcação das terras indígenas, especialmente de seu povo Xavante. No final da década de 1970, ficou famoso por usar um gravador, a fim de registrar tudo aquilo que o homem branco dizia e que, apesar das promessas, não cumpria, inclusive quando foi eleito à uma vaga no Congresso Nacional. Viveu seus últimos anos em Brasília, onde faleceu em 2002 (GOMES, 2003, p. 439-441). 16

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Introdução

e as diversas formas de violência no cotidiano escolar, considerando fatores exógenos e endógenos inerentes aos conflitos envolvendo diretores, professores e alunos, tais como a pobreza, a ausência de perspectivas dos jovens, o narcotráfico, a burocracia, o descaso do poder público e da sociedade com relação à educação, o desânimo dos professores, um constante embate que parece existir entre professores e alunos, e vice-versa, a carência de recursos materiais nas escolas, a corrupção dos gestores públicos etc. Este documentário permitiu-me reavaliar a pesquisa que deu origem a esta obra, que, aliás, já estava em pleno desenvolvimento17. Naquele momento, tornou-se possível (re)pensar a escola e a dinâmica das relações interpessoais que nela se desenrolam; perceber a complexidade das relações nela travadas e como a escola se revela como uma organização autônoma que, ao mesmo tempo, se autorregula e interage com um complexo sistema social. Inicialmente, quando decidi abordar a questão da violência, e especificamente a violência escolar, tinha em mente que se tratava simplesmente de um fenômeno “ruim”, associado a um “mal” individual ou coletivo, tendo em vista minhas próprias experiências em relação à violência, da mesma maneira que outras pessoas que possuem uma história de vida parecida com a minha e têm acesso aos meios de comunicação de massa nos presentes dias. Afinal, como pondera Michaud (2001, p. 12),“é um erro pensar que a violência pode ser concebida e aprendida independentemente de critérios e pontos de vista”. Mas, ao realizar a leitura de obras como A violência: ensaio acerca do “homo violens”, de Dadoun, e Dinâmica da violência, de Maffesoli, minha compreensão simplória sobre o tema ficou abalada. A violência havia sido entendida somente como uma “coisa ruim”, relacionada à agressividade, ao crime, às guerras e aos atos terroristas, O projeto original da dissertação de mestrado em Educação continha a proposta de um estudo de caso, mediante a realização de uma pesquisa em uma escola pública, o que não foi possível dada à burocracia para se obter da autorização do órgão competente e pelo fato de que a referida autorização não foi expedida em tempo suficiente para a realização de tal pesquisa, considerando o prazo máximo para a conclusão da mesma, de acordo com o estabelecido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) para alunos bolsistas, como era o meu caso. 17

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desde a violência na escola até o ocorrido em 11 de setembro de 2001, mesmo porque ainda estava fresca a lembrança da exibição pela televisão de dois aviões boeings 767, lotados de passageiros, atravessando as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, e fazendo o que parecia impossível, pelo menos até a manhã daquele dia: um ataque terrorista em pleno solo norte-americano. Não poderia, em hipótese alguma, até aquele momento, compreender a violência como algo diverso, mesmo porque reconheço que minha construção como pessoa se deu numa perspectiva moderna do breve século XX, para usar expressão de Hobsbawm (1995), num mundo político, econômico e ideologicamente dicotômico, como já disse. Uma vez aprovado no concurso para o curso de mestrado em Educação na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), no período 2008-2010, tive então contato com a professora Sueli Barbosa Thomaz, a quem coube o encargo de ser minha orientadora e com quem pude compartilhar coisas em comum, entre elas a dedicação aos estudos acerca do pensamento de autores como Maffesoli18 e, posteriormente, Dadoun19. Ao ingressar no mestrado, já havia escolhido o objeto da minha pesquisa: a violência escolar. Da mesma sorte, já tinha tido meus primeiros contatos com alguns teóricos sobre o assunto, como Debarbieux20 e Olweus21, por exemplo, sendo este último ligado especificamente ao que se convencionou chamar de bullying, termo originado da cultura anglosaxônica que serve para designar comportamentos antissociais e violentos, de forma reiterada, ainda que sem motivação aparente, com o intuito de causar dano a outrem22. Michel Maffesoli (Griassessar, 1944-), ex-aluno de Gilbert Durand, sociólogo francês e atualmente professor da Universidade de Paris V – Descartes – Sorbonne, é considerado como um dos fundadores da sociologia do cotidiano, a partir de suas análises sobre a pósmodernidade, o imaginário e as tribos urbanas. 18

Roger Dadoun (Nantes, 1928-), filósofo, psicanalista e professor emérito de literatura comparada da Universidade de Paris VII. 19

Eric Debarbieux (Roubaix, 1953-), doutor em filosofia, diretor do Observatório Internacional de Violência na Escola e professor de ciências da educação na Universidade de Bordeaux 2. 20

Dan Olweus (Suécia, 1931-), professor sueco e pesquisador de psicologia na Universidade de Bergen, Noruega, considerado como o precursor dos estudos sobre a violência escolar, naquilo que internacionalmente ficou conhecido como bullying. 21

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Ver Capítulo 2. 26


Introdução

Para a análise do tema escolhido, tratei de pensar em uma possível articulação das ideias entre os pensadores trazidos ao meu referencial, como Morin23, Balandier24, Bourdieu25, Foucault26, Elias27, Bauman28, Lipovetsky29, Maffesoli e Dadoun, a fim de compreender o fenômeno da violência, em suas formas. A pesquisa e a construção desta obra colocaram-me diante de uma espécie de crise paradigmática30, considerando a necessidade de compreensão de valores novos ou ressignificados. Nada mais compreensível, posto que, As necessidades de estabilidade são as que, normalmente, prevalecem no pensamento humano. As pessoas gostam de acreditar que os princípios de seu pensamento e de sua ação são inabaláveis, que sempre poderão apoiar-se nesses princípios, que não devem inquieEdgar Morin (Paris, 1921-), antropólogo, sociólogo e filósofo francês, judeu, mas autodeclarado como ateu. É ainda formado em Direito, História e Geografia, considerado um dos principais pensadores sobre a complexidade. É ainda pesquisador emérito do Centre National de La Recherche Scentifique (CNRS) 23

Georges Balandier (Aillevilles, 1920-), etnólogo e sociólogo francês, atualmente professor emérito da Universidade de Paris – Descartes – Sorbonne, diretor de estudos da Écoles dês Hautes Études en Science Sociales e colaborador do Centre d’Études Africaines. 24

Pierre Bourdieu (Denguin, 1930 - Paris, 2002), sociólogo francês que se dedicou a estudos nos campos da antropologia e sociologia, sobretudo na análise da educação, cultura, literatura, arte, mídia, lingüística e política. Destacam-se ainda suas análises sobre temas como liberalismo, globalização e violência simbólica à luz de três conceitos fundamentais: campo, habitus e capital. 25

Michel Foucault (Poitiers, 1926 - Paris, 1984), filósofo francês e professor da cátedra de História do Collége de France, tendo dedicado seus esforços à análise do poder, a partir da psicologia, da filosofia política e da filosofia da História. Atribui-se a ele importantes contribuições no estudo da epistemologia. 26

Norbert Elias (Breslau, 1897 - Amsterdã, 1990), sociólogo alemão, de origem judaica, que se dedicou à análise do poder, do comportamento, da emoção e do conhecimento. 27

Zygmunt Bauman (Poznan, 1925 -), sociólogo polonês radicado na Inglaterra, desde 1971, onde se tornou professor da universidade de Leeds. Destaca-se pela análise de comportamentos, emoções e do que considera uma sociedade líquido-moderna. 28

Gilles Lipovetsky (Milau, 1944 -), filósofo francês, teórico da hipermodernidade, marcada, segundo ele por antagonismos que convivem pacifica e ludicamente – violência e coexistência, ambientalismo e consumo desmedido, modernismo e “retrô” etc. 29

Nada mais natural, considerando que um paradigma decorre de um modelo ou padrão socialmente aceito, o qual pode entrar em crise uma vez que não mais consiga resolver problemas tidos como relevantes. KUHN, 2006. 30

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tar-se constantemente com a solidez deles. Toda organização social é fundamentada nesses princípios de conservação, forma humana do princípio da inércia, que explica os hábitos dos indivíduos e dos grupos, e as necessidades morais e religiosas dos homens reforçam mais a sua sede de certeza e de dogmatismo [...] (PERELMAN, 1997, p. 150-151).

No entanto, haveria de compreender os fatos sociais a partir de uma nova visão de mundo. Um mundo diferente daquele de outrora, de minha juventude, e mesmo de meus tempos de graduação. Um mundo globalizado, um “mundo em rede”, cujas bases se assentam na comunicação e no informacionismo (CASTELLS, 2006); um mundo de “individualismo hipermoderno”, hedonista e narcisista (LIPOVETSKY, 2004); um mundo onde “os jovens na faixa etária de 15 a 30 anos desejam ser ‘cineastas’ e ‘atores’ da história de suas vidas” (LIPOVETSKY, 2009, p. 292); um mundo de excessos, onde tudo se torna superlativo – hipercapitalismo, hiperclasse, hiperpotência, hipermercado, hiperterrorismo, hiperindividualismo, hipertexto... (LIPOVETSKY, 2004); um mundo onde valores antagônicos coexistem, como violência e tolerância, ambientalismo e consumo desenfreado, modernismo e “retrô” (LIPOVETSKY, 2005a, 2004b); um mundo em que a sociedade se organiza a partir do microssocial, das “tribos” (MAFFESOLI, 2006); um mundo de “amor líquido”, onde não se desejam compromissos duradouros, fazendo com que os laços sociais sejam frágeis; de “medo líquido”, onde o medo torna-se difuso, flutuante, sem motivo e endereço determinados, e de uma “vida líquida”, vivida em condições de constantes transformações e incertezas, típicos de uma modernidade líquida ou de uma Sociedade líquido-moderna (BAUMAN, 2007b, 2008a, 2008b); um mundo onde o “sonho de pureza” (BAUMAN, 1998), padrões éticos e saberes encontram-se sob questionamentos. À medida que fui lendo sobre o tema escolhido, dialogando com minha orientadora e participando dos debates com os professores e com meus colegas do curso, o arcabouço teórico de minha pesquisa foi se consolidando, tanto em quantidade como qualitativamente. E foi neste exato momento que compreendi como minha vida está atrelada a um determinado período da história humana que alguns autores denominam pós-modernidade (HALL, 2004; LYOTARD, 1998; MAFFESOLI, 28


Introdução

1984, 2004, 2005a, 2005b, 2006, 2007, 2009), hipermodernidade (LIPOVETSKY, 2004, 2009) ou modernidade líquida (BAUMAN, 2007b), escolhida como marco temporal desta obra. Quando, em 1979, Lyotard escreveu sobre a pós-modernidade, a considerou como um momento de incredulidade em relação aos “metarrelatos” e ao estado da cultura, em decorrência da transformação do que chama de “jogo de linguagem”, concernente às ciências, à literatura e à arte. Como aspiração da humanidade, por séculos, a verdade atemporal e universalizante teria perdido espaço para aquela enquanto produto de discursos sedutores, a partir do século XIX, e consolidada numa sociedade cibernética, informatizada e informacional. Lyotard (1998) assevera que, se na Modernidade as ciências tinham o objetivo de comprovar, e porque também não dizer criar verdades, na pós-modernidade, o saber traz consigo a dúvida, desconstrução e perspectiva. Ainda com relação à pós-modernidade, Hall (2004) expõe, por seu turno, que esta teria como uma de suas marcas a crise de identidades para os indivíduos. Tomando três concepções de identidade, Hall (2004) expõe que: a concepção de sujeito humano racional, centrado, consciente e unificado teria sido a característica do sujeito do Iluminismo; após, a interação do indivíduo (o “eu”) com a sociedade teria criado um sujeito sociológico, o qual não seria autossuficiente nem independente em relação àquela; e, por fim, ter-se-ia surgido o sujeito pós-moderno, com uma identidade que não é fixa, essencial e permanente, com outrora, mas, ao contrário, uma identidade fragmentada. Além das definições de pós-modernidade concebidas por Lyotard (1998) e Hall (2004), pode-se compreendê-la, segundo Maffesoli (1984, 1995, 2005, 2007, 2009) como caracterizada não por rupturas nem por radicalizações, mas pela reorganização de ideias, valores, formas de viver, relações sociais, visões de mundo etc. Mas, considerando tais mudanças, pode-se ainda compreender, neste mesmo momento, “uma sociedade liberal, caracterizada pelo movimento, pela fluidez, pela flexibilidade; indiferente como nunca antes se foi aos grandes princípios estruturantes da modernidade, que precisaram adaptar-se ao ritmo hipermoderno para não desaparecer”, conforme assinala Lipovetsky (2004, p. 26) acerca do que chama de hipermodernidade, ou uma modernidade líquida, conforme pensa Bauman (2007b, p. 29


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7), caracterizada por uma sociedade líquido-moderna como “aquela em que as condições sob as quais agem seus membros sofrem mudanças em um tempo mais curto do que aquele necessário para se consolidar, em hábitos e rotinas, as formas de agir”. Pois, tal percepção me possibilitou enxergar o mundo e a mim mesmo sob outra perspectiva, aceitando a premissa de ser eu também um homo violens. Ainda que meus valores continuassem firmes, de certa forma, pois, “não existe qualquer análise científica puramente objetiva da vida cultural” (WEBER, 2003, p. 87), “como atividade humana e social, a pesquisa traz consigo, inevitavelmente, a carga de valores, preferências, interesses e princípios que orientam o pesquisador” (LÜDKE, ANDRÉ, 1986, p. 3), assim como, “qualquer produção científica na área das ciências sociais é uma criação e carrega a marca de seu ator” (MINAYO, 1986, p. 35). Todas as peças do quebra-cabeça encaixaram-se. Neste movimento, pude compreender a importância da pele que nos dá identidade, mas cuja porosidade também nos é vital (BONDER, 2001), mantendo a estrutura individual, mas também abrindo às influências externas. Se, por um lado, mantive algumas convicções, por outro, apropriei-me de outras ideias. E, mesmo reconhecendo que a violência traz danos às pessoas e a tudo que as cerca (e parece não se ter como negar isso, considerando danos, destruições, desordem e traumas), tive a oportunidade de compreendê-la em seu dinamismo e em sua amplitude, sem, contudo, banalizá-la. A escolha do tema violência escolar se deu pela influência de minhas experiências e meu desejo em pesquisar aquilo que pode ser socialmente relevante, além de possibilitar aos educadores a compreensão da violência escolar, em suas formas – violência da escola, violência à escola e violência na escola – como um fenômeno de dinamismo social, a partir de sua ambiguidade31, ambivalência32 e polissemia. “Ambiguidade \gü s.f. (1612) 1 característica ou condição do que é ambíguo 2 LING propriedade que apresentam diversas unidades linguísticas (morfemas, palavras, locuções, frases) de significar coisas diferentes, de admitir mais de uma leitura; anfibologia [A ambiguidade é um fenômeno muito frequente, mas, na maioria dos casos, os contextos linguísticos e situacionais indicam qual a interpretação correta; estilisticamente, é indesejável em texto científico ou informativo, mas é muito us, na linguagem poética e no humorismo] ʘ ETIM lat. Ambiguitǎs,ātis ‘id.’ ʘ SIN/VAR anfibologia, equívoco, imprecisão ANT clareza, exatidão, nitidez, precisão” (HOUAISS, VILLAR, 2009, p. 112). 31

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“Ambivalência s.f. 1 estado, condição ou caráter do que é ambivalente, do que apresenta 30


Introdução

A pesquisa se concentrou, quanto aos objetivos, de modo geral, em realizar um estudo sobre a violência escolar, articulando as premissas das abordagens da literatura especializada acerca do tema com as contribuições dos autores escolhidos, possibilitando a compreensão da violência escolar além de seus aspectos negativos, ficando claro que não se pretende fazer qualquer apologia à violência ou mesmo banalizá-la, nem colocar a instituição escolar na berlinda, ainda que esta mereça críticas. Em linhas gerais, o que se pretende é compreender um fenômeno na maior amplitude possível. Do objetivo geral, surgiram objetivos específicos, os quais a consecução encontra-se disposta ao longo desta obra, como: a análise da violência, enquanto um fenômeno relacionado à dinâmica social, ao imaginário coletivo, e à polissemia de valores; o estudo sobre a violência escolar, considerando-a como um conjunto de práticas conhecidas pela literatura especializada como violência da escola, violência à escola (ou violência contra a escola) e violência na escola; compreender o homo violens que habita a instituição escolar; e proporcionar uma perspectiva teórica acerca do assunto, de modo diferente das abordagens tradicionais, mesmo considerando as contribuições teóricas clássicas, apoiadas em autores como Marx33, Durkheim34 e Weber35. No tocante ao referencial teórico, a escolha dos autores se fez considerando a dedicação destes à abordagem sobre a violência, cabendo a dois componentes ou valores de sentidos opostos ou não 2 p.ext. existência simultânea, e com a mesma intensidade, de dois sentimentos ou duas ideias com relação a uma mesma coisa e que se opõem mutuamente 3 p.ext. m.q. AMBIGUIDADE (‘hesitação’) 4 PSICN coexistência ou aparição simultânea, na relação com o mesmo objeto, de tendências, atitudes e sentimentos opostos, basicamente amor e ódio ○ ETIM amb(i)- +valência; ver val-” (HOUAISS, VILLAR, 2009, p. 113). Karl Marx (Tréveris, 1818 - Londres, 1883), intelectual, escritor, economista e filósofo alemão, fundador da doutrina comunista moderna. Destaca-se como sua grande obra O capital, de 1867. 33

Émile Durkheim (Épinal, 1858 - Paris, 1917), considerado como um dos pais da sociologia moderna, responsável pela teoria da coesão social, cabendo salientar suas obras Da divisão do trabalho social, de 1893, O suicídio, de 1897, e As formas elementares da vida religiosa, publicada em 1912. 34

Max Weber (Erfurt, 1864 - Munique, 1920), jurista e economista alemão, um dos precursores da sociologia, dedicou-se especialmente à análise da racionalização da sociedade moderna e capitalista, e à ética religiosa e sua relação com o capitalismo, como o fez em A ética protestante e o espírito do capitalismo, obra publicada em 1904, e Economia e sociedade, de publicação póstuma em 1920. 35

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Maffesoli um papel preponderante na realização deste trabalho, articulando-o a autores como Bauman, Lipovetsky, Bourdieu, Dadoun, Foucault, Girard, entre outros. Reitere-se a menção às contribuições de Dadoun (1998), em decorrência da premissa de que a violência estaria presa à própria essência do ser humano, ou seja, típica do homo violens, e de Maffesoli (1987), pela análise da violência a partir das “tribos” e de sua polissemia de valores, e com relação àquilo que ele chama de potência (Maffesoli, 1987, 2001, 2006)36, o que possibilitou compreender a violência numa outra perspectiva que não somente do ponto de vista político, econômico ou ideológico. Com relação aos outros autores, a escolha de suas respectivas participações na concretização desta obra tornou-se possível à medida que uma articulação teórica foi ganhando corpo. Tal articulação se deu com Balandier (1997), com seu raciocínio acerca do caos e da desordem; com Foucault (2004, 2006), com sua análise sobre controle e poder; com Bourdieu (2009), com seu estudo sobre o poder simbólico; com o mesmo Boudieu e Passeron (2008), considerando as ideias destes autores sobre a reprodução social na escola; e Girard (2008) com sua análise ritualística da violência. Elias (2000) marca sua participação com a análise sobre os grupos de estabelecidos e outsiders. Bauman (2004, 2007a, 2007b, 2008a, 2008b) deixa sua contribuição em suas palavras sobre amor líquido, vida líquida, tempo líquido, medo líquido e sua percepção sobre o que chama de sociedade líquida. Lipovetsky, com seu conceito de pós-moralismo. E Morin (2007a, 2007b, 2008) contribui com sua teoria da complexidade, cujas bases nesta obra servem para compreender o fenômeno da violência escolar em suas formas – violência da escola, violência à escola e violência na escola – a partir da ideia de organização e sistema. E a articulação de todas estas contribuições se fez possível com a análise de Maffesoli (1987, 1996, 2001, 2006), como referencial de partida, sobre a violência, o poder e a potência, a dinâmica desordem/ordem e o fenômeno da dissidência e daquilo que chama (neo)tribalismo, mediante uma espécie de bricolagem, ou seja, a junção de vários elementos Polissemia de valores e potência são conceitos que se encontram analisados em maior profundidade no capítulo 1 desta obra. 36

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Introdução

ou fragmentos disponíveis (no caso teorias) para, unidos, tentar explicar um fenômeno37. De fato, até o momento, Maffesoli não chegou a discorrer sobre a violência escolar, mas, possui obras que trata da violência em suas múltiplas formas. Todavia, mediante um trabalho de bricoleur, foi possível estabelecer alguma ligação do pensamento de Maffesoli acerca da violência com as teorias sobre a violência escolar. Acerca da relevância deste mesmo trabalho, toma-se a possibilidade de se contribuir para a compreensão de educadores (aqui considerados todos os atores escolares envolvidos no processo educacional, tais como diretores, coordenadores pedagógicos, orientadores educacionais, professores e inspetores) e da sociedade sobre a violência escolar, não somente como um fenômeno relacionado à “barbárie”, “incivilidade” e/ ou “desordem”, mas também como um conjunto de manifestações que podem revelar as astúcias, as dissimulações e as resistências dos alunos às normas educacionais e escolares, bem como percepção da relação das formas de violência escolar – violência da escola, violência à escola e violência na escola –, na dinâmica das relações interpessoais. Desse modo, fica a advertência aos leitores desta obra que não se pretende aqui mostrar receitas pedagógicas do tipo “como acabar com a violência nas instituições escolares” ou “dicas para uma cultura de paz nas escolas”, mas proporcionar a compreensão de um fenômeno – a violência escolar – e, a partir disso, contribuir para a formulação de métodos que possibilitem “amansá-la”, “negociar” com ela, por mais absurdo que tal ideia possa parecer neste momento. O método então escolhido para a elaboração deste trabalho partiu de uma pesquisa qualitativa, quanto à sua abordagem, com aporte predominantemente na fundamentação teórica de Maffesoli (1984, 1987, 1995, 1996, 2001, 2004, 2005a, 2005b, 2006, 2007, 2009) e Dadoun (1998), sob a forma de uma pesquisa bibliográfica e documental38, quanto ao seu No campo da metodologia científica, vale menção a Denzin e Lincoln (2006) que entendem, a partir dos estudos antropológicos de Lévi-Strauss, ser possível a junção de vários fragmentos (bricolage) para se realizar uma pesquisa qualitativa. 37

“Enquanto a pesquisa bibliográfica se utiliza fundamentalmente das contribuições de diversos autores sobre determinado assunto, a pesquisa documental vale-se de materiais que não receberam ainda um tratamento analítico ou que ainda podem ser reelaborados de acordo com os objetivos da pesquisa” (GIL, 2007, p. 45). 38

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procedimento técnico, sobre as formas de violência escolar – violência da escola, violência à escola e violência na escola –, e de uma pesquisa exploratória, com relação aos seus objetivos (GIL, 1991, 200739; LAKATOS, MARCONI, 2003), valendo a ressalva de que se “a pesquisa bibliográfica é aquela desenvolvida a partir de material já elaborado, constituído de livros e artigos científicos” (GIL, 2007, p. 44), isso não a coloca como “mera repetição do que já foi escrito sobre certo assunto, mas propicia o exame de um tema sob um novo enfoque ou abordagem, chegando a conclusões inovadoras” (LAKATOS, MARCONI, 2003, p. 183). Ressalte-se aqui, no entanto, que a pesquisa qualitativa sobre a violência escolar não privilegiou prática metodológica ou paradigma algum. Pelo contrário, escolheu-se uma atitude interpretativa que remete aos campos da interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, num foco multiparadigmático. Inicialmente, autores como Colombier, Mangel e Perdriaut (1989), Abramovay e Rua (2002), Charlot (2002), Derbarbieux (2002), entre outros, serviram de base para a análise bibliográfica da violência escolar, descrita sob as formas de violência da escola, violência à escola (ou violência contra a escola) e violência na escola. A partir da leitura destes autores, seguiu-se para uma articulação de suas respectivas exposições sobre a violência da escola, à escola e na escola com as contribuições teórica de autores como Balandier (1997), Bauman (1998, 1999, 2004, 2005, 2007a, 2007b, 2008a, 2008b), Bourdieu (2008, 2009), Dadoun (1998), Foucault (2002, 2006), Girard (2008), Lipovetsky (2004, 2005a, 2005b), Maffesoli (1984, 1987, 1995, 1996, 2001, 2005a, 2005b, 2006, 2007, 2009) e Morin (2007a, 2007b, 2008). No que tange à pesquisa documental, utilizaram-se filmes, um documentário cinematográfico e algumas matérias de jornais, revistas e disponíveis em páginas (sites) na rede mundial de computadores (internet), com o intuito de contextualizar algumas abordagens deste trabalho, considerando-os como referências, assim como as obras bibliográficas, Gil (2007, p. 43) considera a pesquisa exploratória como “aquela que possui como suas finalidades básicas desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e idéias sobre determinado assunto, com vistas a formulação de uma abordagem posterior, possibilitando a formulação de novos problemas e hipóteses que possam servir de objeto em pesquisas posteriores”. 39

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Introdução

acreditando-se que a arte cinematográfica constitui uma arte descritiva e histórica, eis que possibilita registrar acontecimentos reais ou fictícios de épocas determinadas, bem como possibilita interpretações diversas de suas imagens (COSTA, 1989; FERRO, 1992; CARDOSO, MAUAD, 1997; BERNADET, 2006; SCHETTINO, 2007), desvelando o “latente por trás do aparente” e o “não-visível através do visível”, suprimidos pelo silêncio dos sujeitos sociais que não conseguiram se expressar em documentos escritos, com a expressão destas mesmas falas pelo imagético (FERRO, 1992). Nesta obra não se discute cinema, como fazem alguns teóricos (BERNADET, 2006; COSTA, 1989; MARTIN, 2003; SCHETTINO, 2007), mas, apenas usam-se cenas e diálogos para ressaltar alguns pontos considerados relevantes, como, por exemplo, algumas imagens e narrativas de filmes como Sociedade dos poetas mortos (Dead poets society, WEIR, 1989), Entre os muros da escola (Entre les murs, BÉGAUDEAU, 2008) e do documentário Pro dia nascer feliz (JARDIM, 2006), com o intuito de salientar as tensões que na escola envolvem seus atores (educadores, educandos e os pais destes), uma vez considerando que “o cinema nos oferece uma imagem artística da realidade” (MARTIN, 2003, p.24)40 e que “ele [o filme] não vale somente por aquilo que testemunha, mas também pela abordagem sócio-histórica que autoriza” (FERRO, 1992, p. 87). Da mesma forma, recorreu-se a algumas narrativas e interpretações bíblicas a fim de resgatar o imaginário judaico-cristão, enquanto base do pensamento ocidental, como interpreta Dadoun (1998). Neste caso, mais do que obras religiosas e sagradas, para este trabalho, consideram-se a Bíblia, a Torá e o Alcorão como documentos orientadores de culturas e formas subjacentes de significado que todo texto pode conter (DURAND, 1988). E, além dos textos bíblicos, recorre-se a mitos gregos, como aqueles utilizados por Maffesoli (1984, 1987), especialmente em relação aos deuses Apolo e Dionísio41, entre outros. Vale consignar que neste trabalho articulam-se as culturas judaica, “É preciso aprender a ler um filme, a decifrar o sentido das imagens como se decifra o das palavras e o dos conceitos, a compreender as sutilezas da linguagem cinematográfica” (MARTIN, 2003, p. 27). 40

Para se compreender as faces apolínea e dionisíaca do homem, recomenda-se a leitura a obra de Friedrich Nietzsche, O nascimento da tragédia, ou helenismo e pessimismo. 41

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Robert Segal

helênica e cristã, considerando-se o intercâmbio entre as mesmas, desde tempos remotos (CHEVITARESE, CORNELL, 2007), e a influência que estas interações exerceram, e ainda parecem exercer, na construção do imaginário do Ocidente, bem como dos valores inerentes à civilização ocidental, tais como “bem”/”mal”, “certo”/”errado”, “falso”/”verdadeiro”, “negativo”/”positivo”, “civilizado”/”bárbaro” etc. A escolha de se utilizar mitos42 para ilustrar o presente trabalho se deu, considerando que: O mito expressa o mundo e a realidade humana, mas cuja essência é efetivamente uma representação coletiva, que chegou até nós através de várias gerações [...] Decifrar o mito é, pois, decifra-se (BRANDÃO, 1986, p. 36). Além disso, os mitos muitas vezes empreendem um padrão preexistente de ser e de se comportar; isto é, delineiam um modelo de conduta a que se pode chamar de arquétipos, que “são padrões preexistentes, latentes e internamente determinados, de ser e se comportar, de perceber e de reagir” (BOLEN apud PRITSCH, 2007, p. 65).

A operacionalização racional dos mitos helênicos, citados por Maffesoli (1984, 1987, 1996, 2005a, 2009), tem o propósito de demonstrar a polissemia de valores e significados que servem à compreensão de fenômenos sociais como a violência, como elemento fundador da sociedade, para além de valores dicotômicos e da concepção da sociologia positivista moderna, interessada somente em estudar as grandes categorias da vida social. Ao deus Apolo43, filho de Zeus44 (Júpiter, na mitologia romana) e Mito. “Se llama <<mito>> a um relato de algo fabuloso que se supone acontecido en un pasado remoto y casi siempre impreciso. Los mitos pueden referirse a grandes hechos heroicos (en el sentido griego de ‘heroicos’) que con frecuencia son considerados como el fundamento y el comienzo de la historia de una comunidad o del género humano en general [...]. Cuando el mito es tomado alegóricamente, se convierte en un relato que tiene dos aspectos, ambos igualmente necesarios: lo ficticio y lo real. Lo ficticio consiste en que, de hecho, no ha ocurrido lo que dice el relato mítico. Lo real consiste en que de algún modo lo que dice el relato mítico responde a la realidad. El mito es como un relato de lo que podría haber ocurrido si la realidad coincidiera con la paradigma de la realidad [...]” (MORA, 1994, p. 2422). 42

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Απολλων.

44

Zευς Zeus, em grego antigo; Δίας, Dias, em grego moderno. 36


Introdução

Leto45 (Latona, na mitologia romana), associado ao sol, à vida, à beleza, ao equilibro, à razão e à perfeição, atribui-se a função de conduzir pastores, multiplicar as colheitas, encaminhar os navegantes, iluminar os artistas, proteger os médicos, zelar pela saúde de desvendar o futuro46. É também um deus ligado à racionalidade, norma e medida. Dionísio47 (ou Baco, na mitologia romana) teria sido um deus mortal, filho de Zeus (Júpiter, na mitologia romana) e Sêmele48 (Stimula). Ao contrário de Apolo, seu irmão paterno, Dionísio foi um deus ligado à sombra, destruição, recriação, espontaneidade, embriaguez e desmedida. Conta o mito que Dionísio seria preferido por Zeus, o pai dos deuses, e estaria destinado a sucedê-lo no governo do mundo. Para proteger Dionísio dos ciúmes de sua esposa Hera49 (Juno), Zeus confiou-o aos cuidados de Apolo e dos Curetes que tiveram a incumbência de escondêlo nas florestas do Parnaso. Mesmo assim, Hera descobriu o paradeiro do jovem Dionísio e encarregou os Titãs de raptá-lo e matá-lo. Com os rostos polvilhados de gesso, com o intuito de não serem reconhecidos, os Titãs atraíram o jovem deus com brinquedos místicos (pequenos ossos, pião, carrapeta, chocalhos e espelho) e, tendo possuído-o, fizeram-no em pedaços, cozinharam suas carnes num caldeirão e as devoraram. Zeus fulminou os Titãs e das cinzas destes teriam nascidos os homens, o que, como diz Brandão (1986), explicaria os dois lados dos homens: o bem e o mal. O coração de Dionísio teria sido salvo por Atená, tendo o órgão sido engolido por Sêmele ou por Zeus. Uma vez fecundada por Zeus, Sêmele teria ficado grávida do segundo Dionísio. No entanto, a esposa de Zeus, Hera, estaria vigilante e, ao ter conhecimento da relação amorosa entre Zeus e Sêmele, resolveu eliminá-la. Para tanto, transformou-se em uma ama da deusa tebana, aconselhando Sêmele a pedir ao amante que se revelasse em todo o seu esplendor. Mesmo advertindo a amante de que tal revelação seria perigosa, 45

Λητω, deusa da noite, mãe de Apolo e Artemis.

46

Mitologia, 1973, p. 193-208.

47

Διονυσος (Dionísio ou Dioniso).

48

Σεμελη.

Ηρα ou Ηρη, deusa do casamento, irmã e esposa de Zeus, tida como ciumenta e agressiva, regia a fidelidade conjugal. 49

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uma vez que uma mortal, revestida da matéria, não teria estrutura para suportar a epifania de um deus imortal, Zeus apresentou-se com seus raios e trovões, o que provocou o incêndio do palácio e a morte de Sêmele, carbonizada50. Num gesto dramático, Zeus recolheu o feto de Dionísio do ventre de sua amante e colocou-o em sua coxa, até que ele completasse a gestação normal. Tão logo Dionísio nasceu, Zeus designou Hermes a levá-lo, às escondidas, para a corte de Átamas, rei beócio de Queroneia, casado como a irmã de Sêmele, Ino, a quem o jovem deus foi entregue. Irada pela a acolhida do filho adulterino de seu esposo, Hera enlouqueceu o casal. Ino lançou Melicertes, seu filho caçula, num caldeirão de água fervendo, enquanto Átama matava o filho mais velho, Learco, tendo-o confundido com um veado. Temendo nova investida de Hera, Zeus transformou seu filho em um bode e mandou Hermes levá-lo para o Monte Nisa, onde foi confiado aos cuidados das Ninfas e dos Sátiros. Criado pelas Ninfas, Dionísio teria crescido e dominado a arte do vinho, o que lhe permitiu se tornar o deus da embriaguez, que permitiria aos homens a alegria e coragem, pelo menos enquanto durasse o efeito da bebida, servido em suas festas ritualísticas, na companhia das Bacantes51. Teria a capacidade de se fazer passar por outros deuses, utilizando-se as máscaras destes. Também considerado como o deus da colheita e da fertilidade, Dionísio teria conquistado um lugar no Olimpo graças ao reconhecimento do povo helênico. Dionísio teria ainda a capacidade de se disfarçar de animais como touro ou bode, e, uma vez ritualmente sacrificado, teria a habilidade de ressuscitar52. Tratar-se-ia do deus do movimento e da metamorfose53, que, além de se transfigurar na forma de um animal, teria a habilidade de se disfarçar de outros deuses. O recurso às figuras mitológicas utilizadas na obra de Maffesoli (1987), aqui operacionalizadas, serve para demonstrar a tensão entre a sede pela perfeição e a medida apolínea, e a espontaneidade e a desmediConta a mitologia grega que, mais tarde, Sêmele foi salva do inferno por seu filho Dionísio, o qual teria promovido a aceitação de sua mãe no Olimpo com o status de uma deusa. 50

Bacantes (Βακχαι) eram as devotas de Dionísio que acompanhavam a este em seus rituais (BRANDÃO, 1986; EURÍPIDES, 2010). 51

52

Cf. BRANDÃO, 1986.

53

Do grego μεταμορφωσις. 38


Introdução

da dionisíaca, transfiguradas nos fenômenos sociais, entre eles, a violência, cujas raízes encontram-se, em parte, no imaginário. Ao se considerar o imaginário54, abre-se a possibilidade de se compreender a violência a partir de uma torrente de imagens mentais, literalizadas ou estereotipadas, como aquelas que produzem as qualidades sensíveis de dado objeto, de imagens literário-poéticas, cósmicas, oníricas e cognitivas (ARAÚJO, 2009). Acredita-se, portanto, que a análise da violência para além do plano da racionalidade moderna (dicotômica, binária, absoluta e explicável), possibilita sua compreensão a partir de sua polissemia de valores e como ela estaria ligada à própria essência do ser humano, bem como sua vinculação ao coletivo. A concretização desta obra também foi possível, na perspectiva escolhida, graças às contribuições do pensamento complexo, cuja parte do referencial se assenta em Morin (2007a, 2007b, 2008). Ao se assumir a proposta de um trabalho cujos fundamentos se assentam na complexidade, assume-se também a tarefa de caminhar por um mundo empírico, de incertezas, da incapacidade de formular leis, de conceber uma ordem absoluta, assim como de se evitar contradições, de encontrar algo de lógico (MORIN, 2007a). Optar pela vertente da complexidade significa romper com a disjunção cartesiana que separou o homem da natureza, o sujeito do objeto e a ciência da filosofia, da mesma forma que reduziu o saber às especialidades (MORIN, 2007a, 2008). Busca-se, pois, pela junção daquilo que a modernidade separou, classificou e fragmentou. Chega-se, portanto, ao momento de juntar o quebra-cabeça – Antropologia, Filosofia e Sociologia –, empregando-o à área da educação. Ao se aspirar a complexidade, predispõe-se a correr riscos, a estar suscetível à desordem e ao caos; a possibilidade de se enxergar que o “todo está na parte que está no todo” (MORIN, 2007a, p. 75), eis que, considerando o princípio hologramático, torna-se possível compreender Pode-se definir o imaginário como “uma espécie de ‘bacia semântica’ onde as imagens, oriundas da imaginação reprodutiva e produtora ou criativa, se deixam tipificar de acordo com as suas orientações específicas (imaginário social, mítico, lúdico, educacional, ético, estético, científico etc.) (ARAÚJO, 2009, p. 21). O imaginário também seria uma espécie de museu de imagens passadas, possíveis, produzidas e a produzir, um conjunto de imagens e relações de imagens que constituem o homo sapiens (DURAND, 2004, 2002). 54

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a dupla identidade (identidade complexa) do uno, eis que as partes “têm sua identidade própria e participam da identidade do todo” (MORIN, 2008, p. 149). E que também implica a perspectiva do real e do imaginário, ao mesmo tempo, uma vez que, O mesmo movimento que aproxima o imaginário do real aproxima o real do imaginário. Em outras palavras: a vida da alma se amplia, se enriquece [...] A alma é precisamente o lugar de simbiose no qual imaginário e real se confundem e se alimenta um ao outro (MORIN, 1989, p. 11).

E tomando-se por base que, O imaginário é o além multiforme e multidimensional de nossas vidas, no qual se banham igualmente nossas vidas. É o infinito jorro virtual que acompanha o que é atual, isto é, singular, limitado e finito no tempo e no espaço. É a estrutura antagonista e complementar daquilo que chamamos real, e sem a qual, sem dúvida, não haveria o real para o homem, ou antes, não haveria realidade humana (MORIN, 1990, p. 80).

Mas, ao se aspirar a complexidade, enquanto se analisa a violência, e mais precisamente a violência escolar, a partir das perspectivas da pós-modernidade, hipermodernidade ou modernidade líquida, assume-se o risco da confusão, da contradição e da desordem. Entretanto, do mesmo modo, permite-se o movimento, a vida, a metamorfose e, superando a ignorância e os preconceitos, a “andar sobre a areia movediça” (BAUMAN, 2007b, p. 152). Permite-se a quem se dispuser em compreender a violência, encará-la sob o viés da figura mítica de Dionísio, cuja característica primordial se revela por um querer-viver individual (mas não individualizado) e coletivo, além de significados políticos, econômicos e/ou ideológicos. Em posse da fundamentação teórica, pela leitura da bibliografia escolhida e da documentação selecionada, partiu-se para a elaboração desta obra, em apenas dois capítulos, além de sua introdução e, ao final, de algumas conclusões. Coube ao primeiro capítulo uma abordagem sobre a violência, incluindo a sua definição, sob as vertentes léxica e teórica, bem como uma análise socioantropológica e uma reflexão de cunho filosófico, de suas 40


Introdução

formas, fases e modulações; de sua relação com o poder e de seu papel numa dinâmica social que se caracterizaria pelo movimento incessante de ordem-desordem-ordem e por um querer-viver que extrapolaria a mera concepção de luta pelo poder entre classes sociais antagônicas, como pretendiam as análises políticas e/ou ideológicas da modernidade. A partir da compreensão socioantropológica acerca da violência, o segundo capítulo concentra-se na definição e análise da violência escolar em suas formas – violência da escola, violência à escola e violência na escola, a partir do referencial teórico selecionado. Analisam-se as variáveis exógenas e endógenas da violência escolar, considerando assim as influências da pobreza, do narcotráfico, do sistema educacional e das particularidades inerentes a educadores e educandos na dinâmica da violência, dando-se ênfase a relação instituído-instituinte, enquanto dinâmica viva que se passa também entre os muros da escola (enquanto uma espécie de organização que não se encerra em si), e um querer viver coletivo que também lá se revelaria. Finalizando, mas longe da pretensão de esgotar a análise dos temas violência e violência escolar, o que, aliás, seria impossível, uma vez que se trata de um objeto social complexo e condicionado a tempo e espaço específicos, apresentam-se suas considerações finais, onde, com base na literatura e nos documentos escolhidos, pode-se compreender a violência, como fenômeno relacionado à própria natureza humana e às dinâmicas sociais, que na escola tornam-se dinâmicas.

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