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2.7 “Fiz de livre e espontânea vontade”

mesma intimidação fosse mais um motivo para o afastamento definitivo do amante, particularmente se o processo fosse julgado procedente, possibilitando assim a efetivação de uma penalidade.

2.7 “Fiz de livre e espontânea vontade”

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Com a frase acima, muitas menores levadas às chefaturas de polícia davam um basta a qualquer tentativa de abertura de um auto policial. Na maior parte das vezes, à revelia de seus parentes e/ou tutores, elas negavam a hipótese de terem sido seduzidas por seus namorados preferindo assumir frente à autoridade pública, bem como seus responsáveis, que agiram sem pressão e ainda por sua própria vontade e desejo.

A menor Consuelo, de 16 anos de idade, que realizava serviços domésticos, relatou na chefatura de polícia que foi com o seu consentimento que foi desvirginada por Carlos, um caixeiro de 22 anos, com o qual namorava há cerca de um ano e já tivera várias vezes relações sexuais. Em seu depoimento, Consuelo afirma que pretendia viver com Carlos, independente de casamento e de estar grávida. Em suas palavras ela diz: “Que não foi illudida na sua boa fé por Carlos e que se deixou desvirginar-se foi com puro consentimento seu, pois que as suas intensões eram viver com Carlos independente do casamento, tal foi o acordo celebrado entre si e Carlos”111 .

Da mesma forma, Victalina, de 15 anos de idade, que realizava serviços de lavoura, afirmava que “Não foi seduzida e que foi ella respondente quem propos a elle (Raimundo) que queria ir para sua companhia visto que não tinha cousa alguma por não haver quem lhe desse”112. Victalina, à época da abertura da queixa-crime feita por sua mãe, vivia há cerca de um mês com Raimundo, seu namorado, que, segundo ela, sua mãe tinha conhecimento. A mãe da menor resolveu dar queixa junto à polícia, a partir do momento em que Raimundo decidiu realizar uma viagem a Cintra para fugir ao compromisso com sua filha. Victalina nega o fato e ainda afirma que Raimundo não teria sido seu primeiro namorado, nem tão pouco o autor de seu defloramento, pois já conhecera dois outros homens em sua vida e esse teria sido o terceiro. Ela ainda acrescenta,

111 Auto Crime de defloramento. Consuelo Gomes De Brito, setembro de 1904. doc 70. 112 Auto de exame de corpo de delito. Victalina Gonçalves de nazaré. Outubro, 1896. doc 32.

estimulada pela pergunta do chefe de segurança, que sua mãe viúva não vivia honestamente e que levava uma vida livre.

Assumir tal postura frente às autoridades policiais significava muitas vezes a impossibilidade de qualquer tentativa de continuação dos autos crimes de defloramento e sua possível transformação em processo. Embora esses autos pudessem ser levados à frente, a despeito da vontade da menor ofendida – bastando para isso que o responsável por elas, fosse ele um parente ou tutor, abrisse queixa e provasse a sua miserabilidade, possibilitando assim que a ação fosse levada à frente pelo ministério público113 –, a recusa em realizar exames de corpo de delito e a negativa de que houvessem sido seduzidas eram formas usadas para impedir a abertura de um processo contra o seu desejo.

Agir dessa forma era também negar que outros tomassem à frente de suas decisões e prescrevessem seus comportamentos e sentimentos a despeito de suas vontades.

Mesmo “melancólica e entristecida” pelo fato de estar grávida, Constância, uma piauiense de 14 anos de idade, afirmara que, embora conhecesse José Henrique há pouco tempo (cerca de cinco meses), teve relação sexual com ele “Sem que houvesse objeção alguma da parte da respondente”. E, apesar de ouvir de diversas pessoas que ele era um homem casado, mesmo ele dizendo-se viúvo, “Deixou-se seduzir tão naturalmente sem ter tido promessa de qualidade alguma; fazendo portanto por sua própria vontade levada pela afeição que externava a José Henrique”114 .

A demonstração de afetividade e de amor constituiu-se na marca desses depoimentos, em que essas menores expõem publicamente seus sentimentos. Míriam Moreira Leite, ao falar das imagens do amor, afirma que as manifestações desse sentimento eram “Coisas de gente pobre ou referente a ligações

113 Martha Esteves aponta para a frequência da intervenção do ministério público nos crimes sexuais contra a segurança da honra e honestidade da família, em que se inclui o de defloramento, através do dispositivo da miserabilidade do queixoso, que, uma vez provada, permitia que o ministério público pudesse assumir o processo, não dependendo a causa de advogados particulares.

Dessa maneira, promotores e juízes tinham maiores oportunidades de penetrar mais facilmente nos lares das camadas pobres da população, efetivando com suas ideias, práticas e valores, uma tendência civilizadora entre as pessoas desses segmentos sociais, que passava pelo controle moral das práticas sexuais e do comportamento de uma forma geral (Esteves, Martha de Abreu.

Meninas Perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Bélle Époque. Ed.

Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1989 p. 89-92). 114 Ver Processo-crime n° 63.

ilegítimas”, pois, entre os segmentos da elite, predominava o silêncio, não se falando nem demonstrando o amor, prevalecendo assim a discrição115 .

Mentir para proteger o namorado contra as sanções possíveis de um processo; assinar cartas e enviá-las a jornais negando o fato de terem sido seduzidas por este ou aquele acusado; afirmar na frente dos olhares intimidadores e raivosos de pais, mães e tutores que não eram mais mulheres virgens, que tiveram várias vezes cópula carnal com seus namorados, que não foram seduzidas e realizaram os seus atos por sua livre e espontânea vontade e desejo, pois sentiam afeição por aquele a quem queriam pressionar a assumir um relacionamento; negar o fato de estarem defloradas: todas essas foram formas encontradas por estas meninas dos autos e processos-crimes de defloramento, que contestavam as expectativas de um discurso moralizador e das imagens que ensejavam o arquétipo da santa-mãezinha, da mulher honesta e de bom comportamento.

A despeito de poder utilizar-se dos mecanismos abertos pela justiça para tentar dar continuidade, ou retomar um namoro nos termos de uma relação mais duradoura, como fizeram muitas outras meninas, as menores que se recusaram a assumir o discurso dos legistas atualizado na fala dos escrivães, chefes de segurança, promotores, juízes e muitas vezes de seus próprios parentes, preferiram a ideia de responder por si mesmas sobre seus atos, não legando aos juristas o direito que pleiteavam de “protegê-las”.

Seguir as expectativas das autoridades significava, entre outras coisas, corroborar uma imagem de mulher passiva, no sentido de que não eram responsáveis por suas atitudes, pois teriam sido iludidas e seduzidas, a despeito de seus desejos, por um ofensor. E mais do que isso, era ter de passar uma imagem de mulher recatada, o que significava não sair muito, e, quando o fizesse, fosse acompanhada não ter muitas e nem variadas relações de namoro, não ter relação sexual. Caso o tivesse, que essa primeira vez não fosse seguida de outras, que não aceitasse qualquer outra forma de acordo de viver junto a um homem a não ser aquele marcado pelo ritual do casamento oficializado e legitimado pelo Estado e pela Igreja, não conviver com casais amasiados, quando essa era a regra das relações de seu meio, às vezes até mesmo entre seus pais e/ou mães. Corroborar esse discurso, que prescreve e valoriza um conjunto de imagens e práticas morais que apontam para uma tendência civilizadora nos moldes

115 Leite, Míriam Moreira. Representações do Amor e da Família In. Amor E Família no Brasil. (Org.) Maria Angela D’íncao. Editora Contexto, São Paulo, 1989. p.81.

do pensamento de segmentos da elite, era muitas vezes negar as práticas e sentimentos que essas meninas criavam na sua experiência de vida cotidiana. Embora algumas meninas tenham com astúcia se utilizado desse discurso e dos mecanismos jurídicos que o atualizavam de forma a alcançar seus intentos, outras recusaram-se a fazê-lo dessa maneira, ao tomar para si a responsabilidade de suas atitudes, e, mais do que isso, ao não assumir um conjunto de imagens e práticas socialmente legitimadas, que, ao que parece, não representavam as suas expectativas e desejos.

Escolhas difíceis de serem feitas e que não temos como saber no que resultaram, pois não temos como seguir a trilha dos caminhos tomados pelo conjunto das menores dos autos e processos-crimes de defloramento, pois nossas informações acerca de suas vidas findam em um despacho dado por alguma autoridade, em um parecer arquivando o auto ou processo, ou mesmo em uma página simplesmente em branco ou rasgada.

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