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Capítulo 2. “E, que gente é que temos?” Companhias militares e soldados pagos no norte da América portuguesa
CAPÍTULO 2
“E, QUE GENTE É QUE TEMOS?”. COMPANHIAS MILITARES E SOLDADOS PAGOS NO NORTE DA AMÉRICA PORTUGUESA
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E, que gente é que temos? (Vieira, 1648)
Em 1623, Manoel de Sousa D’Eça ocupava o posto de capitão do presídio do Grão-Pará. Pela legislação vigente, era responsável por manter as companhias bem treinadas e na disciplina. Além de conhecer os soldados sob seu comando, comparecer nas mostras militares172 e atender a todas as diligências que a capitania necessitasse em cumprimento das ordens do governador e da Coroa. O fato é que, em um requerimento, Manoel de Sousa D’Eça alegava desconhecer as obrigações do seu posto, razão pela qual solicitava o regimento particular para compreender suas atribuições. Na ocasião, também pediu gente e munições.173
172 As mostras estão previstas e descritas em detalhe no Regimento de fronteiras de 1645, especificamente nos artigos 30 a 45. Trata-se de uma ferramenta de controle da gente paga. Uma vez ao mês todos os soldados deveriam comparecer em determinado local para receber o soldo e se apresentar. Conforme destaca-se no regimento “as mostras se fazem não só pagar aos soldados com boa ordem, e sem engano, mas para se tomar notícia de como está armada e aparelhada” as companhias.
Nas mostras o vedor geral deverá estar presente, e na sua ausência o comissário. Devem comparecer também o contador e pagador geral. Além desses, os oficiais mestre de campo; ou pelo menos o sargento mor assistirá à mostra de seu terço para a infantaria e para a cavalaria o tenente general, ou ao menos o comissário geral porque tem mais razão de conhecer os seus soldados […] e da mesma maneira cada capitão assistirá a mostra de sua companhia porque também conheça os soldados. A presença dos oficiais é necessária para que eles possam reconhecer seus soldados, e impedir que um passe mostra pelo outro, crime punido com prisão. É considerado desertor aquele soldado que houver faltado a três mostras consecutivas. São a partir dessas mostras que elaboravam as listas e mapas das companhias militares. “Regimento das fronteiras”, 1645. PT-AHM. 173 Requerimento de Manuel de Sousa Eça capitão do presídio do Grão-Pará ao rei, 13 de janeiro de 1623. AHU, Avulsos do Pará, Cx1, D. 23.
Um capitão que não tem ciência da atribuição do posto que ocupa é sintomático de um desajuste entre as proposições presentes nas normas e legislações militares, com as práticas ocorridas na colônia. Os limites e implicações do corpo legislativo militar para o Pará, nos séculos XVII e XVIII, constituem uma questão que nos ocuparemos ao longo deste capítulo, confrontando as informações previstas nos regimentos com os relatos sobre a militarização da capitania. Além disso, apresenta-se o quadro defensivo que Portugal dispunha para a defesa das capitanias do Pará e do Maranhão. Trata-se da sistematização quantitativa dos dados e companhias de infantaria e artilharia existentes nessa parte da conquista.
Nesse período, as informações estão fragmentadas em diversos arquivos e fontes e não há regularidade no registro dos dados, embora essa fosse uma atribuição do governador do Estado prevista, desde 1655, no “Regimento dos senhores generais do Estado do Grão-Pará”. De acordo com o regimento, eles deveriam informar, todos os anos, ao rei sobre situação militar das capitanias por meio de mapas e listas contendo número de soldados, companhias e fortalezas.174 Esse controle estava também previsto no “Regimento de Fronteiras”, de 1645.175
Na prática administrativa do Estado do Maranhão, até 1750, essas listas e mapas só foram produzidos com mais regularidade nas décadas de 1730 e 1740, embora não houvesse um padrão nas informações. Basta lembrar que a sistematização desses dados só foi instituída em 1763 pelo Alvará que institui Livros de Registros para cada Regimento de Infantaria, Cavalaria, Artilharia e Marinha. 176 Portanto, quantificar dados sobre soldados e companhias para o período anterior requer maior investimento de pesquisa, pois estes encontram-se pulverizados na documentação. Além do levantamento quantitativo das companhias existentes, neste capítulo busca-se verificar as atividades e distribuição de soldados e oficiais nas capitanias.
Esse enquadramento importa para o argumento de que há uma fragilidade defensiva no Estado do Maranhão, verificada na insuficiência numérica das forças oficiais para diligências em tão vasto território. É possível fazer
174 “Regimento dos senhores generais do Estado do Grão-Pará”. Lisboa, 14 de abril de 1655, APEP,
Códice 01; D. 1. 175 “Regimento das fronteiras”,1645. PT-AHM. 176 COSTA. Collecção Systemática das Leis Militares de Portugal, Tomo II, pp.77-82.
essa afirmação pela descrição de precariedade que governadores e militares retratam com relação aos quadros defensivos das capitanias. Ao que parece, o desconhecimento do capitão Sousa D’Eça sobre sua atribuição não é um caso isolado. As significativas reformulações militares pelas quais passou o reino, entre 1620 e 1700, como vimos anteriormente, provocaram enormes dúvidas quanto à jurisdição da gente que vinha ou estava na conquista ocupando postos do oficialato, inclusive queixas de manipulação em prol de interesses particulares, notadamente dos governadores.
O arranjo administrativo previsto no Regimento dos governadores do Pará, em 1655, coincide com um momento de grandes transformações militares no reino. Por outro lado, a experiência colonial significou um campo aberto para o exercício do poder, das relações de interesse e favorecimento. Oficiais provenientes de diversas partes do império, a partir das atividades militares, consolidavam acúmulos de postos, inseriam-se no comércio e recebiam sesmarias. Isso explica em grande parte os conflitos e interesses em torno desses postos, questões que serão tratadas no 5º capítulo.
Por outro lado, a presença portuguesa na região do Grão-Pará, no século XVII, foi marcada por desafios de toda ordem. Conflitos e disputas com ingleses, franceses, espanhóis e holandeses e guerras com os grupos indígenas exigiam ações de defesa mais sistemáticas dos administradores coloniais, que conviviam com falta de gente e recursos para o estabelecimento de guarnições e pontos estratégicos de defesa. É importante lembrar que a Guerra da Restauração exauria as capacidades militares no reino, que mal conseguia fazer frente às investidas aos ataques a suas fronteiras domésticas. Esses aspectos implicaram na efetividade de constituição de companhias militares na capitania do Pará.
A administração dos governadores está condicionada ao aparato disponível para a defesa do Estado sob sua jurisdição. Não sem razão a empresa colonial também é militar. Há, portanto, uma relação intrínseca entre aparato administrativo e de defesa. Os regimentos dos governadores trazem essa atribuição defensiva paralela à administração. Isso ocorre porque um governador deveria dispor de gente para conter os grupos de índios rebeldes, vigiar as fronteiras, formar tropas aos sertões e guarnecer fortalezas do Estado.
No século XVII e XVIII, a militarização tem um espaço importantíssimo para a definição da força política dos estados. Ora, assegurar o território