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SEREIAS
As sereias são seres mitológicos híbridos, metade-mulher-metade-peixe, que estão presentes no imaginário coletivo desde os tempos primórdios, em histórias infantis, na indústria cultural, e na sabedoria popular. O mito da sereia está ligado a água, feminilidade, sedução, medo, prazer, tortura, vida e morte, bem e mal. Dualidades opostas em um mesmo ser que inspiraram e inspiram obras literárias e representações iconográficas.
É importante lembrar que este mito universal, ao longo da história, sofreu transformações. Durante a pesquisa encontrou-se narrativas sobre estes seres híbridos ligados à água, desde a mesopotâmia com o deus Oannes ou Hea como também era conhecido até a lenda da Iara presente no folclore nacional.
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Segundo Kemble (1992, p. 69) o antecessor do mito das sereias é um deus babilônico chamado Oannes, uma deidade benevolente híbrida homempeixe que simbolizava poderes positivos vivificantes do oceano e sabedoria. Souza (2017, p.36) nos diz que “esse deus, chamado de Oannes ou Hea, e que corresponderia ao deus Cronos dos gregos, teria uma cabeça de peixe.” A autora cita Berosus que afirmava que no começo da babilônia, havia homens de diferentes etnias que colonizaram a Caldeia, esses indivíduos viviam como selvagens sem leis. “Porém, no primeiro ano, teria aparecido uma criatura vinda do mar, no Golfo Pérsico, na costa da Babilônia, dotada de razão. Tratava-se de um ser que possuía corpo de peixe e pés humanos.” (SOUZA, 2017 p.36).
Retomando Kemble (1992, p.69) em seu artigo a autora diz que essa tradição continuou na espécie da figura de Nereu, um primitivo deus do mar que foi o pai das amáveis ninfas do mar conhecidas como as nereidas, que eram retratadas como belas e detentoras de uma encantadora voz, assim como posteriormente as sereias seriam representadas. Também existiam muitas outras divindades ligadas ao mar e espíritos da água na mitologia clássica. Kemble cita que “Nereu deu lugar ao importante deus grego do mar Poseidon, que mais tarde se identificou como o deus romano Netuno”.
Na mitologia grega Tritão, filho de Poseidon era o único a ser descrito com um rabo de peixe ou cauda de golfinho e era considerado um monstro marinho que representava os perigos do mar e responsável por acalmar as águas para que a carruagem de seu pai pudesse deslizar sobre as ondas do mar. Atualmente a palavra tritão é o termo utilizado para designar o masculino das sereias.
Depois da referência do deus mesopotâmico, Nereu e suas filhas, tem-se outro mito muito importante. As sereias gregas, conhecidas por encantar e seduzir marinheiros com seu canto e beleza fatal, mostrando sua imagem mais malvada e maliciosa.
Antes de apresentar o mito na cultura grega, investigou-se as origens e significados da palavra Sereia que incitam diferentes interpretações de acordo com o mito e sua evolução. Rato (1999, p.12) cita diversos autores que falam os significados da palavra sereia:
Uns dizem que deriva do grego serién que significa cadeia, do verbo seirazen, atar com uma corda, qualidade de encantadora ou maga (Massimo;1996) [...] Allardidice (1990) aproxima-as da palavra Sirene e que a autora traduz como “a que enreda [...] voz suave e irresistível”. Victor Berard (1929) estuda outras hipóteses e como J.P. Machado (1959) no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa valoriza a origem latina, a palavra Sirena, que evoca o som: Estridente, de alerta ou harmonioso de doce envolver. D. Gaspar (1958) ... Afirma que o vocábulo deriva do grego e significa atração e provocação.
A deidade Oannes era representado como um homem com cabeça humana debaixo de uma cabeça de peixe, tinha voz humana pois esse “homem-peixe” teria ensinado aos homens as letras, as ciências, as artes, a agricultura, a fundação de cidades e construções de templos e os princípios da lei. Tais ensinamentos fariam parte de um livro sobre o princípio de todas as coisas. Berosus apontado por Souza, ainda diz que que o hibridismo homem-peixe talvez é uma das mais antigas e comum união entre humanos e animais.
Lima (1952, p.23) Diz que a palavra Sereia deriva do latim, sirena, que se sucedeu a siren do grego e cuja a origem é fenícia: sir (canto). Percebe-se que todos esses autores denotam a questão do som, voz e canto, ferramenta de sedução das sereias. No nosso idioma usa-se a palavra Sereia para designar uma bela mulher com cauda de peixe, quanto para a versão do mito grego. “A língua inglesa faz uma distinção dos termos que se referem às sereias: há a Siren, que representa a sereia clássica grega, e a Mermaid que possui uma cauda de peixe.” (BORGES, 2008, p. 189). Os próximos parágrafos dedicaramse em falar sobre as siren.
Apesar de estarem associadas ao mar, as sirens ou sereias da mitologia clássica eram na verdade mulheres-pássaro. Rato (1999, p.14) As descreve com cabeça e busto de mulher e asas e corpo de pássaro, ou só cabeça de mulher e corpo de ave. No entanto na mitologia grega existe as harpias, que assim como as sereias, também são metade pássaro. A obra Curious Creatures in Zoology de Ashton (1890) as distingue das sereias, sendo as harpias seres com cabeça de mulher e corpo de ave que exalavam um cheiro contagioso e estragavam tudo que tocavam com sua sujeira e excrementos.
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As Harpias eram “arrebatadoras de crianças e de almas, as imagens desses monstros eram muitas vezes colocadas sobre os túmulos, transportando a alma do morto em suas garras” (BRANDÃO, 1986, p. 236). O autor também as descreve como seres monstruosos e horríveis, que tinham o rosto de mulher velha, corpo de abutre, garras aduncas, seios pendentes. Pousavam sobre os banquetes e espalhava um cheiro tão infecto, que ninguém mais podia comer. Brandão complementa dizendo que simbolizam as paixões desregradas, libidinosas, torturas, repleta de desejos e remorso; as abastecedoras do Inferno com mortes súbitas.
Foi na Odisseia de Homero que as sereias aparecem pela primeira vez, imortalizando o mito. Rato (1999, p.13) questiona como era e onde localizava-se o possível habitat das sereias. “era numa linda ilha coberta de flores, muito alta, de onde pudessem ver bem nos navios que sulcavam as ondas do mar. Era de aí que elas encontravam os marinheiros com sua voz aveludada e doce.” (RATO, 1999 p.13 apud PHILLPOTTS, 1980 p.57). Para Lima as sereias habitavam onde hoje se encontra a ilha de Capri na costa da Itália por ser rochosa e florida.
Lima (1952 p.23) aponta a origem das sereias “ora se passam por filhas da musa Melpomémne e do deus-rio Aquelóo, ou de Aquelóo e de Estérope, filhas de Portáon e Eruité, ou de Fórcis um deus marinho ou ainda de Aquelóo e da musa Calíope”. O autor cita a versão de Libânios que diz que as sereias nasceram do sangue de Aquelóo derramado no rio quando foi ferido por Hércules.
Ainda sobre a origem das sereias, existe a versão em que Céres as transformou em aves porque não socorreram sua filha Proserpina quando foi raptada por Plutão. Conta-se, ainda, que, depois destas transformações, quiseram rivalizar com as musas. Estas, irritadas roubaram-lhes as penas e coroaram-se com elas. Rato (1999, p.15) também relata essa narrativa, contando que as sereias procuraram Proserpina por todos os cantos da Terra e pediram aos deuses fulvas penas e asas, mas não para voar e sim usar como remos a fim de enfrentar e atravessar as ondas dos mares.
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Retomando a Odisseia de Homero, famosa obra literária que data cerca de VIII a.C. narra a jornada de Odisseu ou Ulisses de volta para sua casa após a guerra de Tróia, porém sofre diversas dificuldades e provas quais, duram dez anos até seu regresso. Segundo Lima (1952, p.23) é nessa obra que as sereias são mencionadas pela primeira vez. Em uma passagem na obra Odisseu encontra a feiticeira Circe que descreve as sereias, como musas do mar e o alerta aos perigos que elas oferecem.
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Primeiro alcançará as Sirenas, elas que a todos os homens enfeitiçam, todo que as alcançar. Aquele que se achegar na ignorância e escutar o som das Sirenas, para ele mulher e crianças pequenas não mais aparecerão nem rejubilarão com seu retorno à casa, pois as Sirenas com canto agudo o enfeitiçam, sentadas no prado, tento ao redor montes de putrefatos ossos de varões e suas peles ressequidas. (HOMERO, 2014, p.274, v. 35-45.)
Depois de ter descrito as sereias e seus perigos, a feiticeira Circe diz à Odisseu como passar pelas sereias sem ser enfeitiçado pelo seu canto, aconselhando-o a tapar os ouvidos de seus marinheiros com cera para a tripulação não escutar a voz sedutora e melancólica das sereias.
E diz a Odisseu mandar seus companheiros o amarrar no mastro do navio, pois, dessa maneira ele passaria pelas sereias sem cair em suas tentações. O herói orienta sua tripulação à não o obedecer caso peça para o desatarem do mastro, mas sim o amarrar com mais força.
Como alertado por Circe as sereias tentaram atrair o herói com seu canto:
Vem cá, Odisseu muita-história, grande glória dos aqueus, ancora tua nau para ouvires nossa voz. Nunca ninguém passou por aqui, em negra nau, sem antes ouvir a melíflua voz que vem de nossa boca; mas ele se deleita e parte com mais saber. De fato, sabemos tudo que na extensa Troia, aguentaram os argivos e troianos por obra dos deuses. Sabemos tudo que ocorre sobre a terra nutre-muitos. (HOMERO, 2014, p.278, v. 180-190)
Em um momento de fraqueza, Odisseu pede para seus companheiros o soltar, mas como o combinado, sua tripulação apertaram as cordas mais forte salvando o herói. Lima (1952 p.27) diz que quando as sereias foram vencidas elas se jogaram ao mar e morreram.
Ainda na mitologia grega as sereias aparecem na narrativa dos Argonautas, tripulantes da nau Argo em sua expedição até Cólquida em busca do Velocino de Ouro. Lima (1952 p.26) fala que os argonautas se salvaram das sereias graças a Orfeu que com sua famosa lira tocou uma melodia mais bela que o canto das sereias, deixando-as muda, Borges (2008 p.189) diz que elas se transformaram em rochedos depois de terem sido superadas.
As sereias ficaram marcadas como seres do mal, sendo em resumo símbolo de sedução irresistível, crueldade e morte. Personificam o lado humano, mostrando beleza, encanto e atrativos do feminino, em sua parte animal exibe muito das aves marinhas, com instinto irracional e caçador. Por serem metade-mulher, metade- pássaro e simbolizar paixões e morte as sereias ou sirens podem ser confundidas com as harpias, essas por sua vez, aparentam uma imagem horrenda que mata tudo ao seu redor. As sereias ainda podem ser assemelhadas com as nereidas, ninfas do mar conhecidas por sua aparência bela e suas melodias encantadoras além de habitar os mares e rios.
Com o passar do tempo as sereias sofreram uma metamorfose e passaram de mulher-pássaro para mulher-peixe, habitando de vez as profundezas aquáticas, adquirindo a forma de que hoje é presente no imaginário coletivo. Essa transformação segundo o artigo de Kemble na publicação stories from around the world (1992, p.75-76) se deve a fusão da mitologia grega, tradições pagãs e mais tarde do cristianismo.
A autora também cita a relação simbólica do feminino com as sereias à “forte associação entre o mar e a feminilidade; o útero e os fluidos amnióticos das mulheres têm u m paralelo com as águas do mar que deram origem a vida.” Kemble indica a conexão do ciclo menstrual com o ciclo das marés e sua ligação com a lua. Expondo talvez mais uma explicação para a transformação do mito em mulher-peixe.
Rato (1999, p.14) diz que só no século VI d.C o anônimo Liber Monstrorum de Diversis Generibus lhes atribuiu uma elegante e inusitada cauda de peixe. A imagem foi generalizada na idade média a ponto de fazer as pessoas esquecerem sua antiga forma. Com a ascensão do cristianismo na Europa, muitas crenças desapareceram, mas a crença no mito das sereias persistiu inclusive sendo explorado pela Igreja. Segundo Kemble (1992 p. 70) “a sereia e suas artimanhas femininas provaram ser um símbolo útil na representação da vida mundana e seus perigos”. Nesse período as sereias receberam os artefatos que criaram a sua reputação e símbolo de vaidade, o espelho e o pente de cabelo.
Souza (2017, p.45-46) relata que nesse período as sereias entraram no bestiário medieval, que eram manuscritos feitos por monges com intenção de catalogar espécies animais (incluindo animais e criaturas magicas), plantas e minerais com propósitos informativos e morais. Nesses manuscritos elas aparecem em sua forma de jovens mulheres-peixe de seios despidos, vaidosas, penteando seus longos cabelos, cantando sentadas em rochedos a espera de marinheiros criando a referência que existem até hoje.
As criaturas dentro dos bestiários eram tidas como reais, servindo para explicar coisas que não sabiam na época e de algum modo colocar medo nas pessoas usando mitos. “A Sereia era vista como criatura mundana e perigosa (assim como as sereias gregas de Homero), pois enfeitiçavam os homens até sua destruição. Suas artimanhas femininas confirmavam sua reputação de vaidosa.” (SOUZA, 2017, p.46- 47). Então pode-se dizer que nos bestiários medievais as sereias representavam o medo do desconhecido fora do domínio humano, os perigos existentes em alto-mar ou no fundo dos lagos, o pecado da vaidade, luxúria, prazer e os perigos de se entregar às tentações.
É notável até aqui algumas das discussões sobre a origem das sereias, percebeu-se como o mito das sereias persistiu e se difundiu ao longo da história da humanidade. As sereias já tiveram outros nomes e foram confundidas com outros mitos e divindades. As sereias passaram por uma mudança em sua forma, porém sempre representaram feminilidade, uma beleza mágica, canto e seduções perigosas.
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