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Todos os nossos livros passam por um rigoroso controlo de qualidade, no entanto, aconselhamos a consulta periódica do nosso site (www.pactor.pt) para fazer o download de eventuais correções. Não nos responsabilizamos por desatualizações das hiperligações presentes nesta obra, que foram verificadas à data de publicação da mesma. Os nomes comerciais referenciados neste livro têm patente registada. Reservados todos os direitos. Esta publicação não pode ser reproduzida, nem transmitida, no todo ou em parte, por qualquer processo eletrónico, mecânico, fotocópia, digitalização, gravação, sistema de armazenamento e disponibilização de informação, sítio Web, blogue ou outros, sem prévia autorização escrita da Editora, exceto o permitido pelo CDADC, em termos de cópia privada pela AGECOP – Associação para a Gestão da Cópia Privada, através do pagamento das respetivas taxas.
Sobre a Coleção
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Bem-vindo à Coleção Intervenção em Psicologia! Fazendo jus à sua essência, a PACTOR, marca editorial do Grupo LIDEL, dedicada à publicação de livros nas áreas das Ciências Sociais, Forenses e da Educação, propôs-se lançar no mercado livros que aliem essencialmente a componente prática, isto é, de intervenção na área da Psicologia, a uma escrita de elevado rigor científico, sem que tal constitua um obstáculo ao prazer da leitura e da aprendizagem, ou da renovação de conhecimentos. Tal iniciativa é digna de registo, pois é demonstrativa do reconhecimento crescente que a Psicologia assume na atualidade e nos seus mais diversos domínios de especialização, justificando por parte de um grupo editorial a audácia de investir nesta área de conhecimento, mas também um sinal claro da necessidade e dever que os profissionais e estudantes de Psicologia têm de uma atualização constante. Com base no Código Deontológico da Ordem dos Psicólogos Portugueses, a bússola por excelência da atividade profissional em Psicologia, esta coleção pretende guiar os psicólogos no sentido de práticas de excelência, garantindo que a referência do exercício profissional é o expoente máximo e não o mínimo aceitável. Como alerta o mesmo Código, no âmbito do Princípio Geral da Competência, os psicólogos têm como obrigação exercer a sua atividade de acordo com os pressupostos técnicos e científicos da profissão, a partir de uma formação pessoal adequada e de uma constante atualização profissional, de forma a atingir os objetivos da intervenção psicológica, pois de outro modo acresce a possibilidade de prejudicar o cliente (i.e., qualquer pessoa, família, grupo, organização e/ou comunidade com os quais os psicólogos exerçam atividades no âmbito dos seus papéis profissionais, científicos e/ou educacionais enquanto psicólogos) e de contribuir para o descrédito da profissão. A competência V
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será o reconhecimento de que os psicólogos devem estar conscientes que têm como obrigação fundamental funcionar de acordo com as boas práticas baseadas em conhecimentos científicos atualizados, pretendendo esta Coleção ser um préstimo útil, de referência ímpar e seguro ao cumprimento de tal obrigação ética. Por fim, refira-se que apesar de ser assumidamente uma Coleção direcionada para profissionais e estudantes de Psicologia, a emergência da interdisciplinaridade torna-a também recomendável a outras áreas de saber, sem prejuízo das competências e saberes de cada uma, bem como dos deveres e responsabilidades de outros profissionais. Mauro Paulino Diretor de Coleção
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Os Autores
Dulce Pires Psicóloga, na área de Clínica e Aconselhamento, pela Universidade Autónoma de Lisboa. Doutoranda em Psicologia pela Universidade de Aveiro. Especialista em Psicologia Clínica e da Saúde pela Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP). Membro da equipa da Mind | Instituto de Psicologia Clínica e Forense. Tem desenvolvido larga experiência em contexto prisional, clínica privada e emergência psicológica. Formadora certificada. Autora/coautora em publicações nas áreas de Psicologia Clínica, Psicologia Forense e Desporto.
Márcio Pereira Psicólogo Clínico pela Universidade de Lisboa. Especialista em Psicologia Clínica e da Saúde pela OPP, com especialidades avançadas em Psicoterapia e Psicologia da Justiça. Psicólogo no Centro de Apoio Psicológico e de Intervenção em Crise do INEM. Representante português no Comité de Crise e Catástrofe da EFPA. Formador nas áreas de Intervenção em Crise e Emergência, Primeiros Socorros Psicológicos e Gestão de Stresse. Coordenador do livro Intervenção Psicológica em Crise e Catástrofe.
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Sónia Paiva Psicóloga, na área de Psicologia Clínica e Aconselhamento, pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. Especialista em Psicologia Clínica e da Saúde pela OPP, com especialidade avançada em Psicologia da Justiça. Psicóloga Clínica em unidades de intervenção local da DICAD e em clínica privada. Formadora certificada. VII
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Tem desenvolvido experiência profissional em contexto de cuidados de saúde primária, hospitalar, prisional e na área de Comportamentos Aditivos e Dependências.
Carlos F. Silva Psicólogo. Professor catedrático da Universidade de Aveiro. Especialista em Psicologia Clínica e da Saúde, com especialização avançada em Neuropsicologia e em Psicoterapia (pela OPP). Pós-graduado em Neurociências pela Oxford University (Reino Unido). Perito Forense nomeado pelos tribunais. Secretário da CPCJ de Mira. Autor/coautor em publicações nacionais e internacionais na área de Psicologia Clínica, Forense e Experimental. Membro da APS – Association for Psychological Science.
Diretor de Coleção Mauro Paulino Coordenador da Mind | Instituto de Psicologia Clínica e Forense. Psicólogo Forense Consultor do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses. Coordenador da pós-graduação de Psicologia Forense da Universidade Autónoma de Lisboa. Membro do Laboratório de Avaliação Psicológica e Psicometria (PsyAssessment Lab) da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra. Autor e coordenador de diversos livros. Docente convidado em várias universidades nacionais e internacionais.
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Índice
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Sobre a Coleção Os Autores Prefácio Introdução
V VII XI XV
Parte I – Da Personalidade às Perturbações de Personalidade
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1. Definições no Conceito de Personalidade 1.1. Determinantes da Personalidade
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2. Da Personalidade à Perturbação de Personalidade 2.1. Perspetiva Biológica 2.2. Perspetiva Psicanalítica 2.3. Perspetiva das Disposições 2.4. Perspetiva Cognitiva 2.5. Perspetiva Humanista 2.6. Perspetiva da Aprendizagem 2.7. Perspetiva do Circumplexo Interpessoal 2.8. Perspetiva Psicobiológica
7 7 11 15 16 17 18 19 20
3. Sistemas de Classificação 3.1. CID-10 3.2. DSM-IV-TR 3.3. DSM-5
25 26 28 28
4. Considerações Finais
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Parte II – Perturbações de Personalidade: Da Compreensão às Considerações Práticas da Intervenção
5. Enquadramento 6. Abordagens Teóricas de Intervenção 6.1. Terapias Comportamentais e Cognitivas 6.2. Terapia Focada nas Emoções (TFE) de Leslie Greenberg 6.3. Terapia dos Esquemas de Jeffrey Young 6.4. Terapia Dialética de Marsha Linehan 6.5. Psicoterapia Centrada na Pessoa, Não Diretiva, de Carl Rogers 6.6. Psicoterapia personalizada de Theodore Millon 6.7. Modelo de Complementaridade Paradigmática de Branco Vasco 6.8. Estágios de Mudança de Prochaska e DiClemente 7. Intervenção nas Perturbações de Personalidade 7.1. Grupo A 7.1.1. Perturbação de Personalidade Paranoide 7.1.2. Perturbação de Personalidade Esquizoide 7.1.3. Perturbação de Personalidade Esquizotípica 7.2. Grupo B 7.2.1. Perturbação de Personalidade Estado-Limite (Borderline) 7.2.2. Perturbação de Personalidade Antissocial: de antissocial a psicopatia 7.2.4. Perturbação de Personalidade Narcísica 7.3. Grupo C 7.3.1. Perturbação de Personalidade Dependente 7.3.2. Perturbação de Personalidade Evitante 7.3.3. Perturbação de Personalidade Obsessivo-Compulsiva 8. Terapia de Grupo nas Perturbações de Personalidade 9. Intervenção Familiar nas Perturbações de Personalidade Conclusão Posfácio Referências Bibliográficas Índice Remissivo X
37 39 43 43 46 50 55 57 59 60 60 63 63 63 72 82 91 91 106 128 138 147 147 157 167 179 185 193 195 199 207
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Prefácio
No fim dos anos 1990, depois de uma corrida entre o Estado Americano e as empresas privadas que procuravam as inevitáveis patentes, descobriu-se a constituição completa do genoma humano. Ao mesmo tempo, os computadores adquiriam uma memória fabulosa e suportavam um software complexo; as análises de grandes dados baseados em escalas de comportamento (também elas submetidas às inevitáveis patentes) iam estabelecendo dimensões do comportamento humano a partir de populações saudáveis. Para venderem as escalas, os seus autores sugeriram que os traços de comportamento encontrados poderiam corresponder à influência de certos genes. Teríamos, assim, todo o comportamento humano bem explicado e até modificável por manipulação química. A ideia era linda! Mas completamente tola. A prova de que esta ideia foi levada a sério é que as dimensões (supostamente nascentes dos genes, e de cujo cruzamento nasceria a patologia humana) foram muito discutidas durante a preparação do DSM-5 e acabaram por ser propostas para a nova classificação americana no que respeita à patologia da personalidade. A prova de que ainda existe bom senso é que os psiquiatras clínicos recusaram, em assembleia, esta proposta, que foi relegada para um apêndice. Em vez dela, o manual americano manteve a tradicional classificação das personalidades perturbadas, cuja origem remonta a Kurt Schneider, mas que se entrecruza com as nosologias psiquiátricas tradicionais. O problema é interessante porque revela não só os conflitos, mas também o diálogo que pode existir entre psiquiatras, como médicos que atendem pessoas doentes, e psicólogos clínicos, hoje mais ligados a procedimentos de avaliação padronizada e ao acompanhamento psicoterapêutico de pessoas não necessariamente doentes. As perturbações da personalidade ocupam uma posição charneira no que respeita aos pacientes que uns e outros acompanham. Por um lado, não cedem facilmente aos XI
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psicofármacos ou terapias psiquiátricas convencionais, mas são mais acessíveis às psicoterapias. Por outro lado, são definidas como egossintónicas, o que significa que os portadores não as reconhecem como doenças, porque sempre se conheceram assim. Mas eles não se adaptam à vida e sofrem ou fazem sofrer; ficam vulneráveis a muitas outras perturbações ou conflitos, e é por causa disso que se apresentam aos médicos. Se estes fizessem o diagnóstico adequado, deveriam referenciar os pacientes a uma psicoterapia. Quando se conhece a história das várias psicoterapias, a começar pela psicanálise, descobre-se que os doentes descritos estão mais afetados na personalidade do que do que numa patologia adquirida. As próprias psicoterapias têm-se desenvolvido na perspetiva de se tornarem mais breves e eficazes, mas acabaram por se pulverizar em diversos modelos, cada um deles baseado em suposições psicopatológicas, algumas delas acessíveis à verificação empírica, outras resistindo a qualquer investigação mas subsistindo através do ensino ombro a ombro e supervisão certificada por sociedades internacionais. Muitas outras nem sequer recorrem a explicações sobre a sua eficácia e, mesmo assim, são praticadas. Para além disso, levanta-se o problema da indicação terapêutica para cada patologia, sabendo-se, por exemplo, que a psicanálise começou por lidar com as patologias dissociativas e histriónicas, e a terapia comportamental com as perturbações ansiosas, sendo mais tarde focalizada nas depressões, através da sua extensão cognitivo-comportamental; por sua vez, a terapia familiar teve algum êxito com as anorexias, mas começou por tentar lidar com as esquizofrenias. Com a plétora de ofertas psicoterapêuticas, incluindo as que se propõem na Internet, o panorama é, hoje em dia, caótico. O desenvolvimento sem limites das tecnologias comunicativas permitiu o avanço, mas também a pulverização sem controlo de novas psicoterapias, enquanto criou igualmente novas patologias. Este ponto coloca-nos perante o problema de saber o que é a psicoterapia – ou, como se define neste livro, a intervenção psicológica. Já que ninguém responde a este questionamento, que raramente se coloca, arrisco-me a afirmar que a psicoterapia é, exatamente, o tratamento através da comunicação, verbal e não-verbal. Claro que, com tal abrangência, pode-se perguntar, no limite, se a relação com uma nova pessoa ou a leitura de um livro não serão formas de intervenção psicológica. Aliás, a produção de textos pode ser incorporada em certos procedimentos psicoterapêuticos. Finalmente, hoje em dia discute-se bastante o efeito placebo em Medicina. Na verdade, esse efeito XII
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Prefácio
só pode ser atribuído à comunicação no âmbito da relação médico-doente e, portanto, a uma psicoterapia, embora feita sem protocolos. Haveria ainda que distinguir entre psicoterapias de desenvolvimento, geralmente holísticas e dirigidas à resiliência individual, e as que se propõem como terapêuticas, dirigidas à resolução de uma patologia específica. Estas últimas pressupõem, geralmente, mecanismos psicopatológicos e podem ser úteis no estudo da psicopatologia, abandonado desde o império do DSM a partir de 1980. De qualquer modo, a mente humana é extremamente complexa, e devemos reconhecer que os mecanismos patogénicos e terapêuticos apontados são apenas parcelares. Por vezes, são espantosamente coincidentes entre vários modelos. Outras vezes parecem apenas procedimentos pontuais, que funcionam como truques que ajudam as pessoas a ver-se livres da patologia que bloqueia a sua liberdade. Por tudo isto, este livro parece-me de grande utilidade. Baseia-se em casos clínicos reais, escolhidos em função dos diagnósticos consensualizados, e descreve a abordagem de cada um, revelando as atitudes comunicativas que parecem mais adequadas. Por assim dizer, revela os mais simples procedimentos que podem desbloquear o comportamento afetado pela patologia. Estas atitudes e o seu efeito são explicados em termos psicopatológicos, e a evolução é tomada em conta. Uma pequena secção sobre desafios terapêuticos, inserida em cada caso, generaliza o tema e dá-nos conta das limitações que ainda existem. Por vezes, pode notar-se que o mais importante é o acompanhamento e apoio, dando-se tempo para que os pacientes possam fazer as mudanças que lhes permitam viver melhor e enfrentar as dificuldades. Alguns profissionais afirmam que a psicoterapia não é mais do que uma conversa séria entre duas pessoas. Embora se possam descortinar as linhas psicoterapêuticas seguidas em cada caso, não se pode dizer que elas correspondam a um só modelo. Talvez por isso se fale em intervenção psicológica em vez de psicoterapia. Já vimos que todo o tema é demasiado complexo e os problemas muito diferentes para que se possa seguir um só modelo de intervenção. Entre os autores referenciados, destaca-se Theodore Millon, que, na sua perspetiva evolucionista, enquadra diversos modelos e fornece, aliás, instrumentos de avaliação. No final do livro apresentam-se ainda diversas terapias de grupo, incluindo a familiar, e respetivas indicações. Os procedimentos grupais, que, pela complexidade dos fenómenos em causa, são difíceis de analisar em termos de evidência clínica, podem, no entanto, reproduzir a vivência humana que ocorre em microgrupos, sejam XIII
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eles familiares, locais, profissionais, de lazer ou outros. Se a patologia da personalidade é adquirida no interior destes grupos, também podemos esperar que ela se ultrapasse quando estes se reproduzem num contexto terapêutico. Assim, os autores – psicólogos clínicos e universitários que pertencem a diversos ambientes terapêuticos – assumem a sua incompletude e não propagam verdades universais. Fazem, como todos nós, aquilo que podem com os conhecimentos que têm; mas abrem o assunto para o muito que importa descobrir e clarificar, para que, com ética, segurança e eficácia, mas também com o respeito pelas diferenças individuais, possamos oferecer aos nossos pacientes o melhor que tivermos. Professor Doutor José Luís Pio Abreu
Professor Associado com Agregação da Universidade de Coimbra (aposentado) Membro do Centro de Filosofia para as Ciências da Universidade de Coimbra
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Introdução
As perturbações de personalidade têm representado um desafio terapêutico ao longo dos tempos, pela complexidade e pela rigidez ao nível da estrutura e do funcionamento do Ser que envolvem. A definição e a caracterização, tanto da personalidade em si, como das perturbações inerentes à mesma, têm vindo a sofrer alterações e evoluções, à medida que a ciência avança e vamos conhecendo um pouco mais acerca desta temática. Iniciamos esta obra, de foro prático e interventivo, com a descrição da formação da personalidade e das perturbações de personalidade, para contextualizar a evolução do conhecimento científico. Há, decerto, ainda um grande percurso a fazer nesta área, contudo, temos já décadas e décadas de história, em que inúmeros profissionais e autores procuraram, através de estudos e de reflexão crítica, avançar, de várias perspetivas, todas elas válidas, no conhecimento sobre o Ser. Sendo esta obra de cariz mais interventivo, direcionada para a prática clínica, elaboramos casos clínicos com base em casos reais, de acordo com cada perturbação de personalidade, tal como se encontram descritas no Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM-5). É ainda importante salvaguardar a complexidade associada à comorbilidade, ou seja, a presença de um duplo diagnóstico no mesmo indivíduo. A comorbilidade pode corresponder à sintomatologia do designado Eixo I (i.e., DSM-IV-TR), como ainda coexistir com as perturbações de personalidade. A elaboração dos casos clínicos fez-se com base na perspetiva integrativa, respondendo à unicidade e à diferenciação que encontramos na prática clínica. É feita uma apresentação do caso, com a componente da intervenção terapêutica, que inclui técnicas, recurso a ilustração terapêutica e, ainda, uma reflexão sobre os constrangimentos e os desafios inerentes aos pacientes com este tipo de perturbações. Neste último XV
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aspeto, procurámos ter uma atenção particular à pessoa e profissional do terapeuta, com indicações a nível da prevenção do burnout. Naturalmente, cada caso é um caso e é necessário, por parte do terapeuta, alguma flexibilização na abordagem, respeitando a complexidade do paciente único que temos em terapia. Abordamos, ainda, o contributo importante que podem representar as intervenções terapêuticas em grupo e familiar como complemento da intervenção terapêutica individual nas perturbações de personalidade.
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Ir-se-á, seguidamente, explanar de forma geral as diferentes teorias da personalidade, numa compreensão mais holística e global da história da personologia.
2.1 Perspetiva Biológica As primeiras teorias de personalidade foram as teorias biológicas, que começaram na Grécia e procuravam na estrutura corporal a explicação da nossa personalidade (Percy, Russel, Lloyd & Johnson, 2002-2004). Representando estas teorias surge Hipócrates (Clark, 2005), que considerava que as pessoas eram classificadas segundo os humores, designando-se a sua teoria de Doutrina dos Humores Corporais. Todas as doenças resultavam de um desequilíbrio nos humores (i.e., bile amarela, negra, sangue e fleumática), pelo que estes correspondiam aos elementos da natureza – terra, água, fogo e ar –, os quais eram declarados as componentes básicas do universo, de acordo com o filósofo Empédocles. Hipócrates estabeleceu quatro temperamentos básicos: colérico, melancólico, fleumático e sanguíneo. Recuando ainda mais no tempo, entre um e dois milénios antes de Hipócrates, surgiram, na China, noções de temperamento similares, porém distintas, segundo as quais o equilíbrio saudável provinha de fluxos de energia, em vez de disparidades nos humores. O temperamento seria variável, sendo influenciado pelo clima, pela dieta (e.g., alimentação) e por variações sazonais. 7
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As doutrinas dos humores e dos equilíbrios de energia foram renegadas, embora, atualmente, se encontrem mais em evidência as teorias associadas às energias, tendo o foco sido transferido para os estudos científicos das áreas da neuroquímica hormonal (Millon, 2011). Na área da fisionomia e da frenologia, Aristóteles procurou identificar características de personalidade através de aparências externas, em particular, configurações e expressões faciais. Franz J. Gall (s.d., citado por Hall, Lindzey & Campbell, 2000) procurou correlações objetivas entre as características da personalidade e o formato do crânio, tendo sido um dos primeiros a apresentar uma relação entre mente e corpo. O conceito de caráter chamou a atenção de vários teoristas no final do século XIX e princípios do século XX. Ribot (1897) procurou formular tipos de caráter por analogia a uma classificação botânica; variando a intensidade de dois traços (sensibilidade e atividade), procurou construir vários traços majores (i.e., caráter humilde, contemplativo, emocional, entre outros). Já Queryat (1896, citado por Millon, 2011) elaborou uma formulação com nove tipos de caráter, que surgiam da combinação de três disposições: emocionalidade, atividade e meditação. Quando uma das disposições tinha mais intensidade, o caráter tomaria essa forma; quando duas das disposições eram predominantes em simultâneo, surgiam os carateres “normais” (e.g., ativo-emocional ou o tipo “apaixonado”). Um terceiro conjunto de carateres reporta-se ao equilíbrio das três disposições (e.g., caráter equilibrado, amorfo). Se uma ou mais das três tendências funcionassem de forma irregular, seriam os carateres semimórbidos (i.e., tipos, irresolutos, contraditórios, instáveis). Heymans e Wiersma (1909, citados por Millon, 2011) identificaram três critérios de avaliação de caráter: nível de atividade, emocionalidade e suscetibilidade de estimulação externa versus interna. Estes critérios antecipariam os esquemas desenvolvidos por McDougall, Meumann, Freud e Millon (s.d., citados por Millon, 2011). Ao combinarem estes critérios, Heymans e Wiersma deduziram a presença de oito carateres: amorfo, apático, nervoso, sentimental, sanguíneo, fleumático, colérico e apaixonado. Os teóricos do século XX debruçaram-se na constituição do temperamento e na forma através da qual diverge, originando diversos padrões de personalidade. O psiquiatra Hirt (s.d., citado por Millon, 2011) dividiu o temperamento de acordo com quatro humores (i.e., fleumático, sanguíneo, colérico e melancólico), procurando, ainda, obter correspondências na população psiquiátrica. McDougall (s.d., citado por Millon, 2011) propôs a “consolidação dos sentimentos” na sua obra Introduction to 8
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Da Personalidade à Perturbação de Personalidade
Social Psychology, publicada em 1908. Derivou oito temperamentos na combinação de três dimensões fundamentais: intensidade (força e urgência), persistência (expressão interna versus externa) e afetividade (suscetibilidade ao prazer e à dor). Os indivíduos com a dimensão da intensidade elevada eram considerados ativos; com intensidade baixa, passivos. A elevada persistência direcionava a pessoa para o mundo exterior e a baixa persistência para o mundo interior. A elevada afetividade conduzia a uma maior suscetibilidade a influências externas, o que não se verificava com as pessoas com baixa afetividade. A combinação destas três dimensões formava oito temperamentos diferenciados: firme, inconstante, instável, desencorajado, ansioso, esperançoso, plácido e moroso. Meumann (s.d., citado por Millon, 2011) distinguiu-se, em 1910, com o texto Intelligenz und Wille, designando oito qualidades fundamentais do sentimento, sendo central à sua teoria a polaridade do prazer e do desprazer e os modos excitativos de expressão, passivo ou ativo. Considerou ainda, embora com menos relevo, a excitabilidade e a intensidade do afeto. Na combinação das dimensões com os modos referenciados resultavam quatro humores clássicos (i.e., sanguíneo, colérico, fleumático e melancólico). Já Kollaris (s.d., citado por Millon, 2011) no texto que publicou, Characker und Nervosität, em 1912, focou-se nas dimensões agradável e desagradável e excitado (ativo) versus calmo (passivo). O autor relacionou ainda estas dimensões com os quatro humores, de onde emergiam tipos de caráter major. Kraepelin (1919) foi um dos primeiros psiquiatras nosológicos, no início do século XX, tendo apenas sistematizado a sua teoria acerca das perturbações de personalidade na oitava edição do seu texto, em 1913. Focou-se em duas síndromes major, designadamente, a demência praecox (i.e., considerava que era primariamente uma doença do cérebro, uma forma de demência precoce) e a psicose maníaco-depressiva. O autor revelou ainda duas síndromes pré-mórbidas: a disposição ciclotímica (i.e., variedades da disposição: hipomaníaca, depressiva, irascível e emocionalmente instável), cuja tendência se orientava para a psicose maníaco‑depressiva, e o temperamento autista, para a demência praecox. Descreveu ainda o que designou de personalidades mórbidas, que seriam indivíduos com tendência para a criminalidade, entre outras atividades desviantes. Schneider (1958, citado por Millon, Simonsen, Birket-Smith & Davis, 2003; Crowhurst & Coles, 1989) descreveu vários tipos de psicopatas, na sua obra sobre as personalidades psicopáticas, com a seguinte classificação: hipertímicos, 9
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depressivos, inseguros (divididos em sensitivos e compulsivos), fanáticos, lábeis, explosivos, afetivos e asténicos. Existiram alguns autores que se focaram mais na relação entre características corporais, personologia e doenças mentais. Kretschmer (s.d., citado por Hall, Lindzey & Campbell, 2000) caracterizou os indivíduos de acordo com a sua forma física, numa tentativa de relacionar as diferenças morfológicas com a esquizofrenia e a psicose maníaco-depressiva. Na expansão do seu trabalho, esta relação passou a servir também a personalidade pré-mórbida e o temperamento dito “normal”. Propôs que as pessoas fossem agrupadas segundo quatro grupos básicos: picnícos (i.e., compactas, com um tórax e abdómen largos, tendência para a obesidade), atléticos (i.e., musculatura e estrutura óssea desenvolvidas), asténicos (i.e., consideradas frágeis, pela musculatura e estrutura óssea pouco desenvolvidas e pequenas) e diplásticos (i.e., mistura dos anteriores). O autor considerou que as perturbações psicóticas correspondiam a um grau mais intenso do tipo “normal” da personalidade. Segundo este princípio, os esquizofrénicos, os esquizoides e os esquizotípicos possuíam diferentes graus de intensidade da mesma disposição de temperamento, com um nível distinto de patologia. Os cicloides eram vistos como variantes moderadas da psicose maníaco-depressiva e as personalidades ciclotímicas como tipos “normais”, com uma menor intensidade na disposição. Expandiu, mais tarde, a sua visão a quatro tipos fundamentais de reação: asténica (i.e., tendência para a tristeza, letargia), primitiva (i.e., explosivos, orientados pelo instinto, imaturos), expansiva (i.e., vulneráveis a situações de distresse, sensibilidade acrescida em relação aos pensamentos que outros tenham, irritabilidade, tendência para comportamentos paranoides), sensitiva (i.e., dificuldades ao nível da expressão, pouco confiantes, ansiosos). Identificou ainda alguns tipos intermédios: conciliador, submisso e histriónico. Sheldon (s.d., citado por Hall, Lindzey & Campbell, 2000), discípulo de Kretschmer, formulou hipóteses com base na relação entre corpo, mente, temperamento e psicopatologia, identificando três dimensões básicas, no seu esquema morfológico: endomórfica (i.e., corpo tendencialmente redondo); mesomórfica (i.e., dominância a nível muscular) e ectomórfica (i.e., fragilidade de estrutura). No que respeita à tipologia do temperamento, especificou três clusters: viscerotomia (i.e., paralelo ao endomórfico, caracterizado por gregariedade, expressão facilitada das emoções, evitamento da dor, dependência da aprovação social de outros); somatotomia (i.e., alinhado com o mesomórfico, caracterizado por assertividade, energia física, coragem, indiferença à 10
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dor, necessidade de ação e de poder) e cerebrotomia (i.e., corresponde ao ectomórfico, caracterizado por tendência para a autoconsciência, inaptidão social, introversão). Relaciona-se com três componentes primárias da psicopatologia: afetivas (i.e., correspondem ao tipo endomórfico e ao temperamento da viscerotomia, caracteriza-se por um baixo limiar de reação comportamental e expressão emocional que fragiliza a capacidade inibitória); paranoides (i.e., correspondem aos mesomórficos e ao temperamento da somatotomia, caracteriza-se por uma tendência para o ressentimento e para o antagonismo, que o indivíduo projeta no ambiente onde se encontra, tornando-se agressivo e arrogante) e heboicos (i.e., correspondem ao tipo ectomórfico, caracteriza-se pelo isolamento social). No que se reporta ainda aos teóricos do temperamento, estes focaram-se nas variações implícitas a nível endocrinológico ou da neuroanatomia, ao invés dos anteriores constitucionalistas, que se focaram na morfologia. O temperamento é “um conceito psicológico, não fisiológico; procura representar psicologicamente processos fisiológicos inferidos através de observação nas diferenças na atividade comportamental, persistência, intensidade, variabilidade e especialmente suscetibilidade à estimulação emocional” (Millon, 2011, p. 14).
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2.2 Perspetiva Psicanalítica A perspetiva psicanalítica considera que a personalidade é constituída por um conjunto de forças internas opostas e em constante conflito, pelo que o conceito de conflito psíquico é central nesta perspetiva (Hansenne, 2004). Os psicanalistas enfatizaram a importância das experiências vividas pela criança, na medida em que estas predisporiam o indivíduo a estilos de vida e perturbações de adaptação. No que foi designada a hipótese psicogenética, eventos precoces estabelecem sistemas defensivos que podem levar os indivíduos a reagir a novas situações como se fossem replicadas a partir das ocorridas na infância. As propostas de Freud foram revolucionárias, sendo um marco fundamental até à atualidade. Assim, os sistemas de defesa aprendidos através das experiências em criança para fazer face às situações diárias persistiriam na vida, podendo resultar em adaptações deficitárias ou negativas ou em perturbações de personalidade (Millon, 2011). Freud, Abraham e Reich (s.d., citados por Millon, 11
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2011) construíram a fundação da tipologia desta perspetiva. Freud propôs os conceitos das polaridades – sujeito (ego)/objeto; prazer/dor; ativo/passivo –, fundamentais na compreensão do funcionamento da vida mental (Hall, Lindzey & Campbell, 2000; Hansenne, 2004; Millon, 2011). Na sua conceção da mente, apresentou uma primeira tópica, que reuniu o inconsciente, o pré-consciente e o consciente, enquanto a segunda tópica abarcou três estruturas – o Id (i.e., pulsões e desejos primitivos), o Ego (i.e., parte racional do aparelho psíquico) e o Superego (i.e., normas sociais) (Hansenne, 2004). Em 1931, dividiu os tipos de caráter de acordo com a estrutura intrapsíquica dominante: erótico (governado pelo Id), narcísico (governado pelo Ego) e compulsivo (governado pelo Superego) (Millon, 2011). Reich (1933, citado por Millon, 2011) argumentou que a solução neurótica dos conflitos psicossexuais era possível com uma reestruturação difusa do estilo defensivo individual e com um conjunto de alterações que iria originar a “formação total” do caráter. Segundo este autor, a questão problemática levantava-se quando os estilos defensivos adquiridos na interação com as experiências de infância se tornavam estáveis, o que designou de “armadura de caráter”, pela sua solidez e cristalização; tal originava atitudes crónicas e formas de reação automáticas. De forma breve, Freud, Abraham e Reich (s.d., citados por Millon, 2011) chegaram a tipos major de caráter, que podem ser organizados segundo os estágios psicossexuais de desenvolvimento da teoria psicanalítica (i.e., os carateres orais, anais, fálicos e genitais, sendo que, neste último estágio, considerado “o pináculo da maturidade”, o autor percecionava duas complicações patológicas associadas – os carateres narcísicos e os histriónicos) (Millon, 2011).
2.2.1 Perspetiva Neoanalítica No que concerne à perspetiva neoanalítica, que deriva da anterior, atribui suma importância ao Eu, ao seu desenvolvimento e à influência da cultura. Klein (1948, citada por Millon, 2011; Hansenne, 2004), uma das autoras responsáveis pela psicanálise nas crianças, considerava que a fantasia era uma habilidade primária e que as fantasias patenteavam uma sequência de desenvolvimento regular, que refletia o relacionamento que o indivíduo tinha tido, em criança, com a mãe. A mente era, assim, formada por representações internas pré-formadas dos relacionamentos externos da criança. 12
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7.1 Grupo A 7.1.1 Perturbação de Personalidade Paranoide Esta perturbação de personalidade pertence ao designado Grupo A. Caracteriza-se por desconfiança e suspeição persistente em relação aos outros, sendo estes considerados mal-intencionados, sem base real para tal perceção, o que promove a dificuldade de confiança no outro, incluindo em relação ao seu cônjuge. Assim, mantêm de forma persistente uma má vontade, bem como insultos ou indelicadezas, o que provoca reações com base na raiva (Fauman, 2002). Os critérios de diagnóstico do DSM-5, através do modelo categorial, são os seguintes (American Psychiatric Association, 2013): A. Desconfiança e suspeição invasivas em relação aos outros, de tal modo que as
suas motivações são interpretadas como malévolas. Tem início na vida adulta e está presente em vários contextos, conforme indicado por quatro (ou mais) dos seguintes: 1. Suspeita, sem bases suficientes, de que outros tiram partido deles, os prejudicam ou enganam. 63
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2. Preocupa-se com dúvidas injustificadas acerca da lealdade ou da confiança
de amigos e associados.
3. É relutante em confiar nos outros, por medo injustificado de que a informa-
ção possa, de forma maliciosa, ser usada contra si.
4. Encontra humilhações ou ameaças ocultas em observações ou acontecimen-
tos inocentes.
5. Guarda rancores de forma persistente (i.e., não consegue esquecer ofensas,
injúrias ou indelicadezas).
6. Perceciona ataques ao seu caráter e reputação que não aparentes aos outros,
aos quais reage rapidamente com raiva ou contra-atacando.
7. Tem suspeitas recorrentes e injustificadas relativamente à fidelidade do côn-
juge ou parceiro sexual.
B. Não ocorre exclusivamente durante a evolução de esquizofrenia, perturbação
bipolar ou depressiva com características psicóticas ou outra perturbação psicótica, nem é devida aos efeitos fisiológicos diretos de outra condição médica.
Segundo o estudo realizado nos Estados Unidos da América denominado National Comorbidity Survey Replication, a prevalência estimada da perturbação de personalidade paranoide naquele país é de 2,3%, enquanto os dados de outra pesquisa norte-americana, o National Epidemiologic Survey on Alcohol and Related Conditions, apresentam uma prevalência de 4,4% para esta perturbação (American Psychiatric Association, 2013).
Caso Clínico
L.A. vem à consulta pelo desconforto e “raiva” que sente por as pessoas não lhe permitirem viver de forma livre. “Não me deixam em paz. Estão sempre à procura de me tramar”. Ao recorrer à terapia, espera ser compreendido e tenta “organizar as ideias”. “Esta situação já não me está a permitir viver o dia a dia tranquilo”, justifica. Os filhos são outra razão para ter procurado a terapia.
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Antecedentes Pessoais L.A., 40 anos, caucasiano, filho único, estudou até ao 12.º ano, na terra onde cresceu, Marinha Grande. Em seguida, foi estudar para Lisboa e tirou o curso de engenharia civil. Ingressou há 10 anos numa multinacional, onde se mantém. Ao longo do tempo, nunca estabeleceu uma relação muito próxima com os colegas de trabalho; a desconfiança permanente é uma marca no seu funcionamento. Contudo, no último ano, esta característica agravou-se, devido ao divórcio, que sucedeu em virtude da infidelidade da mulher. Este evento reforçou os seus conceitos distorcidos de como o mundo e as pessoas funcionam. O relacionamento sempre fora conturbado, marcado por desconfianças, devido também ao historial que o próprio evidencia da esposa, pois não seria a primeira vez que tal aconteceria na sua vida. É quase como uma profecia autorrealizável, em que procura a confirmação das suas verdades, à semelhança de como os esquemas disfuncionais operam na vida dos indivíduos. Aos seis anos, foi abandonado pelos pais na casa dos avós. Anteriormente, durante o tempo que permaneceu com os pais, foi negligenciado nos cuidados afetivos e práticos do dia a dia, sem regras, nem horários. Era como se fosse algo em casa e de vez em quando se lembravam dele. O afeto não era uma constante e sentia-se sozinho. Quando deixado, sentiu de forma mais forte a rejeição e procurou isolar-se, embora os avós tenham feito o possível para amenizar o impacto da perda. Nunca mais soube dos pais e sempre se perguntou o porquê de os mesmos o terem deixado, o que teria ele de “errado” para que tal acontecesse. Em termos de relacionamentos íntimos, teve uma namorada no liceu e depois uma na faculdade, com quem se casou e de quem tem dois filhos, um com 10 e outro com 12 anos, o que dificultou o processo de divórcio. Hoje já encontraram um acordo, embora não falem um com o outro. Têm estipulado pelo tribunal que de 15 em 15 dias os menores ficam o fim de semana com o pai, bem como nas férias. L.A. fala com a ex-sogra sobre a entrega das crianças e todos os outros assuntos necessários. Atualmente, vive sozinho. Desde que foi viver com os avós, nunca mais teve dificuldades económicas. Tem ainda algumas memórias, escassas, da altura em que viveu com os pais, que procura esquecer.
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Frequentou consultas de psicologia durante três anos, quando foi viver com os avós, uma vez que se isolava muito e reagia de forma muito agressiva. Nunca mais aderiu a nenhum tipo de tratamento, embora reconheça que deveria ter procurado ajuda mais vezes. Alicerça-se nos filhos, considerando que, pelo menos por eles, tem de procurar uma forma melhor de viver, mais adaptada. Esta asserção traz uma abertura e disponibilidade interior para se questionar quanto ao seu próprio funcionamento. Apresentação Clínica L.A. vem à consulta por iniciativa própria. Com apresentação cuidada, contacto hostil e retraído. O discurso é, por norma, rápido e direto, embora fluente. O pensamento é, por vezes, circunstanciado aos eventos que promovem desconfiança e à revolta perante a frustração com as respostas dos outros, prendendo-se na ruminação cognitiva. Apresenta orientação auto e alopsíquica, sem distúrbios a nível da memória; queixas a nível da capacidade de concentração no trabalho, humor depressivo; a nível dos afetos, manifesta ambivalência perante amigos e familiares, fruto das desconfianças em concomitância com o afeto que por eles nutre e a mágoa que surge de os mesmos o poderem estar a prejudicar; apresenta dificuldades na gestão emocional, reagindo com irritabilidade de forma frequente. A nível das relações interpessoais, reporta inúmeros conflitos, tanto com amigos e familiares, como com desconhecidos, dadas as interpretações disfuncionais inerentes ao quadro. A reatividade emocional também dificulta o desenvolvimento dos relacionamentos, bem como a mágoa associada às interpretações cognitivas do mundo envolvente. Toma uma atitude de afastamento e de evitamento, sem cultivar relações próximas, o que representa uma frustração das suas expetativas e confirma as suas ideias de desconfiança prévias, não tendo consciência de que promove essa interação relacional. Como fator de risco, reporta-se a negligência e abandono por parte dos pais quando tinha seis anos.
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Intervenção Psicológica A tomada de consciência, a flexibilização do funcionamento cognitivo e a alteração das crenças paranoides são importantes na intervenção dentro deste quadro, bem como a regulação emocional associada. Estes indivíduos têm tendência para sentimentos de vergonha pessoal, nomeadamente, em relação ao que os outros possam pensar de si, a que acrescem quadros com sintomatologia depressiva e ansiosa associada. O uso predisponente para a agressividade nos relacionamentos interpessoais, como forma de defesa pessoal, pode desenvolver-se de forma adaptativa, não lógica, numa perspetiva evolucionista, porque, num dado momento das suas vidas, necessitaram de adotar esta visão/estratégia para responder a ameaças sofridas de forma constante. Gilbert (1988, citado por Carvalho, 2012) refere a existência de um sistema primitivo de perceção-resposta, pelo que os indivíduos, perante uma ameaça, desenvolvem um processamento rápido e simplista, com base afetiva e, muitas vezes, de caráter inconsciente, caracterizando-se por uma simplificação percetual, heurística automática e rápida, hipervigilância, utilização limitada de recursos e categorização da informação, com enviesamento da atenção para determinados estímulos. Na primeira sessão, relata uma última situação, em que um alegado amigo, que para L.A. já não o era, lhe tinha perguntado como estava, algo que percecionaria como normativo, não fosse a suposição de que o mesmo estaria a tentar obter informações sobre um conflito que o próprio tinha e que lhe poderia trazer problemas. Objetivamente, o amigo não teria perguntado mais nada além do enunciado. O discurso era inicialmente confuso, pois L.A. não expressava a história completa, apenas parcial, o que dificultava a compreensão. O terapeuta (T) teve de intervir para conseguir uma clarificação sobre a história.
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T: Percebo que se encontra em desconforto e irritado com o seu amigo e com algo que aconteceu, contudo, para que o possa compreender melhor, pedia-lhe que fosse mais claro.
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L.A.: O Dr. tem a certeza de que isto não sai daqui? Que não tem aqui nada a gravar? Eles são terríveis, sabe? T: Percebo que agora, numa fase inicial, tenha dificuldade em confiar. Posso dizer-lhe que, efetivamente, não temos gravadores ou outra tecnologia que grave a nossa conversa. Embora lhe seja difícil, nesta altura, confiar, existem regras e normas em relação à confidencialidade do que aqui me transmite, no que respeita a este espaço de psicoterapia, sendo por isso um espaço seguro. Espero poder tranquilizá-lo neste sentido. L.A.: Desculpe lá, Dr. Eu, às vezes, exagero, parece que saio fora de mim, não me consigo controlar, acho sempre que algo se passa. T: Não se preocupe, vamos encontrando a melhor forma de comunicarmos e, se algo o incomodar, diga, que eu farei o mesmo. Estou aqui para o ajudar. Fala-me que, às vezes, exagera. Como assim, pode exemplificar com alguma situação? L.A.: Olhe, mesmo no trabalho. Vou a uma obra, estou a trabalhar normalmente, passam-me umas ideias e desconfio do trabalho da equipa. Depois, lá me chamam à atenção, porque é francamente exagero, e reconsidero. Embora fique aqui algo a moer-me a cabeça, eles ajudam-me a raciocinar e comprovo que, na realidade, as coisas não são assim. A capacidade de insight e o espaço que deu a si próprio para se questionar, e que começou, aos poucos, a dar também aos outros, permitiu avançar na exploração das crenças e das associações emocionais que vinham desde a infância. O receio de que outros lhe fizessem mal era expressa em cada situação diária. À medida que a terapia foi prosseguindo, com o estabelecimento da relação terapêutica, foi possível colocar a hipótese de outras interpretações, na intenção de desconstruir os esquemas e as crenças existentes e perceber o seu modelo do mundo. A empatia pela sua preocupação e aflição na vivência diária foi essencial para criar alguma confiança, a suficiente para aumentar a sua capacidade de expressão e de organização mental. Inicialmente, procedeu-se ao estabelecimento da relação terapêutica, aceitando-se a experiência vivenciada pelo paciente, bem como os sentimentos associados. 68
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O poder transformativo da psicoterapia Temos, hoje em dia, abundante evidência científica sobre a eficácia das intervenções psicoterapêuticas e podemos afirmar com confiança que somos capazes de aliviar muito do sofrimento humano causado por fatores psicossociais. Sabemos ainda que muitos outros elementos, como a pobreza, condições de vida difíceis, desigualdades sociais acentuadas, a discriminação, o preconceito, uma educação insuficiente e um sistema de justiça pouco desenvolvido, contribuem para um conjunto de perturbações psicológicas. A presença destas condições, desde tenra idade, contribui para um meio ambiente propício ao desenvolvimento de perturbações várias, entre as quais as perturbações de personalidade. Dada a sua natureza, as perturbações de personalidade representam um dos maiores desafios para a intervenção psicoterapêutica. A existência de padrões rígidos, estabelecidos precocemente e reforçados pelo contacto com o ambiente, cria uma forma de estar que resulta em pessoas que sofrem na interação com o mundo e que, normalmente, apresentam comorbilidades que acentuam o seu sofrimento e tornam mais desafiante o processo psicoterapêutico. As várias escolas de psicoterapia têm vindo a desenvolver intervenções que procuram responder à dificuldade deste tipo de perturbações, apresentando concetualizações e estratégias diferenciadas. É um trabalho em progresso, conscientes que estamos de que nos falta ainda muito conhecimento, investigação e prática. Mas os avanços são consideráveis, e com eles a possibilidade de alívio destas condições.
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O presente livro, da autoria de Dulce Pires, Márcio Pereira, Sónia Paiva e Carlos F. Silva, dá-nos uma perspetiva das possibilidades abertas à concetualização e intervenção nesta área. Podemos observar o quanto os diversos modelos terapêuticos têm dedicado atenção às perturbações de personalidade e também o esforço de criar modelos de integração, que procuram desenvolver intervenções baseadas em processos ou fatores comuns. Destaco como sendo de grande importância a inclusão de exemplos com casos clínicos e respetivas vinhetas ilustrativas, em que se transcrevem momentos das interações entre psicoterapeuta e paciente. No universo de publicação nesta área em Portugal, este tipo de abordagem é menos frequente e resulta em obras que, tendo um caráter teórico e concetual, deixam aos leitores todo um universo interpretativo de como pôr em prática os princípios enunciados. O formato que aqui se apresenta é o mais próximo que, por escrito, se pode ter de presenciar um excerto da sessão, um elemento que se dá a conhecer e une a intenção do psicoterapeuta, com a sua tradução em palavras para o paciente, e que também nos revela a recetividade à intervenção. Permite ainda dar conta das dúvidas e dificuldades expressas e introduzir formas de resolução. Por isso, é um modelo que tem um elevado valor didático e que faz destacar a presente obra. Estas ilustrações servem como exemplo, não para que os leitores os copiem, mas como fonte inspiracional para a intervenção que eles próprios terão de fazer, cientes de que necessitarão de fazer as adequadas transformações que tenham em conta as variáveis do paciente, mas também o estilo do psicoterapeuta. A inclusão de uma secção, em cada perturbação, com os desafios terapêuticos na intervenção justifica-se plenamente, porque é mesmo disso que se trata, uma realidade desafiante para a intervenção psicoterapêutica. Seja pela dificuldade em manter as pessoas num processo terapêutico, que será tendencialmente longo, seja pela existência de comorbilidade com perturbações do Eixo 1, que precisam de ser consideradas na intervenção. A edição por autores portugueses de uma obra sobre este tema é um contributo fundamental para as publicações psicológicas. Espero que esta obra possa ser lida e, sobretudo, aplicada às pessoas que procuram ajuda para o seu enorme sofrimento psicológico. Temos também de criar as condições para que as pessoas afetadas possam ter serviços de referência aos quais possam recorrer, para que não se perpetuem 196
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padrões de funcionamento que afetam de forma permanente a vida das pessoas. É crucial que os serviços se organizem para que possam, de modo diferenciado, prestar ajuda especializada por profissionais altamente qualificados. As perturbações de personalidade exigem esse tipo de profissionais, e este livro é um bom contributo para a sua formação. Professor Doutor Telmo Mourinho Baptista
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Professor na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa 1.º Bastonário da Ordem dos Psicólogos Portugueses
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