Prefácio de Eugénia Ribeiro Posfácio de Rosa Saavedra
ADULTOS
Coordenação
Sónia Caridade I Carla Fonte
Índice
Prefácio
O presente livro aborda a intervenção psicológica com adultos em duas áreas de especialidade da prática psicológica que, embora diferenciadas pela especificidade dos problemas que preferencialmente procuram resolver, se aproximam na atenção à experiência de sofrimento humano e à sua natureza multifatorial. Explicita também como estas duas áreas de intervenção, quer na sua especificidade quer nas suas zonas de interface, acreditam na flexibilidade e no potencial de mudança do ser humano, apesar de algumas das suas circunstâncias. Está organizado em torno de problemas prevalentes, sejam estes identificados a partir da patologia psicológica, social ou biopsicossocial, e de respostas baseadas na evidência científica, que fundamentam as boas práticas de avaliação/intervenção psicológicas.
Uma primeira leitura dos 14 capítulos que compõem esta obra sugeriu-me uma intencionalidade didática da prática psicológica de enorme relevância para estudantes de psicologia, profissionais em formação inicial ou que, em algum momento da sua vida profissional, sintam necessidade de aprofundar conhecimento, atualizar e sustentar a sua prática. A estrutura dos capítulos, ancorada na explicação teórica e empírica dos problemas abordados, em indicadores de prevalência e da sua relevância ao nível da saúde psicológica e de saúde pública e no fundamento científico para a avaliação e a intervenção propostas, seduz pela ilustração detalhada do processo de avaliação e intervenção com um caso real. Da minha prática como docente e supervisora na área da psicologia clínica, reconheço a dificuldade no acesso a fontes similares em língua portuguesa, legitimamente reclamadas pelos estudantes, motivo pelo qual considero que este livro é oportuno e cumpre também uma função académico-social relevante.
Uma meta leitura do conteúdo deste livro remeteu-me para uma reflexão sobre o sofrimento, sobre a complexidade da natureza e do desenvolvimento humano e sobre
como é crucial que a intervenção psicológica o reconheça. Independentemente da abordagem teórica à intervenção psicológica, entendo que inerente à prática psicológica está a convicção no potencial transformativo das pessoas com quem trabalhamos.
Considero também que para quem assume o papel de psicólogo, ainda que munido do conhecimento científico e de estratégias empiricamente validadas, é essencial o sentido de humildade no respeito pela complexidade da vida humana e pela individualidade de cada pessoa. A prática fundamentada e autorizada pelo conhecimento científico não pode descurar a responsividade das decisões clínicas, ou seja, “fazer a coisa certa no momento certo” exige uma atenção particular à pessoa que em nós (se) confia, às suas necessidades específicas e circunstâncias, bem como à sua evolução, de modo que a intervenção seja apropriada e atempada. A recusa de perspetivas tecnicistas alheias à compreensão humanista parece-me essencial a uma atitude profissional competente e respeitadora do sofrimento e da complexidade da vida das pessoas, que nos propomos ajudar com a chancela do conhecimento científico. Apropriando-me da premissa cunhada por Hipócrates “it is more important to know what kind of person has the disorder than to know what kind of disturbance the person has” (premissa citada ao longo dos anos por diferentes autores, nomeadamente Frank & Frank [1991]i e Norcross [2002]ii), saliento que a intervenção psicológica se faz com e para pessoas, pelo que importa lembrar que o contexto onde ocorre é interpessoal, multimodal, multissistémico e multicultural. Neste sentido, e em jeito de metáfora, julgo que a intervenção psicológica, eficaz, respeitadora do sofrimento e da potencialidade humana, deve ser praticada como uma “dança equilibrada” entre o nomotético e o ideográfico, entre o conhecimento científico e o conhecimento da(s) pessoa(s). Neste livro, a ilustração com casos práticos configura um bom exemplo desta “dança” e um convite a compreender a singularidade da pessoa alvo de intervenção, por detrás das comunalidades e da regularidade de padrões que a si se aplicam e que as teorias psicológicas organizam e significam.
Por último, aplaudo as Professoras Doutoras Sónia Caridade e Carla Fonte, pela iniciativa e coordenação deste livro, e todos os autores que contribuíram para a elaboração deste recurso bibliográfico, que será certamente útil para os psicólogos a exercer
i Frank, J. D., & Frank, J. B. (1991). Persuasion and healing: A comparative study of psychotherapy. JHU Press.
ii Norcross, J. C. (2002). Psychotherapy relationships that work. Oxford University Press.
a sua prática nas áreas da psicologia clínica e da justiça. A todos os estudantes de psicologia e psicólogos que têm interesse em conhecer e refletir sobre as complexidades da intervenção psicológica, convido a deixarem-se entusiasmar pela leitura deste livro.
Eugénia Ribeiro Professora auxiliar com agregação da Escola de Psicologia da Universidade do Minho
Nota Introdutória
O livro que se apresenta intitulado Intervenção Psicológica com Adultos surge na continuidade de uma publicação anterior, Intervenção Psicológica com Crianças e Adolescentes, nesta mesma coleção, “Intervenção em Psicologia”. O principal propósito destes dois manuais é o de compartilhar com os leitores algumas abordagens sobre a avaliação e a intervenção psicológicas com adultos, procurando-se apresentar e exemplificar os mais diversos problemas psicológicos/diagnósticos presentes em diferentes contextos profissionais da saúde mental. De forma mais específica, e à semelhança da obra anterior, procura-se contemplar as problemáticas que se afiguram como as mais recorrentes na prática clínica e da justiça, mas desta vez com adultos, estimulando o raciocínio clínico baseado nos dados obtidos pela avaliação psicológica e que permitirá alicerçar a intervenção psicológica empiricamente validada.
Investir na prevenção e na promoção da saúde mental/psicológica é uma inevitabilidade, na medida em que esta se constitui como uma dimensão capital no tecido económico, na sustentabilidade e na prosperidade da sociedade portuguesa (Ordem dos Psicólogos Portugueses [OPP], 2020i). A condição psicológica dos indivíduos poderá impactar nos mais diversos níveis de funcionamento, desde a sua produtividade e desempenho laboral/escolar, até à qualidade das interações sociais, ao envolvimento e sentido de comprometimento cívico e à qualidade de vida em geral. A emergência da pandemia causada pela COVID-19 (doença por coronavírus 2019, do inglês coronavirus disease 2019) permitiu acentuar este imperativo, salientando o importante papel da saúde mental/psicológica, seja ao nível da resiliência que se faz necessária para melhor i Ordem dos Psicólogos Portugueses [OPP]. (2020). Comentário Técnico e Contributo OPP: Estratégia de Resposta COVID-19 – Saúde Mental. Ordem dos Psicólogos Portugueses. https://www.ordemdospsicologos.pt/ficheiros/documentos/comentario_tecnico_saude_mental_covid_19.pdf.
lidar e gerir com as implicações do período pandémico na vida dos cidadãos, seja pelo impacto mental negativo que este problema de saúde pública impôs (OPP, 2020ii). Avaliar e intervir nos mais diversos problemas e perturbações de natureza psicológica é, pois, uma realidade inegável. O presente manual visa constituir um contributo de referência na orientação da prática psicológica neste âmbito.
Neste sentido, e considerando o cariz iminentemente prático e pragmático que se pretende incutir nesta obra, foram convidados a colaborar diferentes autores, com formação em psicologia e que, do conhecimento científico acumulado sobre a temática em discussão, possuem experiência prática/clínica neste domínio, de modo que se consiga retratar casos clínicos que traduzam a realidade social atual.
Com prefácio de Eugénia Ribeiro Pereira e posfácio de Rosa Saavedra, este livro é constituído por 14 capítulos, que se dividem em duas partes, correspondentes a dois contextos específicos de aplicação da psicologia: i) contexto clínico; e ii) justiça. Considerando o público-alvo a que se dirige este manual – estudantes e profissionais da área da psicologia – e o objetivo principal de providenciar ferramentas teóricas e práticas para a realização do ato psicológico com adultos, pretende-se conferir uma estrutura organizativa comum a todos os capítulos. Assim, cada capítulo inicia com uma breve contextualização teórico-conceptual das temáticas em análise, a que se segue a descrição do caso clínico selecionado, devidamente descaracterizado no sentido de preservar a identidade das pessoas, passando-se, depois, à secção relativa à descrição dos procedimentos de avaliação e intervenção numa lógica de step by step, de modo a melhor explicitar aquela que é a prática profissional e o papel no dia a dia de um psicólogo clínico e da justiça.
A primeira parte do manual engloba sete capítulos elaborados por psicólogos com trabalho reconhecido fundamentalmente na área da psicologia clínica.
Constituindo a depressão uma das condições da saúde mental mais frequentes e expressivas em todo o mundo, o Capítulo 1, da autoria de Carla Fonte e Marlene Ferreira, explora esta problemática que, apesar de em termos percentuais afetar mais mulheres, também se verifica nos homens, como no caso apresentado (M., advogado, 42 anos).
As autoras procuram detalhar a avaliação e a compreensão clínica do mesmo, descrevendo também a intervenção psicológica baseada na terapia focada nos esquemas
ii Ibidem.
(Young et al., 2003iii) enquanto abordagem integrativa. Na intervenção apresentada, procura-se responder à interação entre fatores de risco empiricamente suportados para depressão, como adversidade precoce, fatores cognitivos e interpessoais e patologia da personalidade, enquanto dimensões subjacentes que medeiam os efeitos da persistência da depressão, que poderão permanecer estáveis sem intervenção apropriada. E porque a ansiedade generalizada é igualmente uma perturbação que tem registado um aumento considerável e com particular impacto na qualidade de vida das pessoas, sobretudo nas do sexo feminino (American Psychiatric Association [APA], 2013iv), Alexandra Antunes, Liliana Ribeiro e Patrícia Vilas Boas iniciam o Capítulo 2 como uma descrição da prevalência e da incidência desta patologia, discorrendo igualmente sobre os mais diversos modelos explicativos existentes para melhor compreender a explicar a sua etiologia, progressão e mecanismos inerentes. A partir do caso prático de uma mulher adulta, M., 41 anos, as autoras, tendo por base o modelo cognitivo-comportamental, abordam as estratégias de avaliação, os métodos e as técnicas de intervenção utilizados com vista a diminuir a sintomatologia e a interferência desta perturbação na qualidade de vida de Maria, provendo-a ainda de competências e comportamentos mais adaptativos e eficazes para o dia a dia.
A perturbação obsessivo-compulsiva (POC) constitui outra patologia suscetível de comprometer de forma severa a vida dos indivíduos que dela padecem. Sendo uma patologia de difícil diagnóstico, quer pela dificuldade das pessoas em reconhecerem o problema e pedirem ajuda quer pela dificuldade dos profissionais na sua identificação, o processo de tratamento acontece, geralmente, de forma tardia. O autor João Tiago Oliveira, no Capítulo 3, procura detalhar as principais especificidades e desafios da POC, em termos de diagnóstico e intervenção, bem como o seu potencial impacto na vida das pessoas. A partir do caso de Matilde, professora, 36 anos, o autor mostra como uma abordagem cognitivo-comportamental focada na exposição com prevenção de resposta (EPR) poderá ser utilizada e viabilizada em doentes com POC, ajudando-os a lidar com o seu problema e promovendo a sua qualidade de vida.
iii Young, J. E., Klosko, J. S., & Weishaar, M. (2003). Schema Therapy: A Practitioner’s Guide. Guilford Publications.
iv American Psychiatric Association [APA]. (2013). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fifth Edition (DSM-5). American Psychiatric Association. https://doi.org/10.1176/appi. books.9780890425596.
No Capítulo 4, a autora Ana Cláudia Fernandes descreve um caso de perturbação de stresse pós-traumático (PSPT), com experiência de abuso sexual na infância e de violência pelo parceiro íntimo na idade adulta. Conforme documentado na literatura científica neste domínio, nos casos de abuso sexual infantil prolongado, a autora apresenta o processo de intervenção que pretende integrar e reabilitar as memórias traumáticas enquanto processo constituído por avanços e recuos. A intervenção psicológica descrita realça como “erguer as pontes” para o passado, o que permitiu restaurar o seu sentido de dignidade pessoal na vida presente.
A perda de uma pessoa próxima e significativa poderá ter um impacto profundo tanto na saúde física, como também na saúde mental, exacerbando-se na terceira idade por representar um contexto de múltiplas perdas. Tendo por base estas evidências, no Capítulo 5, Sofia Gabriel e Mauro Paulino, a partir de um caso prático de uma mulher com 65 anos de idade, aludem à importância do recurso à intervenção psicológica e individualizada em casos de luto em pessoas idosas.
A exposição prolongada das pessoas a tensões e pressões de natureza profissional ou ocupacional poderá conduzir a um estado de exaustão emocional física e mental comummente designado de burnout, tema aflorado, no Capítulo 6, por Ana Nunes da Silva. Partindo de um estudo de caso envolvendo uma psicóloga com experiência clínica em contexto hospitalar psiquiátrico, a autora aborda a importância de se recorrer a uma intervenção personalizada e ajustada às necessidades da cliente, sustentada numa abordagem integrativa, abrangente, flexível, responsiva e assente em constructos, processos e mecanismos transteóricos.
Já no Capítulo 7, Diana Duro e Mauro Paulino ressaltam a importância da intervenção psicológica em alterações neurocognitivas. Tendo por base um caso clínico envolvendo uma mulher de 38 anos, submetida a intervenção cirúrgica a um aneurisma não roto da artéria comunicante anterior esquerda, os autores colocam em evidência o papel determinante do profissional de psicologia com especialidade avançada em neuropsicologia nos serviços de neurocirurgia.
As temáticas relativas à avaliação e à intervenção que envolvem vítimas e pessoas ofensoras adultas, objetos específicos da área da psicologia da justiça constam da segunda parte deste livro, a qual contém igualmente 7 capítulos. Considerando alguns dos desenvolvimentos mais recentes desta área específica do conhecimento, foram selecionadas as temáticas de vitimação e agressão que comummente são alvo de intervenção pelos psicólogos da justiça, nos mais diversos contextos de atuação.
No capítulo 8, Ângela Maia, Carina Oliveira, Cristiana Santos, Joana Matos e Mariana Gonçalves focam as implicações que as experiências adversas e traumáticas na infância poderão ter no desenvolvimento do indivíduo e no impacto prolongado até à idade adulta. Considerar a história de trauma ocorrida ao longo das principais etapas desenvolvimentais, como são a infância e a adolescência, bem como os processos inerentes à avaliação e à intervenção psicológicas com adultos, constitui o mote principal deste capítulo, explicado a partir de um caso clínico de um jovem adulto do sexo masculino com uma história de trauma complexo.
Retratando também uma história de trauma complexo na infância mas de uma mulher adulta vítima, o Capítulo 9, da autoria de Mariana Gonçalves e Ângela Maia, apresenta e conceptualiza o caso de Maria, vítima de tráfico de seres humanos (TSH) para fins de exploração sexual. Considerando a situação de extrema vulnerabilidade em que Maria se encontra, aliada ao diagnóstico de trauma complexo, as autoras propõem uma intervenção faseada, de longo prazo, focada na recuperação do trauma e na sua ressignificação, promovendo a capacidade de Maria reconstruir a confiança em si mesma e nos outros.
Dando continuidade aos processos de vitimação e tendo em conta a dimensão preocupante e a particular mediatização que o assédio tem alcançado no contexto português mais recentemente, João Pedro Gomes, Patrícia Mendes e Marlene Matos elaboraram o Capítulo 10 a partir do caso de Francisca, 45 anos de idade, com uma história de assédio vivenciado. Neste capítulo, os autores começam por proceder a uma clarificação conceptual e enquadramento legal do assédio. Com base na sua experiência clínica e forense, bem como na literatura da especialidade sobre o tema, os autores apresentam uma proposta, aplicada ao caso concreto, que integra os modelos de intervenção em crise e cognitivo-comportamental.
A intervenção psicológica com pessoas agressoras reveste-se de igual importância, procurando-se, fundamentalmente, a sua reeducação e reabilitação e, com efeito, a diminuição do risco de reincidência criminal. De forma mais concreta, é fundamental interromper a conduta abusiva e criminal e incidir na modificação das cognições, das atitudes e dos comportamentos que a originaram. As reduzidas taxas de crimes sexuais praticados por mulheres, comparativamente com as dos homens e a perceção amplamente disseminada de que as mulheres não praticam crimes sexuais, aliado ao facto de este crime ocorrer fundamentalmente no contexto de cuidado, constituem fatores que têm interferido com a proliferação da investigação neste domínio e, de
forma mais particular, com o desenvolvimento de abordagens e programas específicos neste âmbito. Considerando as evidências de que as características e os fatores de risco em mulheres perpetradoras de crimes sexuais diferem dos dos homens, Bárbara Freitas, Sónia Caridade e Olga Cunha defendem, no Capítulo 11, a necessidade de se desenvolver uma intervenção adequada às necessidades específicas desta população ofensora feminina, tendo por base a proposta de Pflugradt e colaboradores (2018)v, a qual assenta numa abordagem genderizada.
Com base nas premissas de que, por um lado, a proteção às vítimas deverá constituir uma prioridade na intervenção com as pessoas agressoras e de que, por outro lado, existe necessidade de uma intervenção especializada para a prevenção do crime de violência doméstica, Iris Almeida, Rafaela F. Morgado e Ricardo Ventura Baúto apresentam, no Capítulo 12, o seu programa de intervenção psicológica dirigido a mulheres que praticam o crime de violência doméstica – o “CONSENSO” –, desenvolvido no âmbito das atividades do Gabinete de Psicologia Forense do Laboratório de Ciências Forenses e Psicológicas Egas Moniz.
Relativamente ao Capítulo 13, da autoria de Olga Cunha, Cláudia Gouveia e Rui Abrunhosa Gonçalves, o mesmo aborda também o crime de violência doméstica, mas recorrendo a um processo terapêutico de um indivíduo do sexo masculino que agrediu física e psicologicamente a sua companheira. A proposta de avaliação e intervenção neste caso orienta-se a partir do Programa de Promoção e Intervenção com Agressores Conjugais (PPRIAC; Cunha & Gonçalves, 2015vi), com base na terapia cognitivo-comportamental (TCC) e incorporando estratégias psicoeducativas e técnicas da entrevista motivacional.
Por fim, o Capítulo 14 trata o abuso sexual de crianças, enquanto grave problema de saúde pública, de elevada frequência e com consequências muito perniciosas para as vítimas, os seus familiares e a sociedade em geral. Inspirados no modelo integrativo de Marshall e Barbaree (1990)vii, Marta Sousa, Rui Abrunhosa Gonçalves e Andreia de
v Pflugradt, D. M., Allen, B. P., & Marshall, W. L. (2018). A gendered strength-based treatment model for female sexual offenders. Aggression and Violent Behavior, 40, 12-18. https://doi.org/10.1016/j. avb.2018.02.012.
vi Cunha, O., & Gonçalves, R. A. (2015). Efficacy assessment of an intervention program with batterers. Small Group Research, 60(4), 180-187. https://doi.org/10.1177/1046496415592478.
vii Marshall, W. L., & Barbaree, H. E. (1990). An Integrated Theory of the Etiology of Sexual Offending. In W. L. Marshall, D. R. Laws, & H. E. Barbaree (Eds.), Handbook of Sexual Assault. Applied Clinical Psychology (pp. 257-275). Springer.
Castro Rodrigues apresentam um estudo de caso que envolve um adulto condenado, com pena de prisão suspensa, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças na forma agravada, explicitando as diferentes estratégias e técnicas a adotar ao nível da avaliação e da intervenção psicológicas e salientando a importância do envolvimento do cliente no processo terapêutico e no seu bem-estar.
A diversidade ao nível da prática clínico-forense retratada nesta obra permite evidenciar o importante papel que o psicólogo desempenha na promoção da saúde mental/psicológica das pessoas e, com efeito, a sua contribuição para uma sociedade mais justa e para a redução das desigualdades sociais, da violência e do crime. De facto, é importante salientar que tal exige sempre, por parte do profissional de psicologia, um esforço constante de reciclagem e renovação das suas aptidões e saberes.
À semelhança do referido a propósito do manual de intervenção com crianças e adolescentes, reiteramos a nossa expectativa de que este livro, focado nos adultos, possa simultaneamente constituir uma ferramenta muito útil para a prática psicológica, nos contextos clínico e da justiça, e estimular a adoção de práticas empiricamente fundamentadas.
Sónia Caridade e Carla Fonte Coordenadoras1Intervenção Psicológica na Depressão: Um Caso Clínico no Masculino
Carla Fonte e Marlene Ferreira1.1 Introdução
A depressão é uma das condições da saúde mental mais frequentes e expressivas em todo o mundo, considerando-se que cerca de 5% da população sofra ou venha a sofrer desta patologia (Evans-Lacko et al., 2018; World Health Organization [WHO], 2017). Apesar de, em termos percentuais, mais mulheres serem afetadas pela depressão, este problema também se verifica nos homens (Cuijpers et al., 2020). Sendo uma perturbação comum, nem sempre os dados obtidos conseguem transmitir a dor e o sofrimento vivenciados na pessoa com depressão e em quem está à sua volta. Em termos gerais, caracteriza-se pela presença de um humor deprimido ou pela perda de prazer ou interesse em atividades durante longos períodos de tempo, sendo distinta das mudanças regulares de humor e de sentimentos sobre a vida quotidiana. Pode afetar todos os aspetos da vida, incluindo as relações com a família, os amigos e a comunidade e conduzir a problemas na escola e no trabalho (American Psychiatric Association [APA], 2014). Durante um episódio depressivo, uma pessoa experimenta um humor deprimido (sentir-se triste, irritável, vazio) durante a maior parte do dia, quase todos os dias, durante pelo menos 2 semanas. Outros sintomas também estão presentes, que podem passar por falta de motivação e cansaço ou fadiga. Além disso, é possível verificar alterações no peso corporal (ganho ou perda de peso significativo), alterações no sono (insónia ou hipersonia), agitação ou retardo psicomotor, sentimento de inutilidade ou culpa, baixa capacidade de concentração ou de tomada de decisão e/ou ideação suicida (WHO, 2017).
1.3.2 Instrumentos de Avaliação
1.3.2.1 Inventário de Sintomas Psicopatológicos
Perante o Inventário de Sintomas Psicopatológicos (BSI, do inglês Brief Symptom Inventory; Derogatis, 1982, versão portuguesa de Canavarro, 1999, 2007), M. apresenta alguma sintomatologia com valores clínicos significativos, comparativamente à média da população geral, nas dimensões de sensibilidade interpessoal (enquanto dimensão que se centra nos sentimentos de inadequação pessoal, inferioridade, particularmente na comparação com outras pessoas, autodepreciação, hesitação, desconforto e timidez durante as interações sociais) e depressão (os itens que compõem esta dimensão refletem o grande número de indicadores de depressão clínica, representados em sintomas de afeto e humor disfórico, perda de energia vital e falta de motivação e de interesse pela vida).
Quanto ao índice de sintomas positivos, o qual traduz a média da intensidade de todos os sintomas que foram assinalados, apresenta também um valor próximo da média da população geral, o que pode indicar que, de facto, os sintomas têm uma intensidade suficiente para interferir no bem-estar (neste caso, na autoimagem e na autoestima) e na funcionalidade (neste caso, relacional) de M.
1.3.2.2 Inventário de Depressão de Beck – Segunda Edição
No âmbito do Inventário de Depressão de Beck – Segunda Edição (BDI-II; do inglês Beck Depression Inventory – Second Edition; Beck et al., 1996, versão portuguesa de Brochado, 2013), a pontuação total de M. indicou uma intensidade de sintomas depressivos moderada.
1.3.3 Diagnóstico
De acordo com o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fifth Edition (DSM-5), M. preenche os critérios para perturbação depressiva major (APA, 2014,
p. 190). Do critério A estão presentes cinco sintomas, no mínimo necessários para o diagnóstico, presentes num período mínimo de 2 semanas: i) humor deprimido, sentir-se triste, vazio e sem esperança; ii) diminuição clara do interesse ou prazer em quase todas as coisas; iii) sentimentos de desvalorização e culpa excessiva ou inapropriada; iv) diminuição da capacidade de concentração e indecisão; e v) fadiga ou perda de energia quase todos os dias. Os sintomas causam mal-estar clinicamente significativo não são atribuíveis aos efeitos fisiológicos de uma substância ou de outra condição médica.
1.4 Formulação de Caso
Apresentar-se-á uma abordagem compreensiva cognitiva (Beck & Alford, 2009) e focada nos esquemas (Bishop et al., 2022; Young et al., 2008), que, no presente caso, parece providenciar uma explicação mais adequada à queixa mais significativa: a sintomatologia depressiva. Neste quadro conceptual, a exposição a eventos stressores de vida precoces, a frustração de importantes necessidades psicológicas e, a modelagem familiar criam os alicerces para a emergência dos esquemas mal-adaptativos precoces (Young, 2003). Todos estes fatores estão presentes na vida de M., que refere que as dificuldades profissionais que está a experienciar “foram o gatilho para que muitas coisas viessem ao de cima”, devido a uma série de dificuldades familiares que o vulnerabilizaram emocionalmente e o isolaram socialmente. Também o afastamento e a rejeição da mãe no período pós-separação dos pais, em ações desprovidas de empatia e apoio afetivo e até, por vezes, de desprezo, bem como a deslocação geográfica, acentuaram o sentimento de abandono por parte de M. A mãe, sendo uma pessoa autocentrada, que tece comparações negativas em relação seu pai de M., desencadeou em M. o desenvolvimento de esquemas nos domínios: da “desconexão e rejeição” (abandono/instabilidade, privação emocional, defectividade/vergonha, isolamento social); da “autonomia e desempenho prejudicados” (dependência/incompetência, vulnerabilidade, fracasso); da “orientação para o outro” (subjugação); e da “supervigilância e inibição” (inibição emocional), perpetuando a crença central “eu não tenho valor” (“Não sou digno de amor”). M. utiliza como estilos de coping principalmente o evitamento e a supercompensação, ao suprimir emoções, ao evitar o confronto com os outros e ao apegar-se à esposa, subjugando-se a ela, o que revela vulnerabilidade e fragilidade individuais
consideráveis. Os estilos de coping perpetuam os esquemas e desencadeiam, além da sintomatologia depressiva, muitas preocupações, devido ao facto de não conseguir dar resposta às suas responsabilidades futuras com a sua família, produzindo pensamentos automáticos como “A minha esposa vai fartar-se de mim, eu não tenho nada para lhe oferecer”, “Sou um incompetente” ou “Tudo me acontece”.
No âmbito das crenças nucleares, enquanto componente cognitivo dos esquemas, identificam-se em M. os seguintes temas:
“Não ser querido” – “Eu não tenho valor, “Eu sou indesejável”, “Eu não sou bom o suficiente”, “Pergunto todos dias à minha esposa porque é que ela gosta de mim.”, “Não sei o que há de bom em mim, o que sei foi porque a minha esposa disse, eu não vejo nada.”;
“Desamparo” – “Eu sou inadequado”, “Eu sou defeituoso”, “Sofri de bullying e comecei a acreditar no que diziam sobre mim. Não me respeitavam”.
Como crenças intermediárias, apontam-se as seguintes afirmações de M.: “É mau não ter valor”; “Se eu não tiver trabalho e dinheiro, não tenho valor”; “Se eu não tiver valor, fico sozinho”; “Se eu estiver com alguém, posso vir a ter valor”; “Mesmo que eu faça alguma coisa, não tem valor, é que toda a gente faz”; “Se eu trabalhar bem e ganhar dinheiro, poderei ter valor”; “Estar sozinho significa que eu não tenho valor”; “Vou agarrar-me a alguém para não ficar sozinho e isso significa que posso ter algum valor” (supercompensação); “Para não ficar sozinho [e certificar-me de que não tenho valor], é melhor não entrar em conflito com ninguém” (evitamento); e “Vou certificar-me do meu valor com alguém” (supercompensação).
Relativamente às distorções cognitivas e aos pensamentos automáticos:
Inferência arbitrária – “A minha esposa vai fartar-se de mim, porque eu não tenho nada para lhe oferecer” (ou seja, não tem valor);
Sobregeneralização – “O meu trabalho correu mal, tudo me acontece, eu não tenho sorte nenhuma” (ou seja, não tem sorte, porque não tem valor);
Abstração seletiva – “Sou um péssimo profissional, pois nem sequer sou capaz de solicitar aos meus clientes o pagamento que têm em dívida” (foca-se apenas no aspeto mais vulnerável, ou seja, as suas dificuldades profissionais, sem considerar tudo aquilo que tem de positivo);
Pensamento dicotómico – “Sinto que nada do que planeei está a dar certo e não estou a ver que vá dar; sinto-me um fracassado” (ou seja, se não consegue tudo como planeou, é um fracasso).
Em síntese:
Fatores precipitantes – as dificuldades profissionais e a situação laboral-social atual (insatisfação no trabalho, instabilidade profissional e financeira);
Fatores de risco:
A reação desprovida de empatia e apoio afetivo por parte da mãe após o divórcio dos pais e até, por vezes, de desprezo, bem como o seu afastamento geográfico, o que fez com que M. acentuasse o seu sentimento de abandono;
A depressão do pai (provável vulnerabilidade genética para M.);
O facto de M. ter sido vítima de bullying na adolescência.
Fatores de manutenção – os esquemas mal-adaptativos precoces e a relação distante e mal resolvida com a mãe;
Fatores de proteção – insight, frequência assídua nas consultas e motivação para a mudança, relação boa e de cuidado saudável com a esposa e o filho.
1.5 Intervenção Psicológica
A literatura tem demonstrado grande evidência acerca da eficácia que as psicoterapias cognitivo-comportamentais apresentam no tratamento da depressão (Barlow, 2016; Carr, 2016; Moniz, 2022; Strunk & DeRubeis, 2001; Wojnarowski et al., 2019). Subsequentemente, a psicoterapia focada nos esquemas (Young et al., 2003) tem sido proposta como um tratamento potencialmente eficaz para a depressão enquanto abordagem de tratamento integrativa, que considera a interação entre fatores de risco empiricamente suportados para depressão, como adversidade precoce, fatores cognitivos, patologia da personalidade e fatores interpessoais. Com base no corpo atual de evidências empíricas para os fatores de risco subjacentes à depressão (NICE, 2010), a psicoterapia focada nos esquemas parece ser uma abordagem de tratamento promissora para a depressão (Carter et al., 2018), pois atua diretamente sobre esses fatores de risco subjacentes que medeiam os efeitos dos eventos adversos da vida na persistência da
depressão, os quais poderão permanecer estáveis sem intervenção apropriada. Neste contexto, apresenta-se, nas Secções 1.5.1 e 1.5.2, a intervenção psicológica realizada no caso de M., alicerçada nos modelos psicoterapêuticos enunciados (Carter et al., 2013).
1.5.1 Objetivos da Intervenção
Face aos problemas e às necessidades apresentados por M., e tendo por base uma abordagem cognitivo-comportamental e focada no esquemas, delineiam-se os seguintes objetivos terapêuticos:
Estabelecer uma relação terapêutica, reforçando a motivação de M. para a intervenção psicológica e para a mudança;
Devolver a formulação de caso e sumariar o plano de intervenção;
Empoderar o cliente com informação sobre as suas dificuldades e respetiva origem;
Diminuir a sintomatologia depressiva;
Capacitar o cliente com estratégias de coping apropriadas para mitigar a sintomatologia depressiva;
Identificar e transformar esquemas e crenças centrais para mitigar a sintomatologia depressiva;
Promover o crescimento psicológico.
1.5.2 Métodos e Técnicas da Intervenção Realizados e/ou Propostos
Após três sessões de avaliação psicológica, foi realizada uma quarta sessão com o objetivo de devolver ao M. a formulação do seu caso (apresentada anteriormente) e sumariar o plano de intervenção, ao executar uma psicoeducação sobre a sua estrutura depressiva, esclarecendo e normalizando a sua presença, devido aos fatores precipitantes, de risco e de manutenção explicitados. Esta sessão pretendeu também empoderar o cliente com a informação acerca das suas dificuldades e socializá-lo no modelo explicativo da origem dos seus problemas, bem como da intervenção que iria servir de
Programa de Promoção e Intervenção com Agressores Conjugais (PPRIAC): Um Estudo de Caso
13.1 Introdução
Os programas de intervenção para perpetradores de violência em relações de intimidade, desde o seu surgimento em finais dos anos 70 do século xx (Cunha & Caridade, 2023), rapidamente se tornaram uma alternativa e/ou uma medida complementar ao sistema de justiça tradicional (Boots et al., 2016). Os modelos de intervenção disponíveis para perpetradores de violência em relações de intimidade que se encontram atualmente disponíveis são vários, contudo, os modelos psicoeducativos, frequentemente descritos como “modelo Duluth”, e os cognitivo-comportamentais são os mais utilizados nesta população (entre outros, Babcock et al., 2016; Ferraro, 2017). No entanto, estas classificações não são necessariamente rígidas, uma vez que muitos programas orientados pelos modelos Duluth integram componentes dos modelos cognitivo-comportamentais, e estes, por sua vez, integram elementos das abordagens feministas (Cunha & Caridade, 2023). Mais recentemente, as técnicas da entrevista motivacional têm-se também apresentado como uma importante alternativa à intervenção, apresentando resultados promissores no incremento da eficácia da intervenção com perpetradores de violência em relações de intimidade e na redução das taxas de abandono (Cunha et al., 2023a; Santirso et al., 2020; Silva et al., 2022), quer mediante uma intervenção isolada quer em conjunto com outros tratamentos (Butters et al., 2021; Silva et al., 2022).
pode tornar mais provável a ativação do comportamento violento, funcionando também como fator de manutenção. Outros fatores de manutenção do comportamento violento de Telmo podem incluir a sensação de impunidade devido à falta de responsabilização pelos seus comportamentos delitivos, bem como a normalização e a legitimação da violência perpetrada.
No entanto, existem também fatores de proteção na vida de Telmo, como estar a ser acompanhado num programa de intervenção psicológica para ofensores conjugais, ter uma filha com quem afirmou querer ter uma relação positiva, estar a ser acompanhado para o consumo de álcool e estar a iniciar uma atividade profissional. Estes fatores podem contribuir para a redução dos comportamentos violentos no futuro e para a promoção do bem-estar de Telmo.
13.4 Intervenção Psicológica
Telmo beneficiou de um processo de intervenção individual adaptada do PPRIAC, o qual é constituído por 24 sessões – seis individuais e 18 grupais –, realizadas numa base semanal. Este Programa estrutura-se numa lógica progressiva de mudança ao longo de cinco etapas: i) abordagem motivacional; ii) coesão grupal e motivação; iii) compreensão do fenómeno e das dinâmicas violentas; iv) promoção de competências emocionais, pessoais, comunicacionais e sociais; e v) finalização e prevenção da recaída (Tabela 13.3).
Etapa
Abordagem motivacional
Coesão grupal e motivação
Objetivos específicos
Promover a responsabilização pelo comportamento abusivo
Promover a motivação para a mudança
Promover o sentido de pertença grupal e a coesão grupal
Promover a motivação para a mudança
Posfácio
Este manual prático, desenvolvido com o intuito de auxiliar profissionais na intervenção psicológica junto de pessoas adultas, explora temáticas que comummente são alvo de intervenção pelas/os psicólogas/os em contexto clínico e da justiça, numa descrição dos procedimentos de avaliação e intervenção passo a passo, fundamental na análise e no planeamento das intervenções.
Enquanto psicólogas/os, fomos treinadas/os para acreditar firmemente numa intervenção empiricamente validada, alicerçada em evidências teóricas sólidas. Este manual incorpora abordagens que são validadas pela pesquisa científica, garantindo que as práticas sugeridas estão alinhadas com os padrões éticos e científicos da psicologia. Este enfoque não apenas valida o trabalho da/os profissional, mas também assegura às/aos clientes que são alvo de intervenções baseadas no que de mais atual há na ciência psicológica.
De seguida, irei destacar seis questões que me pareceram centrais após a leitura deste manual, ainda que, por defeito profissional, dê mais destaque às intervenções que têm foco no contexto da justiça, em especial junto de pessoas que experienciaram situações de violência e crime.
Intervenções informadas pelo trauma. A forma como as histórias de trauma na infância e na adolescência podem ser a “porta de entrada” para um desequilíbrio do funcionamento global e psicológico na vida adulta remete-nos não apenas para a necessidade de promover a qualidade do cuidado que se presta nestas idades mais precoces, como também para considerar, na avaliação e na intervenção psicológicas com adultos, potenciais histórias de trauma ocorridas na infância e na adolescência, sem descurar os processos que lhes poderão estar associados. O reconhecimento de que muitas das perturbações no domínio da saúde mental podem ter a sua origem em
experiências de vitimação múltipla e que percorrem diferentes fases do desenvolvimento é de suma importância e pode ser o ponto de viragem no processo de ressignificação da história de vida. Mais ainda, este reconhecimento abre espaço para a validação da experiência de vitimação (também do ponto de vista legal), em algumas circunstâncias, a sua desocultação e o seu processamento, restaurando alicerces inevitavelmente abalados pela experiência de vitimação: a confiança em si e nos outros; a segurança; o sentimento de controlo em relação à sua própria vida; entre outros.
O estabelecimento da relação. A relação terapêutica é um elemento-chave do processo, particularmente quando estão subjacentes situações de violência ou de crime que nunca foram reveladas. A atitude de disponibilidade para a escuta e a demonstração de aceitação e compreensão empática, em respeito pelo ritmo da autorrevelação, são elementos fundamentais para a adesão ao processo. Destaco a importância da empatia e da construção de uma aliança terapêutica sólida, reconhecendo que, por mais técnicas e habilidades que possamos oferecer, a verdadeira mudança acontece quando profissional e cliente se unem num vínculo genuíno de compreensão e colaboração.
A empatia constituiu uma ferramenta poderosa na intervenção, desempenhndo um papel central nos processos de mudança e recuperação.
A duração da intervenção. A intervenção psicológica exige investimento para poder ser eficaz; o processo de integração das experiências traumáticas pode ser longo e, por isso, é muito importante, que a/o cliente tenha consciência (quando consente a intervenção) de que este processo pode, numa primeira fase, provocar o agravamento de alguns sintomas. Sem este enquadramento, qualquer retrocesso pode ser entendido como insucesso e conduzir a uma precoce interrupção da intervenção, deixando a/o cliente numa situação de maior vulnerabilidade. Mais grave ainda, este abandono pode desacreditar a capacidade de uma intervenção psicológica poder ser, de facto, geradora da mudança desejada.
O respeito pela diversidade cultural. A atenção e o respeito pela diversidade, manifesta através do desenvolvimento e do treino de competências culturais. Estas competências permitirão que as/os profissionais, à luz das características individuais da pessoa, sejam capazes de compreender a manifestação dos sintomas e as diferentes formas de expressar o sofrimento. A interpretação pessoal e o significado que a mesma atribui à sua narrativa, à luz do contexto social e cultural no qual cresceu e vive, são essenciais neste entendimento. Esta não consciência por parte por parte da/do
psicóloga/o pode conduzir, ainda que inadvertidamente, a fenómenos de discriminação ou julgamentos de valor.
O princípio da competência. Por mais aliciante que replicar os modelos e as intervenções aqui descritas possa ser, do ponto de vista ético, há um princípio geral que tem de ser respeitado e que é, precisamente, o princípio da competência. De acordo com este princípio, “as/os psicólogas/os têm como obrigação exercer a sua atividade de acordo com os pressupostos técnicos e científicos da profissão, a partir de uma formação pessoal adequada e de uma constante atualização profissional, de forma a atingir os objetivos da intervenção psicológica. De outro modo, acresce a possibilidade de prejudicar a/o cliente e de contribuir para o descrédito da profissão”1. Muitas vezes, nas mais diversas circunstâncias, partimos do pressuposto (errado) de que fazer alguma coisa é melhor do que não fazer nada, e esta perceção “alimenta” a realização de atuações que, não estando robustecidas pela formação técnica da/do profissional, podem, de forma negligente e irremediável, causar dano.
A acessibilidade dos recursos de apoio psicológico. Garantir a acessibilidade dos serviços de apoio psicológico para todas as pessoas, independentemente da sua condição socioeconómica, localização geográfica, identidade cultural ou qualquer outra característica, é fundamental para promover a igualdade de oportunidades no cuidado da saúde mental e para garantir que ninguém seja deixado para trás.
Em 2021, com o objetivo de colmatar as necessidades de serviços de apoio especializado, privilegiando abordagens psicoterapêuticas focadas no trauma, a Secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade lançou um concurso com a dotação de 2788 milhões de euros para o reforço do apoio psicológico e psicoterapêutico para crianças e jovens vítimas de violência doméstica atendidas e/ou acolhidas na Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica (RNAVVD), no âmbito do Programa Operacional Inclusão Social e Emprego (PO ISE). Sem questionar este esforço, absolutamente inquestionável, interrogo porque não foi também ponderada a necessidade de alargar este apoio para as vítimas adultas ou para as pessoas com fragilidades ao nível da sua saúde mental, fruto de experiência passada de vitimação na infância e na adolescência.
1 Ordem dos Psicólogos Portugueses [OPP]. (2021). Código Deontológico da Ordem dos Psicólogos Portugueses. Ordem dos Psicólogos Portugueses.
A prevalência das perturbações mentais, na Europa e em Portugal, é preocupante. Estima-se que, na Europa, as perturbações mentais afetem mais de um terço da população. Contudo, os dados de procura de ajuda nos serviços públicos de saúde mental, pelo seu caráter residual (1,7%), são ainda mais preocupantes2. É urgente a criação de redes comunitárias que aumentem a limitada capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde através de respostas comunitárias que sejam certificadas para este efeito e que possam colmatar a insuficiência de respostas, aproximando a saúde mental de todas as pessoas.
Para terminar, reforçar que cada pessoa é única, e o mesmo se aplica às abordagens terapêuticas eficazes. As/Os profissionais devem a explorar e adaptar, sempre no limite das suas competências, essas abordagens de acordo com as necessidades individuais das pessoas, reconhecendo a diversidade como uma força na prática psicológica.
A intervenção psicológica traz consigo uma responsabilidade incontroversa, e este manual não ignora os desafios éticos que as/os profissionais enfrentam. Convida a uma reflexão contínua sobre a prática profissional, sobre o contínuo aprimorar das competências e sobre o questionar de preconceitos em todas as interações terapêuticas. Deixemo-nos guiar por este convite. Que cada reflexão seja um passo significativo para o nosso crescimento enquanto pessoas e enquanto profissionais.
Rosa Saavedra
Assessora técnica da direção da APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima
Professora auxiliar convidada da Faculdade de Direito da Universidade do Porto Doutorada e licenciada em Psicologia pela Universidade do Minho Membro do CIJ – Centro de Investigação Interdisciplinar em Justiça Especialista em Psicologia Clínica e da Saúde e em Psicologia do Trabalho, Social e das Organizações, com especialidades avançadas em Psicologia da Justiça e Psicologia Comunitária pela Ordem dos Psicólogos Portugueses
2 Ordem dos Psicólogos Portugueses [OPP]. (2013). Investir na Saúde Mental através da Intervenção Psicológica. Ordem dos Psicólogos Portugueses.
Depressão . Perturbação de Ansiedade Generalizada . Perturbação Obsessivo-Compulsiva . Perturbação de Stresse Pós-Traumático . Luto em Pessoas Idosas . Burnout . Alterações Neurocognitivas . Adultos Vítimas de Trauma Complexo na Infância . Vulnerabilidade . Adultos Vítimas de Assédio . Mulheres Perpetradoras de Crimes Sexuais . Violência Doméstica no Feminino . Programa de Promoção e Intervenção com Agressores Conjugais . Comportamento Sexual Desviante Contra Crianças
Este livro, estruturado num conjunto vasto de casos clínicos cujos temas representam as problemáticas mais recorrentes da prática da psicologia clínica e da justiça, tem como objetivo principal providenciar ferramentas teóricas e práticas para a realização do ato psicológico com adultos.
Cada capítulo inicia com uma breve contextualização teórico-conceptual das temáticas em análise, a que se segue a descrição do caso clínico selecionado, sendo posteriormente apresentada a secção relativa à descrição dos procedimentos de avaliação e intervenção psicológica numa lógica de step by step, clarificando aquela que é a prática profissional e o papel no dia a dia de um psicólogo clínico e da justiça.
Tendo como público-alvo estudantes e profissionais da área da psicologia, a presente obra foi escrita por diversos autores com experiência académica, de investigação, mas também com experiência profissional relevante e evidencia o importante papel que o psicólogo desempenha na promoção da saúde mental/psicológica das pessoas e, com efeito, a sua contribuição para uma sociedade mais justa.