Agradecemos à Alfasigma por, com o patrocínio desta edição, ter proporcionado a divulgação desta obra junto da classe médica.
O
Coordenador
Gastrenterologia Oncológica para Medicina Geral e Familiar
Coordenação:
Mário Dinis-Ribeiro
Autores
COORDENADOR/AUTOR
Mário Dinis-Ribeiro
Assistente graduado sénior de Gastrenterologia e diretor do Departamento de Medicina do Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil, EPE, onde dirigiu o Serviço de Gastrenterologia entre 2014 e 2023, foi diretor do internato entre 2006 e 2013 e da Escola Portuguesa de Oncologia do Porto entre 2009 e 2011. Doutorado em 2005 com agregação em 2009, pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, onde é professor catedrático convidado desde 2014. Coordenador de um grupo de investigação do Centro de Investigação do Instituto Português de Oncologia do Porto e subcoordenador da Linha Cancro do RISE. Tesoureiro da World Endoscopy Organization, presidente-passado da European Society of Gastrointestinal Endoscopy e co-editor-in-chief do jornal Endoscopy. Venceu o Prémio Bial de Medicina Clínica em 2018.
AUTORES
Catarina Brandão
Assistente hospitalar graduada de Gastrenterologia do Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil, EPE, onde é diretora do Serviço de Gastrenterologia desde 2023.
Cláudia Marques Pinto
Interna de Formação Especializada em Gastrenterologia do Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil, EPE (2019-2023).
Diogo Libânio
Assistente hospitalar de Gastrenterologia do Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil, EPE. Professor auxiliar convidado da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Mestre em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Editor-chefe do GE – Portuguese Journal of Gastroenterology
Inês Marques de Sá
Assistente hospitalar de Gastrenterologia do Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil, EPE.
Inês Pita
Interna de Formação Especializada em Gastrenterologia do Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil, EPE (2017-2021).
Jéssica de Lima Chaves
Interna de Formação Especializada em Gastrenterologia do Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil, EPE.
Pedro Bastos
Assistente hospitalar graduado de Gastrenterologia do Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil, EPE (2015-2023).
Pedro Pimentel-Nunes
Assistente hospitalar graduado de Gastrenterologia do Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil, EPE (2012-2022). Professor associado convidado de Fisiologia da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.
Raquel Ortigão
Interna de Formação Especializada em Gastrenterologia do Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil, EPE.
Rui Silva
Assistente hospitalar graduado de Gastrenterologia do Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil, EPE (1998-2023).
Teresa Pinto-Pais
Assistente hospitalar de Gastrenterologia do Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil, EPE (2015-2023).
Prefácio
A Medicina nasce da necessidade ancestral de ultrapassar a inevitabilidade das doenças. Durante muitos séculos, as doenças infeciosas foram o foco da atenção, na medida do seu impacto tanto na morbilidade como na mortalidade. O aparecimento das vacinas e dos antibióticos, juntamente com a melhoria da higiene e das condições de vida, justificaram o fenómeno de transição epidemiológica, com diminuição da sua prevalência e aumento das doenças crónicas degenerativas, já não relacionadas com fatores externos, mas fundamentalmente com uma acumulação ao longo do tempo de pequenos distúrbios, chamados fatores de risco, isoladamente incapazes de provocar doença, mas no conjunto – e na continuidade – geradores de alterações significativas de órgãos e sistemas, estas, sim, com relevância prognóstica na longevidade, na funcionalidade e na qualidade de vida.
Nesta transição, a doença cardiovascular surgiu como dominante do ponto de vista epidemiológico, o que justificou o esforço de investigação e desenvolvimento que se verificou após a Segunda Guerra Mundial e que levou à inflexão das curvas de incidência, sobretudo em idades precoces, com impacto significativo na mortalidade. Com o decréscimo da doença cardiovascular e o consequente aumento da esperança de vida, aumentou a incidência da doença oncológica, que se tornou na primeira causa de morte na população abaixo dos 70 anos e na segunda causa na população geral. Em Portugal, segundo os dados disponíveis de 2021, as neoplasias representam 23% da mortalidade geral e 40% da mortalidade prematura, ultrapassando desde 1994 a doença cardiovascular no grupo abaixo dos 70 anos.
São números impressionantes os dos 28 282 portugueses que morreram por neoplasias em 2021 e que nos roubaram mais de 110 000 anos de convívio com os nossos concidadãos, familiares e amigos. Desafiam-nos a aproveitar as oportunidades preventivas potencialmente capazes de alterar o atual paradigma. Cerca de metade dos determinantes de saúde estão associados a comportamentos passíveis de modificação. Numa perspetiva de investimento futuro, promover a saúde devolve um retorno significativo em sobrevida, em qualidade de vida e em sustentabilidade económica e deve ser uma prioridade nacional.
Mas reduzir o significado da doença oncológica à contagem dos casos ou à sua letalidade é desvalorizar o contexto das pessoas que vivem com o diagnóstico de cancro. A doença oncológica é mais do que uma alteração celular que “fugiu” à rede vigilante do sistema imunológico. Cancro é uma palavra que representa malignidade, num significado simbólico que ultrapassa largamente a habitual semântica médica. É uma palavra que se associa a amputação, dismorfia, dor, incapacidade permanente, sofrimento e morte. Percebendo-o, percebemo-nos na nossa própria missão, enquanto médicos dedicados às pessoas que carregam o peso deste diagnóstico, na necessidade de proporcionar a orientação e o tratamento mais adequados, acessíveis e em tempo útil e ao mesmo tempo de criar condições de acessibilidade, humanização, partilha de cuidados e de responsabilidades, comunicação efetiva e verdadeira colaboração.
É isto que a sociedade nos pede e é esta a base do nosso exercício, prevenindo a doença, lidando com ela quando aparece, com as suas consequentes sequelas e, no fim da vida, com a inevitabilidade da própria morte.
Este livro de Gastrenterologia Oncológica foca os diagnósticos mais comuns nesta área que representa cerca de um terço da mortalidade por doença oncológica em Portugal, procurando uma abordagem prática capaz de ser uma ferramenta com utilidade no dia a dia para qualquer médico que seja chamado a lidar com pessoas portadoras de um cancro gastrointestinal. É uma tarefa fundamental na complexidade da Medicina Geral e Familiar, chamada a gerir um conjunto alargado de problemas de saúde num mesmo tempo e numa abrangência que ultrapassa a simples presença ou ausência de doença para uma perspetiva holística de integração do todo biopsicossocial e percebendo o indivíduo em continuidade e no seu contexto familiar e comunitário. Nesta relação de proximidade e de grande intimidade, a pessoa, mais do que a sua doença, aparece no centro da decisão, na qual se incluem os aspetos epidemiológicos, culturais, políticos, económicos, educativos e sociais. É esta integração, entre o melhor conhecimento existente, os valores da pessoa, as suas expectativas, medos e inseguranças e a experiência do médico, também chamada senso clínico, que permite a excelência da Medicina baseada efetivamente na evidência.
E, no final do dia, apenas interessa percebermos que fizemos o nosso melhor, curando quando possível, aliviando quando necessário e consolando sempre, como aprendemos desde a nossa própria fundação enquanto médicos.
Paulo Santos Professor de Medicina Geral e Familiar da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto
Edições Técnicas
técnica, a parede do tubo digestivo é invaginada para dentro de uma cap longa com o auxílio de uma pinça, sendo libertado um clip que proporciona uma duplicação da parede digestiva (aposição serosa-serosa), o que permite a ressecção transmural da parede com risco muito baixo de perfuração. No entanto, como esta técnica é recente, não está ainda amplamente disponível e apresenta a limitação de apenas permitir a ressecção em bloco de lesões com um tamanho máximo de 20 mm.
PALIAÇÃO
A endoscopia digestiva representa apenas uma pequena parte do espectro de intervenções, medicações e apoios psicológicos, religiosos e sociais existentes para ajudar a preservar a qualidade de vida, a autodeterminação e a autoestima na fase final da vida. Entre os principais objetivos da paliação endoscópica nestes doentes, encontram-se o alívio da obstrução do fluxo biliar e o alívio do tubo digestivo, sendo que ambos constituem aspetos essenciais em termos de qualidade de vida.
A endoscopia digestiva é, desde há alguns anos, frequentemente utlizada na paliação das neoplasias esofágicas e das vias biliares e, mais recentemente, das obstruções de saída gástrica e do cólon. Nas neoplasias do esófago e da cárdia, o objetivo terapêutico da paliação passa pelo alívio da disfagia, com consequente melhoria do estado nutricional e redução do risco de aspiração. A colocação de próteses metálicas autoexpansíveis (PMAE) é atualmente o método de eleição na abordagem paliativa destes doentes, permitindo um alívio rápido e eficaz da disfagia com uma taxa de sucesso >90%. Da mesma forma, nas lesões obstrutivas de saída gástrica e do cólon, as PMAE constituem uma alternativa menos invasiva e com menor taxa de complicações imediatas do que a gastrojejunostomia cirúrgica ou a colostomia, com uma estadia hospitalar mais curta e, no caso da obstrução gastroduodenal, com um início mais precoce da alimentação oral. Também em relação às vias biliares, a colocação de endopróteses plásticas ou metálicas permite tratar ou prevenir a colangite, aliviar o prurido e melhorar o estado nutricional e a qualidade de vida dos doentes de forma menos invasiva e com menos complicações imediatas do que com a cirurgia.
Nos doentes sem indicação para introdução de prótese, a colocação de uma gastrostomia endoscópica percutânea (PEG, do inglês percutaneous endoscopic gastrostomy) é uma técnica relativamente simples e segura e que deve ser considerada sempre que houver necessidade de nutrição entérica por um período >4 semanas. A indicação mais comum para a gastrostomia passa pelas neoplasias da cabeça e pescoço com incapacidade dos doentes para se alimentarem devido à obstrução pelo tumor ou secundária a complicações dos tratamentos de cirurgia e radioquimioterapia.
Em resumo, as técnicas de paliação endoscópica disponíveis são eficazes e conseguem melhorar a qualidade de vida dos doentes. No entanto, a decisão de tratamento deve ser sempre bem equacionada, em função dos objetivos a atingir e das suas limitações, devendo a decisão ser tomada de forma interdisciplinar e em conjunto com o doente. Deve-se ter sempre presente que a terapêutica conservadora poderá ser preferível em doentes debilitados e com expectativa de vida limitada, devido ao risco de complicações e ao reduzido ganho em termos de qualidade de vida e sobrevida.
História familiar de neoplasias digestivas
Critérios clínicos:
– Critérios de Bethesda revistos, que consideram a idade <50 anos, os casos de cancro colorretal síncronos e metácronos, a histologia sugestiva e a história familiar. Têm uma sensibilidade de 82% e uma especificidade de 77%, estando recomendadas a pesquisa de instabilidade de microssatélites ou imuno-histoquímica de alterações da expressão das proteínas codificadas pelos genes mutados associados à síndrome de Lynch;
– Critérios de Amesterdão (Quadro 3.1), que integram, genericamente, a regra 3:2:1, ou seja, três familiares atingidos (um familiar em 1.º grau), duas gerações e um indivíduo atingido com idade <50 anos com neoplasias do espectro da síndrome de Lynch. Pela sua elevada especificidade (98%), o cumprimento destes critérios impõe a pesquisa direta da mutação germinativa no sangue;
– Ferramentas clínicas de cálculo de risco de cancro colorretal (por exemplo, Colorectal Cancer Risk Assessment Tool), que integram também a história pessoal e familiar de cancro colorretal ou pólipos, o número de familiares atingidos e a idade jovem de diagnóstico (< 50 anos). Também neste caso está recomendada a pesquisa direta de mutação germinativa.
Rastreio universal – esta estratégia baseia-se na pesquisa de instabilidade de microssatélites ou de alteração da expressão por imuno-histoquímica das proteínas associadas aos genes mutados na síndrome de Lynch, em todos os casos de cancro colorretal diagnosticados, independentemente de existirem ou não critérios clínicos. Esta estratégia tem uma sensibilidade de cerca de 85% e uma especificidade de 90% para esta síndrome e acresce em cerca de 30% nos diagnósticos, quando comparado com os critérios de Bethesda. Está comprovada uma redução da morbilidade e da mortalidade, tratando-se ainda de uma estratégia custo-eficaz;
Modelos preditivos computorizados – nos indivíduos sem história pessoal de cancro mas com história familiar sugestiva de Lynch, está recomendada a aplicação de modelos computorizados validados [por exemplo, PREdiction Model for gene Mutations (PREMM)], disponíveis online, com elevadas sensibilidade e especificidade e que, na presença de uma probabilidade >5%, impõem a realização de pesquisa de mutação germinativa no indivíduo em avaliação.
Quadro 3.1 – Critérios de Amsterdão II.
• Pelo menos três familiares com uma neoplasia associada à síndrome de Lynch (cancro colorretal, do endométrio, do intestino delgado, do trato urinário) – verificados histologicamente. Um deles ser familiar de 1.º grau dos outros dois
• Duas gerações consecutivas afetadas
• Pelo menos um familiar diagnosticado antes dos 50 anos
• Exclusão de polipose adenomatosa familiar
A vigilância destes doentes tem como objetivo a prevenção ou o diagnóstico precoce destas neoplasias e, quando possível, a redução da sua incidência e mortalidade.
É recomendada a realização de colonoscopia para vigilância de cancro colorretal a partir dos 25 anos de idade em doentes portadores de mutação nos genes MLH1 ou MSH2 e a partir dos 35 anos nos portadores de mutações nos genes MSH6 e PMS2. A vigilância poderá iniciar-se mais precocemente se houver um familiar mais jovem com diagnóstico de cancro
Doença de refluxo gastroesofágico e esófago de Barrett
Inês Marques de Sá, Mário Dinis-RibeiroINTRODUÇÃO
A doença de refluxo gastroesofágico é considerada a principal doença crónica do tubo digestivo, com uma prevalência estimada de 10-20% quando considerada como um ou mais episódios por semana de pirose ou regurgitação. no entanto, a estimativa exata da prevalência de doença de refluxo gastroesofágico é difícil, visto muitos doentes, incluindo doentes com esófago de Barrett, serem assintomáticos.
Com o aumento da prevalência da obesidade em Portugal, prevê-se um aumento concomitante da doença de refluxo gastroesofágico e das suas complicações, nomeadamente esófago de Barrett e adenocarcinoma esofágico. Em Portugal, a prevalência nacional de doença de refluxo gastroesofágico foi estimada em 34,7% (IC95% 27,8-42,3) e de esófago de Barrett em 1,29% (0,73-1,85).
DOENÇA DE REFLUXO GASTROESOFÁGICO
O refluxo gastroesofágico é um mecanismo fisiológico que consiste na passagem do conteúdo gástrico para o esófago, na ausência de vómito, ocorrendo tipicamente após as refeições, sendo de curta duração e assintomático. O refluxo patológico é consequência do desequilíbrio entre a barreira antirrefluxo e os fatores agressores que refluem do estômago, estando associado a sintomas e/ou lesões da mucosa esofágica, de órgãos do sistema aerodigestivo ou do sistema respiratório inferior. Deste modo, a doença de refluxo gastroesofágico é uma condição que se desenvolve quando o refluxo de conteúdo gástrico provoca sintomas e/ou complicações, mas não necessariamente inflamação esofágica. Por sua vez, a esofagite de refluxo consiste num subgrupo de doentes com doença de refluxo gastroesofágico com evidência endoscópica ou histológica de inflamação esofágica. De facto, apenas 30% dos doentes com doença de refluxo gastroesofágico apresentam esofagite endoscópica. Neste sentido, a doença de refluxo gastroesofágico é classificada em erosiva e não erosiva. Enquanto a doença de refluxo gastroesofágico erosiva tende a ocorrer em doentes do género masculino, com idade avançada, excesso de peso e hérnia de hiato, a doença de refluxo gastroesofágico não erosiva tende a ocorrer em doentes do género feminino, magras e sem hérnia de hiato. A doença de refluxo gastroesofágico não erosiva, por sua vez, subclassifica-se em verdadeira doença de refluxo gastroesofágico não erosiva (true non-erosive reflux disease), hipersensibilidade ao refluxo e pirose funcional.
De acordo com a classificação de Montreal, a doença de refluxo gastroesofágico divide-se em síndromes esofágicas e síndromes extraesofágicas (Figura 4.1): no âmbito das síndromes esofágicas, incluem-se síndromes sintomáticas e síndromes com lesão esofágica; já as síndromes extraesofágicas abrangem associações estabelecidas e associações propostas de acordo com a evidência de causalidade.
Síndromes esofágicas
Síndromes sintomáticas
• Síndrome de refluxo típico
• Síndrome de dor torácica associada ao refluxo
Doença de refluxo gastroesofágico
Síndromes com lesão esofágica
• Esofagite de refluxo
• Estenose
• Esófago de Barrett
• Adenocarcinoma
Figura 4.1 – Classificação de Montreal.
Etiologia E fatorEs dE risco
Síndromes extraesofágicas
Associações estabelecidas
• Tosse crónica
• Laringite
• Asma
• Cáries e erosões dentárias
Síndromes com lesão esofágica
• Sinusite
• Fibrose pulmonar
• Faringite
• Otite médica recorrente
Diferentes fatores de risco para a doença de refluxo gastroesofágico e para as suas complicações têm sido descritos, alguns com associações fracas e inconsistentes entre estudos. Apesar de o género masculino, a idade avançada e a raça caucasiana não serem fatores de risco para doença de refluxo gastroesofágico, estes fatores estão associados a maior risco de complicações da doença de refluxo gastroesofágico. A hérnia de hiato e a obesidade, sobretudo a obesidade central medida pela razão cintura-quadril, são importantes fatores de risco não só para doença de refluxo gastroesofágico, como também para as suas complicações, como esofagite erosiva, esófago de Barrett e adenocarcinoma esofágico.
PatogénEsE
A patogénese da doença de refluxo gastroesofágico é complexa, envolvendo fatores protetores (anatómicos, fisiológicos e histológicos) e fatores agressores (de origem gástrica e duodenal).
Anatomicamente, a pressão do esfíncter esofágico inferior, a sua localização intra-abdominal, o pilar diafragmático e o ângulo de His constituem barreiras antirrefluxo. A presença de hérnia de hiato promove o refluxo gastroesofágico, ao comprometer algumas destas barreiras antirrefluxo: deslocação do esfíncter esofágico inferior para a cavidade torácica de menor pressão; perda de sobreposição entre o esfíncter esofágico inferior e o pilar do diafragma; e criação de uma área de mucosa gástrica (acid pocket), cuja produção de ácido não é neutralizada pelos alimentos. Por sua vez, a peristalse esofágica e a secreção das glândulas salivares e das glândulas da submucosa do esófago contribuem fisiologicamente para eliminar e neutralizar o refluxo gastroesofágico, minimizando o tempo de contacto do mesmo com a mucosa esofágica. A lesão da mucosa esofágica pelo refluxo gastroesofágico é ainda minimizada pela resistência tecidular, que engloba mecanismos histológicos de defesa pré-epitelial (presença de muco), epitelial (epitélio escamoso espesso de 25-30 camadas de células e junções intercelulares apertadas) e pós-epitelial (vascularização).
podem ter sintomas inespecíficos, como dor abdominal ou anemia, muito embora a maioria seja achados incidentais.
O aspeto visual endoscópico é habitualmente de lesão intramural, com protrusão luminal e mucosa lisa ou ulcerada adjacente. As biopsias raramente são úteis e o diagnóstico destas lesões pode ser difícil, inclusivamente com recorrência a estudos mais específicos, como a ecoendoscopia.
O tratamento passa muitas vezes por recessão de lesão para obtenção de diagnóstico definitivo e resolução de sintomas, contudo, em caso de lesões pequenas, a remoção pode ser prescindível. A remoção pode ser efetuada por técnica endoscópica, se acessível, sendo possível evitar (devido ao diagnóstico diferencial com outras lesões) o recurso a cirurgia.
A probabilidade de recidiva, se remoção completa, é muito baixa e o potencial maligno é negligenciável, pelo que a vigilância não está recomendada.
DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS – LESÕES DUODENAIS MALIGNAS NÃO
LESÕES SUPERFICIAIS
Algumas lesões secundárias a processos metastáticos podem ainda surgir no duodeno, entre os quais as neoplasias do cólon, do pâncreas e das vias biliares, com risco de invasão direta. No entanto, são descritos casos de metastização de neoplasias pulmonares, melanoma e neoplasias da mama para este local. Os antecedentes do doente, bem como o estudo imuno-histoquímico, podem ajudar na diferenciação e na localização de primário, o que vai ter impacto nas opções subsequentes de tratamento.
Além dos processos secundários, outras lesões não epiteliais, entre as quais os linfomas, podem surgir nesta localização e devem ser referenciadas para centros especializados, para melhor orientação e seguimento destes doentes.
ABORDAGEM CLÍNICA
A abordagem clínica das lesões superficiais duodenais e dos seus diagnósticos diferenciais pode não ser tão linear como seria desejável. Em primeiro lugar, existe a possibilidade de subdiagnóstico, podendo haver lesões que surgem sem serem detetadas endoscopicamente e com diagnóstico apenas em estádios mais avançados. Por outro lado, uma vez que nem sempre o diagnóstico definitivo é obtido por biopsias da lesão e também porque a melhor opção terapêutica – remoção ou não e, se sim, qual é a melhor técnica? – é ainda pouco estabelecida, o manejo destas lesões, do ponto de vista clínico, é difícil e desafiante. A referenciação à especialidade, em caso de lesões com potencial maligno ou se dúvida existir, será sempre um recurso inestimável. A Figura 7.2 pretende representar um algoritmo de ajuda na decisão clínica.
Suspeita de lesão superficial duodenal
Efetuadas biopsias/polipectomia Lesão característica e identificada
Heterotopia gástrica:
• Sem necessidade de vigilância endoscópica
Hamartoma de glândulas de Brunner:
Repetir EDA com biopsias/exérese endoscópica
• Se diagnóstico confirmado, sem necessidade de vigilância endoscópica
• Ponderar remoção se lesão de grandes dimensões, sintomática ou displásica – referenciar
Pólipo fibroide inflamatório:
• Se diagnóstico confirmado, sem necessidade de vigilância endoscópica
• Ponderar remoção se lesão de grandes dimensões ou sintomática – referenciar
Lipoma:
• Se diagnóstico confirmado, sem necessidade de vigilância endoscópica
• Ponderar remoção se lesão de grandes dimensões, sintomática ou suspeita de lipossarcoma – referenciar
Tumores duodenais superficiais não ampulomas:
• Referenciar
• Pedir colonoscopia de rastreio (na ausência de exame recente)
Ampulomas:
• Referenciar
Linfomas/Tumores neuroendócrinos /Tumores estromais gastrointestinais:
• Referenciar
Figura 7.2 – Algoritmo de decisão clínica na presença de lesões superficiais duodenais e alguns dos seus diagnósticos diferencias.
PROGNÓSTICO
O prognóstico destas lesões superficiais é muito variável, em função do tipo de lesão encontrada. O risco ou não de malignização e a presença/ausência de sintomas são fatores determinantes na orientação e na estratégia terapêutica destes doentes.
CONCLUSÃO
Em suma, o diagnóstico das lesões superficiais duodenais tem sido crescente, também devido ao maior acesso a estudos endoscópicos. O diagnóstico diferencial entre lesões benignas ou com potencial de evolução maligna é fundamental para melhor orientação dos doentes. Felizmente, as técnicas endoscópicas têm permitido tratar estes doentes com abordagens
BIOLOGIA DOS TUMORES NEUROENDÓCRINOS
Os tumores neuroendócrinos gastrointestinais derivam de células enterocromafins e os tumores neuroendócrinos pancreáticos têm origem nas ilhotas de Langerhans, que fazem parte do sistema neuroendócrino difuso. As células neuroendócrinas têm características neuronais e endócrinas e contêm grânulos, como a cromogranina A, a sinaptofisina e a enolase específica do neurónio, que podem sintetizar e secretar várias hormonas, péptidos e aminas. A cromogranina A é libertada dos grânulos para o sangue e, desta forma, apresenta-se aumentada tanto nos tumores neuroendócrinos funcionantes como nos não funcionantes, sendo, por isso, o biomarcador mais frequentemente utilizado no diagnóstico e na monitorização da resposta ao tratamento.
No caso dos tumores neuroendócrinos funcionantes, o tipo de hormona libertada varia nos diferentes órgãos. Enquanto os tumores neuroendócrinos gastrointestinais podem sintetizar e secretar serotonina e outras aminas vasoativas, os tumores neuroendócrinos pancreáticos funcionantes produzem e secretam gastrina, insulina, glucagina e somatostatina. Embora os tumores neuroendócrinos gastroenteropancreáticos possam produzir múltiplas hormonas, pode não existir síndrome clínica associada, apesar da presença de múltiplas hormonas no tumor. A síndrome funcional ou carcinoide deve, portanto, ser diagnosticada apenas se os sintomas clínicos característicos estiverem presentes.
CLASSIFICAÇÃO DOS TUMORES NEUROENDÓCRINOS
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), os tumores neuroendócrinos são classificados de acordo com o seu grau – baixo (G1), intermédio (G2) e alto (G3) –e diferenciação – bem diferenciado e pouco diferenciado –, dois marcadores de prognóstico de extrema importância (Tabela 10.1). O grau refere-se à atividade proliferativa do tumor, medida pelo índice mitótico e pelo índice Ki-67. A proteína Ki-67 encontra-se no núcleo celular, e a sua proporção nas células tumorais correlaciona-se com a proliferação celular, o curso clínico e o prognóstico. A diferenciação refere-se à semelhança da morfologia tumoral com as células endócrinas de origem.
Tabela 10.1 – Classificação da OMS de tumores neuroendócrinos gastrointestinais.
Terminologia Diferenciação Grau Índice mitótico* (mitoses/2 mm2) Índice ki67* (%)
Tumor neuroendócrino, G1 Bem diferenciado Baixo <2 <3
Tumor neuroendócrino, G2 Bem diferenciado Intermédio 2-20 3-20
Tumor neuroendócrino, G3 Bem diferenciado Alto >20 >20
Carcinoma neuroendócrino, pequenas células
Carcinoma neuroendócrino, grandes células
Pouco diferenciado Alto >20 >20
Pouco diferenciado Alto >20 >20
Tumor neuroendócrino misto Bem ou pouco diferenciado Variável Variável Variável * O grau final é baseado em qualquer um dos índices de proliferação que coloque a neoplasia na categoria superior. Adaptado de Nagtegaal et al. (2020).
tumor nEurEndócrino
Os tumores neuroendócrinos, também designados tumores carcinoides, têm origem nas células enterocromafins, presentes no tubo digestivo e no trato respiratório. Os gastrointestinais são os mais comuns (70%), surgindo, por ordem decrescente de frequência, no intestino delgado, no reto, no apêndice e no estômago. Localizam-se geralmente na submucosa superficial, pelo que as biopsias endoscópicas podem ser com frequência diagnósticas. A classificação prognóstica dos tumores neuroendócrinos depende do grau de diferenciação histológica e do grau de proliferação, este último medido através do índice mitótico e do índice Ki-67. Cerca de 8% dos tumores neuroendócrinos digestivos produzem hormonas funcionantes para a circulação sistémica, levando a sintomas específicos, dependendo da hormona produzida, denominados “síndrome carcinoide”. Estes sintomas ocorrem quase sempre na presença de doença metastizada.
Endoscopicamente, são lesões polipoides sésseis arredondadas, por vezes de tonalidade amarelada, raramente ulceradas (Figura 11.3). O aspeto ultrassonográfico é o de uma lesão homogénea, hipoecoica, bem delimitada e de bordos regulares, com origem na mucosa profunda (segunda camada) e podendo invadir a submucosa (terceira camada). No estômago e no íleo são normalmente múltiplos, enquanto no duodeno e no reto são habitualmente lesões isoladas.
Os tumores neuroendócrinos gástricos, em particular, subdividem-se em três tipos com características biológicas e potencial de malignidade muito díspar:
Tipo 1 – associam-se a hipergastrinemia no contexto de gastrite autoimune. A destruição imunomediada das glândulas oxínticas leva a hipocloridria, com consequente hipergastrinemia por perda de feedback negativo. O estímulo constante da gastrina conduz à hiperplasia de células neuroendócrinas e ao aparecimento de tumores neuroendócrinos gástricos, geralmente múltiplos e com muito baixo potencial de malignidade;
um abaulamento da parede ou como um divertículo. Ecoendoscopicamente, são lesões homogéneas, anecoicas, com origem na submucosa ou extrínsecas à parede gastrointestinal, cujas paredes demonstram estratificação em três ou cinco camadas. No entanto, podem ser hipoecoicas e heterogéneas, com septos, níveis hidroaéreos ou conteúdo hiperecoico no interior que corresponde a mucina. O aspeto ecoendoscópico é habitualmente suficiente para o diagnóstico, não sendo necessária a punção do cisto, que acarreta um risco de infeção do mesmo.
PóliPo fibroidE inflamatório
Os pólipos fibroides inflamatórios são tumores mesenquimatosos benignos, caracterizados histologicamente por uma proliferação de células fusiformes (possivelmente, de origem fibroblástica) dispostas em cordões ou num padrão “casca de cebola” em torno de vasos sanguíneos, num estroma rico em colagénio e infiltrado inflamatório, frequentemente eosinofílico. Foram considerados durante décadas uma lesão reativa/inflamatória, mas sabe-se, hoje, que apresentam mutações ativadoras do gene PDGFRA, sendo, por isso, proliferações neoplásicas. No entanto, não há evidência de comportamento agressivo ou metastização.
São mais frequentemente encontrados de forma incidental no estômago, onde o aspeto endoscópico mais típico é o de um pólipo séssil, único, ulcerado. Ecoendoscopicamente, são hipoecogénicos, homogéneos e de bordos indefinidos. Não existe evidência de terem potencial maligno; quando sintomáticos, podem ser excisados endoscopicamente (Figura 11.5).
ALGORITMO DIAGNÓSTICO
Devido à multiplicidade de diagnósticos possíveis perante uma lesão subepitelial, é importante uma abordagem sistematizada e sequencial. A Figura 11.6 propõe um algoritmo de decisão na orientação de lesões subepiteliais até chegar a um diagnóstico definitivo, utilizando de forma sucessiva exames mais simples e acessíveis, como a endoscopia digestiva, até investigações mais específicas, como a ecoendoscopia e métodos diferenciados de aquisição de material histológico.
Histologia
Lesões subepiteliais
Biopsia de mucosa suprajacente
Coloração amarelada; sinal de almofada
Lesão aplanada no antro gástrico, umbilicação central
Estimar tamanho
Extrínseca ou intramural?
Hiperecoica
Anecoica
Hipoecoica/Mista
Sintomática, grande, aspeto suspeito
Pequena e superficial (segunda e terceira camadas)
Restantes ou dúvida diagnóstica/na orientação
Origem epitelial
Orientar de acordo
Lipoma
Pâncreas ectópico
<10 mm
Extrínseca
Doppler positivo
Doppler negativo
Reavaliação endoscópica em 1 ano
Nota: Exceto possíveis tumores neuroendócrinos no duodeno e no reto
Orientar de acordo
Lipoma
Vascular (variz, hemangioma)
Cística (cisto de duplicação, linfangioma)
Exérese cirúrgica
Exérese endoscópica
Biopsia aspirativa por EUS
EDB – endoscopia digestiva baixa; EUS – ultrassonografia endoscópica (do inglês endoscopic ultrasound)
Figura 11.6 – Algoritmo de orientação de lesões subepiteliais.
EndoscoPia digEstiva
A endoscopia é o primeiro exame para a avaliação de lesões subepiteliais. Embora, muitas vezes, não possibilite o diagnóstico definitivo da lesão subepitelial, permite avaliar a sua localização, estimar o seu tamanho e caracterizar o seu aspeto endoscópico. Estas características podem ser suficientes, em alguns casos, para o diagnóstico definitivo: uma lesão aplanada e umbilicada no antro gástrico corresponde a um pâncreas ectópico; e uma lesão
Gastrenterologia Oncológica para Medicina Geral e Familiar
As doenças oncológicas do foro gastrointestinal têm uma elevada prevalência e são um tema frequente no contexto dos Cuidados de Saúde Primários, quer em relação ao rastreio e ao diagnóstico, com a necessária referenciação, quer quanto ao seguimento de patologia já abordada no âmbito da especialidade. Neste livro, os autores sintetizam as mais recentes recomendações e a abordagem de diversas situações clínicas no âmbito da Gastrenterologia Oncológica. São, assim, desenvolvidos temas como a endoscopia digestiva, o rastreio e a história familiar, a abordagem de diversas lesões, tumores e situações que não carecem de vigilância. Esta obra visa contribuir para a formação e a atualização em Gastrenterologia Oncológica de médicos especialistas e internos de Medicina Geral e Familiar, podendo igualmente revelar-se de grande utilidade para médicos de Gastrenterologia, Oncologia e Medicina Interna .
“Este livro de Gastrenterologia Oncológica foca os diagnósticos mais comuns nesta área que representa cerca de um terço da mortalidade por doença oncológica em Portugal, procurando uma abordagem prática capaz de ser uma ferramenta com utilidade no dia a dia para qualquer médico que seja chamado a lidar com pessoas portadoras de um cancro gastrointestinal.”
www.lidel.pt
In Prefácio
Mário Dinis-Ribeiro
Assistente graduado sénior de Gastrenterologia e diretor do Departamento de Medicina do Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil, EPE; Doutorado com agregação pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, onde é professor catedrático convidado. Coordenador de um grupo de investigação do Centro de Investigação do Instituto Português de Oncologia do Porto e subcoordenador da Linha Cancro do RISE. Tesoureiro da World Endoscopy Organization, presidente-passado da European Society of Gastrointestinal Endoscopy e co-editor-in-chief do jornal Endoscopy. Venceu o Prémio Bial de Medicina Clínica em 2018 .
ISBN 978-989-752-841-5 www.lidel.pt