Psiquiatria Fundamental 978-989-752-919-1

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P siquiatriafundamental

Coordenação:

Carlos Braz Saraiva Joaquim Cerejeira

Prefácio:

José Luís Pio Abreu

Edição e Distribuição

Lidel – Edições Técnicas, Lda

Rua D. Estefânia, 183, r/c Dto. – 1049-057 Lisboa

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ISBN edição impressa: 978-989-752-919-1

1.ª edição impressa: novembro de 2014

2.ª edição impressa: maio de 2024

Paginação: Carlos Mendes

Impressão e acabamento: Tipografia Lousanense, Lda. – Lousã Dep. Legal: n.º 532259/24

Capa: José Manuel Reis

Imagem da capa: © Sebastian Kaulitzki

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Miguel Bragança, Mariana Lemos Marinho Capítulo

Sílvia Castro Capítulo

Novais, João Paulo Rema

Igor Soares da Costa, Ricardo Moreira Capítulo

João Monteiro-Ferreira

Alves Brás, Carlos Braz Saraiva

Luísa Lagarto, Diana Rafaela, Joaquim Cerejeira

Neves, Carlos Braz Saraiva

Joana Serra, Vanda Clemente

Capítulo 26 • Psiquiatria Forense ..................................................................................................................

Ana Isabel Machado, Joaquim Cerejeira

Capítulo 27 • Suicídio e comportamentos autolesivos ..................................................................................

Carlos Braz Saraiva, Sandra Neves

Capítulo 28 • Psiquiatria de Ligação

da Ponte

Capítulo 29 • Urgências psiquiátricas

Cerejeira

Autores

Coordenadores/Autores

Carlos Braz Saraiva

Professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (aposentado); Chefe de Serviço de Psiquiatria do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra – Polo Hospitais da Universidade de Coimbra (aposentado); Subespecialista em Psiquiatria Forense pela Ordem dos Médicos; Coordenador-docente de cursos de Psiquiatria e Saúde Mental e Suicídio e Comportamentos Autolesivos na modalidade de ensino à distância, a convite do Instituto CRIAP.

Joaquim Cerejeira

Professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra; Especialista e consultor em Psiquiatria, com competência em Avaliação do Dano na Pessoa pela Ordem dos Médicos; Investigador associado do Coimbra Institute for Clinical and Biomedical Research (iCBR); Membro do Conselho Médico-Legal do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses; Membro da Comissão de Ética para a Investigação Clínica.

Autores

Ana Isabel Machado

Assistente hospitalar do Serviço de Psiquiatria Forense da Unidade Local de Saúde de Santo António, EPE.

Ana Moreira

Assistente hospitalar de Psiquiatria da Infância e Adolescência da Unidade Local de Saúde da Cova da Beira, EPE; Docente da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade da Beira Interior.

Ana Torres

Professora auxiliar do Departamento de Psicologia e Educação da Universidade da Beira Interior, onde é diretora do Mestrado em Psicologia Clínica e da Saúde; Membro integrado do CINTESIS –Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde; Presidente da Academia Portuguesa de Psico-Oncologia; Membro da Direção da RESAPES – Rede de Serviços de Apoio Psicológico no Ensino Superior.

César Mendes Cagigal

Assistente hospitalar de Psiquiatria da Unidade Local de Saúde de Coimbra, EPE.

Diana Rafaela

Assistente hospitalar de Psiquiatria do Serviço de Psiquiatria Forense da Unidade Local de Saúde de Coimbra, EPE; Psiquiatra da Unidade Psiquiátrica Privada de Coimbra.

Eduardo Palha Fernandes

Assistente hospitalar de Psiquiatria da Unidade Local de Saúde de São João, EPE; Competência em Sexologia Clínica pela Ordem dos Médicos; Docente da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

Elisabete Albuquerque

Assistente hospitalar de Psiquiatria; Coordenadora e diretora clínica da Unidade de Desabituação do Centro; Competência em Adictologia Clínica pela Ordem dos Médicos; Membro da Direção do Colégio de Competência em Adictologia Clínica.

Ema Conde

Assistente hospitalar de Psiquiatria do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental da Unidade Local de Saúde Loures-Odivelas, EPE, onde desempenha funções de coordenação da valência de Psiquiatria e Psicologia Forenses; Competência em Sexologia Clínica pela Ordem dos Médicos; Fellow em Medicina Sexual pela European Society of Sexual Medicine.

Filipa Novais

Professora auxiliar de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa; Assistente hospitalar de Psiquiatria da Unidade Local de Saúde de Santa Maria, EPE.

Filipe Félix Almeida

Assistente do Departamento de Psiquiatria da Unidade Local de Saúde Santa Maria, EPE; Assistente convidado da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.

Guida da Ponte

Assistente graduada hospitalar de Psiquiatria, Psiquiatria de Ligação do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental da Unidade Local de Saúde do Arco Ribeirinho, EPE.

Igor Soares da Costa

Assistente hospitalar de Psiquiatria da Unidade Local de Saúde de Braga, EPE.

Joana Serra

Assistente hospitalar de Psiquiatria, com grau de consultor; Responsável pela Consulta de Patologia Psiquiátrica do Sono do Centro de Medicina do Sono da Unidade de Local de Saúde de Coimbra, EPE; Competência em Medicina do Sono pela Ordem dos Médicos; Membro da Direção do Colégio da Competência em Medicina do Sono; Sonologista Europeu – especialista em Medicina do Sono pela European Sleep Research Society.

João Alcafache

Médico psiquiatra; Assistente graduado de Psiquiatria e diretor do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental da Unidade Local de Saúde da Região de Aveiro, EPE.

João Bessa

Professor associado de Psiquiatria da Escola de Medicina da Universidade do Minho; Investigador principal do Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde da Universidade do Minho; Presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental.

João Monteiro-Ferreira

Psiquiatra aposentado; Prestou serviço como médico militar do quadro da Marinha de Guerra Portuguesa e foi chefe do Serviço de Psiquiatria do Hospital da Marinha (Lisboa); Foi investigador da Universidade do Minho na área do Stress Traumático; Durante 12 anos, foi coordenador/responsável da Consulta de Stress Traumático do Serviço de Psiquiatria do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, EPE.

João Paulo Rema

Médico especialista em Psiquiatria, com competência em Sexologia pela Ordem dos Médicos; Assistente hospitalar de Psiquiatria do Departamento de Saúde Mental do Hospital de Cascais Dr. José de Almeida; Docente convidado da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.

Joel Alves Brás

Assistente hospitalar de Psiquiatria da Unidade Local de Saúde de Coimbra, EPE; Docente convidado da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra.

Luísa Lagarto

Assistente hospitalar de Psiquiatria da Unidade Local de Saúde de Entre Douro e Vouga, EPE.

Manuel Quartilho

Assistente hospitalar graduado de Psiquiatria da Unidade Local de Saúde de Coimbra, EPE; Professor auxiliar da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra.

Maria Laureano

Assistente hospitalar de Pedopsiquiatria do Hospital Pediátrico da Unidade Local de Saúde de Coimbra, EPE; Docente convidada da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra.

Mariana Gomes Silva

Assistente hospitalar de Psiquiatria da Unidade Local de Saúde de São José, EPE, onde desempenha funções no âmbito da Psiquiatria de Ligação e de coordenação da Clínica de Diversidade de Género; Competência em Sexologia Clínica pela Ordem dos Médicos.

Mariana Lemos Marinho

Assistente hospitalar de Psiquiatria da Unidade Local de Saúde de Santo António, EPE.

Miguel Bragança

Diretor do Serviço de Psiquiatria da Unidade Local de Saúde de São João, EPE; Professor associado convidado da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

Nélson Almeida

Assistente hospitalar de Psiquiatria da Casa de Saúde do Bom Jesus.

Paula Cristina Correia

Assistente graduada sénior de Psiquiatria da Infância e Adolescência da Unidade Local de Saúde da Cova da Beira, EPE, onde é diretora do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência e do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental; Docente da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade da Beira Interior.

Pedro Sá Esteves

Especialista em Psiquiatria, com competência em Avaliação do Dano na Pessoa pela Ordem dos Médicos; Psiquiatra da Unidade Psiquiátrica Privada de Coimbra e da Unidade Psiquiátrica Privada de Aveiro.

Ricardo Moreira

Assistente hospitalar graduado do Serviço de Psiquiatria da Unidade Local de Saúde São João, EPE, onde é coordenador do Programa de Tratamento de Doenças do Espectro Obsessivo.

Sandra Neves

Assistente hospitalar de Psiquiatria da Unidade Local de Saúde de Coimbra, EPE, onde é coordenadora da Consulta de Burnout e membro da Consulta de Psico-oncologia do Centro de Responsabilidade Integrado de Psiquiatria; Membro da Secção de Psico-oncologia da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental; Membro do corpo docente do Mestrado Integrado em Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra; Membro do corpo docente de Psiquiatria e Saúde Mental do Instituto CRIAP (Porto).

Sara Pedroso

Assistente hospitalar graduada de Psiquiatria da Infância e da Adolescência da Unidade Local de Saúde de Coimbra, EPE.

Sílvia Castro

Assistente graduada de Psiquiatria; Diretora do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental da Unidade Local de Saúde da Guarda, EPE; Assistente convidada da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade da Beira Interior.

Tânia Vieira da Silva

Psiquiatra; Mestre em Medicina e em Medicina Legal pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra; Assistente hospitalar da Unidade Local de Saúde de Coimbra, EPE; Investigadora associada do Coimbra Institute for Clinical and Biomedical Research (iCBR).

Vanda Clemente

Assistente principal de Psicologia Clínica do Serviço de Psicologia Clínica da Unidade Local de Saúde de Coimbra, EPE; Responsável pelas Consultas de Psicologia-Patologia do Sono do Centro de Medicina do Sono e do Serviço de Pediatria Médica da Unidade Local de Saúde de Coimbra, EPE; Psicoterapeuta cognitivo-comportamental pela Associação Portuguesa de Terapia do Comportamento; Sonologista Europeu – especialista em Medicina Comportamental do Sono pela European Sleep Research Society; Membro do Centro de Investigação em Neuropsicologia e Intervenção Cognitivo-Comportamental (CINEICC) da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra.

Prefácio da 2.ª edição

Na década de 1980, acompanhando o lançamento do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Third Edition (DSM-III), 237 autores internacionais, mas predominantemente anglófilos, escreveram 270 capítulos de um livro que, nas suas várias reedições, alcançou 4000 páginas bem compactas – Comprehensive Textbook of Psychiatry/IIIi – e constituiu a mais volumosa obra dedicada à Psiquiatria. Curiosamente, o primeiro capítulo (introdutório) deste livro intitulava-se “Psychiatry: The Inexhaustible Science”. Desde então, os DSM (as classificações americanas das doenças mentais publicadas pela American Psychiatric Association [APA]) e as International Classification of Diseases (ICD; as classificações internacionais publicadas pela World Health Organization [WHO]) foram-se refazendo e evoluindo, tendo em atenção as novas descobertas facilitadas pelos computadores: análise estatística de escalas de avaliação e imagens cerebrais estáticas ou funcionantes obtidas por diversos métodos seguidos do seu tratamento informático. Em 1980, tudo isto estava no início. O próprio genoma humano estava por descobrir.

A revolução da DSM-III é, hoje, reconhecida. Pela primeira vez, puderam ser definidos critérios claros para o diagnóstico psiquiátrico, até então ao sabor de cada psiquiatra ou da escola que o mesmo seguia. Estávamos, então, no apogeu da descoberta dos principais psicofármacos e dos neurotransmissores que eles influenciavam. A Psiquiatria, com o seu modelo biomédico, podia entrar no domínio geral da Medicina. No entanto, este modelo, bastante apoiado pela indústria farmacêutica, começou a gerar reações, sobretudo por parte dos psicólogos e dos psicoterapeutas, que as sucessivas versões dos DSM tentaram acomodar. O DSM-5, publicado em 2013 e coordenado por outro psiquiatra e historiador da Psiquiatria, Jeffrey Lieberman, introduziu os diagnósticos ligados ao trauma (a perturbação de stress pós-traumático, então muito evidente nos Estados Unidos da América pelos veteranos do Vietname e pelo 11 de Setembro em Nova Iorque).

A redescoberta do trauma chamaria de volta a atenção dos psiquiatras para os diagnósticos etiológicos. Podemos agora lembrar de que, no DSM-I e na ICD-6, publicados depois da Segunda Guerra Mundial, a maior parte das perturbações psiquiátricas (pela primeira vez inseridas nas “listas de doenças e causas de morte”) eram consideradas reativas a certos tipos de eventos, como sugerido anteriormente por Kurt Schneider. Inevitavelmente, tal caminho levaria aos traumas infantis e aos abusos precoces. Aliás, outra novidade do DSM-5, acentuada na sua última revisão (DSM-5-TR), e da ICD-11 foi a inclusão, no grupo de patologias de adultos, de quadros clínicos que, até então, eram considerados como típicos das crianças, como a ansiedade de apego e separação, agora no conjunto das perturbações ansiosas, bem como os quadros ligados ao autismo (só conhecidos na década de 1970) e a perturbação de hiperatividade e défice de atenção, esta última bem promovida pela indústria farmacêutica.

Outra novidade do DSM-5 e seguinte foi a criação de espectros nosológicos, como o espectro obsessivo, o das perturbações de ansiedade e o das perturbações psicóticas. Os espectros nosológicos

i Kaplan, H. I., Freedman, A. M., & Sadock, B. J. (1980). Comprehensive Textbook of Psychiatry/III. Williams & Wilkins Company.

podem ser uma evolução importante, mas está por saber o critério para o agrupamento de várias patologias em cada espectro. Aparentemente, elas estão ligadas por aspetos superficiais de semelhança. Talvez fosse mais importante ligá-las através dos mecanismos psicopatológicos comuns, o que levaria, por exemplo, como é reclamado por vários autores que escrevem neste livro, à inclusão das patologias do impulso, das parafilias e de algumas patologias alimentares no espectro obsessivo.

A renúncia aos aspetos psicopatológicos foi estabelecida no DSM-III e mantida nas seguintes revisões, que se pretendem ateóricas e, intencionalmente, abdicaram da consideração dos sintomas patognomónicos, primários ou fundamentais, bem como da hierarquia das doenças, em que uma patologia orgânica se sobrepunha a qualquer outra perturbação psiquiátrica e uma patologia psicótica excluía um diagnóstico de ansiedade ou neurose. Sendo assim, a insistência radical neste ateoricismo, talvez impossível, leva a um certo “desnorte”. Imaginemos o que seria fazer um mapa (porque um quadro nosológico é mesmo um mapa) sem os pontos cardeais que poderíamos encontrar na Psicopatologia Geral. O resultado seria um conglomerado de manchas caóticas. Este é o risco das classificações psiquiátricas atuais.

O problema é que a Psiquiatria lida com sintomas subjetivos, apenas acessíveis através das descrições dos doentes, ao contrário dos quadros cirúrgicos, cujas lesões são observáveis com objetividade, e da maioria das situações médicas, nas quais se pode encontrar um ou vários marcadores objetivos que ajudem o diagnóstico. Assim, o observador dos sintomas psiquiátricos terá, pelo menos, de compreender o doente, ou seja, colocar-se no lugar dele, operação esta que todos fazemos diariamente, mas cuja complexidade foi abordada por alguns filósofos e, particularmente, por Karl Jaspers, um psiquiatra que, depois da publicação da sua Psicopatologia Geral, que então influenciou decididamente os psiquiatras da Europa continental, se dedicou à Filosofia. Estas questões são brevemente discutidas no primeiro capítulo deste livro, mas muito mais haveria por dizer, como a recente tendência nórdica para falar da “psicologia na primeira pessoa”, contraposta à “psicologia na terceira pessoa” que, geralmente, descreve o comportamento objetivo do doente, bem como a pouco explorada Fenomenologia de Merleau-Ponty.

Aliás, a posição ateórica forçada do DSM respeita o empirismo filosófico e o consequente positivismo, que estão subjacentes a toda a cultura anglo-saxónica. Mas não existem observadores imparciais, como se pode notar pelas eternas discussões entre os psiquiatras e sobre os seus doentes. Ao perder, então, a influência da Psicopatologia Geral, temos agora uma Psiquiatria desnorteada, onde, à volta de cada quadro, se pode discutir tudo, incluindo as novas e extraordinárias descobertas das Neurociências. Mas é o que temos. Resta olhar para estas classificações sem dogmatismo e aproveitar por agora o que nos possam trazer, enquanto preparamos a Psiquiatria do futuro. No fim de contas, estamos a estudar a “mente”, que é uma tradução científica do conceito religioso de “alma”.

Tudo isto vem a propósito do livro que ora se publica. Trata-se da segunda edição da obra Psiquiatria Fundamental, publicada em 2014 pela mesma editora e com os mesmos coordenadores, mas alargada a autores (ao todo, 33) portugueses de todo o país. Tal como a primeira edição acompanhava a nascente DSM-5 e ICD-10, esta segue as recém-aparecidas DSM-5-TR e ICD-11. Mal ou bem, segue o mapa estabelecido, tenta acompanhá-lo sem esquecer das descobertas mais recentes ligadas às Neurociências, à Genética e aos dados bioquímicos e apresenta as novas terapias que abrem perspetivas à Psiquiatria. Todos os capítulos são acompanhados de tabelas, quadros clínicos ou resumos conclusivos, que ajudam a entender e a sistematizar o texto escrito.

Os primeiros capítulos são introdutórios: “Introdução à Psiquiatria” (Capítulo 1); “Entrevista Clínica” (Capítulo 2); “Exame Mental” (Capítulo 3); “Avaliações complementares em Psiquiatria” (Capítulo 4); “Fundamentos de Psicofarmacologia e outras terapêuticas biológicas” (Capítulo 5); e “Fundamentos de psicoterapia” (Capítulo 6).

O Capítulo 7 inaugura a descrição das patologias, começando pelas perturbações do neurodesenvolvimento (intelectual, da comunicação, da linguagem, dos sons da fala, da fluência com início

na infância [gaguez], da comunicação social [pragmática], do espectro do autismo, de hiperatividade e défice de atenção, da aprendizagem específica e motoras [do desenvolvimento da coordenação, de movimentos estereotipados e de tiques]). O leitor poderá adivinhar os antigos nomes de todas estas perturbações, mas o texto ajuda a fazê-lo. Algumas podem desaparecer espontaneamente ou com terapias precoces, outras podem perdurar sem que se encontre tratamento adequado, mas todas são suscetíveis de alguma intervenção. O Capítulo 8 inclui “Outras perturbações com início na infância e na adolescência”, como ansiedade, humor (depressão e perturbação bipolar) e perturbação obsessiva, elencando ainda alterações situacionais, como a “recusa escolar”.

As clássicas perturbações psiquiátricas têm início no Capítulo 9, com a esquizofrenia, sendo também abordadas as perturbações delirantes e outras psicoses (Capítulo 10), as perturbações bipolares, caracterizadas pela presença de uma mania (Capítulo 11), e as perturbações depressivas (Capítulo 12). Embora escritos por diferentes autores, todos estes textos são bastante informativos e atualizados, com ampla descrição das questões clínicas, das comorbilidades e das terapêuticas adequadas, incluindo as psicoterapias.

Os capítulos seguintes são dedicados às perturbações de ansiedade (Capítulo 13), à perturbação obsessivo-compulsiva (Capítulo 14), incluindo o seu espectro, e às perturbações relacionadas com o trauma e o stress, incluindo a perturbação de stress pós-traumático (Capítulo 15). Estão enunciados e descritos todos os tratamentos clássicos e ainda os novos tratamentos, como as psicocirurgias recentes, a estimulação magnética transcraniana (TMS, do inglês transcranial magnetic stimulation) e a dessensibilização e reprocessamento por meio dos movimentos oculares (EMDR, do inglês eye movement desensitization and reprocessing), uma redescoberta manipulação dos olhos e do sono REM, na transição entre o sono e a vigília, que se aparenta às clássicas terapias hipnóticas que usavam o pêndulo para a indução de estados alterados da consciência.

Os Capítulos 16 e 17 dizem respeito, respetivamente, às chamadas perturbações de sintomas somáticos e perturbações dissociativas. Enquanto estas últimas se mantêm semelhantes às descrições clássicas, as perturbações de sintomas somáticos são um bom exemplo do desnorte no consenso de peritos do DSM, nada de que o autor não se tenha apercebido. Na verdade, pergunta o autor e perguntamos nós o que têm de comum a hipocondria (agora chamada “ansiedade de doença”) e a fibromialgia e doenças aparentadas (de que o autor se tornou a maior referência em Portugal), a perturbação conversiva (que tem comorbilidade e mecanismos psicopatológicos comuns às perturbações dissociativas) ou as doenças factícias (que são voluntariamente simuladas ou provocadas (no próprio ou noutra pessoa – por procuração –, lançando o estigma sobre quem verdadeiramente sofre com as doenças deste grupo). São todas estas questões que o autor analisa, sem poder, porém, fugir do mapa estabelecido, mas dando, ainda assim, informações clínicas preciosas. Seguem-se as perturbações do comportamento alimentar (Capítulo 18), as perturbações do controlo dos impulsos (Capítulo 19) e as perturbações relacionadas com substâncias (Capítulo 20). Algumas delas podem relacionar-se com as perturbações obsessivas, como já foi referido e constatado pelos autores. Além disso, podem seguir-se umas às outras, revelando sempre um vazio que se preenche de modo patológico, sobretudo nas situações de stress, além das que o próprio comportamento implica. Verifica-se, então, a ingestão (e expulsão) de substâncias estranhas, incluindo as que modificam o comportamento e as emoções, bem como do álcool e dos medicamentos autoadministrados. No seu conjunto, estas substâncias são cada vez mais frequentes e diferenciadas e atuam tanto após a ingestão como na privação, criando situações muito complexas e dificilmente tratáveis, que os autores tentam deslindar em vários quadros muito informativos. Os autores também chamam a atenção para a necessidade de lidar com cada caso com a individualidade que o mesmo merece. Como nota adicional, são entrevistas as vias neuronais e neuroquímicas implicadas na adição, embora não sejam claras, por enquanto, as vantagens clínicas deste conhecimento.

Os Capítulos 21 e 22 apresentam, respetivamente, as demências e perturbações neurocognitivas major e o delirium, de modo não muito diferente das descrições clássicas. As demências de Alzheimer e vascular eram conhecidas há muito tempo e a demência frontotemporal, frequentemente

Prefácio da 2.ª edição

pré-senil, era conhecida como demência de Pick; só a demência com corpos de Lewy, relacionada com o parkinsonismo, foi descrita mais recentemente. As características clínicas mantêm-se, mas alguns novos medicamentos começaram a ser utilizados com vista a retardar a progressão de algumas demências, enquanto se vislumbram algumas estratégias preventivas, incluindo medicamentosas. Além disso, são, hoje, mais bem esclarecidos alguns mecanismos fisiopatológicos, relacionados com os iões, o ciclo de Krebs e os neurotransmissores, que ajudam a tratar mais racionalmente os diferentes quadros. Algumas demências específicas e mais raras, como a doença de Fahr (calcificação dos gânglios da Base), as doenças de priões e o hidrocéfalo de pressão normal (que pode ser revertido cirurgicamente), são ainda descritas, bem como os diagnósticos diferenciais, com especial atenção para os sintomas demenciais tratáveis.

As perturbações de personalidade, abordadas no Capítulo 23, conservam os quadros originais, sugeridos por Kurt Schneider há quase um século, embora com nomes diferentes. Estes quadros resistiram a inúmeras discussões. Considerados, no DSM-III, como pertencentes a um segundo eixo subjacente às grandes patologias, para as quais eram fatores de vulnerabilidade, resistiram à proposta dos psicólogos para se terem em conta não as categorias atuais, mas as dimensões encontradas nas pessoas normais. Este assunto é discutido no capítulo referido, mas apenas mostra os polos atuais de uma discussão cuja história é longa e não terminará por agora. Na minha opinião, mais uma vez, valeria a pena considerar alguns mecanismos psicopatológicos e ligá-los a outras grandes patologias, tal como fizeram os psiquiatras que as introduziram.

Os restantes capítulos consideram aspetos transversais a várias patologias, relativos a assuntos universais (Capítulo 24 – “Perturbações do sono” e Capítulo 25 – “Princípios de Sexologia Clínica”) ou muito relevantes (Capítulo 27 – “Suicídio e comportamentos autolesivos”) ou ainda a contextos especiais (Capítulo 26 – “Psiquiatria Forense, Capítulo 28 – “Psiquiatria de Ligação” e Capítulo 29 – “Urgências psiquiátricas”). Nos últimos anos, estes assuntos têm evoluído e são discutidos no âmbito da Psiquiatria, levando à criação de subespecialidades. No capítulo acerca do sono e suas perturbações (Capítulo 24), é possível constatar o conhecimento considerável que, sobre o assunto, foi alcançado nos últimos anos, não só através dos psiquiatras, mas também de médicos de outras especialidades, como os pneumologistas que estudam o sono in loco

No seu conjunto, este livro é na verdade fundamental para quem se interessa pela Psiquiatria. Apesar de tudo, está sucinto, esclarecedor, atualizado, considera a clínica atual e abre as perspetivas para a clínica do futuro.

José Luís Pio Abreu Professor aposentado de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra

Prefácio da 1.ª edição

Os transtornos mentais surgem em todo o mundo e afetam pessoas de todas as idades, homens e mulheres, ricos e pobres, pessoas que vivem no meio rural e nos centros urbanos.

Constituem um fardo muito pesado, não só para os doentes como igualmente para as suas famílias, e produzem uma perda marcada da qualidade de vida do indivíduo e acentuadas dificuldades de natureza económica e social.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), mais de 25% das pessoas em qualquer altura das suas vidas é afetada por um transtorno psíquico.

Calcula-se que uma em cada quatro famílias tenha, pelo menos, um membro com uma afeção mental. Estas famílias não só precisam de dar apoio emocional e físico ao familiar doente mas também têm de suportar com frequência o impacto negativo do estigma e da discriminação.

A OMS (2002) refere que 154 milhões de pessoas no mundo sofrem de depressão e 25 milhões de esquizofrenia; 91 milhões encontram-se afetadas por problemas de alcoolismo e 15 milhões pelo abuso de drogas; 50 milhões sofrem de epilepsia e 24 milhões de doença de Alzheimer e outras demências.

Todos os anos cerca de 800 000 pessoas cometem suicídio, sendo os transtornos mentais uma das causas mais proeminentes e tratáveis do suicídio.

As técnicas de imagiologia funcional, em combinação com estudos das neurociências cognitivas, têm vindo a tornar cada vez mais possível a identificação das partes específicas do cérebro usadas para aspetos diferentes do pensamento e das emoções, bem como conhecer melhor o que ocorre, a nível do cérebro, nos diversos transtornos psiquiátricos.

A OMS (2001) realça que na maior parte do mundo as doenças mentais não estão em pé de igualdade com as doenças físicas, em termos de importância socialmente reconhecida.

Na verdade, as doenças mentais têm sido largamente ignoradas ou negligenciadas.

Devido a este facto, verifica-se em todo o mundo que o peso das doenças mentais vai aumentando e cada vez mais se vai alargando a distância que se estabelece entre as necessidades e as ofertas de tratamento.

Surtees et al. (2008)i comprovaram que nos indivíduos com depressão a mortalidade em pessoas com doença cardíaca coronária era 2,7 vezes mais elevada independentemente de outros fatores (idade, sexo, consumo de tabaco, pressão arterial sistólica, colesterol, exercício físico, índice de massa corporal, diabetes, classe social, ou abuso de bebidas alcoólicas).

i Surtees PG, Wainwright NW, Luben RN, et al. (2008). Depression and ischemic heart disease mortality: evidence from the EPIC-Norfolk United Kingdom prospective cohort study. Am J Psychiatry, 165(4):515-23.

Satin, Linden e Phillips (2009)ii comprovaram que as taxas de mortalidade são quase 40 % mais elevadas nos indivíduos portadores de cancro que sofrem de depressão.

Estes factos revelam a importância que as doenças mentais podem ter em relação ao agravamento de certas doenças físicas.

Apesar da importância dos factos descritos, a ONG Mental Health Europe salienta que a sociedade marginaliza muitas vezes as pessoas com problemas de saúde mental de tal modo que não podem fazer completamente parte da sociedade envolvente. Nomeadamente, estas pessoas têm dificuldade em:

X Arranjar um emprego;

X Ter direito a alojamento apropriado;

X Ter acesso a treino e a educação;

X Serem salvaguardadas nos seus direitos humanos;

X Terem acesso a atividades de lazer e vida social.

Largo número de pessoas “ditas normais” tem reações negativas e pensa que os problemas de saúde mental são sinónimo de estranheza, excentricidade e loucura.

Estas perceções negativas, menciona aquela ONG, têm de ser desafiadas: lembrar que cada pessoa pode contribuir para a sociedade em que vive, desde que seja treinada e apoiada. Em linguagem figurada é preciso ajudá-la a encontrar e a calçar os sapatos que lhe permitam caminhar!

Por todos os aspetos mencionados, devemos afirmar convictamente que as doenças mentais constituem um dos problemas mais graves de saúde pública.

Feitas estas considerações, vou abordar agora alguns aspetos do presente livro.

Para falar com toda a sinceridade, devo mencionar que é uma obra muito abrangente, que aborda de maneira pertinente todos os aspetos fundamentais da Psiquiatria. Nada é esquecido! Desde a descrição dos quadros clínicos, à abordagem farmacológica e psicoterapêutica que é necessário efetuar, aos transtornos de personalidade e à referência a certas síndromes específicas que, apesar de algumas serem relativamente raras, convém conhecê-las para as saber identificar quando aparecem e ter igualmente em atenção o que se pode e deve fazer.

Após ter-me debruçado sobre o seu conteúdo, devo afirmar que considero poder ser um livro útil a uma vasta gama de pessoas.

Para começar cito os alunos de medicina. Quando frequentarem a cadeira de Psiquiatria encontrarão neste livro um grande apoio, pois explica-lhes em pormenor e em língua portuguesa tudo quanto precisam de saber a respeito da matéria de ensino.

Quanto aos médicos, todos aqueles que estão no início do seu internato de Psiquiatria encontrarão neste livro a informação de tudo quanto precisam de conhecer para compreenderem as numerosas facetas que envolvem um doente, facilitando-lhes o caminho para se prepararem para as provas obrigatórias de exame e arranjarem os conhecimentos fundamentais e necessários que, posteriormente, os vão tornar clínicos sabedores, capazes de orientarem e de agirem adequadamente em relação a qualquer doente que lhes apareça, bem como de fazerem relatórios que sejam necessários e esclarecerem a família do doente.

No grupo dos médicos devemos também incluir os médicos de família. Porquê? Porque, em primeiro lugar, o médico de família é considerado o “Psiquiatra da vanguarda”, ou seja, aquele que primeiro observa doentes com afeções psiquiátricas, que lhe chegam da comunidade envolvente. Devido a esta circunstância, tem necessidade de estar preparado para reconhecer os quadros clínicos mais frequentes e, se possível, efetuar uma prescrição adequada.

ii Satin JR, Linden W, Phillips MJ. (2009). Depression as a predictor of disease progression and mortality in cancer patients: a meta-analysis. Cancer, 15;115(22):5349-61.

Os estudos epidemiológicos têm comprovado que entre 5 a 10 % dos enfermos dos cuidados de saúde primários têm critérios que levam ao diagnóstico de depressão major. Mais 10 a 30 % dos casos apresentam um estado significativo de depressão subclínica. Contudo apenas 18-50 % dos doentes deprimidos dos cuidados de saúde primários são identificados como tal pelos seus médicos (Carmin e Klocek, 1998)iii

Este livro pode, portanto, constituir um instrumento de grande utilidade para uma consulta fácil que ajude a orientar o caminho a seguir.

Finalmente, não posso deixar de felicitar os Professores Carlos Braz Saraiva e Joaquim Cerejeira pela obra produzida que, estou convencido, vai ser bastante útil a vasto número de colegas.

Adriano Vaz Serra Professor Catedrático Jubilado de Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Coimbra Ex-Diretor do Serviço de Psiquiatria dos Hospitais da Universidade de Coimbra (abril de 1973 a fevereiro de 2010)

iII Carmin, C N. e Klocek, J W. (1998). To screen or not to screen symptoms identifying primary care medical patients in need of screening for depression, International Journal of Psychiatry in Medicine, 28(3): 293-302.

Nota introdutória

As escolas médicas enfrentam importantes desafios no cumprimento da sua missão de preparar os futuros médicos para um exercício qualificado da sua profissão. As necessidades e as expectativas da população em relação aos médicos têm-se alterado profundamente, a par das transformações demográficas, económicas e sociais verificadas nas últimas décadas. O modelo paternalista da relação médico-doente deu lugar a uma prática médica centrada no doente, passando a exigir uma interação dinâmica na qual, segundo Balint (1957)i, “a arma terapêutica mais poderosa que o médico tem à sua disposição é ele próprio”. Cada vez mais, um médico desenvolve a sua atividade inserido numa equipa multidisciplinar, em que as competências de comunicação são essenciais, e o papel clássico de liderança do médico nas organizações tem vindo a ser substituído pelo conceito de “liderança partilhada”. O acesso generalizado da população a conteúdos sobre saúde permite que muitos doentes estejam informados sobre os mais recentes avanços científicos e tratamentos disponíveis e desejem participar ativamente no processo de decisão clínica. Por outro lado, a falta de rigor de alguns conteúdos, a desinformação veiculada por algumas fontes e uma escassa literacia em saúde podem criar falsas expectativas e afetar negativamente a aliança terapêutica. As decisões médicas, outrora baseadas sobretudo na experiência prévia do médico e enraizadas na tradição, passaram a seguir o paradigma da “Medicina baseada na evidência”, exigindo que o médico proceda a uma análise de evidências obtidas em estudos científicos para validar a eficácia e a adequação dos procedimentos que propõe ao doente.

Também a Psiquiatria tem conhecido mudanças significativas nas últimas décadas. Os desenvolvimentos da genética, da neuroimagem e da investigação translacional têm conduzido a um enfoque na neurobiologia das perturbações psiquiátricas, com a perspetiva de, no futuro, vir a transformar a Psiquiatria numa disciplina das Neurociências. No entanto, estas correntes não conseguiram ainda substituir o paradigma clássico da Psiquiatria, alicerçada numa nosologia clínica que emana da exploração e da descrição da psicopatologia. Em relação aos modelos assistenciais, as últimas décadas têm sido caracterizadas pelo movimento de desinstitucionalização dos doentes psiquiátricos graves, na tentativa de substituir o tratamento em meio hospitalar por um seguimento na comunidade a cargo de equipas multidisciplinares. Assim, tem-se assistido ao reforço do papel dos Cuidados de Saúde Primários na gestão clínica de doentes com patologia psiquiátrica crónica, tal como acontece com as restantes comorbilidades médicas, como a diabetes ou a hipertensão arterial. Também em contexto hospitalar, tem sido cada vez mais reconhecida a importância da saúde mental no prognóstico de diversas patologias não psiquiátricas, o que levou ao desenvolvimento de equipas de Psiquiatria de Ligação com as restantes especialidades. Esta abordagem integrada dos cuidados psiquiátricos e dos restantes cuidados de saúde exige, por um lado, que qualquer médico esteja devidamente capacitado para diagnosticar e tratar problemas de saúde mental e, por outro lado, uma articulação próxima entre a Psiquiatria e as restantes especialidades.

i Balint, M. (1957). The Doctor, His Patient and the Illness. Churchill Livingstone.

Foi neste contexto que, há 10 anos, decidimos criar uma obra que transmitisse, em língua portuguesa, o corpo de conhecimento fundamental da Psiquiatria e que se concretizou graças à motivação, à generosidade e ao empenho de um vasto número de autores, com a preciosa ajuda da equipa editorial da Lidel. Na altura, o nosso principal objetivo era proporcionar aos alunos da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra uma fonte bibliográfica atualizada e credível para o seu estudo pré-graduado de Psiquiatria. A Psiquiatria faz parte integrante da formação de todos os médicos, uma vez que, independentemente da sua especialidade, irão contactar com pessoas que apresentam problemas de saúde mental. Além disso, a formação pré-graduada em Psiquiatria é um elemento essencial para atrair jovens médicos para esta especialidade.

Este livro foi pensado para também ser útil aos médicos que contactam com a Psiquiatria durante a sua formação especializada e durante a sua prática clínica. De facto, fomos verificando, com enorme satisfação, que a obra Psiquiatria fundamental foi merecendo um crescente acolhimento na comunidade universitária, mas também por parte de muitos médicos internos e especialistas de Psiquiatria por todo o país. Naturalmente, com o passar dos anos, fomos reconhecendo que se tornava cada vez mais necessário atualizar conteúdos nos quais têm ocorrido avanços técnicos, científicos ou conceptuais. Assim, considerámos que era este o momento oportuno para proceder a uma revisão profunda da obra. Embora a estrutura geral da segunda edição se tenha mantido, as categorias de diagnóstico foram atualizadas para o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fifth Edition, Text Revision (DSM-5-TR; American Psychiatric Association [APA], 2022)ii e a International Classification of Diseases – 11th Revision (ICD-11; World Health Organization [WHO], 2019)iii. O capítulo dedicado à Psiquiatria Forense teve em consideração a evolução da legislação relativa ao acompanhamento de maiores e a Lei de Saúde Mental, que entrou em vigor em agosto de 2023 (Lei n.º 35/2023, de 21 de julhoiv). Além da revisão dos conteúdos, incorporando as mais recentes fontes bibliográficas, procedemos a uma reorganização da estrutura de alguns capítulos tendo em vista evitar redundâncias e clarificar alguns tópicos. Nesta edição, decidimos também integrar autores de reconhecido mérito oriundos de várias academias e de diversas unidades de saúde do país, a quem estamos profundamente agradecidos. A valiosa colaboração destes autores garantiu elevados padrões de qualidade e de consistência ao longo de todo o livro, proporcionando ainda uma visão de âmbito nacional sobre a prática clínica em Psiquiatria. Tal como na primeira edição, a equipa editorial da Lidel demonstrou todo o seu profissionalismo e eficácia. Manifestamos ainda a nossa profunda gratidão ao Professor Doutor José Luís Pio Abreu, figura da maior relevância na Psiquiatria portuguesa, ele próprio autor de livros obrigatórios na biblioteca de qualquer psiquiatra, que nos distinguiu ao elaborar o Prefácio desta segunda edição.

Com a publicação deste livro, pretendemos também honrar a memória do Professor Doutor Adriano Vaz Serra. Durante toda a sua longa carreira profissional, o nosso mestre incutiu-nos o desejo para uma busca sistemática e exaustiva de novos conhecimentos científicos que pudessem melhorar as condições de saúde dos doentes. Além disso, sempre nos incentivou a partilhar esses conhecimentos, nomeadamente através de publicações científicas e pedagógicas. Muitos dos autores deste livro foram seus alunos, tendo sido fortemente influenciados pelas suas ideias e ensinamentos, entre os quais que “em Psiquiatria, a clínica tem e terá perenemente uma importância decisiva. Só se conseguirá compreender a vivência humana interrogando-a, examinando-a, seguindo-a, discutindo-a” (Vaz Serra, 1972v). Por isso, esta obra representa, de alguma forma, a continuação do enorme legado que o Professor Doutor Adriano Vaz Serra deixou às futuras gerações.

ii American Psychiatric Association [APA]. (2022). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fifth Edition, Text Revision (DSM-5-TR). American Psychiatric Association.

iii World Health Organization [WHO]. (2019). International Classification of Diseases – 11th Edition (ICD-11). World Health Organization.

iv Lei n.º 35/2023, de 21 de julho. Aprova a Lei da Saúde Mental, altera legislação conexa, o Código Penal, o Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade e o Código Civil e revoga a Lei n.º 36/98, de 24 de julho. Diário da República n.º 141/2023, Série I.

v Vaz Serra, A. (1972). A influência da personalidade no quadro clínico depressivo: Contribuição para o estudo de elementos patoplásticos da sintomatologia [Tese de doutoramento]. Universidade de Coimbra.

Numa outra reflexão, é nosso propósito realçar que a Psiquiatria contemporânea continua a exigir mundividência. Não pode ficar limitada aos modelos neurobiológicos, apesar da sua forte relevância. A penetração das fronteiras das Humanidades, onde estão, por exemplo, a Antropologia, a Psicologia e a Sociologia, enriquece a visão global dos modelos holísticos e integradores do conhecimento científico. Todas estas confluências permanecem bem-vindas, perante a diversidade de multiculturas, e confortam os protagonistas envolvidos na aliança terapêutica e exaltam inequivocamente a dignidade do ser humano.

Esperamos que a segunda edição do livro Psiquiatria fundamental seja útil para todos aqueles que se estão a preparar para a nobre missão do exercício da Medicina e também para os que já têm o privilégio de exercer esta profissão. Desejamos que os conhecimentos adquiridos com este livro sejam parte integrante de um percurso de aprendizagem da Psiquiatria e Saúde Mental, que verdadeiramente só acontece no contacto direto com os doentes, e que, durante esse processo, os médicos consigam ser, além de excelentes técnicos que dominam as leges artis, seres humanos que se interessam genuinamente pelas pessoas que sofrem.

CaraCterístiCas ClíniCas e diagnóstiCo

A PD caracteriza-se pelo desenvolvimento de um delírio (ou conjunto de delírios relacionados) que persiste no tempo – pelo menos 3 meses, segundo a International Classification of Diseases – 11th Revision (ICD-11; World Health Organization [WHO], 2019) e 1 mês no Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fifth Edition, Text Revision (DSM-5-TR; APA, 2022) –, na ausência de episódios depressivos, maníacos ou mistos. Os delírios são crenças fixas baseadas em má interpretação da realidade externa, não são passíveis de mudança ou de extinção à luz de evidências conflitantes ou persuasão, variam de conteúdo entre os indivíduos, mas são tipicamente estáveis no indivíduo. As crenças delirantes são encapsuladas, usualmente monotemáticas e não apresentam a bizarria encontrada na esquizofrenia (correspondem a situações que podem ocorrer na vida real).

Os delírios na PD podem ser acompanhados por sintomas afetivos (humor irritável ou

Tabela 10.1 • Subtipos de PD.

Subtipos

disfórico) ou alterações da perceção (alucinações, ilusões, falsas identificações), mas não assumem um papel central e são congruentes e relacionados tematicamente com o delírio. Não estão presentes outros sintomas característicos da esquizofrenia, como alucinações persistentes, sintomas negativos, pensamento desorganizado, experiências de influência, passividade ou controlo. O afeto, o discurso e o comportamento não estão afetados, exceto quando são realizadas ações e atitudes diretamente relacionadas com o delírio.

Os subtipos de PD (Tabela 10.1) baseiam-se no conteúdo dos delírios e incluem o persecutório, o somático, o de grandiosidade, o de ciúme e o erotomaníaco (no DSM-5-TR, são ainda considerados os subtipos misto e não especificado [APA, 2022]).

Raramente, uma PD pode ocorrer simultaneamente (ou associada no tempo) em duas pessoas com forte ligação emocional ou situacional. Esta condição é frequentemente referida como PD partilhada, induzida, folie imposée ou folie à deux. Uma pessoa tipicamente adota a

Descrição

Persecutório X O tema central do delírio envolve a crença de que a pessoa está a ser vítima de conspiração, espiada, perseguida, envenenada ou drogada. A elaboração clara, lógica e sistemática do tema delirante contrasta com os delírios persecutórios da esquizofrenia

X O indivíduo afetado pode envolver-se em ações legais ou mesmo recorrer à violência contra aqueles que, em sua opinião, lhe causam danos (risco de homicídio)

Somático

De grandiosidade

De ciúme (síndrome de Otelo)

Erotomaníaco (síndrome de De Clérambault ou psychose passionelle)

X O tema central do delírio envolve funções ou sensações corporais. As crenças mais comuns incluem emitir um odor corporal desagradável (delírios de bromose ou halitose), sentir uma infestação de insetos na pele, sob a pele ou a presença de um parasita interno (delírios de parasitose – síndrome de Hekbom) e considerar ter partes do corpo deformadas, feias ou a funcionar mal (delírios dismórficos)

X Em geral, o doente procura ajuda médica não psiquiátrica para a resolução do seu problema (dermatologista, cirurgião plástico, etc.)

X O suicídio pode ser um risco

X O tema central do delírio é a convicção de que se tem um grande talento, conhecimento ou se fez uma descoberta importante (embora não reconhecida)

X O tema central do delírio é a crença injustificada e baseada em inferências incorretas de que o cônjuge é infiel

X O doente costuma confrontar o cônjuge e tenta intervir na infidelidade imaginada, podendo este delírio estar associado a homicídio e suicídio

X O tema central do delírio é a crença persistente e infundada de que outra pessoa, usualmente famosa ou com alto estatuto, está apaixonada pelo doente

X Os indivíduos afetados podem tentar comunicar com essa pessoa, sendo as rejeições interpretadas como afirmações de amor para desviar suspeitas

X Estes pacientes são habitualmente dependentes, sexualmente inibidos, com baixo desempenho social e ocupacional

X Embora os homens sejam menos comummente afetados do que as mulheres, podem ser mais agressivos e possivelmente violentos na sua perseguição do amor

crença delirante da outra pessoa. Ambas estão associadas há muito tempo e vivem juntas em isolamento social relativo. O indivíduo que tem o delírio em primeiro lugar é muitas vezes cronicamente doente, sendo tipicamente o membro influenciador da relação com uma pessoa sugestionável (habitualmente menos inteligente, mais crédula, passiva e com menor autoestima), a qual também desenvolve o delírio. Os delírios podem remitir na pessoa menos dominante quando os dois indivíduos são separados.

Caso clínico

M., sexo feminino, 46 anos de idade, solteira, sem filhos, empregada de limpeza, recorre à consulta de Psiquiatria acompanhada pela mãe.

A doente considera não ter motivo para recorrer à consulta. A mãe refere que M. desde há vários meses considera que o CEO da empresa em que trabalha e com o qual nunca esteve presencialmente se encontra apaixonado por si. M. já terá enviado várias cartas para o patrão, às quais não obteve resposta, considerando que é a estratégia que este usa para que ninguém na empresa desconfie.

diagnóstiCo diferenCial

Fronteira com a normalidade

Na população, é possível encontrar um continuum entre crenças pouco usuais e excêntricas, ideias sobrevalorizadas, crenças delirantes atenuadas e crenças delirantes. Crenças consideradas pouco habituais e estranhas numa cultura podem ser normativas noutra. A diferença cultural entre o doente e o clínico pode dificultar a avaliação, pelo que a informação colateral da família, da comunidade, dos grupos de referência cultural ou religiosos ganha ainda mais importância. Também a avaliação de sintomas psicóticos através de intérpretes ou numa segunda ou terceira língua pode levar a uma interpretação errada de metáforas desconhecidas como delírios.

Condições médicas

Condições médicas que afetam o sistema límbico e os gânglios da base apresentam muitas vezes delírios como sintomatologia. Na doença de Huntington e em indivíduos com calcificações idiopáticas dos gânglios da base,

mais de 50% dos doentes demonstram delírios em algum momento da sua doença (Sadock et al., 2015). Também na demência ocorrem delírios, especialmente persecutórios.

É ainda necessário excluir fármacos, substâncias de abuso, causas metabólicas e endocrinológicas.

Esquizofrenia

Tanto a PD como a esquizofrenia são caracterizadas por delírios persistentes. No entanto, a PD não apresenta alucinações persistentes, pensamento e comportamento desorganizados, sintomas negativos, experiências de influência, passividade ou controlo. As alucinações, quando presentes, são consistentes com o conteúdo do delírio e não ocorrem persistentemente. Além disso, verifica-se habitualmente uma relativa preservação da personalidade e uma menor deterioração e défice funcional em comparação com a esquizofrenia.

Perturbações de humor com sintomas psicóticos

Os delírios podem estar presentes durante o curso de perturbações de humor, e os sintomas de humor, especialmente humor depressivo, podem ocorrer na PD. O diagnóstico de PD requer que existam períodos em que o indivíduo experiencia delírios na ausência de qualquer alteração do humor. Quando os delírios acontecem exclusivamente durante os episódios de alteração do humor, o diagnóstico é perturbação depressiva ou perturbação bipolar (PB) com características psicóticas.

fisiopatologia

A fisiopatologia da PD é ainda desconhecida, sendo várias as linhas de investigação.

Estudos familiares reportam uma prevalência aumentada de PD e perturbação de personalidade paranoide nos familiares de probandos de PD, mas não de esquizofrenia e perturbações de humor (nem aumento de incidência de PD em famílias de probandos com esquizofrenia).

Evidências apontam uma predisposição genética para o aumento da dopamina relacionada com um recetor D2 seletivo e com uma disfunção do neurotransmissor da dopamina, sendo sugerido que a PD será uma perturbação

e tipo III, com temperamento hipertímico e depressão major (Akiskal, 1994).

A ICD-11 (WHO, 2019) define episódios mistos pela mistura ou alternância muito rápida entre sintomas maníacos e depressivos na maior parte dos dias, durante um período de, pelo menos, 2 semanas. Já no DSM-5-TR (APA, 2022), não existe o estado misto, dando lugar a um especificador “com características mistas” que se pode aplicar aos episódios maníaco, hipomaníaco e depressivo atuais nas PB tipo I e tipo II.

DIAGNÓSTICO E CLASSIFICAÇÃO

O diagnóstico das PB é clínico, não havendo biomarcadores que forneçam informações sobre o diagnóstico, o prognóstico ou o tratamento. Frequentemente, chegar a um diagnóstico de PB numa primeira consulta é impossível, sendo necessária uma avaliação longitudinal da evolução dos sintomas. Apenas 20% dos doentes com PB que tiveram um início de doença com episódio depressivo são diagnosticados com PB dentro do 1.º ano de abordagem terapêutica (Grande et al., 2016). A média de atraso de diagnóstico é de 5-10 anos (Grande et al., 2016). Uma instalação mais precoce da doença costuma estar associada a maior comorbilidade e a início de manifestação com depressão. A instalação tardia da doença bipolar deve fazer pensar em causas orgânicas da doença. O tempo decorrido entre o primeiro episódio da doença e o início do tratamento condiciona o prognóstico, e um maior período de doença sem tratamento adequado está associado a um aumento do número de tentativas de suicídio (Altamura et al., 2010).

O DSM-5-TR (APA, 2022) e a ICD-11 (WHO, 2019) operacionalizam a definição das PB.

Critérios diagnóstiCos do dsM-5-tr

As PB e relacionadas, de acordo com o DSM-5-TR (APA, 2022), podem diferenciar-se em:

X PB tipo I – Presença de critérios para, pelo menos, um episódio de mania que possa ter sido precedido ou seguido por um episódio hipomaníaco ou perturbação depressiva major (PDM). A presença de um episódio depressivo ou de psicose não é exigida para o diagnóstico;

X PB tipo II – Presença de critérios para, pelo menos, um episódio hipomaníaco atual ou anterior e um episódio depressivo major. Sem episódios maníacos;

X Perturbação ciclotímica – Os sintomas hipomaníacos são em número insuficiente e sem gravidade para satisfazer os critérios de episódios hipomaníacos e os sintomas depressivos não preenchem os critérios para episódios depressivos major em numerosos períodos (metade do tempo, no mínimo) durante, pelo menos, 2 anos (1 ano nos doentes com idade ≤18 anos). Ausência de critérios para episódios depressivos, maníacos ou hipomaníacos;

X PB ou relacionadas induzidas por substâncias ou medicação – Ocorrência de alteração do estado de humor, da energia e da atividade como consequência patofisiológica direta de outra condição médica;

X PB ou relacionadas devidas a outra condição médica – Ocorrência de alteração do estado de humor, da energia e da atividade durante ou imediatamente após intoxicação ou privação de substância ou após consumo ou privação de medicação;

X Outras PB ou relacionadas especificadas –Quadros clínicos tipo bipolar que não satisfazem os critérios para PB tipo I, PB tipo II ou perturbação ciclotímica (por exemplo, com curta duração dos episódios hipomaníacos e episódios depressivos major, um episódio hipomaníaco sem episódio depressivo major prévio e ciclotimia de curta duração);

X PB ou relacionadas não especificadas – Presença de sintomas que causam sofrimento clinicamente significativo ou compromisso social, profissional ou noutras áreas importantes do funcionamento, mas não preenchem todos os critérios de diagnóstico para qualquer das PB e relacionadas.

Critérios de diagnóstiCo da iCd-11

As PB e relacionadas, de acordo com a ICD-11 (WHO, 2019), podem diferenciar-se em:

X PB tipo I – Perturbação de humor com a ocorrência de um ou mais episódios de mania ou mistos. Embora o diagnóstico possa ser feito com base na presença de um único episódio maníaco ou misto, tipicamente os episódios maníacos ou mistos alternam com

os episódios depressivos ao longo do curso da doença;

X PB tipo II – Perturbação de humor definida pela ocorrência de um ou mais episódios hipomaníacos e, pelo menos, um episódio depressivo. Ausência de episódios maníacos ou mistos;

X Perturbação ciclotímica – Perturbação de humor crónica e flutuante envolvendo numerosos períodos de sintomas hipomaníacos e períodos de sintomas depressivos. Os sintomas hipomaníacos são em número, gravidade, persistência e/ou duração insuficiente para preencher todos os critérios de episódio maníaco, e os sintomas depressivos são em número, gravidade, persistência e/ou duração insuficiente para preencher todos os critérios de episódio depressivo. Durante o período inicial de 2 anos (1 ano para crianças ou adolescentes), os sintomas devem ser persistentes e qualquer período livre de sintomas não dura mais de 2 meses.

De acordo com o DSM-5-TR (APA, 2022), o diagnóstico das PB fundamenta-se na presença, atual ou passada, de um episódio de mania ou hipomania. A mania exige a presença de um período de, pelo menos, 1 semana de humor anormal e persistentemente elevado, expansivo ou irritável e de atividade ou energia persistentemente aumentadas, presente na maior parte do dia, aproximadamente todos os dias (ou qualquer duração se exigir hospitalização). Durante o período de alteração de humor e energia ou atividade aumentados, estão presentes três ou mais dos sintomas seguintes (quatro, se o humor for irritável):

X Aumento da autoestima ou da grandiosidade;

X Diminuição da necessidade de dormir;

X Mais falador do que o habitual ou pressão do discurso;

X Fuga de ideias ou experiência subjetiva de que os pensamentos estão acelerados;

X Distratibilidade;

X Aumento da atividade dirigida;

X Agitação psicomotora;

X Envolvimento excessivo em atividades que têm um elevado potencial de risco.

A alteração é suficientemente grave para provocar compromisso do funcionamento social ou profissional, ou para causar hospitalização (de modo a evitar que o doente se coloque em

risco, coloque em risco terceiros ou bens) ou para motivar sintomas psicóticos. O episódio não é causado pelos efeitos fisiológicos de uma substância ou outra condição médica.

A hipomania exige critérios similares, mas em menor número e gravidade. A sua duração mínima é de 4 dias, não devendo existir sintomas psicóticos, compromisso do funcionamento social ou laboral ou necessidade de hospitalização. Existe uma evidente alteração não habitual do doente, e as alterações do estado de humor e do comportamento são observáveis por terceiros.

Os critérios para episódio depressivo são os mesmos usados para o episódio depressivo da depressão unipolar. Neste sistema de classificação, existem especificadores que acrescentam informação sobre a gravidade do episódio (leve, moderado ou grave), bem como sobre a evolução (em remissão parcial/completa) e outras características da doença:

X Com angústia ansiosa;

X Com características mistas;

X Com ciclos rápidos;

X Com características melancólicas;

X Com características atípicas;

X Com características psicóticas (não aplicável na hipomania);

X Com características psicóticas congruentes com o humor;

X Com características psicóticas incongruentes com o humor;

X Com catatonia;

X Com início no período periparto;

X Com padrão sazonal.

Especial atenção se deve dar à apresentação clínica de ciclos rápidos, definida pelo DSM-5-TR (APA, 2022) como apresentação clínica de quatro ou mais episódios de mania, hipomania ou depressivos por ano na PB tipo I ou de hipomania ou depressão na PB tipo II. Estes doentes têm mais recaídas, mas são clinicamente indistinguíveis dos outros. Cerca de 70-90% dos cicladores rápidos pertencem ao sexo feminino (Coryell et al., 1992). Outros fatores predisponentes são os antecedentes familiares, o hipotiroidismo subclínico, os antidepressivos tricíclicos (ADT), as lesões cerebrais e os fármacos de uso não psiquiátrico, como os corticoides.

De acordo com a ICD-11 (WHO, 2019), as PB e perturbações relacionadas são perturbações

Fadiga

Queixas alérgicas

Alterações psicomotoras

Alterações no sono e no apetite

aparênCia

Sintomas neurovegetativos

Humor depressivo Anedonia

Humor

Ansiedade

Uma pessoa que experiencia um quadro depressivo pode sofrer alterações significativas no seu aspeto físico, motricidade, expressão facial, expressão emocional e contacto interpessoal, que devem ser devidamente contextualizadas e valorizadas ao longo da entrevista clínica. Tipicamente, apresenta um agravamento do seu aspeto físico, com menor autocuidado, lentificação ou agitação psicomotora, expressão facial triste, olhar melancólico, menor contacto ocular e labilidade emocional.

HuMor

O humor depressivo é um dos sintomas cardinais das perturbações depressivas e ocorre na maioria dos doentes, com sentimentos pervasivos de tristeza, de vazio ou falta de esperança, que não são mobilizáveis durante a entrevista e que causam marcado sofrimento psíquico. O humor pode ainda caracterizar-se por irritabilidade

Cognição

Redução da concentração

Dificuldades mnésicas e executivas

Incapacidade de tomar decisões

Baixa autoestima

Pensamentos pessimistas

Ideias de culpa

Ideação suicida

fácil ou hipersensibilidade a estímulos. O humor depressivo pode sofrer variações diurnas significativas, tipicamente com agravamento matinal e melhoria progressiva ao longo do dia. No entanto, considerando que a caracterização do estado de humor é dependente da descrição do estado interno do doente, esta pode tornar-se um desafio clínico quando é voluntariamente ocultada pelo indivíduo.

Tendo em conta que a tristeza é um sentimento que faz parte da vivência psíquica do ser humano e que é um dos elementos da variedade da expressão emocional humana, torna-se essencial distinguir a tristeza normal da tristeza patológica associada às perturbações depressivas, de modo a evitar o sobrediagnóstico e a medicalização das situações e das reações vivenciais normais (Tabela 12.1).

anedonia

A falta de interesse e de prazer, designada como anedonia, é o outro sintoma cardinal de

Tristeza normal

Tristeza patológica

Fatores precipitantes Presentes Presentes ou ausentes

Reação aos estímulos

Duração

Sintomas físicos

Impacto funcional

Proporcional

Ajustada à intensidade

Ausentes

Ausente

Desproporcional

Independente da intensidade

Presentes

Presente

Figura 12.1 – Depressão como uma perturbação psiquiátrica multidimensional.
Tabela 12.1 • Distinção entre tristeza normal e patológica.

AGORAFOBIA

CaraCterístiCas ClíniCas

A agorafobia consiste no medo e na ansiedade marcados e excessivos que ocorrem quando o indivíduo está presente ou antecipa a sua presença numa multidão ou num local público, de onde seria difícil escapar ou receber ajuda de forma imediata. O medo de que um ataque de pânico ou sintomatologia pânico-like possa surgir nestes contextos (multidão, espaço aberto, espaço fechado de difícil acesso) caracteriza a agorafobia. Os doentes alteram o seu comportamento de modo a evitar estas situações, sendo que, numa situação extremada, podem ficar confinados à sua casa, onde se sentem seguros. As situações causadoras de medo e ansiedade podem envolver a ida a espaços abertos, locais com multidões ou espaços fechados como centros comerciais, concertos, parques, elevadores ou filas em locais públicos. Os doentes podem apresentar medo de saírem sozinhos de casa e um desejo intenso de fuga nestas situações, modificando ativamente o seu comportamento para as evitar: fazem compras online; só saem de casa acompanhados; trabalham a partir de casa; ou não se deslocam da sua zona de segurança.

O medo ou a ansiedade experimentados podem apresentar-se sob a forma de um episódio de pânico ou sintomas pânico-like – caso ocorram ataques de pânico, pode acrescentar-se este especificador (agorafobia com episódios de pânico).

Caso clínico

D., 33 anos, sexo masculino, recorre à Urgência com a namorada devido ao que parece ser um episódio de pânico ao atravessar a Ponte 25 de Abril. Durante o relato dos sintomas e do episódio, o doente refere que “Há vários anos que não consigo atravessar para a outra margem do rio pelo medo de que me possa sentir mal ou ansioso durante a travessia da ponte e que não consiga obter ajuda médica rapidamente.”. Relata ainda que deixou de passar férias fora de Lisboa e que não se encontra com a família distante pelo mesmo medo. A namorada conta que esta situação tem um grande impacto na vida de ambos: “Não fomos ao casamento do irmão dele, não vamos à praia e, nas alturas piores, nem ao supermercado consegue ir.”.

Critérios de diagnóstiCo

A Tabela 13.4 apresenta os principais critérios de diagnóstico presentes na ICD-11 (WHO, 2019) e no DSM-5-TR (APA,2022) para a agorafobia.

diagnóstiCo diferenCial

No diagnóstico diferencial da agorafobia, deve-se essencialmente distingui-la dos restantes quadros psiquiátricos. Os aspetos diferenciadores centrais entre as várias PA encontram-se sumariados no Quadro 13.2 e entre as restantes perturbações psiquiátricas na Tabela 13.7.

Destaca-se a necessidade de diferenciar a agorafobia do medo normativo que os indivíduos podem apresentar relativamente a sair de casa e a caminhar sozinhos numa zona perigosa, a utilizar os transportes públicos em locais de elevada criminalidade ou noutras situações em que o medo é adequado e reativo ao contexto sociocultural.

PERTURBAÇÃO DE ANSIEDADE SOCIAL

CaraCterístiCas ClíniCas

A PASo é identificável pela ansiedade e pelo medo exagerados e persistentes de se ser avaliado negativamente quando exposto a uma ou várias situações sociais nas quais o indivíduo está sob o escrutínio de terceiros.

A característica central desta perturbação enfoca o medo da avaliação negativa: poder ser julgado, exposto socialmente, humilhado ou rejeitado publicamente ou ofendido pelo outro através de um comportamento socialmente inadequado e desajeitado. A exposição a estes eventos sociais ou a sua antecipação são maioritariamente vivenciadas com medo e ansiedade marcadas. O doente sente o forte desejo de fugir destas situações, podendo passar a evitá-las completamente. No entanto, este evitamento é vivido com sofrimento e causa de forma clara um prejuízo em vários domínios da vida do indivíduo (relacional, social, familiar, ocupacional).

Está presente o medo intenso de que sintomas físicos como o rubor, o tremor ou a

Inerentes ao doente

X Idades extremas

X Défices cognitivos preexistentes

X História prévia de delirium

X Mau estado nutricional

X Fatores genéticos (por exemplo, genótipo alipoproteína E)

Ambientais

X Isolamento social

X Ambiente desconhecido

X Imobilidade

X Contenção física

X Stress

X Défices sensoriais (++ visuais e auditivos)

Farmacológicos

X Polimedicação

X Dependência/Abstinência de drogas

X Certo tipo de medicamentos:

Anticolinérgicos

Sedativo-hipnóticos

Anestésicos

Anti-hipertensores

Opioides

Corticoides

Antibióticos

Quimioterapia

VIH – vírus da imunodeficiência humana; SIDA – síndrome da imunodeficiência adquirida.

Figura 22.1 – Fatores de risco para delirium.

Paralelamente a este aspeto, também o nível de consciência se encontra alterado, ainda que em graus diferentes e, tipicamente, com níveis flutuantes ao longo de um episódio. O doente não se apresenta totalmente vígil, isto é, não está completamente capaz de integrar e de processar os estímulos do meio ambiente, nem tão-pouco consciente de si, não tendo a perceção do seu “eu” (self) na mente, que é necessária para monitorizar e integrar todos os conhecimentos, informação e programas motores recolhidos ou recrutados a cada momento.

As perturbações cognitivas globais compreendem défices na orientação auto e alopsíquica, na memória, nas capacidades visuoespaciais, na linguagem, no pensamento e na função executiva. Apesar de não ser específico para delirium, o Trail Making Test –Part B (TMT-B) pode ser útil para demonstrar os défices executivos, uma vez que envolve

Fatores de risco para delirium

Médicos

X Queimaduras

X HIV/SIDA

X Insuficiência de órgão

X Infeção

X Hipoxia

X Fraturas

X Hipo/Hipertermia

X Alterações metabólicas

X Desidratação

X Hipoalbuminemia

X Dor incontrolável

Procedimentais

X Perioperatório

X Tipo de cirurgia (por exemplo, prótese total da anca)

X Intervenção emergente

X Duração da cirurgia

X Ventilação invasiva

X Cateterização

particularmente a concentração, a atenção espacial e a flexibilidade mental.

As alterações da sensoperceção surgem em até 50% dos doentes (Boettger & Breitbart, 2011), incluindo alucinações (desde elementares a muito elaboradas, com as quais o doente pode interagir) e ilusões, sendo frequentes as pareidolias, sobretudo em ambiente com luz reduzida, e as metamorfopsias. A modalidade sensorial mais frequentemente afetada é a visual, embora possam ocorrer alterações em todas as restantes.

CaraCterístiCas aCessórias

O doente com delirium desenvolve frequentemente ideias delirantes, de temática habitualmente persecutória, fragmentadas ou pouco estruturadas, nem sempre verbalizadas. Estas provocam medo e desconfiança e

também relevantes (Bancroft, 2009). Finalmente, e porque as respostas sexuais são mais frequentemente vivenciadas no contexto de um relacionamento, é fulcral considerar as componentes interativas do relacionamento e os fatores socioculturais ao tentar avaliar e tratar disfunções sexuais (Quadro 25.3) (Bancroft, 2009).

Quadro 25.1 • Causas físicas comuns de disfunção sexual. Adaptado de Bartlik et al. (2005).

X Diabetes

X História de cirurgia à próstata

X Lubrificação inadequada

X Hipercolesterolemia

X História de histerectomia

X Lesões físicas nos genitais

X Hipotiroidismo

X História de quimioterapia

X Efeito colateral de medicamentos

X Abuso de álcool

X Baixos níveis de testosterona

X Dependência de nicotina

X Baixos níveis de estrogénio

Quadro 25.2 • Medicamentos associados a disfunção sexual. Adaptado de Bartlik et al. (2005).

X Antiarrítmicos, anti-hipertensivos, diuréticos, estatinas

X Antidepressivos, BZD, barbitúricos, AP, anticonvulsivantes

X Anti-inflamatórios não esteroides, analgésicos/relaxantes musculares, antialérgicos, antiulcerosos, anticoncecionais

X Agentes quimioterápicos, terapia de estrogénio, progestina

X Analgésicos narcóticos, psicoestimulantes (variável)

BZD – benzodiazepinas; AP - antipsicóticos.

Quadro 25.3 • Causas psicológicas, socioculturais e relacionais de disfunção sexual. Adaptado de Bartlik et al. (2005).

X Proibições culturais e/ou religiosas

X História de abuso sexual

X Desenvolvimento excessivamente restritivo

X Experiências sexuais passadas negativas

X Conflitos sobre recebimento de prazer sexual

X Problemas psicológicos

X Medo de compromisso e/ou intimidade

X Fatores do relacionamento:

Comunicação pobre, luta pelo poder, conflito grave Deceção, raiva subjacente, emoção não expressa

ColHeita da História sexual

Uma história sexual detalhada é a base para todas as avaliações de problemas sexuais e deve incluir identidade, atividade e função

sexual, saúde geral e comorbilidades, relacionamento e fatores interpessoais, expectativas e atitudes culturais e pessoais (Bartlik et al., 2005).

Os objetivos da avaliação são: (i) definir a natureza dos problemas sexuais e as mudanças desejadas; (ii) obter informação que permita formular uma explicação das causas do problema em termos de fatores predisponentes, precipitantes e perpetuantes; (iii) avaliar perturbações médicas/medicação que comummente levam à disfunção sexual; (iv) decidir sobre a requisição de estudos laboratoriais potencialmente relevantes, como níveis séricos de prolactina; e (v) determinar a intervenção terapêutica indicada (Bancroft, 2009).

A conexão com outros problemas de saúde que possam preocupar o paciente facilita a transição para a abordagem de problemas sexuais. Por exemplo, o médico pode colcoar a seguinte questão: “Muitas pessoas com depressão queixam-se de mudanças na sua resposta sexual. Notou alguma mudança?”. Quando a queixa principal do doente não está relacionada com a sexualidade, é útil fazer uma declaração sobre a natureza habitual dessas perguntas: “A saúde sexual é uma parte importante da saúde geral e, portanto, tenho por hábito inquirir os meus pacientes sobre sexualidade. Posso fazer algumas perguntas sobre a sua?”. Outras perguntas de iniciação comuns são “Tem alguma preocupação sobre sua vida sexual?” e “Como classificaria a sua vida sexual numa escala de 1 a 10?”, complementado, depois da resposta do paciente, com “Como poderia ser um 10?” (Bartlik et al., 2005).

disfunção sexual MasCulina

Perturbação do desejo sexual hipoativo

Características clínicas e diagnóstico

O desejo sexual hipoativo consiste na ausência permanente e persistente de fantasias eróticas e motivação para encetar relações sexuais (Lew-Starowicz et al., 2021). Existem duas variantes da perturbação do desejo sexual hipoativo: (i) primária; e (ii) secundária. A primária pode refletir um padrão variante de desejo secreto ou moralmente reprovável, preferência por sexo masturbatório, trauma sexual

A personalidade jurídica consiste na suscetibilidade de uma pessoa individual ou coletiva ser sujeito de direitos ou obrigações jurídicas. Todo o ser humano singular, por força do princípio da dignidade da pessoa humana, tem personalidade jurídica, que se adquire, nos termos do n.º 1 do art.º 66.º do Código Civil, no momento do nascimento completo e com vida. O reconhecimento jurídico da plena capacidade de agir resulta da maioridade, a partir do momento em que a pessoa completa 18 anos ou com a emancipação dos maiores de 16 anos, presumindo-se a capacidade jurídica de gozo e exercício aos adultos, salvo sentença judicial em contrário. É neste âmbito que surge a Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, que cria o regime jurídico do maior acompanhado, eliminando os anteriores institutos da interdição e da inabilitação. Esta adequação do Código Civil decorre da entrada em vigor, no ordenamento jurídico português, da Convenção de Nova Iorque sobre os direitos das pessoas com deficiência, em que, no seu art.º 12.º, se reconhece o dever de plena capacidade de exercício e de gozo aos portadores de deficiência (Gomes et al., 2020). Nesta nova lei, pode ser beneficiário de medidas de acompanhamento o maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência ou pelo seu comportamento, de exercer plena, pessoal e conscientemente os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres (art.º 138.º da Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto). O acompanhamento é requerido pelo próprio ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto, por qualquer parente sucessível ou, independentemente de autorização, pelo Ministério Público, podendo o tribunal suprir a autorização do beneficiário se este se mostrar claramente incapaz de a dar de forma esclarecida (art.º 141.º da Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto). Ao contrário do anteriormente previsto nos institutos da interdição e inabilitação, em que a realização de perícia era obrigatória, podendo ou não ocorrer a audição do incapaz, o acompanhamento é decidido pelo tribunal, após audição pessoal e direta do beneficiário e ponderadas as provas (art.º 139.º da Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto). Em caso de dúvida judicial, após audição do beneficiário, o juiz poderá determinar a realização de perícia psiquiátrica, em que o perito deve precisar, sempre que possível, a afeção de que sofre o beneficiário, as suas consequências, a data provável do

seu início e os meios de apoio e de tratamento aconselháveis (art.º 899.º do Código de Processo Civil). O art.º 145.º da Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto define que o acompanhamento deverá ser o menos restritivo possível, limitando-se ao necessário, podendo ir da autorização prévia para a prática de determinados atos ou categorias de atos até à representação geral do beneficiário. No regime atual de acompanhamento, os direitos pessoais, como de casar, perfilhar e testar, e o exercício de negócios da vida corrente são livres, salvo disposição da lei ou decisão judicial em contrário (art.º 147.º da Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto) – esta disposição revela uma total mudança de paradigma em relação aos anteriores institutos de incapacidade. Ao proceder à avaliação pericial do beneficiário, elementos do exame do estado mental que melhor apreciem a cognição (atenção, orientação, vigília, memória, funções executivas) e a integridade do teste de realidade do indivíduo (sensoperceção, pensamento, juízo crítico) serão particularmente relevantes. Já o exame documental é essencial para efetuar a adequada datação da data provável de início do quadro patológico. De acordo com o solicitado pelas autoridades judiciais, poderá ser necessário que o perito avalie capacidades civis específicas, como a capacidade de testar, casar, perfilhar, etc. Se alguns destes aspetos, embora de difícil avaliação, podem ser objetivamente alvo de avaliação pericial, outros há que levantam questões éticas importantes e que muito dificilmente poderão ser estabelecidos com o rigor científico exigível a um perito (como é o caso, por exemplo, da capacidade de procriação).

períCia eM direito penal e avaliação de iniMputabilidade

Caso clínico

P. S., 32 anos, 6.º ano de escolaridade, nunca exerceu profissão, vive com os pais. Iniciou seguimento psiquiátrico com 19 anos, por sintomatologia psicótica. Desde os 16 anos que apresentava consumos regulares de canabinoides. Cerca de 3 meses antes do ilícito, abandonou a medicação antipsicótica. Dominado pela crença de que iria ser morto pela mãe e de que precisava de a matar para obter algum tipo de salvação, dirigiu-se ao quarto dos pais e esfaqueou-a. “Naquele momento, sentia que tinha feito bem, que ia receber uma recompensa, que ia ser muito importante e ter os anjos bons

de observação deve ter duas portas para maior segurança (Bolton et al., 2016).

estabilização da Crise CoMportaMental

Quando o doente é trazido ao SU com alterações agudas do comportamento, a prioridade imediata é garantir a segurança do próprio e dos profissionais de saúde, ao mesmo tempo que é iniciado o processo de avaliação clínica.

A “contenção terapêutica” consiste num conjunto de medidas utilizadas para controlar a atividade física ou comportamental de uma pessoa ou de parte do seu corpo durante a prestação de cuidados de saúde, visando melhorar a condição de saúde e prevenir complicações.

O objetivo da contenção terapêutica é otimizar a segurança do doente e de quem o rodeia, mantendo, simultaneamente e dentro do possível, o seu conforto e dignidade.

Medidas não farMaCológiCas

As medidas não farmacológicas devem ser implementadas sempre que possível, designadamente:

X Presença e acompanhamento individual por profissionais de saúde que proporcionem ao doente a libertação de tensões e hostilidade, recorrendo à palavra ou a outras formas de expressão, consoante o contexto;

X Contenção verbal, com sinceridade, calma e firmeza;

X Modificação do contexto, procurando oferecer ao doente um ambiente calmo e seguro;

X Recurso à inclusão ou à exclusão de alguma pessoa significativa para o doente;

X Convite e organização de atividades e tarefas minimamente compatíveis com a condição do doente.

estratégias farMaCológiCas

Quando, após a aplicação das medidas não farmacológicas, o doente se mantém agitado e/ou em risco de ter comportamentos de auto ou heteroagressividade, torna-se necessário administrar medicação. A contenção química do comportamento deve ter como objetivo acalmar o doente, mas evitar induzir o sono (efeito

sedativo), de modo a não camuflar eventuais sintomas neurológicos ou psiquiátricos. Na decisão clínica, devem ser considerados dois passos fundamentais para que a intervenção tenha sucesso:

X Decidir o momento de administrar a medicação – Uma intervenção demasiado precoce pode ser excessiva ou desnecessária e prejudicar a avaliação psiquiátrica, mas uma intervenção tardia, além de colocar o doente e os profissionais de saúde em risco, pode tornar o controlo do comportamento mais difícil exigindo doses mais elevadas;

X Decidir o fármaco a administrar – A escolha do fármaco deve ser orientada, sempre que possível, pela causa mais provável dos sintomas, embora nesta fase seja difícil estabelecer um diagnóstico. A administração por via intramuscular (IM) é a opção indicada quando o doente não tem capacidade para colaborar. Sempre que possível, deve preferir-se a via oral e envolver o doente na escolha da medicação (por exemplo, oral ou IM).

Medidas de Contenção físiCa e MeCâniCa

A contenção física é uma situação em que uma ou mais pessoas da equipa terapêutica seguram um doente, deslocam ou bloqueiam o seu movimento para impedir a exposição a uma situação de risco. A contenção mecânica consiste na utilização de instrumentos ou equipamentos que restringem os movimentos do doente. O isolamento (seclusion, em inglês) significa o confinamento involuntário do doente num espaço do qual não é possível sair. O isolamento só pode ser usado nos casos em que o doente apresente comportamentos violentos iminentes que coloquem em perigo a segurança do próprio ou de terceiros e que não possam ser controlados por medidas menos restritivas. Quando um doente é submetido a medidas de contenção física, mecânica ou de isolamento, tem de ser regularmente monitorizado por um profissional de saúde, e estas medidas devem ser descontinuadas logo que seja possível controlar o comportamento com meios menos restritivos. Não é admissível utilizar estes procedimentos para coagir ou castigar um doente ou para maior conforto dos profissionais de saúde (Direção-Geral da Saúde [DGS], 2011).

nonsuicidal self-injury, 490 o retrato do suicida em Portugal, 492 perspetiva histórica, 487 prevenção, 502 tratamento, 502

fundamental Psiquiatria

T Teoria da gestão do terror, 513 da vinculação, 303 do desenvolvimento psicossexual, 10 social cognitiva, 9 Teorias do desenvolvimento, 10 Terapia

Terapias biológicas, 95 centradas na aceitação, 251 psicodinâmicas, 318 Terrores noturnos, 437 Teste

das Latências Múltiplas do Sono (MSLT, do inglês Multiple Sleep Latency Test), 423 de Manutenção da Vigília (MWT, do inglês Maintenance of Wakefulness Test), 423

Esta é uma obra útil ao longo do processo de aprendizagem do médico nas diversas fases da sua carreira, não apenas nas especialidades de Psiquiatria e Psiquiatria da Infância e da Adolescência, mas em todas as que contactam regularmente com doentes que manifestam sintomas psiquiátricos, como a Medicina Geral e Familiar, a Neurologia ou a Medicina Interna .

Thomas Szasz, 4

Tolerância, 351

Tomografia computorizada (TC) cranioencefálica, 67

N esta 2.ª Edição, os conteúdos, escritos por autores com uma sólida experiência clínica e oriundos de várias instituições do país, foram profundamente revistos e atualizados , incorporando também as alterações decorrentes da ICD-11 e do DSM-5-TR .

Tomografia computorizada por emissão de fotão único (SPECT, do inglês single-photon emission computed tomography), 67 Tomografia por emissão de positrões (PET, do inglês positron emission tomography), 67 Trauma, 273, 274, 278, 286 acontecimento traumático, 278 fator traumático, 274 Tríade cognitiva de Beck, 226

O leitor é introduzido, logo no primeiro capítulo, à especialidade de Psiquiatria, aos seus fundamentos e história, à diversidade de contributos de outras disciplinas e aos recentes avanços no conhecimento cientí co desta especialidade. Nos capítulos seguintes, são abordados elementos essenciais para a avaliação de um doente, como a entrevista clínica, o exame mental e as avaliações complementares

U

Também os médicos internos de Psiquiatria poderão encontrar neste livro informação atualizada e útil sobre os quadros clínicos que irão observar ao longo da sua formação especializada em Psiquiatria. Além disso, os capítulos constituem uma fonte credível e aprofundada, através da qual os médicos internos poderão preparar, com segurança, as suas provas de avaliação.

Professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (aposentado); Chefe de Serviço de Psiquiatria do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra – Polo Hospitais da Universidade de Coimbra (aposentado); Subespecialista em Psiquiatria Forense pela Ordem dos Médicos; Coordenador-docente de cursos de Psiquiatria e Saúde Mental e Suicídio e Comportamentos Autolesivos na modalidade de ensino à distância, a convite do Instituto CRIAP.

Joaquim Cerejeira

baseada na exposição, 251 cognitiva baseada em mindfulness (MBCT, do inglês mindfulness-based cognitive behavior therapy), 114, 117, 427 cognitivo-comportamental (TCC), 102, 107, 117, 126, 132, 135, 148, 151, 153, 154, 211, 251, 253, 264, 277, 285, 286, 306, 307, 318, 328, 330, 331, 378, 437, 438, 439, 453, 457, 514, 516, 517, 520, 522 – combinada com mindfulness, 427 – da insónia (TCC-I), 427 – de 3.ª geração, 112 – para psicose, 181 comportamental dialética, 414 de aceitação e compromisso (ACT, do inglês acceptance and commitment therapy), 112, 427, 522 de ensaio de imagens, 439 de exposição, 517 – com dessensibilização, 439 – prolongada, 286 de grupo, 105 de processamento cognitivo, 287 de relaxamento, 427 de sonho lúcido, 439 dialética comportamental (DBT, do inglês dialectical behavior therapy), 114 dos ritmos sociais, 211 familiar, 107, 505 focada – na compaixão (CFT, do inglês compassion focused therapy), 113 – na família, 211 – nos esquemas de Young, 111 interpessoal, 151, 153, 211, 330 narrativa, 307

Urgência psiquiátrica, 527 caracterização do episódio e da psicopatologia, 529 considerações específicas, 531 contenção terapêutica, 528 destino pós-alta, 539 estabilização da crise comportamental, 528 estratégias farmacológicas, 528 identificação de disfunção orgânica associada, 529 isolamento, 528 medidas – de contenção física e mecânica, 528 – não farmacológicas, 528 princípios gerais de atuação, 527 relacionada com o uso de psicofármacos, 537

A presente obra destina-se também a outros pro ssionais de saúde, como psicólogos, enfermeiros, terapeutas, e a todos os que pretendam aprofundar os seus conhecimentos na área da saúde mental.

V

Vírus da imunodeficiência humana (VIH), 514

Professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra; Especialista e consultor em Psiquiatria, com competência em Avaliação do Dano na Pessoa pela Ordem dos Médicos; Investigador associado do Coimbra Institute for Clinical and Biomedical Research (iCBR); Membro do Conselho Médico-Legal do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses; Membro da Comissão de Ética para a Investigação Clínica.

Z

Zeitgebers, 420

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