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Adaptação por
Ana Sousa Martins
A CIDADE E AS SERRAS Eça de Queirós Clássicos da Literatura Lusófona Adaptados
QECR: Nível B1
Adaptação por
Ana Sousa Martins
A CIDADE E AS SERRAS Eça de Queirós Clássicos da Literatura Lusófona Adaptados
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Este pictograma merece uma explicação. O seu propósito é alertar o leitor para a ameaça que representa para o futuro da escrita, nomeadamente na área da edição técnica e universitária, o desenvolvimento massivo da fotocópia. O Código do Direito de Autor estabelece que é crime punido por lei, a fotocópia sem autorização dos proprietários do copyright. No entanto, esta prática generalizou-se sobretudo no ensino superior, provocando uma queda substancial na compra de livros técnicos. Assim, num país em que a literatura técnica é tão escassa, os autores não sentem motivação para criar obras inéditas e fazê-las publicar, ficando os leitores impossibilitados de ter bibliografia em português. Lembramos portanto, que é expressamente proibida a reprodução, no todo ou em parte, da presente obra sem autorização da editora.
ÍNDICE Sobre o autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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I ...........................................................
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II. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12 III . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16 IV . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20 V . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26 VI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27 VII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29 VIII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32 IX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45 X . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53 XI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58 XII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61 XIII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
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Exercícios de compreensão e vocabulário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66 Soluções . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74
SOBRE O AUTOR José Maria de Eça de Queirós (1845-1900) Por volta de 1845, um juiz de Vila do Conde mantém uma relação amorosa com uma jovem de 19 anos, filha de um coronel. Desta relação nasce uma criança, batizada com o nome de José Maria de Eça de Queirós. Os pais só se casam quatro anos depois, mas, mesmo assim, o pequeno José Maria nunca vive com eles. Fica entregue a uma ama e, depois, vai viver com os avós paternos (pais do pai) até aos dez anos. Depois de a avó morrer, José Maria vai para um colégio interno, no Porto, até ter 16 anos. Na verdade, passa toda a sua infância e adolescência sem saber o que é ter uma família ou um lar. Aos 16 anos entra na Universidade de Coimbra, para fazer o curso de Direito. Aqui, torna-se amigo de escritores e poetas importantes e fica a conhecer as novas ideias da época, como o Socialismo e o Realismo. Vai para Lisboa, torna-se advogado e jornalista. Viaja até ao Egito e Palestina. Mais tarde, torna-se cônsul e, daí em diante, passa a viver em diferentes cidades: Havana, Newcastle, Bristol e Paris. Por estar muito tempo fora de Portugal, Eça de Queirós consegue ter uma visão muito crítica da sociedade portuguesa. Em romances como O Primo Basílio, O Crime do Padre Amaro ou Os Maias (traduzidos para cerca de vinte línguas), Eça faz uma crítica muito forte ao modo de vida da alta sociedade em Portugal, escrevendo de uma maneira nova e muito imaginativa. Torna-se assim num dos mais importantes escritores da língua portuguesa de todos os tempos.
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INTRODUÇÃO Esta é uma versão adaptada de A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós. Contam-se aqui os principais acontecimentos da história, usando frases mais pequenas e mais simples e recorrendo a um número muito menor de palavras (apenas 2000 lemas*). Assim, o aprendente com pelo menos um ano de aprendizagem do português (e sem conseguir, por isso, ler o original) tem oportunidade de desenvolver a sua capacidade de leitura, interiorizar estruturas frásicas, repetidas ao longo do texto, e aprender novo vocabulário. O significado das palavras desconhecidas é dado na margem do texto, através de uma explicação breve ou de uma imagem. No fim deste livro, há exercícios para o aprendente testar a compreensão global da história. Há também exercícios de vocabulário para o ajudar a memorizar melhor as palavras novas. Todos os exercícios têm soluções no final.
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A Cidade e as Serras conta a história de Jacinto, um jovem rico, a viver na magnífica cidade de Paris do século XIX. Os seus antepassados são portugueses e deixaram-lhe muitas propriedades em Portugal, que lhe rendem muito dinheiro. A princípio, Jacinto acha que só consegue ser feliz se tiver acesso a toda a tecnologia e a todo o saber científico da altura. Por isso, no seu palácio, nos Campos Elísios, não falta nada: há eletricidade, elevadores, telefone, telégrafo, máquina de escrever, máquina de calcular e uma biblioteca com mais de trinta mil livros! Jacinto vive todas as vantagens do Progresso, mas, aos poucos, desinteressa-se de tudo e vai perdendo o desejo de viver. Um dia, recebe uma carta de Portugal. A partir daqui, toda a sua vida vai mudar para sempre. Eça de Queirós mostra-nos que a Técnica e o Progresso, só por si, não valem nada. É preciso também bom senso, simplicidade e sentido crítico. E, sobretudo, ser-se verdadeiro e autêntico. Esta versão adaptada mantém as principais intenções comunicativas do autor e algumas características do seu estilo de escrita. A adaptação não quer substituir o original, pelo contrário, quer, justamente, gerar no aprendente o desafio de, mais tarde, ler a obra original. Nota: Cada uma das partes desta adaptação corresponde ao capítulo de número correspondente da obra original. Excetuam-se a parte XII, que se baseia nos capítulos XII e XIII, e a parte XIII, que retira informação dos capítulos XIV e XV da obra original. O capítulo XVI, o último capítulo da obra original, não é visado na adaptação.
* Lemas são palavras na sua forma de dicionário. Por exemplo, as palavras vai, foi, foram e irá têm como lema ir.
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I Jacinto é um homem jovem, rico e elegante, maravilhado com o progresso e grandeza da Cidade. Apesar de pertencer a uma família muito rica do Douro (norte de Portugal), Jacinto tem vivido sempre em Paris, na civilizada e luxuosa cidade de Paris do século XIX.
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Nota: A história de Jacinto é-nos contada pelo seu amigo José Fernandes.
O meu amigo Jacinto nasceu num palácio. Ganhava cento e nove contos de renda porque tinha muitas terras onde se produziam cereais, vinho e azeite. Jacinto era de uma família muito antiga. Na verdade, já desde os tempos de El-Rei D. Dinis que esta velha família cultivava a terra. A propriedade de Jacinto – uma Contos de renda: quinta e casa senhorial – ficava em Tormes, no Baixo Douro. dinheiro (contos de réis) que se recebe por alugar A quinta era tão grande, que ocupava toda uma serra. Entre uma terra. os rios Tua e Tinhela, numa área de cinco léguas, todos os El-Rei: forma antiga: rei. camponeses lhe pagavam renda. Mas o palácio onde Jacinto D. Dinis: rei de Portugal. tinha nascido, e onde sempre tinha vivido, era em Paris, nos (1261–1325). Campos Elísios, n.º 202. Légua: medida antiga: O seu avô, um homem gordíssimo e riquísssimo, era cinco quilómetros. conhecido em Lisboa por D. Galião, Jacinto Galião. Acontece D. Miguel: foi rei de Portugal de 1828 a 1834. que este homem era um grande admirador de D. Miguel e, Em 1831, o seu irmão mais quando o Infante deixou Portugal, Jacinto Galião ficou velho, D. Pedro, deixou o Brasil e voltou a Portugal verdadeiramente furioso e decidiu também ir-se embora para conquistar o poder. de Portugal. Não queria ficar num país – maldito país! – que D. Miguel lutou contra tinha tratado tão mal o seu querido rei! D. Pedro durante três anos (Guerra Civil). D. Miguel Partiu então para França, com a mulher e o filho, Cintinho, perdeu e teve de deixar uma criada e um moleque. Pouco tempo depois de chegar Portugal. a Paris, Jacinto Galião comprou, a um príncipe polaco, Infante: aquele que é filho do rei mas que não é o aquele palácio dos Campos Elísios, n.º 202. Depois da sua filho mais velho. morte, a família não quis regressar a Portugal. Moleque: rapaz preto. Cintinho, entretanto, fez-se homem. Porém, como tinha Pátio: espaço aberto que pouca saúde, morreu cedo, antes mesmo de ver o filho faz parte de uma casa. nascer. Esse filho é o meu amigo Jacinto. Jacinto cresceu com segurança, riqueza e saúde. Além disso, era muito inteligente. Nas brincadeiras do pátio da escola, ele era sempre o vencedor e todos queriam ser amigos dele. 7
Na adolescência, Jacinto nunca sofreu daqueles males de amor de que todos os adolescentes sofrem. O seu coração não era suficientemente forte para poder sentir um amor forte. E ele não se importava nada com isso. Pelo contrário, achava que essa incapacidade de amar o libertava. Todos os seus amigos – incluindo eu e o tal criado preto, chamado Grilo – tinham-lhe uma amizade pura, certa e constante. Uma amizade que se mantinha sempre firme: não crescia com o luxo de Jacinto, nem diminuía com o seu egoísmo. Forte, rico e indiferente ao Governo dos Homens, o seu único objetivo era compreender bem as Ideias Gerais. A sua inteligência era excecional e reconhecida por toda a gente. Sempre que, num café ou reunião, Jacinto dava uma opinião ou dizia alguma graça, logo todos concordavam com ele ou riam elegantemente. Enfim, tudo o que ele fazia ou dizia tinha sempre, à partida, um brilho especial. Além disso, tinha uma sorte invulgar. Parecia que todas as coisas do dia a dia estavam organizadas em função dele. Aqueles pequenos azares que nos acontecem a todos nós – como saltar-nos um botão de uma camisa, perdermos um papel importante ou não conseguirmos, com a pressa, fechar uma gaveta –, a ele, nunca lhe aconteciam. Aliás, quando um dia decidiu comprar um bilhete de Lotaria a um espanhol, logo a Fortuna, leve e sorridente, correu a trazer-lhe quatrocentas mil pesetas! E no céu, as Nuvens carregadas, quando viam Jacinto sem guarda-chuva, evitavam fazer chover! Definitivamente, a Má-Sorte estava fora do seu caminho! Era por isso que nós lhe chamávamos “o Príncipe da Grã-Ventura”! Jacinto e eu – José Fernandes – encontrámo-nos em Paris, nas Escolas do Bairro Latino. Foi para aqui que o meu bom tio, Afonso Fernandes Lorena de Noronha e Sande, me enviou. Isto depois de me expulsarem da Universidade de Coimbra, só por eu ter dado uns bons murros, uma tarde, na rua da Sofia, na cara do maldito Dr. Pais Pita… Ora, nesse tempo, Jacinto tinha produzido uma ideia… Este Príncipe tinha tido a ideia de que “o homem só é superiormente feliz quando é superiormente civilizado”. E um homem civilizado era, para o meu amigo, aquele que tinha fortalecido todo o seu pensamento com as noções adquiridas desde Aristóteles; aquele que tinha multiplicado a força de todo o seu corpo com todos os mecanismos inventados desde Terâmenes, criador da roda; aquele que se tinha tornado um magnífico Adão, pronto a receber, nos limites do Progresso (tal como ele estava, em 1875) todos os benefícios dados pelo Saber e Poder… Pelo menos, era isto que Jacinto me explicava demoradamente, enquanto bebíamos dois ou três bocks nas cervejarias filosóficas do Boulevard Saint-Michel. 8
Fortuna: sorte. Nuvens carregadas: nuvens muito negras. Antes de cair uma chuva forte, as nuvens ficam carregadas. Grã-Ventura: boa sorte, grande sorte. Dar um murro: bater em alguém com a mão fechada e com toda a força. Demoradamente: sem pressa e durante muito tempo. Bock: cerveja forte e escura.
A CIDADE E AS SERRAS
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Para Jacinto, porém, o seu conceito não era apenas um Mirante: construção de vidro, no cimo de uma simples exercício da razão e do pensamento. Não. Para ele, casa. Do mirante vê-se a esta ideia constituía uma regra – real e útil – feita para paisagem em volta. determinar os comportamentos e dar forma à própria vida. Presunto: Por isso é que ele, já nesse tempo, tinha comprado a Pequena Enciclopédia dos Conhecimentos Universais, em setenta e cinco volumes. Também por isso, tinha instalado, sobre os telhados do 202, no mirante, um telescópio. Foi, justamente, com esse telescópio que ele me explicou, numa noite quente de agosto, como essa sua ideia era bem real e concreta. – Aqui tens tu, Zé Fernandes – começou Jacinto, encostado à janela do mirante – aqui tens a teoria que me governa. Aqui está ela, bem comprovada. Com os olhos que a Natureza nos dá só conseguimos ver além – vês? – uma montra iluminada. Se eu, porém, puser uns binóculos, vejo que essa montra tem presuntos, queijos e vários frascos e caixas. E se eu, em vez dos binóculos, usar o meu telescópio, posso ver, mais além, toda a geografia de Marte. Marte! Um planeta que está a milhares de léguas dos Campos Elísios! Tens aqui, o olho que a Natureza dá, e que, através da Civilização, aumenta na sua potência máxima de visão. Portanto, eu, civilizado, sou mais feliz do que o incivilizado, porque descubro realidades que ele não sonha que existem. Devemos, pois, aproveitar a Civilização, nas máximas proporções, para termos, também nas máximas proporções, a real vantagem de viver. Concordas agora, Zé Fernandes? Eu, francamente, não percebia qual era a vantagem em ver, através do espaço, umas manchas num planeta, ou, através da Avenida dos Campos Elísios, presuntos numa montra… Mas concordei com ele, porque sou boa pessoa e não tinha necessidade de o contrariar. Abri o casaco e apontei para o lado do café e das luzes: – Vamos então beber, também nas máximas proporções, brandy and soda com gelo? A ideia de Civilização, para Jacinto, não se separava da imagem da Cidade, de uma enorme Cidade. A Cidade era como um ser gigantesco, com todos os seus vastos órgãos funcionando poderosamente. Os Armazéns, onde se cruzam três mil negociantes; os Mercados, onde são despejados os produtos de trinta províncias; os Bancos, onde brilha o ouro; as Fábricas, a deitarem fumo; as Bibliotecas, cheias de papelada dos séculos… e as ruas, ruas e mais ruas, cheias de fios de telégrafos, fios de telefone, tubos disto e daquilo… e o barulho das filas dos autocarros, carroças, 9
calhambeques e bicicletas… e dois milhões de pessoas, para cá e para lá, a ofegar, na luta diária pelo pão. Sem tudo isto, pensava Jacinto, o homem do século XIX nunca poderia saborear, plenamente, a delícia de viver! – Que magnífica criação, a da Cidade! Só por ela, Zé Fernandes, só por ela pode o homem, em pleno, dizer que tem alma! E só a Cidade lhe dava a sensação de solidariedade humana. No 202, Jacinto pensava nos dois milhões de seres que trabalhavam na Civilização (para manter pessoas como os Jacintos!). Sentia então uma tranquilidade e um sossego verdadeiros. Pelo contrário, no campo, em plena natureza, ele tremia de terror, sentia-se frágil e só. Estava ali como que perdido, num mundo que lhe era totalmente estranho. Além de tudo, no meio de árvores e pedras, ele sentia-se humilhado, pois ali de nada lhe serviam as suas superiores capacidades intelectuais. No campo, toda a intelectualidade ficava reduzida a nada. Só restava a animalidade. Comer e procriar: eram estas as únicas funções que ali se mantinham vivas. Só estes dois instintos determinavam a vida no campo. Depois de uma semana no meio rural, Jacinto tinha de voltar à cidade rapidamente, para mergulhar nas ondas da Civilização. Só então voltava a ser humano e espiritual! Este delicioso Jacinto tinha feito vinte e três anos e tinha-se tornado um homem elegante e majestoso. Parecia que todas as forças dos velhos Jacintos rurais tinham reaparecido nele. O cabelo e bigode eram muito fortes, como os de um celta. Mas todos os seus fatos, gravatas de cetim escuro, luvas Calhambeque: brancas e botas de verniz vinham de Londres, em caixotes. Usava sempre, ao peito, uma flor – não uma flor natural, mas uma flor feita pela florista, de propósito para ele. Em 1880, em fevereiro, numa cinzenta e fria manhã de chuva, recebi uma carta do meu bom tio Afonso Fernandes. Queixava-se do peso dos seus setenta anos e da sua falta de saúde. E lamentava-se por, assim velho, ainda ter de ser ele a tratar de todas as suas propriedades. Fazia falta ali – dizia – um homem mais novo, para tomar conta de todos os seus bens. Pedia-me então para eu regressar à nossa casa de Guiães, no Douro! Parei de ler a carta. Pensei, a princípio, que era injusto o meu tio estar a pedir-me aquilo. Eu tinha de deixar a vida que levava em Paris. Tinha de deixar as minhas namoradas… Bom, e tinha de deixar o meu curso de Direito, que ainda mal tinha começado. 10
Ofegar: respirar profundamente e depressa. Quando acabamos de correr muito, ofegamos. Procriar: ter filhos. Cetim: tecido brilhante usado para fazer roupas caras. Verniz: líquido transparente e pegajoso usado para cobrir madeira, sapatos, unhas, etc. O verniz torna as coisas brilhantes.
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A CIDADE E AS SERRAS
No final da carta, o meu tio dizia: “O tempo aqui está lindo e a tua tia está de boa saúde. Anda agora na cozinha porque faz hoje trinta e seis anos que casámos. Temos cá o padre para jantar e ela quis fazer uma sopa dourada.” Pensei então como devia estar boa a sopa dourada da tia Vicência. Há quantos anos não a provava… nem o leitão assado, nem o arroz do forno da nossa casa! Com o tempo assim tão lindo, já as mimosas do nosso pátio deviam estar em flor. Imaginei o céu azul, o fantástico azul do céu de Guiães, que ilumina as relvas, os ribeiros e as flores… e o ar fino, forte e perfumado da serra e dos pinhais. Parecia que, de repente, eu estava a ver e a sentir tudo aquilo… Tirei, debaixo da cama, a minha velha mala e meti, entre a minha roupa, o Tratado de Direito Civil. Tencionava estudar, depois, à sombra de uma árvore, as leis que governam os homens. Depois, nessa tarde, disse a Jacinto que partia para Guiães. O meu amigo mal podia acreditar: – Para Guiães!... Ó Zé Fernandes, que horror! Para ele, ao deixar a Cidade, eu passava a ser como que um homem morto. Acompanhou-me até ao comboio e a sua tristeza era tanta que parecia estar a assistir ao meu próprio funeral! Cheguei a Guiães. Ainda havia mimosas no pátio. Comi com delícia a sopa dourada da tia Vicência. Bom… e ali passei docemente sete anos. Tinha sempre muito que fazer – ou nas colheitas, ou na caça, ou nas festas de S. João –, de modo que nunca abri o Tratado de Direito Civil. De Jacinto só recebia, raramente, algumas cartas, breves e escritas à pressa, nos intervalos daquela vida agitada da Civilização. Depois, em setembro, pelas vindimas, o meu tio morreu. Morreu tão calmamente como um passarinho se cala ao fim do dia. Passado um tempo, voltei a Paris.
Padre:
Sopa dourada: doce feito com pão frito, ovos, açúcar, limão e canela. Leitão:
Mimosas: flores amarelas que formam pequenas bolas.
Pinhal: conjunto de pinheiros (o pinheiro é uma árvore). Colheita: ação de apanhar (colher) os produtos agrícolas. Vindimas: trabalho de colher as uvas da videira; depois das uvas faz-se o vinho.
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A CIDADE E AS SERRAS Eça de Queirós O século XIX é o século do início do progresso tecnológico e Paris é a cidade na linha da frente da ciência, cultura e arte. Paris é, afinal, em 1880, o exemplo máximo da Cidade do Futuro. E, no entanto, não é a Cidade que faz o Homem feliz. Não fez feliz Jacinto, o jovem rico e bem-parecido, que só encontra a verdadeira sabedoria e equilíbrio numa quinta escondida no Douro. É este o pano de fundo da história contada em A Cidade e as Serras, uma das mais magníficas obras de Eça de Queirós. Este livro é uma versão adaptada destinada a aprendentes com pelo menos um ano de aprendizagem formal do português (ou do nível B1). Nesta edição, as palavras desconhecidas são sublinhadas e glosadas na margem de cada página. Estas glosas são uma breve explicação do significado da palavra ou, então, dão informação histórica e cultural necessária à compreensão de uma passagem. Muitas vezes, também, recorre-se a uma imagem, para ser mais rápida a apreensão da noção em referência e, assim, minimizar a suspensão do fluxo de leitura. Cada capítulo tem um resumo no início. Deste modo, procura-se que o leitor inicie a leitura do capítulo fazendo predições corretas sobre o andamento da narrativa. No final do livro há exercícios, com soluções, para o aluno testar a compreensão global do texto e para o ajudar a memorizar o vocabulário novo.
ISBN 978-972-757-852-8