Alzheimer em 50 questoes essenciais

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Introdução A doença de Alzheimer tornou-se uma das doenças mais temidas nas sociedades ocidentais. Com o aumento da esperança de vida da população, assiste-se também a um aumento de pessoas com a doença, dada a sua relação com o envelhecimento e a influência de diversos fatores patológicos sobre o cérebro. A doença de Alzheimer é a causa mais frequente de demência, embora existam muitas outras causas. As demências são doenças do cérebro, na sua maioria, de causa degenerativa, que provocam uma perda progressiva e irreversível das capacidades cognitivas (memória, linguagem, capacidades de planeamento e de execução, de reconhecimento de coisas e pessoas, etc.) e conduzem a uma perda da autonomia para as atividades de vida diária, incluindo a alimentação e a locomoção (o andar) nas fases terminais da sua evolução.

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Atualmente é difícil encontrar uma pessoa que nunca se tenha cruzado com o termo doença de Alzheimer, e é possível até que já tenha cuidado ou ajudado a cuidar de doentes com demência. Mantêm-se, no entanto, muitas dúvidas e mal-entendidos em relação à doença, quer quanto ao seu diagnóstico quer quanto ao que esperar do tratamento e da evolução. Dada a elevada prevalência da doença, investigadores e médicos têm-se dedicado cada vez mais a melhorar o conhecimento das populações e a ampliar os fundos de financiamento destinados à investigação dos mecanismos da doença. A década 1990-2000 foi declarada como a “Década do Cérebro” pelo Congresso dos Estados Unidos da América, sob a presidência de George Bush, com um investimento gigantesco e tendo a doença de Alzheimer como um dos alvos principais. Para 2014 o presidente Barack Obama anunciou um novo megaprojeto – o BRAIN (Brain Research through Advancing Inno-

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vative Neurotechnologies) com um orçamento de 100 milhões de dólares, destinado a mapear com grande detalhe o cérebro, de modo a estabelecer os circuitos cerebrais e as redes neuronais. Ficaremos certamente ainda mais maravilhados com o magnífico cérebro humano. No que à doença de Alzheimer diz respeito, ainda não sabemos o suficiente para obter uma prevenção e/ou tratamento eficazes, e, por isso mesmo, os media criam com frequência falsas ilusões divulgando medidas de prevenção ou tratamentos como tendo eficácia comprovada, quando muitas vezes se trata apenas de investigações promissoras. Os investigadores dedicam-se a investigar os mecanismos fisiopatológicos da doença, a encontrar marcadores de deteção precoce e os fármacos mais eficazes. Os médicos apostam no diagnóstico o mais cedo possível, de modo a ganhar tempo para o doente e para a família compreenderem a doença, prepararem melhor o futuro e obter-se, assim, uma curva de declínio com um declive menos acentuado. Contudo, existe ainda muita margem de incerteza em todas as etapas do conhecimento da doença. Notem, por exemplo, que em cada ano que passa a indústria farmacêutica investe milhões de dólares em novas linhas de fármacos, muitos dos quais nunca passam dos ensaios iniciais. As estimativas sobre o número de casos de doença de Alzheimer no mundo, para 2050, é de 1 em cada 85 pessoas, 43% das quais se prevê necessitarem de um nível elevado de cuidados. São números assustadores e que deverão impelir a sociedade e cada um de nós a fazer o seu melhor na prevenção[1]. No entanto, nem tudo é assim tão derrotista como as previsões podem fazer crer. Sabemos muito mais hoje do que há décadas atrás acerca dos mecanismos que conduzem à morte neuronal e à acumulação da proteína amiloide e das tranças neurofibrilhares, embora ainda se desconheçam os fatores que desencadeiam esses danos. XII


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Clinicamente já temos os meios para fazer o diagnóstico precoce, ainda que inseguro, mas não temos ainda os medicamentos para impedir o desenvolvimento dos sintomas. E, além disso, é ainda discutível efetuar estudos genéticos de um modo generalizado a familiares de doentes. Sabemos classificar os estádios da doença e temos testes padronizados para determinar os diferentes défices cognitivos, mas ainda não conseguimos entender e comunicar eficazmente com a pessoa doente, a qual vai ficando cada vez mais submersa na doença e afastando-se da nossa compreensão. Daí olharmos para a doença de Alzheimer como um potencial assaltante das nossas capacidades, do qual conhecemos o modo de ataque mas para o qual temos ainda poucos meios de defesa. Sentimo-nos inseguros à medida que a idade avança e notamos a memória a falhar, e surge a inevitável questão: será Alzheimer?

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A vida moderna é complexa, em especial nas grandes cidades, e não se compadece com a diminuição de capacidades. Não existem familiares próximos em número suficiente e com disponibilidade para cuidar, os rendimentos não são suficientes para pagar cuidados profissionais – tudo isto são medos que se acumulam e se multiplicam em muitos idosos. A medicina ocidental preza muito o diagnóstico rápido e eficaz, a cura, a erradicação definitiva da doença, o mediatismo de cirurgias longas e complicadas, a colocação emergente de stents, a permeabilização das artérias obstruídas, uma série de exames caros e sofisticados, complexos cocktails de medicamentos. E ao mesmo tempo a sociedade tem pouco tempo para cuidar, para ouvir, para pegar na mão e acariciar a cabeça da avó, para levar o avô ao jardim ou a um passeio à beira mar – afinal “ele anda tão devagar” e “nós temos tanto que fazer”. Há pouco tempo uma senhora nos seus setentas questionavame como eu me sentia por não ter curas para dar aos doentes, dizendo que me deveria sentir sempre derrotada.

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Este é realmente o paradigma da medicina ocidental, a qual leva as pessoas a acreditar na cura para todos os males. Embora as evidências continuem a provar o contrário parece existir uma secreta esperança de que a medicina nos vá livrar de todas as doenças, logo, que nos torne imortais. Alguns consideram que a doença de Alzheimer se poderá curar a curto prazo, instalando um novo chip no cérebro, de modo a aumentar a memória do “disco”, ou mesmo substituindo o “disco”. Talvez. Pouco podemos prever do futuro. Felizmente. À senhora respondi apenas que está talvez equivocado quem pensa que o médico serve apenas para curar. Em muitas doenças e com muitos doentes o médico serve muito mais para cuidar. Sei que foi com os doentes que sofrem de demência e com as suas famílias que aprendi muito do que é verdadeiramente importante sobre o amor, a dedicação, o entender e procurar a pessoa que está lá, sob os exames e os diagnósticos técnicos. Mas que também me coube confirmar a existência da maldade, das intrigas, dos ódios antigos e atuais que envenenam muitas famílias. Somos humanos, logo capazes das melhores e das piores ações e comportamentos. Algum chip irá alguma vez mudar radicalmente quem somos? É verdade que cuidar e ser médico de doentes com demência implica atitudes um pouco diversas da maior parte do que é praticado na medicina atual. É necessário tempo e paciência para ouvir o que é dito e procurar, por vezes, saber para além do que é falado. O médico tem de abordar a pessoa e não apenas a doença. Não pode esquecer aquilo que a doença acarreta de problemas físicos, psíquicos e socioeconómicos para a família. O diagnóstico técnico é fundamental e imprescindível. A família e o doente têm de saber o que se passa de modo a melhor se prepararem.

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Contudo, o diagnóstico técnico não é o bastante na demência. Cada doente e cada família irão reagir de acordo com os seus conhecimentos, medos, necessidades, afetos, personalidades. Cuidar é difícil, entender as necessidades do doente é ainda mais difícil. Pode até tornar-se uma tarefa impossível para alguns familiares, e, muitas vezes, de grande sofrimento também para o médico. A família tem de confiar no médico do doente, pois juntos terão muitas vezes de viajar até ao passado mais remoto do doente para entender as alterações que estão a acontecer no momento atual. Teremos sempre de saber quem é a pessoa com a doença e não apenas qual é a doença.

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Diagnosticar a demência é um ato clínico relativamente simples, mas colocar um diagnóstico é apenas a primeira e talvez a menos complicada de todas as etapas que o doente, a família e o médico vão viver em conjunto. Como disse anteriormente, o doente e os familiares quando chegam pela primeira vez a uma consulta trazem receios, dúvidas, e transportam diferentes biografias de vida. As placas de amiloide têm aspeto semelhante em todos os cérebros afetados mas isso nada nos diz sobre o que devemos esperar na evolução do doente. Vai ser agitado ou apático? Vai fazer sopa de letras durante meses ou vai deixar de assinar o nome em pouco tempo? Vai confundir a esposa com a mãe? Ou vai, até ao fim, reconhecer o grande amor da sua vida, embora esquecendo o seu nome? Não sabemos. Vamos caminhando e tentando entender, juntos. Um médico que se dedique a tratar de doentes com demência deve manter o coração aberto, deve permitir-se chorar e rir com os doentes e as famílias. Estes chegam, a maior parte das vezes, com falsas esperanças sobre a eficácia dos medicamentos. O raciocínio da maioria das famílias é simples de entender: se existem medicamentos, e especialmente sendo caros, devem fazer parar a doença. E, portanto, nada de mais errado. Os medicamentos não param a

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evolução, apenas atenuam os sintomas, tal como acontece em muitas outras doenças. Neste caso, com a agravante da perda contínua de células cerebrais e, portanto, o aparecimento de novos sintomas. É verdade que tudo isso pode ser encarado como uma derrota por muitas pessoas, em particular nas sociedades atuais, ultracompetitivas, em que somos julgados apenas pelas nossas capacidades cognitivas. E já não pela nossa bondade, pelos sacrifícios que fizemos para educar os filhos, pela harmonia que sempre prezámos dentro da família, pelo bem-estar que ainda podemos proporcionar aos nossos filhos e netos mesmo com a perda de memória e de outras capacidades. Por vezes, circulamos na vida como autómatos, parando pouco para refletir, para nos compreendermos e aos outros. E daí que seja por vezes tão difícil para algumas famílias cuidar de um doente com demência, pois nunca existiu esse esforço para se conhecerem uns aos outros. Este guia pretende, de um modo simples, responder às questões mais frequentes sobre as demências e, em particular, sobre a doença de Alzheimer, a qual é responsável em todo o mundo pela maioria dos casos de demência. Está organizado em partes distintas, iniciando-se com os mecanismos patológicos da doença de Alzheimer e outras demências, a que se segue os métodos e as dificuldades do diagnóstico, os tratamentos disponíveis, o planeamento em relação ao futuro do doente e da família, a explicação e os modos de melhor lidar com as principais alterações comportamentais e cognitivas ao longo da evolução da doença e uma parte final dedicada aos aspetos legais e apoios aos cuidadores. Centrar o tratamento na pessoa com demência e não apenas nos sintomas da demência é a principal mensagem deste livro.

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3. Tenho familiares com doença de Alzheimer. Qual é o meu risco de desenvolver a doença? A idade de início da doença nos meus familiares é importante? Em relação aos fatores genéticos, o mais comum em termos de prevalência é a presença do alelo Apo ε4. Trata-se de uma proteína transportadora do colesterol e o alelo ε4 é uma das três formas possíveis (ε2, ε3, ε4), mas que se associa a um aumento do risco de desenvolver a doença e antecipa a idade de início dos sintomas. O risco de desenvolver doença de Alzheimer durante a vida é de cerca de 10% para um indivíduo sem o alelo ε4, e para uma pessoa com, pelo menos, um alelo é de cerca de 30%. Genotipagem ApoE Determinação genética da ApoE. Existem os alelos 2, 3 ou 4 – o alelo 4 tem uma incidência de 14% na população caucasiana em geral e nas formas tardias de doença de Alzheimer está presente em 30% das esporádicas e 51% das familiares, sendo considerado um fator de risco para o aparecimento da doença.

O teste de genotipagem ApoE não é, no entanto, por si só, capaz de identificar se uma determinada pessoa virá ou não a desenvolver doença de Alzheimer. Muitos dos indivíduos portadores dos alelos ε4 não desenvolvem a doença e, pelo contrário, muitos doentes de Alzheimer não possuem o alelo de risco, daí que o seu valor preditivo seja escasso. É, no entanto um importante fator de risco a ter em conta e que pode ajudar o médico no diagnóstico diferencial do doente. Ao contrário do que acontece com o ApoE, que é um gene apenas de suscetibilidade, quem herdar uma das mutações causadoras da doença de Alzheimer familiar irá certamente desenvolver a doença se viver os anos suficientes, pois as mutações são autossómicas dominantes com penetração completa.[5] Estas mutações transmitem-se com uma penetrância quase de 100% e estão relacionadas com três genes diferentes: • As mutações ocorrem no gene precursor da proteína amiloide (gene APP, cromossoma 21), gene da presenilina 1 (cromossoma 14), ou gene da presenilina 2 (cromossoma 1);

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6. Tenho diagnóstico de Défice Cognitivo Ligeiro. Qual o risco de evoluir para demência? Como referido na Questão anterior, existe um grupo de pessoas que nota dificuldades de memória superiores ao normal mas que continua a funcionar razoavelmente bem no dia a dia. As suas pontuações em testes neuropsicológicos não são normais para a sua idade e nível de escolaridade, mas ainda não são pontuações que possam denotar sinais de demência (Figura 13). Função cognitiva

Idoso normal A Défice Cognitivo Ligeiro B Demência

Tempo (anos)

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Figura 13 – Evolução da função cognitiva no envelhecimento

Esta descrição corresponde à situação atualmente designada por Defeito, Deterioração, ou Défice Cognitivo Ligeiro (DCL), definida essencialmente pela presença de défices de memória (e eventualmente outros) na ausência de relevante compromisso das atividades da vida diária. Sabe-se hoje que, em muitos casos, é uma zona de transição entre as alterações cognitivas do envelhecimento normal e a fase precoce da doença de Alzheimer ou outras formas de demência. Para o diagnóstico de DCL é preciso que o doente cumpra determinados requisitos estabelecidos – os denominados cri-

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10. Quais são os sinais mais precoces da doença de Alzheimer? Na maioria das pessoas afetadas pela doença de Alzheimer, os sintomas iniciais relacionam-se com problemas do funcionamento da memória – aí reside um dos fatores de atraso potencial de diagnóstico. Nos idosos que vivem sós pode demorar algum tempo até que alguém se aperceba dos sintomas, pois o próprio doente não tem habitualmente noção da gravidade das dificuldades da sua memória e das potenciais implicações dessa disfunção na vida diária.

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O doente pode esquecer-se de tomar os medicamentos, de almoçar, de cumprir tarefas previamente agendadas e não ter noção de que falhou ou até, pelo contrário, atribuir a responsabilidade das falhas aos familiares, se lhe for chamada a atenção para esses factos. No entanto não é apenas nos idosos que vivem sozinhos que podem passar despercebidas as falhas na memória. Também naqueles que vivem com familiares há inicialmente uma tendência natural em desvalorizar os sintomas. É verdade que não existirá nenhum humano cuja memória nunca tenha falhado. Talvez devido a essa perceção de que a memória nos pode atraiçoar em qualquer idade e em múltiplas circunstâncias, mantêm-se por algum tempo as dúvidas se as falhas que a família nota são normais ou patológicas. E este tempo pode variar de meses a anos, consoante as características das famílias, a gravidade dos sintomas e a ocupação diária do doente. Apesar de ser a memória a função mais vezes referida pelo doente e familiares como estando afetada, começam a surgir desde cedo outras dificuldades cognitivas. As pessoas afetadas apresentam uma dificuldade cada vez maior em cumprir tarefas sequenciais e com algum grau de complexidade, parecendo, muitas vezes, como que ausentes, alheadas do ambien73


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17. Devo falar com o doente sobre o seu diagnóstico e o futuro? A resposta mais simples é que depende de pessoa para pessoa, e é um problema que não se coloca apenas com o diagnóstico de doença de Alzheimer. Aliás, nota-se, erradamente, maior à-vontade das famílias em falar abertamente em frente a um doente com demência do que com um cancro, pois creem que não são entendidos pelo próprio doente. Neste aspeto convém salientar que embora o doente possa não entender na sua totalidade as conversas entre o médico e a família, em especial nas fases mais avançadas, irá ficar irritado e irrequieto ao aperceber-se que estão a falar acerca dele e sem a sua participação.[115] Sempre que possível, a família deve pedir ao médico mais esclarecimentos sobre a doença, evolução, cuidados a ter com o doente, etc., sem a presença do mesmo.

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Será mesmo importante dizer claramente a uma senhora viúva, com 80 e muitos anos, a viver em casa da filha mais velha, que tem doença de Alzheimer e poderá vir a ficar acamada, incontinente e dependente de outra pessoa para se alimentar, higiene, etc.? Não creio. Talvez seja apenas necessário conduzir a família pelos progressivos degraus da incapacidade da mãe, orientando-a na previsão das dificuldades, e do que poderá ser feito, como: simplificar a mobília, retirar os tapetes escorregadios, mudar o fogão a gás, proteger os degraus e saídas para a rua, mudar a banheira para polibã e o mais que for necessário. Mas e se tiver 54 anos, trabalhar e ainda tiver filhos dependentes? O fluxo da vida, a esperança de futuro vai ser encolhida e distorcida. Não é possível ocultar que tem de se reformar, é preciso preparar os filhos para um apoio crescente, lidar com

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