Revista subversa vol 4 nº9 maio2016

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SUBVERSA Vol. 4 | n.º 09 | maio de 2016

ISSN 2359-5817

Ilustração | LILA BITTEN

PAULO ARCE | EBER S. CHAVES CRISTINA SANTOS | MILTON REZENDE PILAR BU | EDSON DUARTE EDSON AMARO | RAFAEL LINDEN HELENA BARBAGELATA | WAGNER SCHADECK


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Subversa | literatura luso-brasileira | V. 4 | n.º 09

© originalmente publicado em 15 de maio de 2016 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações LILA BITTEN| INSTAGRAM | LILA1197@GMAIL.COM

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.

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SUBVERSA CRISTINA SANTOS | EM MEMÓRIA DE MINHAS RUÍNAS | 6 EBER S. CHAVES | CANA-DE-AÇÚCAR | 9 EDSON AMARO DE SOUZA | GREVE E ENCHENTE | 11 EDSON COSTA DUARTE | FIM DA LINHA | 14 HELENA BARBAGELATA | AS NAUS INSONHADAS | 18 MILTON REZENDE | ENCHENTE | 24 PAULO ARCE | UM CACHORRO | 26 PILAR BU | ESGANADA| 28 RAFAEL LINDEN | SUSAN | 30 WAGNER SCHADECK | QUATRO INVENÇÕES DA CIDADE | 38

SOBRE LILA BITTEN | 47

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EDITORIAL Dai-me uma fúria grande e sonorosa, E não de agreste avena ou frauta ruda, Mas de tuba canora e belicosa, Que o peito acende e a cor ao gesto muda; Dai-me igual canto aos feitos da famosa Gente vossa, que Marte tanto ajuda; Que se espalhe e se cante no universo, Se tão sublime preço em verso. Luís de Camões “Os Lusíadas” Canto I. Estância 5 Lusíadas, a obra que é considerada a maior de língua poturguesa, trata da expansão marítima e em seus versos são cantados os feitos gloriosos daqueles que buscaram a expansão de seu mundo. Ora, o que é a literatura senão a expansão de mundo (s)? E mais ainda, o que é trabalhar a literatura senão uma travessia oceânica, cheia de perigos, mistérios, dores e amores? Camões invoca as musas por inspiração para cantar a glória portuguesa. E o escritor contemporâneo a quem invoca? Dizem que lutar pela literatura é uma aventura, é enfretar o gigante Adamastor e outros que se agigantam. Parece um arrastar de naus que, volta e meia, destroi todo o avanço conseguido pelo mar tenebroso. Mas os marinheiros literários não desistem e sempre aparecem mais alguns para se juntarem à aventura. Recentemente apresentamos os nossos novos colunistas: Daniel Bomqueiroz (Brasil) e Pedro Belo Clara (Portugal). O primeiro nascido feito bergamota, de sangue crítico e ácido; o segundo um lírico que escreve sobre o mais subversivo dos sentimentos: o amor. Alguns acreditam que não vale a pena enfrentar monstros e gigantes pela expansão de mundos através da literatura, que não vale a pena a dor de enfrentar acordos e desacordos, assim como muitos acreditavam que as naus não chegariam ao destino almejado, mas se não houver marinheiros subversivos a atravessar oceanos, quem o fará? Desejamos a todos uma boa viagem. As editoras.

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Em breve, Subversa versĂŁo impressa #2

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“Trinômio”, ilustração de Lila Bitten

EM MEMÓRIA DE MINHAS RUÍNAS CRISTINA SANTOS | São Paulo, SP.

primeiro movimento: Quando se faz algo errado, basta repetir três mil vezes de que foi a decisão certa e você conseguirá conviver com seus erros. Dia nublado, depois de amanhã do ano seguinte. Uma mulher fala. Não me desconstrua, por favor, não me desconstrua, não quebre a sequência que virá. Não me quebre pela minha pele. Não quebre

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minha voz que é única. Este momento não tem volta. É como o vômito ... que quando começa não é possível parar. Ouça, ouça, ouça minhas memórias presentes ficcionalizadas ... as costuro em meu corpo para não perdê-las nas quedas. E para não mais cair, corro, corro, corro sem sair do lugar e descubro que apocalipse significa revelação e nessa revelação muitos me perseguem. Pois estou no campo de visão daqueles cujas memórias já não mais existem. Cuidado. Cuidado. Eu peço tenha cuidado onde pisa, pois você está sozinha nas ruínas de todos os pés. E elas, as ruínas, pedem que as celebremos! Porque elas são o único vestígio do que somos. As memórias teimam em sair pela costura do meu corpo e as sopro, sopro, sopro, mas não com doçura e sim, como o gosto amargo da poeira que mora dentro de mim. Desculpa, é que é muito pesado carregar os restos de todos e não posso esconder o alívio que é soprálas. Essa repetição cansa. É cansativo soprar e costurar, costurar e soprar, soprar e costurar. Pausa para o chá? ....... Os três ursos me perguntam. ....... Não, por enquanto não. ....... Tudo bem então. ....... Mas para mudar essa imagem pare de se costurar e aceite de presente essa faca para cortar sua pele. Corto minha epiderme, chego à derme, me aprofundo na hipoderme e me encontro nas vísceras. Encontro Três. Nós Três. Triângulo. Pai, Filho, Espírito Santo. Começo, Meio, Fim. Brahma, Vishnu, Shiva. Passado, Presente, Futuro. Não, Talvez, Sim. Descubro que sempre ressuscito no terceiro dia e que em mim, reinam ruínas organizadas que teimam e persistem. Existem e Resistem. Renascem e Nascem forte como a Maria. Maria ... aquela chamada de sem vergonha, que tem todas as cores e que da em qualquer lugar. Até mesmo aqui, ....... nas ruínas de todas as memórias. Respiro e paro.

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Afinal, uma suspensão é necessária para tomar chá comigo, ruína organizada que aqui habita. Pausa. ....... Olho para cima. ....... Três dragões sobrevoam as ruínas. segundo movimento: Respiro. Este momento é como o vômito, que quando começa não é possível parar. Minhas memórias presentes ficcionalizadas, para não perdê-las, as costuro em meu corpo. Respiro. Corto minha epiderme, chego à derme, me aprofundo na hipoderme e me encontro nas vísceras. Nós Três. Triângulo. Pai, Filho, Espírito Santo. Começo, Meio, Fim. Brahma, Vishnu, Shiva. Passado, Presente, Futuro. Não, Talvez, Sim. Respiro. Afinal, uma suspensão é necessária para tomar chá comigo, ruína organizada que aqui habita. Pausa. Olho para cima. Três dragões sobrevoam as ruínas. terceiro movimento: em memória de minhas ruínas, os três dragões bebem chá.

CRISTINA SANTOS é paulistana, vegetariana, pisciana, com ascendente em libra e lua em escorpião, é atriz, diretora e escritora. Em junho de 2001 formouse em atuação no Colégio William Shakespeare – Emílio Fontana. Em dezembro de 2015 se formou em dramaturgia pela SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco. E desde janeiro de 2014 integra o Coletivo de Dramaturgia: Malditos Dramaturgos!. | CRISTINA_SANTOS81@YAHOO.COM.BR

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“Prisão”, ilustração de Lila Bitten

CANA-DE-AÇÚCAR EBER S. CHAVES | Vitória da Conquista, BA.

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Houve um tempo em que a morte nos consolou do trabalho e do cansaço de nossas mãos suportando a terra que todos os deuses amaldiçoaram. A preparação da terra, o plantio, a colheita e o corte; A cana-deaçúcar sendo transportada para a casa da moenda, e depois moída e prensada; O caldo cozido na casa das fornalhas... E o doce da cana-de-açúcar não adoçava vida amarga do homem-escravo importado da África... E da cana saía o açúcar, e dos engenhos e plantações saíam homens e mulheres açoitados e mutilados. A sádica mão da Coroa portuguesa acionou a engrenagem do lucrativo empreendimento colonial sob as benções de todos os santos. E a cana-de-açúcar crescia sem nunca atingir a altura de uma árvore; Erguendo-se em calamos de sete a oito pés, com uma polegada de espessura. Árvore esponjosa, suculenta e cheia de um miolo doce e branco. Folhas dois côvados de comprimento e flor filamentosa irrigadas com o suor do rosto. Raiz macia e pouco lenhosa crescendo sob a terra esperança manchada pela poça de sangue ancestral. Há quinze gerações o sonho de homens livre-arbítrio à espera de uma nova safra se renova.

EBER S. CHAVES nasceu em 1979, em Itaquara, Bahia. Atualmente, reside em Vitória da Conquista/BA. Graduado em Administração, é blogueiro, apreciador de psicanálise, filosofia, poesia, literatura fantástica, filmes de ficção e fantasia, rock’n’roll, cervejas especiais e feijoada. | EBER.CHAVES79@GMAIL.COM

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Ilustração de A. Mimura

GREVE E ENCHENTE EDSON AMARO DE SOUZA | São Gonçalo, RJ.

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Para Dayse Gomes, Vera Nepomuceno, Charles Pimenta e Vanessa Figueiredo Tem greve na escola E enchente no bairro – Cancelam-se as aulas Em ambos os casos, Mas diz a tevê Que a greve é do mal Pois deixa os alunos Dois meses sem aulas. E culpa os docentes. Não diz que a enchente Impede mil aulas Pois tantas famílias Se alojam na escola. E culpa São Pedro Que não se defende, Processos não move, Não grita que a culpa Ao mau gestor cabe, Pois sabe que as chuvas De Março virão E nada faz útil Com pública verba Abrindo caminhos Pra chuva correr Pros braços do mar. São Pedro se cala Mas os mestres gritam E o mau gestor paga

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Notícias compradas Que culpam São Pedro E os mestres que gritam. (1º de abril de 2016)

EDSON AMARO DE SOUZA é professor de Língua Portuguesa na rede pública estadual do Rio de Janeiro, ator, poeta e tradutor. Participou da primeira montagem da peça “Um Não Sei Quê Que Nasce Não Sei Onde”, de Maria Jacintha em 2014, e em 2015 publicou, pela editora Buriti, sua tradução do romance “Valperga”, de Mary Shelley | PLANTEARVORES2@GMAIL.COM

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“Caminhos”, ilustração de Lila Bitten

FIM DA LINHA EDSON COSTA DUARTE| Campinas, SP / Dublin, Irlanda.

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“Dai”1 mais de cem vezes escrita na areia voltei cansado desisti de morrer. Takuboku Ishikawa

Seria preciso, por enquanto, que eu rasgasse aquele 6 de setembro estampado no bilhete de ônibus que ainda guardo comigo. Datas fixam geografias em nossa mente, e daí, o tempo em círculo, retorna sempre sempre. Seria preciso rasgar esta data e com ela tantas outras, telefonemas, conluios, segredos ouvidos atrás das portas, enganos e mentiras que sempre fingimos ser outra coisa que não são. Depois. Depois viriam as fotos, os presentes dados, aquela camisa azul que não esqueço, toda surpresa e espanto. Os motéis anônimos, como nós, fugitivos de alguma coisa, culpados, ou você culpado e eu cúmplice, cúmplice sempre, respondendo a pedidos de que eu fosse a teu encontro, pedidos feitos, com voz de um desejo inventado que, por conveniência, sempre acreditei, pois essa era uma possibilidade possível de invenção da vida.

Seria preciso não responder mais as minhas perguntas, tantas, dos porquês, não telefonar mais para você, sumir-me, evacuar-me de mim mesmo, descer pelo ralo feito coisa imprópria para o uso, já digerida, matéria que agora só presta para estercar a terra. Depois, exausto, seria preciso

descansar

da

lida.

Vômitos.

Afasias.

Abulias.

Lágrimas

inventadas. Que patéticas são as vítimas. Contadas todas as coisas, fim de festa, fim de jogo, fim de linha, dar um tempo pra mim mesmo. Feitas as contas, fecharia para balanço e teria sido preciso não esquecer mais nada para o dia seguinte. Mas o dia seguinte volta, assim como os outros, e eu haveria de lembrar alguma coisa escondida, alguma poeira num livro mal limpo, algum cisco no olho, mínimo, mas ali, insistindo em existir à minha revelia. Mas desaguar, daqui 1

“Daí”, em japonês, significa: tema, assunto, título.

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por diante, seria mais fácil, porque muito eu já teria feito. Seria preciso rasgar, novamente, memória confusa do trânsito do tempo, rasgar tudo datas lugares imagens que não se cansam de voltar à minha mente.

Que vício isso de ser um assíduo cliente do suplício. Que vício isso de ser vítima, presa fácil de mim mesmo. Que indelicadeza com a carne esse constante refazer as feridas. Que coisa mais inútil a pele que só serve a sevícias do pensamento. Teria sido preciso, aos poucos, mas forte, austero, crescer, vencer o tempo, tornar-me homem, não mais essa coisa adolescente cansativa e patética que sempre volta ao mesmo lugar depois da lida. Teria sido preciso crescer-me em mim, fazer minha própria comida, lavar as roupas, arrumar a casa. Traçar uma rota precisa e possível. E assim, dono de mim mesmo, nunca mais precisar escapar de meu eu, meu maior inimigo. Seria preciso rasgar, dilacerar, macerar tudo, mas com a delicadeza do instante, fugidio, fugaz, frugal manhã e eu nascendo outro, sem tantos vitimais discursos, animal assim, sim, animal de fome e vício, animal de víscera aberta, ofegante, no limite, mas lutando contra a vida, e assim me refazendo menos coisa morta, menos vítima.

E se assim o fosse, lembraria hoje não destes estranhos sentimentos desaguando em mim, de paisagens áridas, toscas, sem lume; se assim o fosse o tempo seria de colheita e frutos, fáceis ácidos tolerantes. Se assim o fosse haveria na memória não vagos motéis, gestos anônimos, voz dissimulada e nenhuma presença de coisas que nunca existiram. Se assim o fosse, seria outra a geografia da mente, lembraria não de fatos, lustres de cristal, aquários sem peixes, nem do partido das coisas que insistem em não ser; se assim o fosse lembraria do vasto e do efêmero, tudo cabendo exato límpido cristalino, cristal partido que seja, mas tudo ali perfeitamente intacto e eleito. Seria preciso descansar mais um pouco agora, voltar ao tempo, revisitar, recordar, tocar as cordas do coração com menos resistência, com mais alento, rememorar pouco por pouco o pouco que me sobra, e tocar com a

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mão virgem cada nova imagem, fala ou fato. Depois, depois mais uma vez o tempo, viria por fim líquido escorrendo menos espesso e lento, e o banhar-me nessa água, agora nova, fonte de onde saio inteiro outro.

Passar na memória o filme que não revi, fazer outra montagem possível. Executar, guilhotinar, cortar pedaço por pedaço o tempo e construi-lo enquanto coisa informe e menos máscara, menos espelho dessa estranha coisa que escorre em mim. Teria sido preciso tanto tempo. E o tempo é tão curto pra tão longa vida. Seria preciso não rasgar mais nada, memória e sentimento, estranho legado de carregar consigo tanta coisa inútil. Seria preciso queimar urgentemente tudo que me queima a mente e depois nunca mais retomar o fio da meada, nunca mais ouvir o eco dessas coisas gastas. Sempre volto ao mesmo lugar. Círculo de medo quando encaro a vida. Antes de tudo, seria preciso ver-me, inteiro e austero, amoroso e indolente, seria preciso, antes de tudo, ver-me com olhos limpos do passado, e, enfim, reviver-me.

EDSON COSTA DUARTE nasceu numa pequena cidade de Minas Gerais, Pratápolis e mudou-se muito cedo para Campinas/ SP. Estudou Letras na Unicamp, onde também fez mestrado sobre a obra de Clarice Lispector. Entre os anos de 1992 a 1996, organizou o acervo documental da escritora Hilda Hilst, que foi negociado em duas partes com o Centro de Documentação Cultural “Alexandre Eulálio”, Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, em 1995 e em 2002. Em 2002, mudou-se para Florianópolis para fazer seu doutorado, na UFSC, sobre a poesia de Hilda Hilst. Desde 2006 voltou a morar em Campinas. Entre 2007 e 2009, fez um pós-doutorado sobre a prosa de Hilst, sob supervisão do professor Dr. Jorge Coli, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp. Atualmente, mora em Dublin, Irlanda.| DUARTEAZUL@IG.COM.BR

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“Naus Perdidas”, ilustração de Lila Bitten

AS NAUS INSONHADAS HELENA BARBAGELATA | Lisboa, Portugal.

I.

Baixa-Mar

A linha azul do mar, a linha espargida que mergulha interminavelmente sobre léguas invisíveis, a linha marinheira que arpoa

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a tingidura ao céu e a melancolia aos olhares densos de sal e ausência, a linha que não é linha, mas vagar de ideia consolo pobre a que a canalha arroja batéis de fuga; a linha que não é linha e tão pouco azul, anelante mar infinito; Mulheres estendem vagarosamente a humidade branca dos lençóis nocturnos, desgrenhados como velas tristes, despedindo caravelas e trirremes ao vento; sarandeiam vestígios adormecidos de estrelas, a desabitada máscara do sonho, o calor desmaiado da carne, escorrendo, por veias de água até à terra; A linha loura da terra, a linha espargida que recai interminavelmente sobre caminhos invisíveis, a linha ceifadora que colhe a tingidura ao sol e a firmeza aos olhares hirtos de ressuo e olvido, a linha que não é linha mas vagar de ideia, consolo pobre a que os anciãos atracam batéis de fome; a linha que não é linha e tão pouco loura, desejosa terra infinita; II.

Salaminia

Numa nau na rota do embigo, entramos com os quatro pés ilícitos com os quatro braços, teratismos proscritos do paraíso dos deuses, mas não

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do nosso, Não está ninguém à espera na orla de areia, arramada aos teares e às lágrimas, não esposámos a morte, em véus de carpideira, com os lábios exsicados de Penélope e a beleza ciosa das gaiolas de Hefesto, Nesta barcaça, só dois remeiros, se desembarcarmos, talvez sejam as praias do mar, a amortalhar-nos em médões de água, que gasta está a terra dos homens, em grãos de cadáveres, dessepultaremos as vozes que restam, acobertadas pelas funduras e sem sentença.

III.

Ammonias

Poderia ter sido em qualquer ínsua, bastaria que a torneasse um abismo de nostalgias, há quem lhe chame mar, além ou em nenhuma parte, nesse indefinido, onde se afundou a barca, as suas corolas de flores pálidas, do templo de Zeus, todos os barcos são de papel para as vísceras do mar,

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Lembrava, o vulto do seu filho, lá dentro o seu filho, poderia ter sido qualquer outro, em terra mantos de veludo negro, chorincos de sanfonas e cordas, as mesmas que estalavam alegres, no panegírico folguedo do verão, que modulavam as danças nos calcanhares trigueiros, solevando o saibro das tardes. De olhos pelágicos e cabelos brancos, traçando as pernas num transe demorado, recurvado à gravidade do chão, os mortos clamando pelo seu corpo abandonado, ao sopor dionisíaco da dança, com as tavernas barroteadas de mágoas e lumieiras vermelhas. Lembrava, o nome dela era prazer, aldeagava descalça pelos outeiros de sal e peixe, a pouca doçura que tinha encerrava-a toda no nome, como uma roseira encerra a sua essência; quando o quimão da noite embrulhava a sua carne quente e tamarina, saciava a fome ao chamamento temulento dos marujos; ele não era um Ulisses, só um pescador de sargos, que não tinha nas aljafras mais que alma para lhe dar, e ela sorrira-lhe.

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De olhos pelágicos e cabelos brancos, baloiçando com a tristeza em passos de sombra, com a sofreguidão suada das palmas, até que os concertos de pés lhe azoassem a memória, até que os braços estendessem asas, e que não fosse ele, nem ela, nem a morte, apenas música. IV.

São Nicolau A Alexis G.

Alexandre vinha inerme, não levantava na lomba do seu nome, uma armada de mil espadas, as mãos abriam-se, descamisadas como leques de asfódelo à passagem das asas do vento; Alexandre vinha escudado, soerguia no seu peito uma guarnição de homens sem nome, que outro desarme, têm os palmos rentes da liberdade, adamados pelo estro do sol, outra que não tentear as estrelas, tocá-las com a ponta crestada e ícara de todos os desejos. Os vivos conhecem a morte, o hemerológio desformado do tempo, o tricentésimo quadragésimo dia do ano, o sexto dia da primeira semana do último mês, estemas azuis sobre os barcos, bandeiras, as crianças ávidas de doces e tesouros; nas abadias,

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os púlpitos enfumaçados da cânfora roubada aos cabelos de Artemísia; Alexandre e eu, na mesma noite, poderia ser qualquer outra noite, chorávamos por um só respiro, e as névoas de coros, cantando por Nicolau, numa nave de pesca, boleado pelos mares túrcicos; não viria dobrar-lhes, as gachas aos carrascos, como desatara os prisioneiros da tirania de Eustácio. Mas os mortos nada conhecem, não lhes resta qualquer recompensa, nem que em Mira lhes pintassem delicadamente o rosto, para um túmulo aluviado de rios; fossem antes lembrança profana dos deuses, esférulas doridas no sobrolho branco de Artemísia, que a carne baleada e crística, ao olvido das calçadas quebradas da meia-noite.

HELENA BARBAGELATA nasceu em Lisboa a 6 de Dezembro de 1991 e vive em Atenas. É uma artista multidisciplinar, dedicada às artes plásticas, música e letras. Participa em revistas e antologias literárias em Portugal, Brasil e Itália, tendo sido laureada em diversos concursos internacionais. Foi a mais jovem vencedora do “Prémio Poesia e Ficção de Almada” (Edição de 2012), com a obra “O Mar de Todos os Deuses”, atribuído por unanimidade pela Associação Portuguesa de Escritores, Sociedade de Língua Portuguesa e pela Câmara Municipal de Almada. Tem publicada a obra Soliloquia (Apenas-Livros, 2013). | HELENA.ANTUNESBARBAGELATA@GMAIL.COM

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Ilustração de A. Mimura

ENCHENTE MILTON REZENDE| Ervália, MG.

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A chuva lá fora inunda aqui dentro.

As janelas abertas e um grande esgotamento.

Esse silêncio e o mármore do tempo pinta de branco os cabelos.

Não sei o que acontece comigo, mas nunca pude aceitar o fim de nada.

A vida passa e eu não sei lidar com o envelhecimento.

O Jardim Simultâneo

MILTON REZENDE, mineiro de Ervália, possui nove livros publicados. | MILTON.REZENDE@YAHOO.COM.BR

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“Dualidade”, ilustração de Lila Bitten

UM CACHORRO PAULO ARCE | Campinas, SP.

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daqui de cima deste prédio vejo aquele cachorro lá embaixo comendo merda e comendo lixo corre pela avenida esganiçado faminto, revira a lixeira encontra o que busca, o que mata a fome vai atrás de uma fêmea: quem há de censurá-lo? é livre e pode fazer o que bem entender daqui de cima deste prédio percebo que na realidade aquela avenida é toda dele e tenho a impressão de que de lá debaixo ele me late dizendo: “seu otário, esse rabo aqui é só meu” daqui de cima deste prédio fico louco quando percebo que estou preso a um computador e a umas pessoas vejo aquele cachorro se coçar, trepar e comer merda e invejo aquele animal

PAULO ARCE é professor universitário e funcionário público. Escreve poesias e contos para rebater a monotonia sufocante dos dias. Vencedor do "I Concurso Literário Era uma vez" (2015) da IMA (Informática dos Municípios Associados de Campinas), na categoria de contos. Publica contos no site entrelinhas.org. | PAULOB.EDUARDO@GMAIL.COM

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“Me transbordo”, ilustração de Lila Bitten

ESGANADA PILAR BU | Goiânia, GO.

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então eram os lábios, os músculos as terminações nervosas e empáticas depois o abismo no prato inteiro de uma só vez sorveu as palavras e as sílabas estalavam entre dentes engolia sem mastigar enquanto som e ritmo escorriam pelo queixo os olhos vidrados atropelavam parágrafos a cada gota escorrida ficava mais líquida saltou-lhe a jugular tinha metáforas demais

PILAR BU nasceu no Rio de Janeiro, 1983, mas acredita que a estrada é grande demais pra se fixar e por isso vez por outra se muda e se joga por aí. Mestranda em literatura, é triplo-fogo do zodíaco, feminista e assumidamente viciada em carnaval. Vive em Goiânia, na Toca dos Vampiros, com seus gatos e seu companheiro. Escritora e poeta, obcecada pelas palavras, tem procurado viver disso: escrever, ler e viajar (em todos os sentidos). Já foi publicada em algumas revistas eletrônicas e seu primeiro livro de poemas, Ultraviolenta, tem previsão de publicação ainda para 2016. | PILARBU@GMAIL.COM

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“Conecte”, ilustração de Lila Bitten

SUSAN RAFAEL LINDEN | Rio de Janeiro, RJ. Meu nome é Priya. É sânscrito para “amada”. E eu quase fui feliz. ***

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Uma generosa bolsa de estudos trouxe-me da Índia para a Universidade de Oxford. Apaixonei-me por David. Agora, passados três anos, minha tese foi aprovada e recebi uma excelente oferta de emprego. Eu nunca saíra de perto de minha mãe. Tinha dois anos de idade quando ela enviuvou. Depois, negou-se a aceitar um novo casamento, que lhe tentavam arranjar conforme a tradição. Ela era triste, e mais triste ficou quando deixei Bangalore para continuar meus estudos. Adiei a viagem até o último momento. Ouvi, resignada, as ponderações dos mais velhos. Ignorei os apelos e a indignação de meus tios e tias, que não viam motivo para deixar minha cidade natal. Caçoei das histórias de terror e as insinuações maliciosas de minhas primas e primos. Acima de tudo, resisti ao silêncio dolorido de minha mãe. Inédito em minha família de comerciantes, o prestigioso doutorado, bem como a formação cultural oferecida na Inglaterra seriam meu passaporte para uma vida mais interessante e confortável quando voltasse para casa. Cheguei a Oxford justo a tempo de descansar por uma única noite, e apresentar-me para o início do curso. A bolsa de estudos financiou a residência em um College próximo ao departamento de Física. A princípio me vi soterrada no tanto que precisava estudar para esboçar meu projeto de pesquisa. Ao fim da segunda semana fui, pela primeira vez, ao centro da cidade. Visitei o museu, a nova biblioteca, o teatro, admirei os prédios antigos da Universidade, passeei por ruas estreitas nas quais, ao longo de novecentos anos, andaram grandes vultos da história britânica. Na volta, parei em frente ao antigo prédio do Instituto de Estudos Indianos, cansada e com sede. Do outro lado da rua fica o King’s Arms, um “pub” frequentado por estudantes e professores e do qual meus colegas diziam, jocosamente, que era o bar com o mais alto Q.I. por metro quadrado do planeta... *** Quando Priya entrou, esbarrou nela uma moça ruiva, estabanada, de rosto delicado e pele muito clara, andando de costas e acenando para um rapaz louro que estava do outro lado do bar. - Oh, desculpe-me, sou uma tonta mesmo. Meu nome é Susan Waynflete. E o seu? - Priya Jayaraman.

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- Puxa, seus olhos são tão bonitos! Você nasceu na Índia mesmo? - Nasci, toda minha família mora lá. Estou aqui para fazer doutorado em Física. - Física? Uau! Qual é o seu College? - Linacre. E você, está na Universidade? - Estou graduando e vou fazer doutorado em Ciências Políticas. Ei, David, venha conhecer a Priya! David é meu amigo e colega no Magdalen College. - Eu não sabia que o Magdalen aceitava estudantes do sexo feminino. - Somos poucas e boas! Mas - piscou o olho –, meu sobrenome ajuda. David, venha, quero lhe apresentar a Priya. - Muito prazer. Você é nova aqui? - Acabei de chegar da Índia, é a primeira vez que entro num pub. - Susan, vou pegar mais cerveja para nós. Priya, você nos acompanha? - Não, obrigada. Vou tomar uma soda. *** A amizade de Priya com Susan foi instantânea. Conversavam sobre tudo, de sapatos a intimidades. Emprestavam-se roupas. Convidavam-se para jantar nos respectivos Colleges. O Linacre é moderno e descontraído. Fica ao lado do parque e próximo ao rio que corta a cidade. Já o Magdalen, fundado há cinco séculos e meio, é um dos mais tradicionais. Lá estudaram celebridades como Lawrence da Arábia, o escritor Oscar Wilde e vários ganhadores do Prêmio Nobel. Priya estranhava o contraste entre a leveza dos rituais no Linacre e o formalismo afetado do Magdalen. Já Susan seduzia, em poucos minutos, quaisquer vizinhos da grande mesa de jantar. A charmosa inglesinha logo deixava de ser Miss Waynflete, para ser a Suzy que todos adoravam. Ela morava no próprio College, mas David, que também fazia doutorado, ocupava uma água-furtada num prédio na rua vizinha. O edifício, ultramoderno, era ladeado por um muro construído há mais de sete séculos. *** - É verdade, Priya, a Susan é uma celebridade. Também, ostenta o sobrenome do bispo... - Bispo?

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- Quem fundou o Magdalen foi um bispo chamado William Waynflete. Mas ele não deixou descendentes, só os tolos acreditam que ela é, de fato, de família histórica. - E você, também é uma falsa celebridade? - Nem isso. Sou filho único de um motorista de táxi de Londres. Ele trabalhou dezoito horas por dia para bancar minha educação. Conseguiu-me uma boa escola e estudei dia e noite para ter notas excelentes e ser admitido num College chique. Eu sou simplesmente Smith. - Gostei, a partir de agora vou chamá-lo de “Simplesmente Smith”. - Você é muito engraçadinha, Jayaraman. Acho que um banho na água gelada lhe faria bem... Já estou em Oxford há seis meses e é a primeira vez que nos vemos sozinhos. Estamos num barquinho de fundo chato e proa quadrada, que David impulsiona com uma vara comprida de alumínio pressionada contra o leito do rio. Ele me prometera uma pequena aventura... - Então é isso que chamam de punt. O rio está cheio desses barquinhos. - Isso mesmo, é mais uma de nossas tradições. - Você é um proletário tão apegado a tradições quanto um aristocrata, meu caro David Smith. - Na verdade, não. Mas a cidade tem tanta história que nos encanta este modo de vida. - Pois eu sou muito ciosa de minhas origens e das tradições do meu povo. Aliás, o contraste entre prédios modernos e os antigos, conservados com tanto cuidado por aqui, me lembra do quanto desejo preservar minha cultura, apesar de odiar a estratificação da sociedade indiana e o hábito de promover casamentos arranjados pelas famílias. - O que eu chamo de “meu povo” não se limita aos meus antepassados. São todos os que cruzam minha vida. Você já faz parte do meu povo, Priya. E eu já sou parte do seu. Algo no tom de voz de David, eu não sabia bem o que era, parecia bom. *** Nos meses seguintes, Priya se envolveu cada vez mais com sua pesquisa. Susan foi aceita no doutorado. David trabalhava muito, mas com frequência

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se perdia em devaneios. A amiga percebeu e, um dia, perguntou à queimaroupa: - Quando você vai falar com a Priya? David estremeceu e desconversou. - Falar o que, Suzy, e a propósito, você tem visto a Priya? Ela anda ocupada com a tese. Com ar de mofa, Susan olhou para o rapaz mas, desta vez, resolveu poupá-lo. - Não, ela não aparece há duas semanas e, ao telefone, só diz que não tem tempo para nada. *** - Hoje eu vou ensiná-la a guiar o punt. - E isso é tarefa de mulher? - Ora essa, você faz Física Nuclear! Não pode fazer um bote deslizar num riozinho manso como esse? Olhe como eu faço: deixe a vara de alumínio chegar ao fundo e empurre para trás. Quando o bote deslizar, puxe a vara de volta, alternando as mãos. Assim, viu?... Mais uma vez, isso!... Está indo muito bem, agora sozinha. - Veja, David, estou no comando! Ele sorriu, embevecido. - Mas atenção, se a vara não soltar do fundo, largue-a imediatamente. Há um remo aqui e voltaremos para pegá-la...não, assim não! Cuidado, você vai cair! ... - Meu herói! David enlaçara Priya pela cintura para evitar sua queda na água. Olharam-se

intensamente,

em

silêncio,

enquanto

o

bote

deslizava

mansamente na direção da margem. Tinham de voltar para pegar a vara de alumínio. Mas não havia mais nada no universo. *** - Susan, estou apaixonado! Priya é um presente dos céus, uma benção. É doce, carinhosa, sensual e é forte, decidida, brilhante... A inglesinha o interrompeu, com certa rispidez.

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- Já entendi, David. Eu adoro a Priya, somos grandes amigas e estou feliz por vocês. O rapaz só tinha olhos e ouvidos para uma pessoa no mundo. Sequer percebeu a expressão do rosto e no tom de voz de Susan *** Depois de meses tentando minha mãe aprendeu, finalmente, a usar o correio eletrônico sozinha. Assim temos mais liberdade para trocar mensagens. Ela está ansiosa por minha volta. O resto da família sossegou e, segundo mamãe, pergunta sempre como estão meus estudos, se conheço os indianos que estão em Oxford. Ela lhes diz que sim, sim... Conto-lhe sobre David. Ela demonstra alegria e tristeza. Que mãe não se regozijaria com uma filha apaixonada? Ao mesmo tempo, antevê a ruptura com a família. De fato, meus tios fizeram de tudo para convencer-me a terminar o namoro. Era, diziam, um insulto à memória de meu pai. Outra vez resisti. O apego a minha identidade se esvaía nas palavras de David: “nosso povo é aquele que cruza nossas vidas”. *** - Ele anda preocupado, inseguro. - Eu também, Suzy. Mas estou concorrendo a um emprego em Londres e quero ficar na Inglaterra. Não conte nada para o David. Receio não conseguir e desapontá-lo. Dentro de duas semanas vou defender a tese e logo haverá a entrevista decisiva para este emprego. - Sua mãe vai morrer de tristeza, Priya. - Não fale assim, se tudo der certo vou traze-la para cá. Seja como for, eu também tenho direito à felicidade. Não suportaria viver de novo naquele ambiente opressor. - Ora, você faz doutorado na Inglaterra e namora um inglês. O que resta para convencer seus tios de que você é um espírito livre, que não se submete a tradições anacrônicas? - Lá é diferente, Susan. Não quero passar a vida esgrimindo com minha família. Quero ser feliz sem sobressaltos. - Hmm... ***

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- Vocês já conversaram sobre o que será depois que ela defender a tese? - Tenho medo de falar sobre isso, Suzy. E acho que ela também. - David, querido. Só vou lhe contar isso porque me preocupo com você. Ela não disse diretamente, mas deu a entender que em breve voltará para casa. - Eu poderia ir com ela para a Índia... - Você sabe que eu só lhe desejo o melhor. Não quero desencorajá-lo, mas ela me garantiu que os tios são inflexíveis, e que não pretende passar a vida esgrimindo com a família. As tradições são fortes demais e, você sabe, ela sempre colocou a carreira em primeiro lugar. - Susan, eu amo Priya. Não sei mais viver sem ela. Você é minha melhor amiga. Preciso de você, de seu apoio. Ela sorriu, consternada. - Sinto muito, David. *** No dia em que eu recebi o título de doutora, sob uma chuva de elogios, disse a David que precisava fazer uma viagem imediata para resolver assuntos particulares, mas que voltaria logo. Ele quis saber para onde, por quê. Pedi-lhe que confiasse em mim. Fomos para a estação. Quando tomei o trem, notei que David estava cabisbaixo. Susan parecia distraída. Havia dezenas de candidatos e apenas uma vaga. O processo de escolha durou quase duas semanas. No entanto, os entrevistadores ficaram impressionados com meu conhecimento, minhas habilidades e o vigor com que enfrentei questionamentos pessoais. Foi-me oferecido o emprego. Tomei o trem de volta para Oxford transbordando de felicidade, esquecida até de que deveria comunicar a decisão à minha mãe e enfrentar as críticas dos familiares. Mas nada disso interessava. Tudo o que eu queria era contar a David que ficaríamos juntos. Subi correndo as escadas do edifício, cheguei ofegante ao último andar. Tomei fôlego, abri a porta do apartamento e encontrei David de bruços no chão, ao lado de um porta-retrato com nossa foto, os dois sorridentes, num bote de fundo chato e proa quadrada, parado na beira do rio. Sobre a cômoda, dois frascos vazios.

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RAFAEL LINDEN é Professor do Instituto de Biofísica da UFRJ e autor de mais de 150 publicações entre artigos, capítulos e livros científicos. Publicou o livro de divulgação “Genes contra doenças”, pela editora Vieira & Lent. Em 2012, seu conto “Retrospecto” venceu o concurso da editora Guemanisse, em 2013 seu conto “Nada mais que a verdade” foi 3o lugar no Concurso da Prefeitura de Nova Friburgo, RJ, e em 2014 seu texto “A catedral” foi classificado em 8o lugar no Concuro Nacional de Contos José Cândido de Carvalho, da Prefeitura de Campos dos Goytacazes, RJ. Publica regularmente crônicas e contos no blog “Um cientista no telhado” |RAFAELLINDEN@GMAIL.COM

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“Cidade de poesia”, ilustração de Lila Bitten

QUATRO INVENÇÕES DA CIDADE WAGNER SCHADECK | Curitiba, PR.

Embora a edição da sua obra lírica, Toda a Poesia, tenha se tornado um fenômeno de vendas, o ponto mais alto da poética de Paulo Leminski (1944 -1989) está no “romance experimental” Catatau (1975), onde o poeta apresenta a origem do pensamento utópico no Brasil e o conflito ideológico na poesia.

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O romance é na verdade um desenvolvimento do conto Descartes sem lentes (1966). Tendo como fonte o livro de Gaspar Barléu (1584-1648), segundo o qual a língua latina (língua da civilização) marcava a confiabilidade das relações entre portugueses e holandeses durante as invasões holandesas,2 Leminski imaginou a vinda do filósofo racionalista francês René Descartes (1596-1650) para o Brasil. Assim como o demônio surge no redemoinho, no Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa (1908 -1967), no texto de Leminski, Occam (alegorização da lógica de Guilherme de Ockham) atormenta a linguagem. Renatus Cartesius (nome latino do filósofo) inala cannabis e passa a enxergar a realidade brasileira ampliada. A alegoria das “lentes” e do “binóculo” é, ao mesmo tempo, o cachimbo e o método cartesiano. A perplexidade do filósofo francês está em não conseguir reduzir a realidade complexa em seu método. O racionalismo cartesiano embasa o pensamento revolucionário. O método ideológico separa o “eu” da estrutura da realidade, simplificando a complexidade do mundo. Ao contrário de Santo Agostinho, para quem a estrutura da realidade e o “eu” só existem por graça de Deus, René Descartes cria um “eu pensante” (“Cogito ego sum”: Penso logo existo, ou no trocadilho de Leminski “ergo”: logo). A partir disso, através da redução da estrutura da realidade (a Navalha de Occam) ao método científico, muitos filósofos acreditarão poder aperfeiçoar o mundo. Occam deixou uma história de mistérios peripérsicos onde aconstrece isso monstro. Occam, acaba lá com isso, não consigo entender o que digo, por mais que persigo.3

2

Cf. BARLÉU, Gaspar. O Brasil holandês sob o Conde João Maurício de Nassau: história dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil e noutras partes sob o governo do Ilustríssimo João Maurício Conde de Nassau, etc. tradução e notas de Cláudio Brandão. – Brasília : Senado Federal, Conselho Editorial, 2005. 3

LEMINSKI. Paulo. Catatau. Curitiba: Travessa dos editores, 2004, p. 24.

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Embora Leminski negue-lhe existência “real”, esse monstro é a própria confusão racional. Em nível simbólico, o Descartes leminskiano diz que a Occam (ideologia) está na linguagem, enquanto Artyczwsky (Arte, artifício, artimanha) só surge quando embriagado. Esta lógica reducionista embasou o fascismo, o nazismo e o marxismo. Talvez esta sombra que perturbara Descartes fosse à mesma que incomodava Leminski, de estudante beneditino a marxista, ansioso em compactuar do prestígio do grupo concretista. Talvez o fantasma que passou a perturbar a poesia brasileira, sob os nomes de poesia participativa, engajada e alternativa. A poesia é o contrário da ideologia. Na lógica de Occam a complexa estrutura é reduzida ao método, seja sociológico, histórico ou político. Como diria um ideólogo, embora belo poeta, como Octavio Paz, na poesia: "As plumas são pedras, sem deixar de ser plumas." 4 Em grande parte Leminski estava certo em dizer que a poesia fácil estaria retornando às formas essências. Afora epígonos do próprio Leminski, eternamente reproduzindo o mestre, à primeira década deste século surge uma poesia já mais diversificada, embora mantenha alguns lugares da modernidade. Os lugares principais são o sentimento de urbanização, ou cosmopolitismo; a metapoesia; o belo grotesco e os paraísos artificiais, experiências oníricas induzidas por alucinógenos. As poéticas mais comuns ainda são uma diluição do surrealismo, da poesia beat, dos cancioneiros de ritmo cabralino e o ludismo. Paulo Leminski também acertou sobre a presença ideológica no Brasil, tanto no âmbito político, com a democracia, quanto como elemento conturbador da poesia. A poesia de Ricardo Pozzo está carregada de elementos ideológicos, o que funciona com uma ótica periclitante. Aproveitando a teoria da modernidade em Baudelaire de Walter Benjamim, o eu-lírico de Pozzo é um homem devorado pela cidade. Há uma espécie de cisão entre um suposto homem selvagem e 4

PAZ, Octavio. Signos em Rotação. São Paulo. Ed. Perspectiva, 1976. p. 49.

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o homem civilizado. A falta de empatia entre o eu-lírico e a cidade parece ser um dos sintomas da modernidade. Outro estaria na sensação de controle ideológico, algo provindo de distopias como 1984, de George Orwell, e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, mas sobretudo da crítica social de A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord, e Simulacros e Simulações, de Jean Baudrilard. Trata-se de uma concepção de que a realidade (a cidade, no caso de Pozzo) é falsa; fora falsificada primeiramente pelo Leviatã (o Capital), com as refutações de Mises, Hayek, Voegelin entre outros, e na prática com a dissolução da URSS e a queda do muro de Berlim, após 1968 a teoria ressurge acusando a opressão midiática. Não se trata de um pensamento logicamente refutável; antes é uma cultura quase hegemônica nas universidades, entre os grupos de intelectuais, artistas, políticos e formadores de opinião; como o positivismo de outrora, mas em proporções homéricas. Como na caverna platônica, a cidade de Alvéolos de Petit Patê (Patuá, 2015) é uma espécie de urbe sitiada, onde nem mesmo os habitantes conhecem a própria miséria. É a cidade do Occam leminskiano. No entanto, tal perspectiva é periclitante. O demônio da ideologia leva ao niilismo e ao suicídio. Essa concepção política da realidade serve como o imperativo de Antonio Gramsci (1891 - 1937) segundo o qual tudo é política. Tal discurso deseja apenas saber quem são os aliados, quem são os inimigos. Graças

ao olhar apurado de fotógrafo, Pozzo consegue

vislumbrar no cortinado do cotidiano a singularidade da cidade. O poema mais alto do livro é A Barca5. A nervosa barca trafega em modo sinistro Rastreando inocências embrulhadas Em papelotes intoxicados de soda cáustica

5

POZZO, Ricardo. Alvéolos de Petit Pavê. São Paulo: Patuá, 2015, p. 34.

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Serão cães hidrófobos Em semáforos vertiginosos? Recolherei as tampinhas de garrafa Que condecoram os cadáveres calejados Com projéteis de fumaça.

Como em um noturno, aliás uma constante no livro, o poeta descreve, sem maiores perturbações de Occam, uma ronda policial. De um modo sintético, com poucos traços, o poeta retrata a viatura com giroflex e os cadáveres ao relento. O detalhe das cápsulas de projéteis é admirável. Uma leitura que não considerasse os “cães hidrófobos” como policiais, mas como testemunhas do assassínio, traria mais leituras possíveis. A barca poderia ser o carro de IML, numa metáfora que evocaria também a personagem central do livro de Homero Gomes, Solidão de Caronte (Patuá, 2013). A poesia de Gomes é herdeira do surrealismo, reproduzindo aliás um dos clichês da escola de Breton: o Anjo. Por outro lado, o fôlego onírico reabilita para a contemporaneidade dois mitos clássicos: Sísifo e Prometeu. A concepção deste último ainda mantém resquícios românticos e gnósticos, numa leitura que relaciona o ladrão do fogo com Lúcifer. O Sísifo de Homero Gomes, entretanto, é o homem carregando a pedra das palavras que o esmagam, possível alegoria da condenação do homem civilizado versus homem natural que agradaria a Ricardo Pozzo, talvez numa condenação ideológica... Num dos momentos altos do livro, principalmente pela rima toante marcando os versos, recurso este infelizmente pouco explorado, no poema O Silêncio dos Tambores que se relaciona com o longo Sísifo: Lutou o homem contra si mesmo.

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Contra seus nervos partidos, Contra a palma dos pés e o firmamento. Lutou o homem contra seus medos. Contra seus sonhos de menino, Contra os cílios e as lágrimas na face.6

A lírica de Rodrigo Madeira é a grande promessa curitibana. A concepção do livro pássaro ruim (Medusa, 2009) é a metamorfose do inseto (o gafanhoto) que é nefasto, sendo, no entanto, o alimento dos profetas. Assim como em Pozzo, a poesia de Madeira é urbana. Em comum a ambos, encontramos a entrada nos Paraísos Artificiais, como em “balada da cruz machado”7. uma rua à queima-roupa curta, brilhante, sem fôlego ( puta nova mas ancestral) rua-faca, rua-vício a cruz machado termina nos pés de uma catedral. alguém além de deus e da polícia e taxistas e putas e vigaristas cafetões e travestis sabe que depois das 20 nas calçadas do acinte beijam latas os guris? que se agridem por farelos? que se juram por centavos? filhos do sangue e do escarro talhando derrota para o horror de bicho caçado

6

GOMES, Homero. Solidão de Caronte. São Paulo: Patuá, 2013. p. 51.

7

MADEIRA, Rodrigo. pássaro ruim. Curitiba: Medusa, 2009, p. 15.

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que, de manhã, tresnoitara... para as gargantas gastarem para os alvéolos gritarem nesta imunda forja da convulsão respiratória este pão da falta de ar na mesma lama ofertória a ninguém ou coisa alguma que a raiva de mendigar que a fissura que verruma: pedra pedra pedra pedra quem dentre vós estiver sem pecado que fume a primeira pedra. [...]

No entanto, em sua lírica a perturbação ideológica, em menor ocorrência em Homero Gomes e em maior em Ricardo Pozzo, quase não é notada. O eu-lírico de Madeira é o catador e reciclador da “cultura materialista”; é o próprio “poeta sórdido” de Manuel Bandeira, “Aquele que se suja com a vida”. Herdeiro de Lorca e Cabral, em Madeira a experiência é mais forte que o rigor, embora em momentos menos felizes decline para certos maneirismos concretistas. Também senhor das poéticas, mas muito mais abusivo em relação a elas, está a poesia de Ivan Justem Santana. Em 64 peças (Dezoito zero um, 2015), o poeta reúne sua produção publicada em blogue. A concepção do livro é o jogo de xadrez. Ao contrário dos outros três poetas, embora herdeiro de Leminski e Marcos Prado (1961 – 1996, de quem foi amigo e com quem chegou a compor), na poesia de Ivan não há presença ideológica. Como seus mestres, seus poemas estão cheios de gírias, trocadilhos, neologismos e palavras-valise (como “sexoporífero”, o sono post coitum, ou em “vampirilâmpada” etc.) Há evidente brincadeira num verso como: “Chove uns pingos mas não

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tremas”, ou em troças linguísticas como em “Um Thor [tour de force, do francês: prodígio], um Lóki [gíria regional: néscio, estúpido], não-domal”, com perda de sentido devido a gírias e regionalismos. Em muitos momentos, entretanto, a irreverência soa forçada... Os poemas de Justen são plenos de referências, principalmente a William Blake, Augusto dos Anjos, Edgar Allan Poe (de quem emula a poética de O corvo para o poema “Outro Pássaro”), Jorge Luis Borges e o amigo Marcos Prado (1961 -1996), numa dupla referência a Carlos Drummond de Andrade e a Dante Alighieri, em “Marcos Prado desce aos infernos.” Outro aspecto é uma tendência ao cultismo barroco, com emulações de Gregório de Matos, no soneto Nesta Vida Nesta vida já escutei Violeta Parra; Sei também que bom cabrito é o que não berra, Mesmo quando adoram métrica que erra Ou se a rima assim me agarra e sai na marra... Mas eu próprio me peço: não force a barra Na volúpia veludosa que te encerra Pois por mais que suba ou desça a pé a serra Fico sempre bem carente em qualquer farra... Eu termino este soneto então por birra: Rimo todas as vogais até que morra E que enfim chorem por mim um hip, hip, hurra! Não me tragam no velório incenso e mirra, Nem se espantem da loucura dessa porra Já que eu nunca cultivei surra nem curra.8

8

SANTANA, Ivan Justen. 64 peças. Dezoito zero um: Curitiba, 2015, p. 50.

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Não é uma lírica mundana, como a de Rodrigo Madeira; desvestida de ideologia, no entanto, é uma poesia mais cerebral, amiúde metapoética, menos feliz ainda quando se utiliza da cultura de massa, como no trocadilho do soneto erótico que evoca Emiliano Perneta, troçando com o “canguru”, piada esta captada apenas por espectadores de programas de humor televisivo... Nestes casos, toda a habilidade poética de Ivan parece com uma cigarra abandonada pelo espírito do canto: é uma casca de silêncio. Embora compartilhem em maior ou menor grau de poéticas, de formas fixas ao poema em prosa, da lírica à anedota, do verso livre à ironia, estes poetas representam uma promissora geração da poesia curitibana. Fiéis à sua liberdade interior, entretanto, eles só serão maiores quando contemplarem a complexidade da existência sem as lentes da ideologia.

WAGNER SCHADECK (Curitiba, 1983) possui graduação em Letras Português e Inglês e especialização em Desenvolvimento Editorial, pela PUC-PR. É poeta, editor e tradutor. Colabora com os periódicos: Revista Poesia Sempre, Revista Brasileira, Jornal Cândido e Jornal Rascunho. Como editor organizou uma reedição de A peregrinação de Childe Harold, de Lord Byron, em 2015, pela Editora Anticítera. Atualmente, além de livro autoral ainda sem nome, prepara um livro de traduções de Virgílio, Dante, Goethe, Baudelaire, Rimbaud, Rollinat, Rilke, Benn, entre outros. | www.editoraanticitera.wordpress.com

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SOBRE LILA BITTEN (Florianópolis, SC, Brasil) INSTAGRAM | E-MAIL: lila1197@gmail.com Lila Bitten tem 18 anos e estuda design na UFSC. Se interessa pelo desenho desde a infância e associa a ligação com as artes à sua formação escolar de método Waldorf. A artista utiliza principalmente a caneta nanquim, misturando diversas técnicas e traços e privilegiando a experimentação de outros materiais como a aquarela, o grafite e a esferográfica. Lila garante que continuará treinando e aprendendo novas técnicas para cada vez mais conseguir passar pela sua arte as sensações, sentimentos e pensamentos que lhe inspiram.

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PARCEIROS:

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Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

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