A ciĂŞncia da noite e do dia
A ciĂŞncia da noite e do dia
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Professores e alunos indígenas Pataxó da aldeia Muã Mimatxi
Presidência da República Ministério da Educação Secretaria Executiva Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão Diretoria de Políticas para Educação do Campo, Indígena e para as Relações Étnico-Raciais Universidade Federal de Minas Gerais Reitor: Clélio Campolina Diniz Vice-Reitora: Rocksane de Carvalho Norton Faculdade de Letras Diretor: Luiz Francisco Dias Vice-Diretora: Sandra Maria Gualberto Braga Bianchet Núcleo Transdisciplinar de Pesquisas Literaterras Coordenadora: Maria Inês de Almeida Ficha catalográfica elaborada pelos Bibliotecários da Biblioteca FALE/UFMG C569
A ciência da noite e do dia
A ciência do dia e da noite / Professores e alunos indígenas Pataxó da aldeia Muã Mimatxi. _ Belo Horizonte : Literaterras : FALE/UFMG,2012. 40 p. : il.,color. ISBN: 978-85-7758-190-0
1. Literatura Indígena _ Brasil. 2. Índios da América do Sul _ Brasil. 3. Índios Pataxó _ Minas Gerais. I. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Letras. II. Título. CDD: 898
Belo Horizonte Literaterras - FALE/UFMG 2012
SUMÁRIO
A ciência da noite e do dia Curso “Formação Intercultural para Educadores Indígenas” - FIEI/UFMG Eixo de Conhecimento Socioambiental
Saída da noite
Coordenação Ana Maria Rabelo Gomes Marcos Vinícius Bortolus
A manhã
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A quebrada do tinindo do sol
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Tinindo do sol
Coordenação de Materiais Didáticos Márcia Spyer Textos Professores e alunos indígenas Pataxó da aldeia Muã Mimatxi
A tarde
A quebrada da tarde
Ilustrações Estefani, Rairis, Txioiana, Kutiá, Ícaro, Txoko, Txahá, Giruí, Poliana, Dédalo e Txahuí Revisão Guilherme Antunes Abjaudi Priscila Luiza Vanessa Mara Fonseca Dutra Projeto Gráfico e Diagramação Lila Vasconcelos Coordenação editorial Maria Inês de Almeida
Tardinha caída
Este livro foi produzido pelos professores e alunos Pataxó da aldeia Muã Mimatxi, durante as oficinas de produção de conhecimento e laboratórios interculturais realizado no Curso de Formação Intercultural para Educadores Indígenas FIEI/UFMG, no Eixo de Conhecimento Socioambiental.
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A caída do dia - Boca da noite
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A noite caída
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Noite velha
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A volta da madrugada
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A noite fechada
Madrugada velha
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Quebrada da madrugada
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Barra do dia
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Este
livro foi feito para representar, para registrar a ciência do Dia e da Noite na aldeia e na natureza, para que a gente possa entender a natureza melhor e viver mais entrelaçado com ela. Para aprender a respeitar as forças da natureza e tudo que envolve a ciência do Dia e da Noite, que vem para não machucar a terra. É o cotidiano na aldeia. É uma forma também de apresentar a questão da terra, a questão do território. Kanatyo Pataxó
Saída da Noite
05:30 às 06:00
Na saída da noite os velhos já estão com seu fogo aceso, é a hora de ver as fumaças aparecerem pela aldeia. As famílias levantam cedo porque o raio do sol não pode passar por cima da gente, pois senão podemos ficar com quebradeira no corpo, preguiça, desânimo, sem vontade de trabalhar. Além do mais, levantar tarde faz a gente ficar enrugado mais rápido. Quando a pessoa acorda mais tarde, fica mais mal humorada, mais reservada. Quem acorda cedo fica mais alegre, com o corpo mais leve e no trabalho tudo rende. Os mais velhos nos ensinam sempre as crenças com o sol. Na Saída da Noite os raios do sol já começam a aparecer e trazer a força para nós. Com os raios do sol, os mais velhos benzedores conversam com as plantas. É hora de tomar emprestadas as partes das plantas para fazer remédio (folha, casca e raiz). É hora de fazer o batizado dos remédios com o sol, para poder ter o poder de cura. Os bichos já estão nos pés de fruta, alegrando a natureza com seus cantos e gritos. É nesse momento que as mulheres fazem o café, colocam a batata, mandioca e banana no fogo para cozinhar ou assar para as crianças. A gente começa a alimentar as galinhas e outros bichos, algumas pessoas já começam a caminhar para a roça. Essa é a hora de ir trabalhar, pois está fresco. Na nossa aldeia é a hora em que os parentes vão na roça buscar alimento para fazer o almoço, outros vão ver as armadilhas, como mundéu, laço e suru.
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A manhã
06:00 às 10:40 A partir das seis horas a natureza já começa a se movimentar. A manhã é fresca, é o momento de força. A natureza libera suas forças para as plantas, para a terra. Os pássaros cantam marcando o horário, as flores se abrem, as árvores acordam, as pessoas começam a se espreguiçar e os orvalhos sobem pro ar. Os mais velhos diziam que beber o orvalho dá força para o nosso corpo, porque é a água da noite. Na manhã é hora das pessoas trabalharem. As mulheres se movimentam, os homens saem bem cedo pra ir para a roça, as crianças e os jovens se movimentam, e os mais velhinhos ficam se esquentando ao fogo e ao sol. Os professores, professoras e crianças se movimentam para ir para a escola. É a hora das pessoas contarem e liberarem seus sonhos da noite. É também é o horário dos jovens embelezarem o corpo através dos seus movimentos. É hora de trabalhar pra gente e pra outros parentes. As maritacas gritam bem de manhã, as crianças também fazem igual aos pássaros e vão pegar frutas. No brejo os bichinhos já começam a se movimentar e a água do brejo é fresca. As abelhas, os beija-flores já vão cheirar as flores. Todas as casas estão abertas para a brisa fresca da manhã e o sol entrar. Tudo se movimenta na manhã, todos os caminhos se movimentam, até os caminhos que o céu tem, pois é a hora do sol caminhar.
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Tinindo do Sol
10:40 às 12:00
Nesse horário as pessoas estão comendo e descansando dentro de casa ou na sombra. Na natureza tudo está descansando como os pássaros, os bichos, os rios, as árvores, a terra, o céu, ou seja, tudo o que é vivo. É no meio do dia, quando a gente está pisando na sombra, que quase ninguém sai para mata e nem para a roça, pois os bichos estão soltos, como os bichos perigosos e assombrosos. Depois que a gente come e precisa tirar um cochilo é a hora de conversar menos, porque o espírito está descansando. O descanso é um horário sagrado para a natureza.
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A quebrada do tinindo do Sol
12 às 13:00
A quebrada do tinindo é quando as sombras ainda estão pequenas, o sol está com muita força e o ambiente está descansando um pouquinho. A terra fica muito quente, saindo vapor e o ar fica um pouco parado e quente. As plantas ficam um pouco paradas e os animais e os insetos se movimentam devagar. O vento também dá uma descansada. Durante esse horário alguns passarinhos cantam marcando a passagem da quebrada do tinindo do sol. Esse é um grande horário da natureza que ela se descansa em seu próprio corpo. As pessoas estão nas sombras do terreiro da aldeia ou dentro de casa fazendo pequenos trabalhos. É um horário onde as pessoas conversam menos, e que as crianças pequenas depois de tirar um cochilo tomam um banho para tirar o calor.
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A tarde
13:00 às 14:00
É hora de sentar na fresca para fazer artesanato, é hora de descansar, de tomar banho e de capinar. As mulheres vão fazer colar, pulseira, brinco e alguns homens vão fazer charri, gamela, arco e flecha, cocár, lança e bichinhos de pau. Os nenéns dormem na rede e as crianças vão brincar. Os homens estão preparando para irem à roça e outros já capinam. As caças estão saindo e procurando fruta e andando na beira dos rios ou nas tocas descansando. Os pássaros estão quietos ou andando. Nós estamos parados esperando a quebrada da tarde para irmos tirar pau e ir pegar lenha.
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A quebrada da tarde
14:00 às 16:30
Na quebrada da tarde o sol não está muito quente e ele está quebrando para ficar fresco. O vento está ficando bem leve. Os bichos começam a se movimentar pela mata. É a hora dos pássaros que marcam a hora, cantarem e saírem pela mata como o chororão e tururum. Os pombos comem as frutas e outros pássaros como jacu, enchem o papo de frutos para passar a noite. Na quebrada da tarde a gente vai para a fresca conversar com os vizinhos e os homens se preparam para caçar, pescar e fachiar para seu sustento. É dentro desse horário que é hora de trabalhar e que os adultos vão olhar as plantas das roças, conversar e socar as casas das formigas.
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Tardinha caída
16:30 às 17:30
A tardinha caída é o horário que o dia está indo embora. Os passarinhos estão procurando seus ninhos e tocas e de lá mesmo ficam pra dormir. No céu as nuvens começam a se juntar formando desenhos. É o horário para o Sol levar as coisas ruins, é só pedir que ele leva. É a hora de respeito pela natureza, pois é o momento do sol ir embora e descansar. Os velhos benzem com a força do Sol e tudo se concentra nesse horário porque é o momento de muita força do sol e da natureza. É a hora que as crianças e os jovens estão praticando os jogos e as brincadeiras, e os homens estão pegando lenha para acender a fogueira. O Sol está fresco para fazer os trabalhos mais leves como olhar as plantações mais próximas de casa. É hora de conversar com elas. As pessoas estão começando a fazer comida, varrendo a casa, lavando panela e pratos. As mães estão começando a dar banho nas crianças e algumas estão brincando. Os velhos vão tomar banho e as crianças se reservam nas casas. É hora de dar comida para as galinhas, socar os buracos das formigas que já pocavam, para que não comam as plantas durante a noite.
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A caída do dia - Boca
da noite
17:30 às 18:30
A caída do dia é quando o sol está indo embora para chegar a noite, começamos a acender a fogueira para ficar esperando os parentes. É o momento de encontro da aldeia, pois as pessoas já sabem que a fogueira é a escola da aldeia, é onde saem histórias de antigamente. É quando a família se reúne para conversar sobre o trabalho que aconteceu no dia e o que vai fazer no dia seguinte. As mulheres fazem café e cauim para esperar algumas visitas que vão chegar. As crianças acompanham seus pais até a casa do parente, lá eles vão brincar com seus primos para alegrar a aldeia. Quando o sol se põe na boca da noite é hora dos mais velhos oferecerem as plantas colhidas para o céu. Alguns animais começam a procurar toca para dormir e outros já começaram a sair para caçar seu alimento uns procuram a roça e outros, formigueiros. Tem gente que vai caçar na mata, pois algumas caças estão caminhando pela mata. Nesse horário, quando começa a escurecer, não pode andar na mata sozinho, pois os bichos perigosos e bons estão todos soltos. Depois que passa esse horário, pode caçar e pescar até a meia noite.
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A noite caída
18:30 às 19:30
Nessa hora a brisa rasteira vem chegando dos rios e da mata, a escuridão já começa a ficar com força e o céu mostra a sua cultura através das estrelas. O fogo está aceso no terreiro, é hora de cantar o auê, contar estórias e conversar com os parentes. Na caída da noite é hora do corpo ficar mais leve com os cantos. Nesse horário se come muitas coisas assadas na beira do fogo. É hora de alguns velhos fumarem cachimbo e tomar rapé para buscar ajuda na natureza para tomar alguma decisão na luta da comunidade. É quando as crianças brincam de esconde-esconde, os jovens dão uma conversadinha com as garotas e os pequenos ficam nos colos das mães. É nessa hora que as formigas começam o seu vai e vem para os pés de plantas e sua casa. Os pássaros já estão nos seus puleiros e só alguns noturnos que começam a ir saindo, como o corujão, caburé, mãe-da-lua e outros.
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A noite fechada
19:30 às 23:20
Toda a natureza já está descansando. A água também dorme. Os pássaros dormem, alguns estão caminhando e cantando como o bacurau, a mãe-da-lua e a cavala. Os macacos dormem no cipoeiro para acordarem cedo. No brejo é silêncio e somente os grilos e os sapos cantam e dão boa noite. As árvores já não balançam mais, estão dormindo. Dependendo do tempo, as árvores batem um pouco mais lentamente, quase em silêncio que quase não percebemos. As famílias já contaram histórias na beira do fogo e todos vão dormir. E alguns apreciam o céu para ver os segredos que os velhos ensinam.
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Noite Velha
23:30 às 00:00
Nesse horário tudo na natureza está descansando. As árvores e os bichos estão em silêncio. Na aldeia, todos também estão quietos, pois esse horário é quando estamos no nosso descanso, é a hora que o sono está chegando bem mais forte. Apenas o vento leve sopra a fumaça que resta da fogueira, no terreiro da aldeia. A noite velha vem para trazer descanso para a natureza e para as pessoas que acompanham. É um horário que a gente não viaja muito no sonho. Durante a noite velha, apenas alguns seres da natureza estão acordados, tomando conta e vigiando as matas e seus lugares no espaço da natureza. É também nesse horário que a coruja e o caburé cantam nas noites de lua, nos troncos dos angicos. Os vaga-lumes iluminam os espíritos da mata juntamente com os sons dos pequenos insetos.
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A volta da madrugada
00:00 às 00:30
Nesse horário, quando a noite é clara, os caburé gostam de cantar, e muitas vezes adivinham o frio. Na volta da madrugada apenas alguns animais pequenos estão andando, outros já vão de volta para suas tocas se recolherem. Os vaga-lumes estão iluminando a terra. Nesse horário a aldeia está toda em silêncio, e as pessoas estão dormindo, é a hora que os seres da natureza saem para andar. É um horário assombroso e os cachorros latem porque eles estão vendo perigo. Latem para proteger a aldeia. A natureza abre caminho para os seus espíritos protetores e assombrosos andarem. Os espíritos assombrosos da natureza são o pelanca, o camuderê, a velha do peito-do-bico-doce, o caie-caiá, o lobisomem, pé-de-machado, o cafum, o tinguilimgombêv, e o bota-barriga-bota-pescoço. Nessa hora a Hãmay já recolheu os bichos dela do dia e liberou os bichos da noite que são as onças, os lobos, os gatos do mato e o saruê para fazerem sua caçada. Nesse horário tudo está em silêncio na natureza.
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Madrugada Velha 0:30 às 2:00
Nesse horário a gente, as árvores e as águas estão dormindo, descansando para acordar. Tem alguns seres da natureza que estão acordados, como; a coruja, o saruê, o lobo, a mãe-da-lua, o bacurau. Esses bichos que saem para caçar suas comidas de noite, pois, de dia estão dormindo, são os bichos noturnos. Os bichos assombrosos ainda estão andando.
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Quebrada da madrugada
02:00 às 04:00
Neste horário a natureza está em silêncio. A natureza está descansando para trabalhar quando amanhecer. Às vezes, quando a noite está clara, o nambu e as três potes cantam, anunciando o final deste horário. Nessa hora é que fazemos grandes viagens através dos sonhos buscando força e sabedoria. O corpo descansa através da viagem dos sonhos. É quando se vêm cantos, danças e nomes para as crianças. As estrelas vão mudando de posição e a Lua também anda. O dia já não está muito longe e já se pode sentir o clarão do novo dia.
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Barra do dia 04:00 às 5:30
Na Barra do Dia a claridade vem abrindo no céu, é a hora da natureza se despertar para a manhã. A barra de neblina aparece nas baixadas e brejos e os pássaros que recebem avisam a chegada do dia, e já estão festejando o amanhecer. Nesse horário as caças já comeram na roça. Os pássaros e os macacos estão saindo dos ninhos e cipoeiros para irem comer nas fruteiras. Nessa hora os papagaios saem do mangue para irem para mata fechada e outros vão caçar comida. Os mais velhos levantam cedo para beberem seu chá e fazerem suas atividades.
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Faculdade de Educação da UFMG