Calendário dos tempos

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Calendรกrio dos Tempos da Aldeia Pataxรณ Muรฃ Mimatxi


Calendรกrio dos Tempos da Aldeia Pataxรณ Muรฃ Mimatxi


Presidência da República Ministério da Educação Secretaria Executiva Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão Diretoria de Políticas para Educação do Campo, Indígena e para as Relações Étnico-Raciais

Professores e alunos indígenas Pataxó da aldeia Muã Mimatxi

Universidade Federal de Minas Gerais Reitor: Clélio Campolina Diniz Vice-Reitora: Rocksane de Carvalho Norton Faculdade de Letras Diretor: Luiz Francisco Dias Vice-Diretora: Sandra Maria Gualberto Braga Bianchet Núcleo Transdisciplinar de Pesquisas Literaterras Coordenadora: Maria Inês de Almeida

Calendário dos Tempos da Aldeia Pataxó Muã Mimatxi

Ficha catalográfica elaborada pelos Bibliotecários da Biblioteca da FALE/UFMG

C149

Calendário dos tempos da aldeia Muã Mimatxi / Professores e alunos indígenas da aldeia Muã Mimatxi. _ Belo Horizonte: Literaterras : FALE/UFMG,2012. 108p. : il., color. ISBN: 978-85-7758-185-6 1. Literatura indígena _ Brasil. 2. Índios da América do Sul _ Brasil. 3. Índios Pataxó _ Minas Gerais. I. Título. CDD : 898

Belo Horizonte Literaterras - Fale/UFMG 2012


Calendário dos tempos da aldeia Muã Mimatxi

Sumário

Curso de Formação Intercultural para Educadores Indígenas - FIEI/UFMG Eixo de Conhecimento Socioambiental

Tempo das águas 10

Coordenação Ana Maria Rabelo Gomes Marcos Vinícius Bortolus Coordenação de Materiais Didáticos Márcia Spyer

Setembro 14 Outubro 18 Ritual das águas 22 Novembro 28 Dezembro 36 Janeiro 48

Textos Professores e alunos indígenas Pataxó da aldeia Muã Mimatxi

Tempo de voltar para a escola, colher o que plantou e agradecer a natureza por tudo que ela nos deu no tempo das águas

Ilustrações Estefani, Rairis, Txioiana, Kutiá, Ícaro, Txoko, Txahá, Giruí, Poliana, Dédalo e Txahuí

Fevereiro 58 Março 66

Revisão Guilherme Antunes Abjaudi Priscila Luiza Mara Vanessa Fonseca Dutra Projeto Gráfico e Diagramação Lila Vasconcelos

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Tempo da brisa leve, de falar da luta do 72 nosso povo, participar do movimento indígena e lutar por nossos direitos Abril 78 Maio 84

Coordenação Editorial Maria Inês de Almeida

Tempo da seca, do frio, do vento rasteiro derrubando as folhas que ainda resistiram, 86 tempo de fazer fogueira, de olhar e contar histórias do céu.

Este livro foi produzido pelos professores e alunos Pataxó da aldeia Muã Mimatxi, durante as oficinas de produção de conhecimento e laboratórios interculturais realizado no Curso de Formação Intercultural para Educadores Indígenas FIEI/UFMG, no Eixo de Conhecimento Socioambiental.

Julho 94 Agosto 90 Setembro 102


Por que um Calendário da Vivência e do Mundo de Vida Pataxó em Muã Mimatxi? A nossa vida está relacionada com a terra, com o universo e com tudo que move a vida. Antes a gente vivia em Barra Velha, no Sul da Bahia, na Aldeia Mãe hoje vivemos num território delimitado, a nossa Terra Muã Mimatxi, que fica localizada na região Oeste de Minas Gerais, no município de Itapecerica. Mais além dessa delimitação, temos uma ligação profunda com todo o universo e outras terras mitológicas. A gente sempre procura e está buscando essa vida de ligação mais profunda com outros lugares místicos, com lugares que têem muita força. A gente está vivendo aqui, sempre buscando essa vida dos tempos, porque cada tempo é vivido de uma forma. E cada tempo tem o seu dono maior. Porque tem o tempo das águas, tem o tempo do frio, do ar, tem o tempo do calor. Todos os tempos são ligados em um ciclo maior do universo. Por exemplo, nas montanhas a gente sente a brisa, o frio das montanhas. É no pé das montanhas que mora o espírito maior do ar e dos minerais. Aqui a gente vê que é aberto, não tem montanha, olha e vê o fundo lá da terra, mas na nossa mente a gente vai lá na beira da praia, vai lá no Monte Pascoal, onde estamos sempre encontrando com os nossos parentes. Estamos tentando caminhar juntamente com essa grande espiritualidade da terra e do universo para fortalecer nossa vida aqui. A vivência e o Mundo Pataxó é tudo que desenvolvemos na vida, é nossa maneira de ser e de viver, a nossa relação com a natureza e tudo que faz parte da nossa vida. É nosso campo de estudo, pesquisa, ensino-aprendizagem, é a ciência da terra e da natureza, é nossa experiência e ciência, nossa análise e nosso projeto de vida. A centralidade da nossa educação está na vivência e no nosso mundo de vida que é nossa matriz formadora, onde se

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encontram ancoradas outras matrizes bases da vida e que fazem parte do nosso ensino-aprendizagem, como: a cultura, a religião, a língua, a arte, a nossa história de resistência, a ancestralidade, o nosso entendimento e antropologia da vida, a nossa filosofia, a identidade, a nossa saúde e o nosso direito de organizar e viver a maneira de ensinar e aprender do nosso povo. Entendemos que a nossa escola caminha com a vida e o Calendário caminha com os tempos construídos a partir do conjunto das atividades práticas, bem como da explicitação que emerge das trajetórias e vivências, em seus diferentes processos, que acontecem na aldeia Muã Mimatxi. do assim nossa compreensão do mundo. O Calendário é uma iniciativa pedagógica que ajuda em direção à construção de um novo currículo e ele pode facilitar o diálogo intercultural, ou seja, mostrar rotas possíveis de articulação dos conhecimentos tradicionais com os conhecimentos científicos. Também é um instrumento importante para o uso e manejo do território e da nossa vida através dos tempos. O calendário vem para fazer nosso manejo de vida junto aos ciclos da natureza em cada tempo. Até agora temos trabalhado sem o direcionamento da flecha, então pensamos que o Calendário da Vivência e do Mundo de Vida Pataxó de Muã Mimatxi vai direcionar a flecha com mais liberdade para o conhecimento indígena. Através dele podemos pescar os conteúdos e significados dos conhecimentos territoriais, sociais, cosmológicos, ambientais, culturais e técnicos colocandoos em primeiro plano, para desamarrar os nós de uma educação colonizadora que prende em grades e castiga o aprendizado das crianças, jovens e professores. Assim, acreditamos que o Calendário possibilita que essa liberdade possa trazer cada vez mais a autonomia de expressão e responder às demandas educacionais da nossa comunidade, sem que o nosso povo deixe sua cultura de lado e nosso jeito próprio de educar!

Nossa lógica parte dos conhecimentos tradicionais que estão na nossa vivência cotidiana e daí então formular perguntas que serão trabalhadas em: oficinas, estudos dirigidos, pesquisas e na produção de materiais pedagógicos próprios. É nesse momento que se tenta fazer o diálogo, a transição do conhecimento tradicional com o conhecimento científico. Por meio dessa metodologia de ensino-aprendizagem procuramos reverenciar, aprender e reaprender os conhecimentos tradicionais para assim fortalecer a nossa cultura. Dessa forma, acreditamos que o exercício da interculturalidade seja mais efetivo, porque podemos aumentar a nossa compreensão de visão do nosso mundo e do mundo do outro, quando organizamos e sistematizamos as atividades cotidianas e as levamos para o estudo e pesquisa na escola e em toda a comunidade, dialogando sempre com outros saberes, ampliando assim nossa compreensão do mundo.

Kanatyo Pataxó

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Tempo das águas

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Gente, plantas e bichos Se mergulham nas águas desse tempo Se fortalecem suas vidas Nas águas que vão pro mar. Somos todos um só Terra, bichos, águas, plantas e Pataxó Vivemos em um só movimento Somos dança entre a terra e o cosmo Com o sol, a terra e a lua que é nossa avó. No tempo das águas o grão vira em plantas A terra se fertiliza Com a água que desliza Sobre as folhas secas caídas no chão.

Águas que vêm do céu, banham a terra, renovam o verde das folhas, envaidecem e amadurecem as frutas e depois vão para o mar e para o céu tornam a voltar. O tempo das águas é muito importante para o nosso povo Pataxó. Os mais velhos contam que no começo dos tempos um grande aguaceiro se formou no universo e caiu na terra. Desse primeiro contato da água com a terra se formou o povo Pataxó. O tempo das águas é o tempo que acontece com a vinda das chuvas e as matas que estão secas começam a ficar verdes. É o tempo em que a natureza começa a se renovar. No tempo das águas parece que tudo fica com fartura. No tempo das águas as plantas vivem mais. Neste tempo tudo fica mais bonito. As sementes que caíram no tempo da seca começam a brotar, as plantas ficam com uma cor mais bonita. As árvores brotam, as folhas crescem e os frutos amadurecem. Nesse tempo não se pega qualquer pau para fazer lenha, não se pega pau caído porque está encharcado. O tempo das águas é tempo de plantar para colher e dividir. Nas plantas que plantamos começa a nascer flor para dar o fruto. Todo mundo começa a fazer seu roçado e horta para plantar mandioca, milho, feijão, cana, quioiô e outras plantas. As caças começam a aparecer e a ter filhotes, pois nesse tempo os animais se reproduzem mais.

setembro . outubro . novembro . dezembro . janeiro

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Setembro

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O tempo das águas começa no mês de setembro e vai até o mês de janeiro. Nesse meio tempo ainda resta um pouco do frio, mas que já está indo embora. As plantas se preparam para trocar suas folhas velhas por outras novas. O tempo das águas não chega de uma vez. Primeiro a natureza passa por um processo de preparação da terra, do céu, das nuvens, do ar, dos fenômenos de cima e de baixo, das árvores e outros seres que fazem parte do corpo da natureza, para receber esse tempo. A chuva chega devagar, bem de mansinho. Primeiro uma chuva leve, bem fina para ir resfriando a terra lentamente, para a quentura ser quebrada e ir embora. Isso é a ciência que a natureza faz para a terra não se estaporar, não estragar o solo e nem danificar as plantas. No mês de setembro tem a preparação no espaço do ritual, o pensamento da gente está mais para receber o Ritual das Águas. É um tempo que a gente celebra a terra e toda a natureza, que a gente recebe toda a renovação. No mês de setembro é uma saída do ano velho para entrar no ano novo, que é celebrado na primeira semana de outubro, do dia 01 até o dia 05 quando recebemos o Mimatxitiuhi. É quando recebemos tudo da natureza, a saúde, o pensamento de ver a natureza renovada.

Ainda não tem muita trovoada, só se a lua for mexer com a trovoada. Começa a dar um relâmpago lá longe, dá os balancinhos bem distantes, não chegam próximo, eles também estão se preparando. Está lá no mar ainda! A trovoada a gente não vê, fala que está lá no mar, ainda está distante, mas às vezes parece que está dentro, junto, bem perto do território. Setembro está tudo seco ainda, o brejo está torrado, o rio Vermelho e o rio Gama estão sofridos também. Setembro já está mais equilibrado, tem o vento fresco, não é mais aquele frio assado. Quando os periquitos andam em grandes grupos é sinal que vai dar muita fruta no tempo das águas. Os animais, não teêm muito não, estão bem sofridos por causa da seca. As maritacas estão gritando, os periquitinhos alvoroçados com fome e gritando. É por isso que fazemos essa preparação para pedir para toda a natureza; força para ela, para os animais. Os pássaros estão limpando o oco e preparando os ninhos.

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Outubro

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Tempo de trazer a fartura em cima da terra. Tempo em que o tempo muda a todo momento. Hora está quente, hora está frio, avisando que tá perto de vir as águas. È tempo de preparar a terra para plantio e de mudar algumas plantas de lugar. Tempo de correição das formigas atacarem as casas, avisando que está perto de chover. Os sapos cantam avisando chuva. As cigarras também cantam avisando que vai chover. As folhas das patiobas e dos coqueiros batem sem vento, é a chuva que está para chegar. Neste tempo o pau fica ringindo sem vento avisando chuva. As cachoeiras avisam quando está para chover: zoando forte está perto de chover. Nessa época os animais se preparam, os pássaros fazem seus ninhos, limpam os ocos de pau. Cada um se prepara para quando as águas chegarem mesmo já estar com filhotes. Tempo de trazer peixe. Os peixes vão para os brejos, para criar. Nesse tempo podemos comer mais peixe e sentir o seu tempero. A caça do mato já vem com o seu próprio tempero, colocamos somente água e sal para saborear o sabor da carne.

Os pássaros: cavala, seriema, bem-te-vi e mãe-da-lua cantam adivinhando o começo da chuva e avisando outras coisas: tem vez que canta um; canto sentido, é coisa ruim. Tem vez que canta; se soltando mais, é coisa boa. Com as primeiras chuvas que vêem, a natureza também começa seu trabalho de transformação e preparação. A gente já começa a ver essas transformações no tempo, nas plantas e nos bichos. Até mesmo no universo e no clima, que começa a refrescar na aldeia. A chuva vem chegando devagar, os intervalos vão mudando também e logo começa a chover com mais freqüência. Esse é um tempo considerado como de fartura aqui na aldeia Muã Mimatxi, porque as pessoas começam a trabalhar a terra, preparar para começar os plantios. Aqui na aldeia Muã Mimatxi nós agradecemos o tempo das águas no mês de Outubro com o “Ritual das Águas”, que realizamos para fazer os agradecimentos das farturas e de tudo de bom que o tempo das águas nos ofereceu até o momento e para pedir mais fartura até finalizar esse tempo.

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Ritual das Águas

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É o começo das águas e a preparação do nosso “Ritual das Águas”. É em outubro que celebramos o surgimento da vida no mundo. Na primeira semana tem o “Ritual das Águas” que celebramos como a virada e o começo de um novo tempo. Tempo de fazer o ritual para ter um encontro da água com a terra. Tempo de trazer energia entre a água e a terra. Tempo de agradecer as águas pela fartura. No “Ritual das Águas” a natureza vai reviver e dar força para ela mesma e para os bichos. Na derradeira semana de setembro acontece toda a preparação, que já é um ritual. A gente canta o awê, acende fogo, prepara o espírito para aquele momento. Dia 05 de outubro é tempo de banho no “Ritual das Águas”. Quando cai num dia de lua cheia dá mais força ainda. No “Ritual das Águas” todos se pintam com barro, urucum e jenipapo e se enfeitam de cipó. Os homens vão na mata buscar o Mimatxitiuhi e as mulheres ficam esperando para cantar o awê. No “Ritual das Águas” também é tempo das famílias relembrarem as comidas tradicionais. Cada família cozinha uma comida. Os homens pegam a mandioca para as mulheres fazer cauim para beber a bebida tradicional do nosso povo.

No “Ritual das Águas” tudo se mistura: crianças, cachorro, galinha, todos participam. No dia do ritual os homens levantam bem cedo para acender o fogo. Logo depois as mulheres vêm trazendo as panelas para fazer a comida. Nesse dia se lembra as comidas dos velhos de antigamente. É o tempo das mulheres fazerem os temperos para os alimentos do “Ritual das Águas”. Cada comida tem o seu tempero. Todas as famílias fazem seus cozinhados: muquecas e muquinhado. Depois de prontos, as famílias colocam seus cozinhados em volta do terreirão e vão provar dos temperos umas das outras. Quando as mulheres estão tomando conta das panelas tem algumas brincadeiras que percorre o terreirão e todos vão tomando cauim.

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Ritual das Águas Nesse ritual a comunidade oferece entre si uma grande troca de alimentos, em que todos participam das celebrações, dos cantos, das danças, das brincadeiras e do banho de força para purificar e fortalecer o corpo e a mente das pessoas. Nesse banho, que acontece no final do ritual, nós voltamos a nossa atenção e nossos pedidos para a terra e a água. Nesse momento jogamos água e passamos terra uns nos outros para invocar a saúde para a nossa vida. Além disso, tem outros segredos, mas são só nossos. Esse ritual fortalece o nosso encontro com a água, a terra e o universo. Quando acaba o ritual todos limpam o terreirão. Logo depois do “Ritual das Águas” acontecem os jogos interculturais. Nos jogos interculturais quem ‘perde’ o jogo na verdade ganha a comunidade e prepara um almoço para todos. As famílias que ganham a comunidade marcam o dia para fazerem o almoço e oferecer a todos no terreirão.

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Novembro

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Esse é o tempo das crianças ficarem mais em casa, de sujar muita roupa. É o tempo da lenha ficar mais difícil porque está molhada. É tempo também dos terreiros ficarem mais cabeludos, das plantinhas brotarem no chão, de fazer mudas de plantas e de plantar as mudas que já estão prontas. O verde das árvores também se transforma com a chegada das águas. É tempo de vários tipos de sons, som das plantas, dos insetos, das águas, dos bichos. É um instrumento musical da natureza, na terra e no céu. É tempo dos mais velhos se concentrarem e ouvirem o som da cultura, da nossa crença. Outros embelezam a natureza com os cantos, é o caso dos pássaros que voam no céu em bandos ou casais, mergulhando na chuva que cai fresca sobre a terra e regando as árvores e plantas. Antes, as roças têm que ser capinadas com freqüência, para não ficarem sujas; então os plantios crescem e dão com muita força. Esse tempo é o tempo que a aldeia fica mais alegre, fica mais verde, com mais canto de pássaros, maritaca, sabiá, além do barulho dos insetos. A gente ouve mais o som da natureza. Os insetos entram mais dentro de casa, como as aranhas por exemplo. Esse tempo é o tempo que os brejos enchem, aparecem

mais passarinhos, garças, sapos e jias. As jias são parentas dos sapos e servem de alimento, sua carne pode ser cozida ou assada e lembra a carne do frango. Os mais velhos dizem que não é um tempo que o céu fica mais claro, ao contrário, tem mais nuvens, não é igual ao frio quando o céu fica limpo. Tem o vento de chuva, vento que vem lá da Bahia, as folhas ficam balançando. O vento sul é o que derruba as árvores e a gente vai buscar pra fazer lenha. Chove muito, às vezes chove pedrinha e os meninos gostam de ficar brincando de chupar as pedrinhas. Os cupins, quando criam asas é quando a chuva vai “invernar”, e temos que buscar lenha pra guardar. O canto do sapo também ajuda. Tem coisa da natureza que é para avisar a gente. O arco-íris aparece muito, ele é o guardião dos peixes, e carrega os peixes de um rio para o outro. O arco-íris simboliza chuva e fartura de peixe, o avançar dos cardumes. Tem muito jatium (pernilongo), muitos insetos. Os mosquitinhos que dão de dia são os maruim. As crianças mais novas, quase não dormem por causa deles. Quando se capina, tem que queimar um pano, ou mato verde para espantar os insetos.

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Novembro

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O céu nesse tempo fica muito “desmudado”, os ventos lembram muito a Bahia. Por ser um tempo de muitos sons, por ser um tempo da roça, é um tempo de mexer com os sentimentos de lembrança. Tempo de fruta, de fartura, de pescarias e caçadas. Tem a trovoada seca, quando trovoa e não chove. E a trovoada molhada, quando chove. A terra fica com cheiro forte de terra molhada. Tem um mormaço muito forte. Quando tem trovoada, relâmpago, vento forte, as pessoas ficam mais dentro de casa e não podem nem conversar porque a trovoada pode entrar dentro de casa, ficar mais forte e prejudicar a natureza e as pessoas. Talvez dá aquela trovoada forte no céu, fecha tudo, mas logo abre. É tempo ainda de plantar, limpar a terra para plantar. As pessoas ficam mais dentro de casa, ficam sem poder pegar lenha, quando a chuva inverna. É o tempo das famílias trabalharem mais juntas na roça, vai homem, mulher, criança todo mundo ajuda. Tempo de comer na casa dos outros e estar mais envolvidos com os outros por causa da capina e do plantio.

Quando não podem sair de casa, as crianças ficam dentro agasalhadas, criando brincadeiras e histórias. As crianças gostam de brincar com as cigarras, de pegar tanajura para fazer fafora. Os jovens gostam de pescar. Os meninos brincam na terra depois da chuva. Este é o tempo dos temperos, do quioiô, é tempo de fazer tempero. É tempo também de cuidar das plantas para fazer remédio. É tempo de muita minhoca na terra, tratando a terra, adubando a terra. Como a terra está boa, é tempo de fazer muda das plantas que tem pouca para não perder. Tem planta que está morta, mas nesse tempo ela revive.

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Dezembro

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Tempo que os angiqueiros já estão todos cobertos de verde. O angico a gente já considera como de Minas. Aqui ele se tornou nosso parente, nossa família. Quando chegamos pela primeira vez nesta terra vimos uma árvore grande e seca numa planície grande e aí pensamos como era aquele lugar antes, com a presença dos antigos. A árvore nos trouxe este sentido, ela vê muita coisa que só o nosso espírito vê. Ela é a memória do lugar, antes ficava só ela assim seca, parecia sem vida. Mas a energia do lugar estava ali através dela com os seus troncos firmes. Quando a gente usa o angiquiero como chá, remédio, a nossa vida fica mais forte e ele passa a ser o nosso irmão. Usando o angico assim, vamos defender ele para o resto da vida. É um elemento cultural muito importante. A gente vibra com ele nesse tempo, pois parte do ano ele sofre muito com a seca. Hoje ele não é só nosso parente, mas a gente está passando a força dele para o nosso povo do mar. Hoje estamos reflorestando com o angico, pois foi com a força dele que a gente veio para esta terra. A chuva e a trovoada já chegaram e estão muito fortes. Nesse tempo a gente fica mais parado em casa, pois com chuva a gente não anda muito. É tempo de “soca” da formiga, a gente soca as formigas porque elas furam a terra, pois a terra já está bem fofinha. Tanto homem como mulher fazem soca da formiga.

A gente põe a folha que a formiga gosta de comer, pode ser de mandioca, angico, samambaia e outras mais. Coloca no buraco dela e dá uma socada pra dentro. Na medida que vai entrando, vai socando e misturando com a terra. Conversa com a formiga com espírito aberto, não com espírito bruto: “você é minha comadre você vai para mata. Você precisa da mata e a mata precisa de você. E eu preciso da plantinha para comer”. Aí ela vai amansando e vai abrir buraco em outro lugar. Tem umas que ficam bravas, agitadas, mordem a gente e continuam cortando a planta. As que ficam mansinhas, ficam tranqüilas e a gente conversa: “deixa a minha mandioca crescer vai cortar as folhas do mato”. Falamos muito com elas e aos pouquinhos elas vão abandonando o roçado, a horta e as frutas. É tempo das baixadas e brejos ficarem alagados e atraírem os patoris, o martinho-pescador, as garças e purus em busca de peixes. Eles estão se refugiando das águas mais correntes dos rios, porque as águas estão mais altas. Puru é outro tipo de pato e ele é bem difícil, só aparece nesse tempo. Também tem o flauteiro que é o sabacu. As seriemas também começam a andar neste tempo. Elas estão mansas e é a maior lindeza cantarem perto de casa. Também começa o macaco que canta adivinhando a chuva. Tem três tipos de macacos: o da noite, branco e esse que

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Dezembro

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canta, que é o macaco preto. Tem também o soim, que vem comer a resina do angico. Em dezembro, quando dá uma semana de chuva, o rio vem silenciosamente, igual uma onda e aí a gente vê o marzão enchendo devagar e quando percebe alagou tudo, aí vira mar. A água cerca a parte de baixo toda até encontrar outro rio. E essas enchentes trázem novos peixes, como traíra, beré, bagre-judeu. Eles ficam nas reprezazinhas. A sensação é muito boa, a gente vai para a beira do alagado e aí dá umas ondas. É uma visita que faz a gente sentir o barulho e o toque do mar. Até o cheiro da lama fica muito parecido com o mangue, o cheiro das algas também vem. A gente fica muito feliz com a visita que o mar faz através dos rios. É muito bom! Para os jovens é um aprendizado muito grande: aprender com o espírito, sentir o cheiro, sentir o toque, sentir todas as coisas através de outras coisas; são muitos cheiros que vêem do rio, vêem da mata, vêem dos alimentos fresquinhos da roça, cheiro de fruta, cheiro da terra molhada. É tempo do cheiro se encontrar e a gente afinar paladar. Aparecem os cupins que começam a voar. Tem os bizorrão, o rola-bosta que saem de noite para reproduzir. Tempo de muito sapo que sai à noite para comer insetos. Dá também muita piabinha do rabo amarelo na enchente. As cigarras continuam

cantando muito. De dezembro a fevereiro é o tempo das maritacas voltarem para reproduzir. Tem o teiú que sai no tempo quente da chuva. É nesse tempo que as mulheres vão renovando as suas idéias de enfeite, de usar novas sementes, criar novos artesanatos. É um tempo em que a gente se alimenta muito com banana, mandioca, com o que vai colhendo. Os homens estão cuidando da sua roça, do seu terreiro. As crianças gostam muito do tempo de chuva. Ficam em casa, um brincando com o outro. A gente compartilha muito em família. Vai brincar com o seu filho, vai ensinar o respeito pela ciência do trovão e do relâmpago e como é que a chuva vem. A ciência do trovão representa para nós a importância de trazer a chuva e quando ele vem a gente tem que se recolher, não pode ficar andando pela aldeia. Devemos deixar o espaço para ele fazer o ritual dele, a gente fica recolhido e agradecendo. Já o relâmpago, ele não gosta da gente ficar conversando, porque é a hora que ele está trazendo a energia para a terra e também está levando a energia da terra para o céu. É ele que faz essa travessia, essa ponte. Nesse tempo tem relâmpago que

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Dezembro

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a gente fica com respeito para que o que a gente plantou se fortaleçacom ele. Respeitando a força dele, ele tráz força para o que a gente plantou. O relâmpago pode ajudar a terra, às vezes a terra está muito cansada e ele vem trazendo essa energia boa para ela. A chuva vem através do aviso dos animais. Como os macacos, quando eles estão agitados ou muito longe: é sinal que vem chuva. O cupim quando vem à tardezinha está indicando que vem chuva. O gavião cauã quando canta é porque vem chuva, mas depende de em qual árvore que ele está: se estiver em uma árvore seca vai ter sol, se estiver em uma árvore verde, vem chuva já. Tempo que as mulheres cuidam da horta. Tem planta que mela com a chuva, então vão replantar as coisas miúdas: mostarda, coentro, cebola, etc. Replantam também remédio: marcilica, erva cidreira, funcho, lavanda. É tempo de muita fartura de fruta na Bahia: mangaba, coco xandó, caju. Em Muã Mimatxi é tempo de manga, gabiroba, pequi, ingá, jatobá. Tempo de simpatia com a natureza. Não passar debaixo do arco-íris. Tempo do arco-íris levar o peixe de um canto para o outro. Tempo de encontro da comunidade para finalizar o ano letivo.

Depois de viver o ano todo juntos, no meio de dezembro a gente reúne a comunidade para um presentear o outro com vasilhas, enfeites. É aí que a gente mantém o laço de família. Vai de criança até o velho. Criança presenteia o velho, o velho presenteia criança e adulto. É para manter a amizade, o vínculo forte de parente num tempo em que tudo está forte. O movimento grande é na escola, quando termina o ano escolar, porque depois a gente se separa, vai trabalhar na roça, vai fazer um puxado na casa. Para o nosso povo, a escola caminha junto com a comunidade e a comunidade caminha junto com a escola. Tempo de nuvem e céu pesado, tempo mais forte de fenômenos no céu. As árvores se fortalecem juntas para poder se proteger do vento. A gente também, quando vê uma nuvem preta, se desliga do mundo de fora: rádio e TV. Tempo de maior concentração da natureza com as árvores. O clima é mais quente e se está muito quente é indicador de chuva. Quando o ar está sufocado e mais preso é um mormaço, o ar fica quente. Quando o sol está quente que arde a pele, não chove. Até o vento fica quente. Quando chove muitos dias seguidos as crianças ficam agitadas para sair de casa, para brincar e ir na casa de outras crianças.

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Janeiro

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Em janeiro é o tempo que a aldeia fica mais vazia, porque algumas pessoas viajam para a Bahia, vão visitar os parentes da aldeia Barra Velha. Essas visitas acontecem já faz tempo. Assim que as primeiras famílias Pataxó chegaram em Minas Gerais, começaram a fazer essas visitas à aldeia Barra Velha, que é considerada por todos os Pataxó como nossa aldeia mãe. Aproveitando essas visitas, nós vamos também alimentar o nosso espírito com os alimentos que só tem lá em Barra Velha: caranguejo, siri, aratu, concha, moréia, guaiamum, ritapedra, ouriço, lagosta, camarão, burgigão, arraia, cação, pescada e outros peixes e mariscos. Os nossos velhos às vezes sentem que seu espírito está doente e sempre falam que é a falta dos alimentos que eles comiam na aldeia Barra Velha quando eram crianças e jovens. Nesse tempo, quem não viaja fica em casa, na aldeia, olhando as coisas dos parentes que viajaram, porque sabe que quem foi para a aldeia mãe vai trazer os alimentos para o espírito do seu parente também se fortalecer. Antigamente, os nossos velhos se alimentavam muito desses alimentos e por isso tinham o corpo forte e protegido, a pele bonita e principalmente o espírito ficava alimentado e os velhos não sofriam muito com alguns tipos de

doenças espirituais. Essas visitas são muito importantes para o nosso povo Pataxó da aldeia Muã Mimatxi, porque em todo lugar que vamos carregamos em pensamento a imagem dos lugares de Barra Velha. Nossa aldeia Muã Mimatxi é muito parecida com alguns lugares de Barra Velha, mas alguns jovens e crianças não conhecem o seu lugar de origem, onde toda história do nosso povo começou. Por isso, fazer essas visitas à aldeia mãe é muito importante para a nossa comunidade. Mesmo vivendo longe, continuamos a transmitir essas histórias que foram vividas por nossos pais e avós nos tempos em que eles viveram em Barra Velha. O tempo das águas tem muita importância para nosso povo, pelos acontecimentos das várias coisas boas que a natureza nos reserva e nos oferece. Este é o tempo em que a aldeia fica mais vazia, mais silenciosa, com pouco movimento, é mais o movimento da natureza. As famílias estão mais concentradas no seu próprio núcleo, como é tempo de férias, a família fica com ela mesma. Cada família, como está voltada para si mesma, faz seu trabalho, seu artesanato e seu plantio.

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Janeiro

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As pessoas ficam mais descansadas, sem se apressar com a escola. O estudo é feito com a oralidade, faz o estudo da vida. Não se recebe gente de fora porque está mais parado, porque todos ficam mais ligados com a família. É tempo de visitar e matar a saudade da aldeia mãe, os jovens vão lá e estão querendo namorar. Para aproximar o namoro, vão visitar Barra Velha, isso para quem quer casar, procurar o parceiro na aldeia mãe. Também para fazer trocas, trazer mudas de plantas e sementes que só tem lá. É o momento que os parentes trazem notícias e alimentos da Bahia para que as pessoas que ficaram na aldeia possam se alimentar das proteínas, alimentar o corpo e o espírito para seu fortalecimento, para sua pele ficar bonita e o corpo também. Muita conversa das crianças, que brincam com a ligação das coisas: da roça com o milho, por exemplo. O fogo fica reanimado e com cheiro da roça, de milho assado, fava de milho verde. Esse tempo é de olhar e celebrar as plantas viçosas que estão novas e com força. Celebrar essa fartura. A terra já bebeu muita água e está bem fofinha, qualquer pedacinho é bom para plantar

porque está fofo. Nesse tempo tudo se mistura na terra, as folhas secas, tudo vira adubo. As formigas são vencidas pelas plantas, passou o tempo das formigas atacarem as plantas, as formigas estão mais mansas. É tempo de pensar mais longe, porque estamos parados, descansados, pensar para planejar a vida, pensar na cultura. Tempo de aquietar e fortalecer o coração. É importante esse tempo para voltar para dentro de si mesmo e fortalecer a cultura para dar prosseguimento às atividades da vida para o tempo que virá. É tempo de pensar! É tempo em que a vida nos leva do seu jeito, que ela é como a natureza. O tempo é para o tempo Pataxó. Momento que volta da vida de uma forma de olhar na prática e aprender com a família. Os meninos acompanham os pais para aprender, ficam olhando, observando, escutando. No plantio temos o feijão, a mandioca e outros alimentos, como o milho. Agora é tempo de comer milho cozido, assado, beber mingau de milho e comer pamonha.

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Tempo de voltar para a escola, colher o que plantou e agradecer a natureza por tudo que ela nos deu no tempo das águas

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Vamos plantar e cuidar da terra Quem planta colhe e tem fartura A terra dá o fruto e não tem usura Pataxó quer a terra para viver Quer a terra para cuidar e não para vender Pataxó quer a terra para plantar e colher Eu olho a terra e vejo a minha Vida dentro dela Terra é sobrevivência É nela que está a nossa história, a resistência E as raízes da nossa existência.

Nesse tempo a gente se alimenta com a produção que colhemos do tempo das águas. Esse é um grande tempo, quando a gente está retornando para a escola, as crianças ficam movimentadas. É tempo delas fazerem rodas de conversas e contarem para as outras crianças e professores suas histórias das férias. É tempo das primeiras notícias e informações de fora circularem dentro da aldeia, das famílias começarem a visitar a escola e das manhãs ficarem movimentadas pelas crianças. Nesse tempo a gente prepara as músicas, as vozes, as brincadeiras e os jogos para brincar e estudar com as crianças. É tempo que a gente conversa e pergunta muito e dá muita risada. É tempo que nosso corpo e nossa cabeça estão bem leves e descansados.

fevereiro . março

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Fevereiro

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Na primeira semana desse tempo fazemos um ritual para agradecer a natureza por tudo o que ela nos deu no tempo das águas. Esse ritual encerra o tempo das águas e inicia um novo tempo. Nesse ritual, os homens pegam lenha e depois todos vão para a cozinha coletiva, as mulheres preparam a comida e todas as famílias da aldeia interagem. No ritual a gente canta para agradecer as plantas que nasceram, deram frutos, floraram, brotaram. Cantamos também para a terra, a lua, a chuva que molhou a terra e ajudou as plantas a viverem. Cantamos agradecendo toda a natureza. Inicia o “ritual de agradecimento à natureza e á água” por tudo que elas nos deramnesse tempo. O ritual encerra o ciclo das águas e é o momento de celebrar o dono da água, o cheiro da água, as frutas que nasceram, o momento de celebrar esse ciclo de vida que se renovou. Alimentar-se do tempo da colheita. O feijão está ainda com a força da produção. Ensina-se às crianças a importância delas no ritual de agradecimento ao tempo das águas por tudo que ele nos deu, pois são elas , as crianças, que fazem a ligação profunda da passagem desse tempo para um novo ciclo de vida. Por isso, elas se vestem com a natureza.

Durante toda a semana o aprendizado é voltado para o ritual. As crianças têm de ser preparadas. Os meninos são levados para a mata para receber as forças. Antes disso os adultos conversam com os meninos para que eles recebam bem essa força. São os homens que levam os meninos para a mata. As crianças fazem a passagem para agradecer a natureza e são importantes no ritual, porque são os responsáveis por agradecer e celebrar por toda a aldeia. Elas fazem essa passagem com a renovação da vida e da natureza. As mulheres e meninas se enfeitam para receber os meninos, elas ficam esperando no ‘kixé’, o ‘terreirão sagrado’. Quem traz os meninos são os homens. O ritual começa antes do nascer do sol que é quando todos acendem seu fogo e começam os gritos (gritos ran ran da terra, do papagaio, da pedra). A cada ritual mudam os gritos, às vezes são os mesmos. Ocorre antes do nascer do sol porque nesse período tem uma energia maior que reage à força e pega essa força para nos fortalecer nos tempos que virão.

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Fevereiro

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A natureza concluiu seu poder de força, está maravilhada, já colhe e está feliz com o que ela deu. Em janeiro desliga e em fevereiro religa. Celebra-se o encontro do céu com a terra, as suas forças. Os paturis, o martim_pescador, as garças, estão retornando ao seu lugar de origem, o rio e o brejo já estão cheios, tudo está completo. A aula começa no dia 01 de fevereiro. Tempo de preparar a voz, as brincadeiras, saudade do movimento, de dar muitas risadas. Tempo de movimento de todo mundo e das crianças que brincam no terreiro fazerem roda de conversa. As mulheres se preparam para receber os meninos ligados ao ritual, para receber a força, as jovens e crianças preparam seus enfeites e as mulheres, seus temperos. O artesanato, os enfeites, as atividades estão ligados no ritual. Depois, na escola, vamos dialogando para saber o que foi desenvolvido.

Esse é o tempo de capinar e limpar o terreiro da escola. Os professores se reúnem para dar boas vindas para as crianças e planejarem as primeiras aulas do ano. É um momento da gente sempre estar presente nos espaços coletivos da aldeia. É tempo de reunir com a comunidade para planejar as lutas que iniciam o ano letivo, entrar em contato com a Secretaria de Educação, Funai e Funasa, que cuidam da educação, dos assuntos indígenas e da saúde. As primeiras notícias de fora circulam na aldeia, as lideranças entram em contato com as coisas de fora, com o governo. Tempo de voltar para a escola, de colher o que plantou e agradecer a natureza por tudo que ela nos deu no tempo das águas.

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Março

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Nesse tempo a natureza toda vai mudando, quase não chove mais, só dá uma chuva que é para plantio do feijão do tempo. Nesse tempo o dia está grande, os angiqueiros estão com as folhas verdinhas, não dá vento forte, mas como o clima está desregulado, às vezes dá algum temporal com vento. Nesse tempo as mulheres já fazem viagens longas para pegar tucum e frutas para fazer artesanato. Preparação para abril, fazer artesanato muito, de toda qualidade: arco, flecha, lança, pulseira, colar, brinco. E preparar as roupas, quem não tem faz nova, ou conserta. É tempo da preparação da pintura com urucum e jenipapo. Às tardes, as mulheres sentam nas sombras dos compadres angicos para fazer colar, brinco, pulseira e os homens fazem arcos e outros artesanatos. É o tempo de produzir muito artesanato porque em abril a aldeia vai receber muitas visitas. Tempo de começar a colher o que se plantou no tempo das águas. Colher alguma coisa seca e outras não estão boas de colher. Tempo de colher: feijão e milho, mas o milho já está seco, não presta para assar. Colher milho pra dar pra criação. Colher feijão de corda, fava, algumas folhas de taioba. É o tempo que só vai colher, todos colhem: homens, mulheres e crianças maiores.

Alguns pássaros já voam com as mães, os filhotes já estão grandinhos, as caças já estão bem sabidas e já se viram. As frutas, já quase não teêm mais. As caças e os pássaros vão andar longe para caçar sua comida. Começa a não ouvir muito o som da natureza, os pássaros não cantam mais, os peixes já vão saindo dos brejos para os rios com seus filhotes grandinhos. Lugar que tem cachoeira já vai diminuindo a zoeira, os ventos já vão diminuindo as zoadas. Os brejos já vão secando, os rios já vão baixando as águas. Ainda chove, mas já vão sumindo as águas. Os pássaros que no começo da chuva vinham visitar a beira do rio, agora já foram embora, só alguns ficaram. Muitas coisas da natureza já estão diminuindo. Os insetos vão sumindo. É o tempo em que se olha mais o céu à noite para ver as estrelas, apreciar as estrelas e a lua. Pela parte da noite o céu limpa mais já vem chegando o tempo do frio. Vem chegando outras coisas da natureza que dá no tempo do frio. Vem chegando os bichos do tempo do frio: os grilos vão fazer as zoadas e o tinido do frio. Quando faz o frio o tinido faz: tinnnn. Ele já vêem chegando devagar, já tem o tinido do frio.

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Março

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A natureza está mudando. Nessa época, os sapos sumiram. A caça, o teiú já não saem mais das casas, já estão entocados, eles só saem no tempo do calor. As caças estão andando longe atrás de comida. A gente já não coloca mais os mundéus porque as caça são tudo os filhotes. A gente tranca o mundéu nessa época para esperar os filhotes crescerem, porque os filhotes são mais bobos e caem logo no mundéu. A paca velha não cai assim fácil no mundéu, ela rodea e não cai. Principalmente a paca que é mais desconfiada e mais sabida. As mulheres cuidam da casa e ao mesmo tempo cuidam do artesanato. Faz um e outro ao mesmo tempo. Aí é o tempo de a gente caçar e olhar mais as sementes, olhar a natureza. E o homem caça mais madeira, coqueiro, qual que vai dar o arco e a flecha. E as meninas jovens já ficam ali junto da mãe, vendo o quê que a mãe faz, olhando e aprendendo. As crianças ficam ali junto da mãe brincando e já olhando o que a mãe faz. E os meninos jovens já ficam olhando o pai, olhando e aprendendo. Já pega ali uma madeira já faz alguma coisa, se ele não sabe ainda, imita.

Nesse tempo já tem muita semente, muita semente seca. Tem umas que a gente vai fazendo a mudinha, não é tempo de plantar. Tem umas sementes que não agüentam ficar guardadas, aí a gente vai molhando elas. Se deixar, elas “bicham”, ficam muito velhas, muito duras. A fruta vermelha mesmo só é boa de nascer nova, se não, ela fica muito dura. Tem vez que a gente coloca ela no caquinho e vai molhando. O feijão de corda mesmo, se a gente quiser guardar, pega ele e mistura no barro do formigueiro. Se não for assim ele não agüenta e dá bicho. Pega o barro do formigueiro e mistura no feijão que ele dura de um ano para o outro. Só mela ele de barro e não deixa barro dentro não.

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Tempo da brisa leve, de falar da luta do nosso povo, participar do movimento indígena e lutar por nossos direitos

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Tempo de brisa leve e mansa Que quase não balança As folhas que tem na mata Quando ela se descansa Esse tempo que tudo vai ficando escasso A gente não caça, não planta, não bota mundéu E nem arma o laço É tempo de lutar E mostrar a nossa força da resistência Lutar pelo nosso direito No movimento maior da vida e da nossa consciência.

Esse tempo que saímos para mostrar e falar da nossa cultura. Somos convidados para ir a escolas, dar palestras, vender nosso artesanato e fazer nossa apresentação com canto e dança. Em nossa aldeia recebemos visitas de escolas, faculdades e outras pessoas. É nesses momentos que a gente vai mudando a nossa história de vida. E não o que o livro diz. Então vamos ensinando aos não-indígenas as nossas tradições. A gente se enfeita mais, com pinturas e ornamentos do nosso povo. É um tempo de alegria e de viver fortemente a cultura. Também refletimos como foi a invasão do Brasil, por quem foi feita e quem sofreu com a invasão. Falamos da nossa resistência indígena durante esse período de colonização e invasão, e que efeitos nosso povo veêm sofrendo com suas terras tradicionais pela demarcação e pela sobrevivência. Falamos da luta que a gente vem passando para conquistar saúde e educação diferenciada e pela demarcação do território. Também é hora de mobilizar e lutar para conseguir o que estamos precisando em nossa aldeia. Esse tempo é de fundamental importância para ver quais foram as lideranças de grande respeito. A luta do nosso povo Pataxó para a conquista de várias coisas fundamentais. Também conhecer as lideranças indígenas que tiveram uma importância no cenário e na luta nacional em busca de interesses comuns para todos. Temos uma semana dos jogos familiares Pataxó da aldeia Muã Mimatxi, nos quais todas as famílias participam para equilibrar o corpo e a mente, trazendo alegria para todos os outros parentes. Nesses jogos familiares tem várias modalidades de jogos tradicionais Pataxó e cada família tem que atingir uma determinada quantidade de pontos. As últimas seis famílias com menos pontos farão um grande cozinhado para os seus parentes. Com isso esses parentes ganharão a amizade e a alegria da comunidade.

abril . maio

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Abril é o mês que a gente considera um mês da família, onde todos se juntam para se divertir, contar suas histórias e brincar com suas crianças. Nesse tempo os rituais estão mais em segredo do povo Pataxó. O banho de fumaça, o banho de cheiro, é como uma benzeção que faz em casa e junto no terreirão. Tem o banho da fumaça que é da irmã amesca, que é uma planta sagrada. É uma fumaça que a gente toma para fortalecer o espírito porque o tempo não está mais suave, sadio. Quando toma o banho também celebra a natureza. Tem os compadres plantas, os irmãos da natureza, e nós sabemos o momento de cada planta que a gente pode estar recebendo no corpo da gente, a energia dela em cada momento. O jovem, os velhos, as crianças, têm que estar com o corpo preparado, por isso tomam muito banho para proteger dos resfriados e das coisas ruins, as doenças, as gripes, as febres. Porque no mês de maio a gente se protege de doenças que possam vir a prejudicar o corpo ou que possam nos machucar. Tudo na natureza vai ficando mais gelado, vai preparando para o tempo do frio. Tempo de estar purificando a gente para ter força para conseguir alguma coisa na aldeia e para a própria natureza conseguir vencer o frio e a seca. No mês de maio quase não tem água para alimentar a terra, para a natureza se manter sadia. É mês das brisas estarem se juntando, se encontrando, se

preparando para chegar a frieza que é o frio. Vai chegando devagarzinho. Não é só o ser humano que se prepara, a natureza também se prepara. A terra começa a ficar seca, a poeira começa a balançar, a mexer com as capas da terra. A terra seca, ainda não é poeira feita. Está começando a sair do chão. As capas da terra começam a se soltar e virar poeira seca. Cada natureza faz seu trabalho nos tempos aqui na terra. Mesmo que sofra, a gente não pode reclamar dos tempos. Tem que se proteger e agradecer. A terra tem o tempo dela receber e não receber. Tem tempo que recebe muita chuva, muita água, e tem tempo que ela não recebe, mas teêm força para proteger os rios, os peixes, os seres humanos. Tem tempo da brisa leve fazer a limpeza. A gente não pode ver só o ruim, porque a gente está em falta, mas agradecer. A natureza tem força, a terra guarda os grãos, as sementes, para quando chegarem as águas, tornar a renovar. Tempo de poucas frutinhas para os animais. É quando cantamos nosso awê à noite, observamos o céu e contamos histórias do tempo mais antigo. Na aldeia trabalhamos as pinturas, as brincadeiras e os jogos.

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Abril

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No mês de abril é o mês que recebemos mais visitas, pois para os brancos é o mês do índio. Nesse mês já fizemos artesanato de todo tipo. Tem dia que a gente recebe aproximadamente 100 pessoas por dia. É tempo de fazermos fogueira para cantar e dançar o awê, renovar as roupas de ritual e pegar o tabu (taboa) para fazer as roupas. Em abril teêm os jogos familiares, os mesmos jogos do mês de outubro. Nesse mês as crianças e jovens estão muito presentes na vida do povo, brincando e jogando. As famílias participam dos jogos familiares, renovam as peças dos jogos, limpam o local e fazem bolas de madeira. A família que perde o jogo ganha a comunidade e oferece um almoço para todos. Os homens pegam lenha para fazer muquém e assam carne e moqueca de peixe. Cada família apresenta a sua alegria e diversão para a comunidade. É tempo de arrumar pena de pássaro, galinha, pintura e se preparar para o abril. Vamos pegar lenha, limpar o terreirão, limpar as cozinhas, preparar a mandioca para fazer o cauim, capinar em volta do fogão. Tem o intercâmbio com as escolas da região na aldeia Muã Mimatxi. Aí a gente se pinta, coloca cocar e tanga, para esperar

as escolas. Uns vêem fazer algum trabalho sobre o nosso costume e saber como a gente vive, outros vem só visitar e saber como é a nossa vida e tradição. Tem escolas que querem que a gente visits eles também. As visitas na aldeia são agendadas. A gente não cobra pelas visitas na aldeia. Fazemos uma troca, eles nos visitam e a gente vende o artesanato para eles. O nosso artesanato é um dos meios de sobrevivência da nossa comunidade. Vender é todo mundo que faz, todo bichinho de orelha, todo mundo faz a sua vendagem. Esse é o tempo que se aprende com a matemática da própria natureza. E a gente vai ensinando a criança. Aprende sobre o conjunto das cores, dos tecidos, da geometria, do artesanato, dos temperos. É tempo de trabalhar muito com o pensamento. A gente vai na mata pegar um litro ou dois litros de sementes e faz o colar. Tem que contar de um lado e do outro para dar certo e ensinar a criança a contar o dinheiro e trabalhar com a matemática do branco.

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Abril

O mês que a gente mais trabalha é esse, com as coisas da natureza. Esse mês a gente usa dente de caça para o colar. Colhendo não só o que plantou, mas colhendo também da natureza: frutas, sementes, algumas madeiras, folhas que estão verdes ainda, folhas para fazer remédio. Tempo de que andar mais pela natureza. É o tempo que a gente anda mais olhando o que a natureza fez no tempo das águas. Ela deu o fruto, agora ela está dando a semente. A gente vai pelas casas dos parentes fazer a troca das sementes. A semente que a gente tem, troca pela semente que não tem. As sementes andam pelos quintais, pelas casas dos parentes, elas não ficam paradas só no lugar que nasceram. Elas também viajam nas aldeias dos nossos parentes. É o tempo das sementes andarem pelas aldeias. Abril é o mês da cultura. É o mês que as famílias ,quando não viajam, usam a comunicação como meio de encontrar com os parentes.

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Maio

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Maio é um mês alegre e bonito. É o tempo que a “planta de maio” dá flor. Ainda está muito bom, um mês suave para a gente sentir a noite e o amanhecer. É um mês alegre, ainda tem um restante das flores, ainda se vê as cores da natureza, ela está enfraquecendo, mas ainda é bonita. As noites são bonitas, se vê estrelas de todos os tamanhos, lua cheia, lua nova. Em maio os passarinhos do frio estão começando a cantar: o caburé, o bacurau, o corujão... eles gostam da brisa, festejam, ficam alegrezinhos. Em maio falamos muito da luta do conhecimento que saiu e voltou através do intercâmbio. Ainda é o momento de conhecer a história e luta dos povos indígenas do Brasil e do mundo. Ver as lutas, conquistas e desafios dos povos indígenas. Nesses tempos de março, abril até maio, a aldeia continua em um movimento cultural importante para nós. Ainda temos visita na aldeia, continuando o mês de abril. Os velhos contam as histórias antigas do povo Pataxó, a brisa vem chegando devagarinho das baixadas. É quando cantamos nosso awê à noite na fogueira. Na nossa escola é jeito nosso de passar a educação que a gente sonha.

De manhã o sol sai com muita força bem vermelho e com nuvens alaranjadas, o céu fica bem azul durante a noite. O urucum está maduro, fazemos tinta e pintura de urucum, os jovens e as crianças andam mais pintados. Recebemos estudantes e professores na aldeia. As mulheres colhem muita semente e fazem artesanato. Os professores contam muitas histórias da nossa vida para os brancos, os jovens e nossas crianças observam como os brancos se comportam no ambiente da aldeia. É tempo que o céu está alto. É tempo que a gente conversa mais fortemente com as plantas, faz ritual para elas não morrerem. É quando toda a natureza se prepara para um período mais seco e frio. Tudo guarda suas energias. O frio e a neblina de manhã vêm das baixadas e do encontro dos rios. O brejo, os rios, começam a diminuir seu volume de água. Tempo de poucas frutinhas para os animais. Observamos o céu e contamos história do tempo mais antigo. Na aldeia, trabalhamos as pinturas, as brincadeiras e jogos. O corujão aparece para nos visitar e o canto do caboré simboliza o início do frio. Esse tempo é de buscar força e energia para passar o tempo de frio e seca que existe na natureza.

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Tempo da seca, do frio, do vento rasteiro derrubando as folhas que ainda resistiram, tempo de fazer fogueira, de olhar e contar histórias do céu

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O vento tem muita força Que vem da natureza Espalha sementes e derruba as folhas Com muita força e ligeireza Nesse tempo diminui a água do rio A terra fica seca e faz poeira E o vento sopra fazendo muito frio Durante a noite o céu fica estrelado Vem e canta o bacurau De manhã vem a neblina E a mulher faz o chá da medicina tradicional Os pássaros ficam encurujados As árvores perdem suas folhas E a gente deve ter muito cuidado Para não cair doente.

Nesse tempo tem a seca, que faz com que a cor da natureza se altere e mude a sua imagem. A seca deixa a natureza mais parada. O frio faz com que as pessoas ascendam fogueira ou acordem mais tarde para se esquentar, ou ficam mais encorujados nesse tempo. A gente quase não faz atividade nenhuma, nem as crianças, fica mais parado. É nesse tempo que as mulheres fazem mais remédio. Então esse tempo é muito sofrido para nós e para a natureza. Esse é o tempo que nós estamos mais ligados intensamente com o fogo e o sol. É o tempo dos ventos frios e rasteiros que derrubam as folhas e afastam a gente das atividades cotidianas. No tempo da seca as árvores, plantas pequenas e flores perdem sua cor natural. Esse tempo fica mais parado porque os pássaros e a caça esperam chegar a primavera. É tempo que a gente sofre junto como a natureza, é tempo que a terra para, as pessoas também. A gente passa a ter mais cuidado com a natureza, com as crianças e com os mais velhos.

junho. julho. agosto

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Junho

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Nesse tempo aqui na aldeia Muã Mimatxi acontecem muitas mudanças que atingem o território, o universo, a vida cotidiana da comunidade e dos seres como as plantas, os pássaros, as caças e outros. Na vida da comunidade as famílias dormem mais cedo, os casais ficam mais juntinhos e esquentam muito fogo. É o tempo de esquentar fogo, fazer comida assada, tomar banho quente, fazer e tomar lambedor, chá e banho de plantas medicinais, fazer os trabalhos de lavar roupas e vasilhas mais cedo. As crianças acordam mais cedo porque começam as aulas, retornando de suas férias. As famílias têm mais fartura do que fizeram de artesanato no mês de abril. Também colhem o feijão e o milho e não caçam, não pescam e nem plantam. Pegam mais lenha para queimar e continuam fazendo artesanato para vender nos eventos da cidade. Em junho já ajuntou o trabalho dos fenômenos da natureza, já veio para a terra, para o rio, para as baixadas, para ficar com a frieza. O tempo de junho está bem resfriado, é um vento e um frio que se sente no osso, se sente no couro, o corpo e o osso doendo. Os rios estão sem água, sem força. Os peixes estão parados, encolhidos. Tudo está preguiçoso através do sofrimento da frieza. É tempo do corujão estar cantando mais, os bacurau e os caburé. Eles cantam muito, eles são do frio. É tempo que não se vê as garças, os quero-quero porque não tem água no brejo nem fartura no rio.

A terra está seca. As plantas já estão mais amareladas, bem enfraquecidas. Estão fracas por conta da seca e não têm mais força para ficarem alegres, batendo livres porque as folhas já estão quietas. É tempo que as folhas, as árvores estão encolhidas, encorujadas, estão ressecadas. O coração dos compadres angicos que são suas raízes ficam sentidos por causa do frio e da seca. Eles são iguais a nós, são vivos. Só quem tem essa relação com a natureza, vê o padecimento deles. O coração fica fraco, a pele deles vai ficando ressecada, encorujada, triste por causa da seca, até chegar o outro tempo e eles reagirem através da água. No mês de junho os compadres angicos estão muito sofridos, a gente também sofre. Sofrem eles e sofre a gente. É tempo das caças andarem longe procurando comida. Nesse tempo os peixes estão mais entocados, as pessoas quase não saem de casa, ficam na beira do fogo e têem mais cuidado com o corpo. Tempo da seca e do frio, do vento rasteiro derrubando as folhas que ainda resistiram, tempo de fazer fogueira, de olhar e contar histórias do céu. Na fogueira as crianças gostam de ouvir histórias que os pais, tios, avós, contam à tardinha e à noitinha. Tempo de aprender histórias do nosso povo antigo.

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Julho

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O nosso corpo é o que mais sofre devido ao frio. As pernas, os pés, os lábios ficam rachados e cinzentos. Podemos dizer que o corpo fica mais preguiçoso e doente. As crianças andam mais agasalhadas, as pessoas ficam esquentando no sol durante o dia e à noite, esquentando no fogo. As crianças e os mais velhos adoecem mais de garganta, bronquite, gripe e dores. No universo, que é o mundo que fica acima de nós, também há mudança. O céu fica azul durante o dia e à noite faz muito frio. As noites ficam grandes e frias, o sereno e a neblina são freqüentes e fortes, o céu fica estrelado. Neste tempo os pais ficam com o cuidado maior com as crianças, deixam sair de casa só depois que o sol sair e esquentar a terra. Cuidado maior por parte da mãe, toca agasalho pra não tomar vento frio no ouvido. Anda mais durante o dia pra se recolher mais cedo. A tarde toma banho mais cedo, com água que a gente esquenta. As crianças ajudam a mãe a cuidar da horta, olhando, observando, aprendendo. As crianças brincam mais de correr pra poder esquentar com o fogo. Acender o fogo, buscar lenha, fazer uma fogueira, é sinal que uma família está chamando a outra, não precisa nem gritar. Aproveita o dia quando o sol já está quente. E quando não está, se acende o fogo. Tempo que as pessoas se gripam mais e pedem mais chá. Os jovens andam mais agasalhados e ajudam nas atividades normais.

As mulheres lavam os pratos mais tarde, as atividades do dia da casa começam mais tarde porque é mais frio. As crianças vão brincar juntas de correr, pular, movimentar o corpo e ajudam a mãe a cuidar da horta. Quando dá um tempinho vão esquentar no sol, homens e mulheres separados. À tarde, depois que lavam panelas, as mulheres ficam cuidando das crianças menores, ficam olhando o fogo e os homens jogam bola. A menina jovem busca folha no mato pra fazer chá, quando é mais longe aí já vai um homenzinho. No terreirão, ficam na fogueira e retornam quando a neblina já está forte. A mulher vai cuidar das plantinhas da horta. A primeira coisa é o movimento com as plantas. Depois que o sol esquenta, as atividades com a casa. Ajuda a olhar e dar ensinamento para as crianças. Quando é de tarde, a mulher ajuda a fazer artesanato, um chá, arranca mandioca pra comer com chá. As jovens ajudam a aguar as plantas pra não perder as mudas, principalmente de tempero. Elas também têm grande paciência pra cuidar das plantas. Quando os homens arrancam a mandioca as mulheres fazem o cauim. Os homens também limpam um pouco do mato que ficou seco na terra pra ficar mais limpo o terreiro, a roça, e tirar as folhas secas das bananeiras. No tempo do frio a aldeia não fica movimentada, o movimento é só de quem vai à aula.

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Julho

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Os homens acordam cedo, buscam bastante lenha para casa e para o terreiro. Para olhar o céu, se acende o fogo mais ou menos às seis horas da tarde depois que todo mundo já tomou banho. É uma atividade cultural coletiva. Levamos maracá, rapé e ficamos olhando as constelações das águas que pela nossa história é de onde o Deus vem visitar a gente. A gente toma o rapé pra ver esta constelação, que é o período que ela está com mais força. O caminho das águas, segundo os velhos, é de onde Yãmixop desce até o grande rio que é o mar e aí ele nos visita. O caminho das águas pode direcionar qualquer caminho. Pode descer no território, no brejo, no rio. Ele trás muita força do Yãmixop. Não só a gente passa por provação com o frio, os homens trancam as armadilhas porque as caças estão magras e precisam renovar. Até a água que está na nascente, trilha um tempo de respeito na natureza. Tempo que não tem ritual marcado e tempo de estar ligado junto com o céu no caminho das águas como o Yãmixop. Na terra, é como se estivéssemos pisando nesse caminho de estrela não só do mar, mas das montanhas, dos brejos, das planícies e das matas.

Nesse tempo tem uma diferença bem marcada do dia e da noite. De dia o céu fica bem azul e de noite fica bem escuro dando pra ver as estrelas bem forte. O dia é mais pequeno e a noite é mais longa. Tempo de muita rachadura na pele devido o movimento da natureza: as bananeiras, os angiqueiros, as mandiocas, as batatas tudo é igual. Todos passam por este movimento. E se a gente não sente junto com a natureza vai deixando de ser índio. O espírito vai se afastando das coisas puras, deixa de canalizar essas energias. Quando usamos o fogo, o curru e a amesca o nosso espírito entra em ligação e fica mais sensível. Ao olhar a árvore, a pedra, o animal, em tudo vai colocar uma beleza e também a energia. Nesse tempo o dia fica mais pequeno e a nossa vida fica mais ligada com o sol e com o fogo.

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Agosto

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A natureza está bem feia, tanto as matas quanto os pássaros que estão mais distantes, quando aparecem estão mais feios. É assim porque passou junho, julho. As árvores estão quase todas secas, nos angiqueiros quase não restam folhas. A terra fica mais sofrida e resguardada porque não se planta. As estradas e o terreiro ficam muito poeirentos e isso prejudica a nossa saúde. As caças, os peixes, os pássaros se acasalam, ficam mais em suas moradas. Alguns pássaros não festejam muito, alguns perdem suas penas devido ao frio e ao vento. O vento castiga as plantas quebrando seus galhos e derrubando suas folhas, levanta muita poeira, as crianças sofrem mais com as gripes. É tempo de aprender a fazer xarope para as crianças, banhos medicinais. As plantas para fazer remédio estão também em falta. Na vida das plantas muitas ficam sem folhas como a mandioca. As bananeiras ficam com as folhas amareladas, não dão frutos e nem flores. As árvores estão todas peladas. Com o tempo, começam a brotar os brotinhos.

A neblina cobre o espaço da aldeia durante a noite e de manhã. A água fica escassa, gelada. As águas dos rios diminuem. Podemos dizer que toda a natureza está sofrida: a astronomia, a vida da comunidade, das plantas, dos pássaros, das caças e de todos os bichinhos que vivem na terra. Agosto é um mês longo. Neste tempo não se faz casa, não se faz roça, não se faz viagem longa e não se faz casamento porque dá azar. É um tempo que está sem muita atividade para fazer porque tudo está parado: a mata, o rio e a natureza. As crianças brincam menos na terra. Quase não tem semente pra fazer artesanato. Usamos as sementes que foram guardadas, de tucunzeiro, matapasso e pariri. Os jovens ficam mais juntos conversando entre eles. Neste tempo tudo está sofrido.

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Faculdade de Educação da UFMG


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