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A Canção do Silêncio

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Fuga em pânico

Fuga em pânico

SÓ QUERIA TE DIZER A Canção do Silêncio Heverson Souza e Costa

Sentia falta da música que outrora enchia cada cômodo da sua velha casa, e já não podia mais ouvir, embora guardasse no interior do seu peito o ritmo de cada canção que no passado lhe despertou tantas emoções.

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A idade não lhe pesou no corpo, mas levou-lhe a audição, sendo talvez aquela uma infeliz ironia da vida que lhe poupava do martírio de ouvir os ecos da solidão. Mesmo assim, buscava encarar com suavidade o tempo que lhe restava, aceitando com gratidão tudo que a vida lhe proporcionava.

Sobre sua mesa a cada manhã, a porcelana chinesa cuidadosamente disposta sobre o forro, ao lado da colher de sobremesa, próximos à vela acesa onde se sentava para aquecer sua alma. Todos aqueles detalhes demonstravam, o quanto seu ser estava carregado de sutilezas.

Era a sensibilidade de um homem que viveu cada estação, se apaixonou no auge do verão e disse adeus no alvorecer do inverno, respeitando as peculiaridades de cada condição. Não teve filhos, mas teve um grande amor que cultivou e do qual cuidou até o momento que o acaso o levou.

Sozinho, no mesmo lar em que viveu, ali permaneceu, e mesmo sem poder ouvir os sons ao seu redor, jamais deixou de cultivar a beleza e a harmonia que preenchia os seus dias de grata alegria.

Naquele quarteirão, seu lar se perdera entre outras construções, à sua esquerda havia um prédio, cujas sacadas davam vista para o jardim que criara no fundo da sua casa. Ali vivia sua maior alegria, entre plantas e flores, cultivava seus maiores amores.

A vida parecia em perfeita harmonia até que uma inesperada notícia invadiu cada canto do planeta, e para ele que não podia mais ouvir, as frases escritas na TV lhe anunciaram a chegada daquela estranha pandemia.

Se ainda escutasse, quisera notasse, que a cada dia o barulho que invadia a rua aos poucos foi desvanecendo, dando espaço para o silêncio que expressava o desalento que cada um estava vivendo.

Vendo as notícias transcorrendo, percebia a seriedade do que estava acontecendo, mas tomava muito cuidado para que a tristeza e o desalento não invadissem seu ser, nem maculassem a sobriedade de cada amanhecer.

Já não podia caminhar nas ruas, pois a ameaça invisível espreitava a todos e não poupava àqueles que já viveram muitas auroras. Por isso, refugiar-se entre suas flores era a melhor saída para esquecer toda a tristeza que sondava lá fora.

Todos os dias cuidava do seu jardim, cultivando-o como o seu maior bem e esquecendo toda a melancolia que assolava o mundo afora, sentia o ritmo das canções que outrora aqueceram seu velho coração.

Então, numa daquelas manhãs, enquanto cuidava das plantas, percebeu que da construção irmã, o que restava de uma bela Dália, caía e se desfazia, espalhando ao redor suas pétalas, como se num último ato dissesse adeus àquele mundo ingrato.

Olhando para o alto vislumbrou, olhos carregados de dor, no rosto de uma velha dama cujo passar dos anos a beleza o tempo não poupou. Mas para alguém como ele, havia algo mais a se ver além da efemeridade referente a uma juventude impertinente.

Ao ser percebida, envergonhada ela ficou, e mesmo diante do seu tímido sorriso, apressadamente ela se retirou. Naquele instante uma decisão tomou: por que não lhe devolver o sorriso? E para alegrar-lhe, dálias ele cultivou.

Pacientemente ele as plantou e quando despercebida a triste dama voltou a mirar seu jardim, com ternura ele as ofertou. Seus lábios um elogio murmurou, e contente com o seu júbilo, utilizando-se de uma fina caligrafia lhe indagou: “Quando tudo passar, posso te levar flores?”

Em contrapartida, ela lhe respondeu, que as flores receberiam e um suéter lhe teceria, e com outra gentileza lhe agradeceria. Contente ele ficou e de imediato a proposta aceitou.

Só lhe restava contar que o som de sua voz não poderia escutar, e sob a égide de seu olhar com receio ousou a verdade lhe revelar. Sábio são os anos que às pessoas cabe ensinar, a bela arte do tolerar!

Com aquele triste sorriso que marcava seu olhar, ternamente ela disse não se importar, e como se pudessem ver mais além do que os seus olhos pudessem alcançar, prometeram-se um ao outro cuidar.

Pois, quando toda a tristeza que carrega aqueles inusitados dias passar, tranquilamente poderão se encontrar, e então, quando um ao outro olhar, terão a ser certeza que a vida lhes deu a chance de estarem juntos num novo recomeçar.

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