4 minute read

Fuga em pânico

SÓ QUERIA TE DIZER Fuga em pânico Marco Antônio Santos

Já sei que será mais um dia lento. A cabeça não para de pensar como atravessar uma pandemia sem me machucar, sem romper com alguém que insiste em acreditar que tudo não passa de um complô do sistema. Difícil isolar-se e contatar o mundo por uma tela fria que sabe mais do que a poesia que escrevi ontem para o jornal. De repente, o apartamento substituiu a cidade e o computador, o remédio contra a loucura.

Advertisement

Nem sempre o apartamento teve esse cheiro de usado. Nem sempre coloquei relógios nos cômodos da casa, além do despertador do celular para me avisar que a hora da aula chegou e devo acessar o link da maldita plataforma. Fichários, anotações e tutoriais enchem a mesa de vidro que era somente para transparecer a sopeira de porcelana cheia de chaves antigas e perdidas pela memória as suas fechaduras.

Termina a aula, alunos se esvaem em ok’s mentirosos. Ligo a tv em busca de uma curva alinhada, ou notícias de vacina. Os dados assombram e falam a verdade dessa tragédia. No entanto, as ruas estão vazias, não como ontem, quando alguém ameaçava multar transeuntes que se negavam em ficar em casa. Uma abelha entra na sala, quem sabe para salvar minha monotonia. Rápida, esperta, grande, sadia, ela pousa nas bananas da fruteira. Outra abelha percorre a cozinha em busca do pote de mel sobre o aparador. Nunca uma abelha havia entrado nesse apartamento de terceiro andar. Nunca havia matado uma abelha desta maneira, com o livro de sonetos e poemas satânicos.

Um desses controles me levará ao ridículo da evasão do tempo. Tento mais um canal. Um filme, o sexo pronto para uma ejaculação solitária. A única que pode haver em isolamento do amor. Um noticiário explora números e gráficos. Em outro, a apresentadora, em pânico, mostra as imagens das praias tomadas por peixes-voadores, enguias, e crustáceos

brilhantes. Preciso, correndo, colocar toalhas nas portas. Lá fora, um pássaro berra e outro bica as rosas do deserto que plantei ano passado e que, neste mês, vigam a natureza tardia com imensas flores violetas. Enquanto morcegos chineses sobrevoam virilmente as mangueiras da calçada. Até ontem, estava florida. Como as mangas cresceram pela manhã e exalam esse cheiro doce, enjoativo? Como todas as flores cresceram no jardim da portaria? E as abelhas?

Lavo as mãos, volto ao computador, busco uma voz humana e só ouço os números da tragédia que ampliam outras tragédias humanas. Na internet, as imagens mostram estacionamentos tomados por zebras, hienas e supermercados saqueados por araras e gambás.

Posso ver os fios balançando com os micos que correm em malabarismos excêntricos. Não são os mesmos. Há uns menores, filhotes, experimentam os brotos das flores da alameda e as amêndoas, sem medo de caírem. Abelhas e percevejos insistem em entrar. Umas morrem ao baterem de encontro ao vidro. Pelo interfone, chamo o zelador. Será que há alguma colmeia perto do prédio? Não sei. Nunca tivemos dessas. Os besouros assustados ameaçam os passantes de máscaras sem sorriso.

Algum livro que deixei para ler na velhice pode me salvar da angústia de pensar como se chega ao fim do túnel dos desesperados. Mas os gatos tomaram conta do muro do prédio e cantam uma toada mediúnica. Fecho correndo as janelas e portas, com medo de os micos pularem para dentro de casa. Telefono para a defesa civil, talvez, quem sabe, obtenho alguma explicação. Nada, os ratos roem as linhas do poste.

Tudo parece novo e anunciado. O ar horrivelmente fresco, as folhas soltas inundam o assoalho das ruas. Enquanto os homens se fecham de pânico, o gel atrai mais abelhas. Pelas brechas, pelas bicas, pelos ralos, as borboletas brotam em contaminação in natura. A ameaça de adoecer e morrer nas filas para um motor pulmonar permite que a vida tome seu posto.

Já não há nenhuma imagem transmitida pelos canais famintos de novidades, os lagartos e búfalos tomaram as antenas. Uma nuvem de gafanhotos, pelo que vejo pela fresta da cortina, celebra a boa nova. É a esperança que entra pela tarde e colore o espaço de um azul agressivo,

quando tudo já se dava por perdido. Quando nós íamos, felizes, observar felinos e elefantes no zoológico e modificar o rumo dos rios.

Só dá tempo de pegar os documentos e a chave do carro. Mas, no sinal, a pandemia de quadrúpedes disputa o lugar com os carros amassados e confusos. Sigo pela rua esquerda, a que vai direto à rodovia. Deixo em casa meus peixes e as poucas garrafas de vinho e vodka abertas pelas lagartixas. Difícil subir a serra com pouca visão à frente e com o retrovisor coberto pelas aranhas e cigarras. Mas chego. Entro na estrada de barro, um silêncio vazio desliza pelas rádios locais.

No chalé das palmeiras, o burro percebe minha chegada e os cães latem de alegria. Não há ninguém na casa, na padaria, na praça, na igreja, na prefeitura, na delegacia. Os bois se servem das frutas e legumes do mercado. Na porta, nesse momento, chama uma senhora, sem máscara, e me pergunta o que fazer com o crocodilo que está dormindo após lanchar os pães e a torta que ela havia preparado para a minha chegada.

Quem sabe uma revolta. Quem sabe a natureza decidiu vencer nossas mãos nesses 40 anos. É tudo incerto. É tudo um mistério de um tempo roubado pelo medo da morte plantado em cada ar que sai dos pulmões sangrados. Não há nada a fazer, a não ser, levantar, abrir a cortina e as janelas, trocar de roupa, colocar a máscara e preparar o café diário, enquanto a roupa bate na lavadora.

This article is from: