SÓ QUERIA TE DIZER
Fuga em pânico
Marco Antônio Santos
Já sei que será mais um dia lento. A cabeça não para de pensar como atravessar uma pandemia sem me machucar, sem romper com alguém que insiste em acreditar que tudo não passa de um complô do sistema. Difícil isolar-se e contatar o mundo por uma tela fria que sabe mais do que a poesia que escrevi ontem para o jornal. De repente, o apartamento substituiu a cidade e o computador, o remédio contra a loucura. Nem sempre o apartamento teve esse cheiro de usado. Nem sempre coloquei relógios nos cômodos da casa, além do despertador do celular para me avisar que a hora da aula chegou e devo acessar o link da maldita plataforma. Fichários, anotações e tutoriais enchem a mesa de vidro que era somente para transparecer a sopeira de porcelana cheia de chaves antigas e perdidas pela memória as suas fechaduras. Termina a aula, alunos se esvaem em ok’s mentirosos. Ligo a tv em busca de uma curva alinhada, ou notícias de vacina. Os dados assombram e falam a verdade dessa tragédia. No entanto, as ruas estão vazias, não como ontem, quando alguém ameaçava multar transeuntes que se negavam em ficar em casa. Uma abelha entra na sala, quem sabe para salvar minha monotonia. Rápida, esperta, grande, sadia, ela pousa nas bananas da fruteira. Outra abelha percorre a cozinha em busca do pote de mel sobre o aparador. Nunca uma abelha havia entrado nesse apartamento de terceiro andar. Nunca havia matado uma abelha desta maneira, com o livro de sonetos e poemas satânicos. Um desses controles me levará ao ridículo da evasão do tempo. Tento mais um canal. Um filme, o sexo pronto para uma ejaculação solitária. A única que pode haver em isolamento do amor. Um noticiário explora números e gráficos. Em outro, a apresentadora, em pânico, mostra as imagens das praias tomadas por peixes-voadores, enguias, e crustáceos 85