Não Saia Agora

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Índice 5 APRESENTAÇÃO 9

Coroa Suprema

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O TELEFONE QUE TOCA

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Andando pela Noite

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O Sabor da Culpa

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Do lado de dentro

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Eles Já Estavam lá

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Ao Entardecer de Cada Dia

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O Império das Feras

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OS QUE AMAM SOBREVIVEM: Uma carta sobre a infecção

Daniel Constantini

RODRIGO SANTOS

Artur Laizo

Leonardo C. de Campos

Juliana Rabelo

Rodrigo Santos

Talya Maura

Jéssica Cardoso

Kaique Cesar

57 Incertezas Marcari

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Semente do Recomeço

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Mais uma Vez...

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Quem sou eu

Heverson de Souza e Costa

Gustavo Suzuki

Jennifer Galmon



APRESENTAÇÃO

O escritor desde sempre é um ser que se isola da realidade. Se fecha dentro de sua própria concha e com os fluidos de sua massa cinzenta e a areia que possui dentro de si cria as mais belas pérolas desse mundo. No entanto, estar preso consigo mesmo nem sempre acalma o coração ou se reflete numa vida mental saudável. Porém, o escritor precisa do processo solitário para escrever suas obras e apresentar sua criação ao mundo. E este é um processo que muitas vezes é doloroso e insano. Saber o que se passa na cabeça de um escritor é tentar decifrar o caos que se instaura diante de uma pandemia. E, diante a um isolamento social e a introspecção, já aliada do escritor, esses nossos talentos trouxeram à vida o mais solitário de suas almas. Textos repletos de angústia, medo, solidão, terror e suspense que a mente pode criar. São colegas isolados que juntos formaram uma antologia com o mesmo clamor: Não Saia agora! Uma reverência à solidão de escrever sozinho com uma xícara de chá, café ou até mesmo um adocicado refrigerante sabor cola. É uma antologia para se degustar com calma, na calada da noite ou na brisa solitária da manhã. São contos muito especiais que trazem para o mundo real histórias que antes estavam escondidas na mente e no coração desses escritores que romperam as leis e desobedeceram o grande alerta, a mensagem central desse livro: Não Saia Agora. E eles saíram. Com muito carinho e dedicação, cada autor dessa antologia dedicou seu tempo, sua energia e sua criatividade para avisar o planeta de que algo está acontecendo e que não é bom sair de casa agora. Eles estão te avisando, aconselhando e implorando para que não compliquem as coisas no final das contas. Mas será que você vai respeitar? Sinto-me lisonjeado em conduzir essas mentes brilhantes ao cárcere mental do isolamento pessoal. Juntos formamos uma excelente antologia capaz de fazer você, leitor, raciocinar em momentos de isolamento e a rever sua vida até agora. Não queremos te assustar, muito menos a te desencorajar de nada, apenas estamos gritando para os nossos leitores de que vocês são especiais e de que vocês podem mover o mundo se realmente se propuserem a isso. O mundo lá fora é cruel, mas tenho certeza de que em conjunto,

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escritores e autores, podemos romper todas as barreiras e dizer ao mundo do que nรณs somos capazes. E para aquele que nunca acreditou em nรณs e nunca nos apoiaram, sรณ digo apenas uma coisa: Nร O SAIA AGORA!

Daniel Constantini Organizador

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Não Saia Agora

Coroa Suprema Daniel Constantini

Outubro de 1996 – Amparo – interior de São Paulo O amanhecer na cidade de Amparo trazia consigo a harmonia do sol com a brisa da manhã. Soprava o cheiro gostoso de terra molhada com o saboroso aroma de café feito na hora que se espalhava pela rua Duque de Caxias atraindo muitos curiosos. Mistura-se ao cheiro do café o pão quentinho numa harmoniosa complexidade de fragrância que despertava a fome de qualquer pessoa. No entanto, diferente de outros estabelecimentos, a cafeteria Khave Café não era apenas um lugar bacana para se alimentar todas as manhãs e tomar um ótimo café, pois não haviam dúvidas de que aquele era o melhor lugar da cidade. Mariane Castelo, a proprietária, ou a Baronesa do café, abria sua cafeteria todas as manhãs, junto de Eduarda, a artista especial do grupo, Ellen, a cozinheira e seu barista mais antigo, Cloud, um francês com sotaque paulista. Juntos eram uma equipe fantástica. Fazia apenas seis meses desde abertura da cafeteria que trabalhava no ambiente da magia, esoterismo e mistério. Uma decoração completamente roxa, branca e preta, digna da casa de uma feiticeira. Junto do café e pão quentinho, o interior da cafeteria se misturava com fragrâncias de maças, canela e baunilha. E lá dentro a mágica acontecia. Todos faziam seu ritual matinal especializado para cada tipo de cliente. Os clientes que eram atendidos e solicitava uma audiência com Mariane Castelo passavam por uma triagem antes de tudo. Todos eles conversavam antes com Eduarda, uma menina de quinze anos, cega, que pintava artes especiais na cafeteria para alegrar o dia dos clientes. Eduarda era especial, pois sabia pintar todos os estilos artísticos e com sua habilidade ela pintava o futuro dos clientes. Um show bem diferente que se somava às leituras de tarô de Mariane Castelo ou às leituras de borra de café que eram práticas recorrentes do estabelecimento. Porém, naquele dia, alguém desejava desesperadamente encontrar com Mariane Castelo. Tinha um desejo a ser realizado. E como as más línguas no submundo espalhavam, Mariane podia conseguir qualquer coisa que um cliente quisesse. Mas ele precisava ser digno da benfeitoria. Por isso Eduarda fazia a triagem. Ela afastava os curiosos dos desesperados.

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Eduarda conversava com os clientes através do telefone, redes sociais ou WhatsApp. Cabelos loiros, pele branca como leite e olhos cinzas. Vestido azul de cetim com uma tiara de borboleta na cabeça. Parecia uma princesa segurando seu bastão de tato que mais parecia um cetro. Apesar da cegueira, Eduarda andava e fazia todas as suas tarefas de forma exemplar como qualquer pessoa. Muitos ainda duvidam de que realmente seja cega. E realmente ela não era realmente cega. Ela conseguia enxergar ao seu redor com a aura. Aura que irradiava em tudo. Nos objetos, pessoas, animais, plantas e elementos da natureza. E foi assim que ela descobriu Beatriz, uma garota de 17 anos que estava explodindo de ansiedade depois que começou a passar no papel tudo que ouvia de madrugada. Não conseguia mais dormir. Ou ela silenciava essas vozes ou enlouquecia. Recorreu ao Khave Café, o único lugar da cidade onde o sobrenatural, a magia e o mistério eram tratados como assuntos de muita importância. — Eu não sei mais o que fazer. Eu não consigo mais dormir, não tenho mais fome e minha ansiedade está explodindo. Estou fazendo tratamento psicológico, mas eu tenho muito medo que me tratem como uma esquizofrênica... — A menina apontava para os papeis em cima da mesa que ela mesma havia escrito. Beatriz estava vestida de preto, os olhos borrados com maquiagem tentando esconder as olheiras que sobressaiam. Olhos vermelhos de tanto chorar ou de alguma droga, não dava para ter certeza. Pernas balançando sem parar, jeans e coturno preto. Esfregava as mãos em agonia enquanto seu corpo balançava pra frente e pra trás diversas vezes. Tinha falhas em sua voz, melancolia e desespero. Tomava um gole de energético a cada final de sentença e respirava fundo. Era nítido que seu estado mental estava péssimo. Eduarda ouvia com atenção as palavras de Beatriz e sentia a dor e o desespero da garota. A aura roxa estava escurecendo ao mesmo tempo que parecia desaparecer. Era uma bomba relógio prestes a explodir. — Beatriz... Você está me dizendo que esses textos não são seus, mas você escreveu. Você ouviu pessoas narrando essas histórias na sua cabeça, diferentes autores, diferentes estilos de escrita. Você os compilou e depois uma das vozes te disseram que os textos falam sobre um futuro próximo? – Eduarda passava as mãos folha por folha deixando-as na mesa logo em seguida, folheando com calma.

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— Do jeito que você fala eu pareço uma psicótica.... — Beatriz se ofendeu. — Eu acredito em você, mas eu preciso muito mais que isso pra poder te dar acesso a nossa Baronesa. Sabe, ela não é uma mulher fácil de se lidar. E se eu dou acesso a ela a uma garota mimada com transtornos psicológicos, eu vou me dar mal... — Você precisa acreditar em mim! Esses textos falam sobre uma pandemia, ou um isolamento, que vai acontecer no próximo século. Eu só não sei quando vai acontecer. Parecem textos de ficção, mas as vozes me disseram que a inspiração é uma cadeia de fatores de algo muito complicado que acontecerá. Eu sei que você não pode ler mas... — Eu posso sim, aliás, eu já li tudo. Sou mais rápida que você — alfinetou Eduarda. — Tá vendo esse texto? Uma jornalista que foi presa por saber demais, onde uma tal COVID-19 qualquer coisa infectou o mundo todo. E não é só esse, tem outros falando sobre isolamento ou até mesmo mortos vivos, criaturas. Tem até um vampiro. — Beatriz, vou ser sincera com você. Mesmo você tendo uma péssima aura, eu sinto que você tem uma grande criatividade e pode ter tido uma inspiração pra escrever. Já pensou em ser escritora e publicar esses contos? — Não! Você não entende! Eu não tenho capacidade pra escrever uma coisa dessas, eu nem sabia escrever excesso até ontem antes de ler esses textos. E eu não gosto de ler nada, eu só gosto de ficar em casa, na minha cama e ouvir músicas. Os textos foram soprados nos meus ouvidos, como se fosse... sei lá, aquelas coisas espiritas, como se chama, psitrofia, psicobacia, paraplexia... — Psicografia? — Isso! Será que eu sou uma dessas bruxas que ouvi vozes e escrevem coisas. — Bruxas não fazem isso, espíritas fazem, não confunda as coisas... – Eduarda riu. — Olha, quer saber? Perda de tempo. Ta na cara que você não está acreditando em mim. Eu vou embora. — Beatriz pegou os papéis e se levantou. — Não, espera! — Eduarda interrompeu. — Me deixe levar esses documentos para a Baronesa. Se ela aceitar

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falar com você, mesmo eu não acreditando, vocês vão se encontrar, então você pode pedir ajuda a ela. — Por favor, não peço nada mais que isso... eu não aguento mais... — Beatriz suspirou aliviada, mas ainda sentia o peso nas costas e a dor da insônia. — Mas qual é seu verdadeiro pedido? — Eduarda apoiou as mãos no queixo voltando sua atenção à garota. — Eu não tenho esquizofrenia. Meus pais querem me internar e eu não aguento mais ter que me drogar pra poder silenciar as vozes da minha cabeça. Eu não sou mais forte, estou enfraquecendo, eu tenho medo de acabar fazendo alguma coisa que e não consiga nem me arrepender depois. Estou quebrando e explodindo. Eu só quero que essas vozes se calem. — Como você tem tanta certeza que você não esta realmente doente? Beatriz ficou em silêncio, olhou ao seu redor, então disse: — Não tenho. Mas você vai precisar lavar o seu vestido... Beatriz saiu do café com um sorriso nos lábios. Eduarda balançou a cabeça e se levantou. Três passos depois, sem perceber, ela esbarrou em uma mulher com uma xícara na mão e o chocolate derramou em seu vestido. — Desculpa... — disse Eduarda, envergonhada. — Eu não... eu não... não a vi... Então Eduarda riu e foi aos fundos se trocar. Realmente seu vestido seria lavado. Depois de trocar seu vestido por um vestido vermelho e uma tiara da mesma cor, Eduarda bateu três vezes na porta lilás do fundo da cafeteria. Aquele era o Santuário da Baronesa, o famoso salão lilás, os aposentos de Mariane Castelo onde ela conduzia todas as suas experiências diárias com o misticismo. A porta se abriu e Eduarda entrou com seu bastão tateando a entrada. Uma sala completamente lilás e branca. Um espelho d’água no centro rodeado por almofadas aconchegantes. Mariane estava esparramada em sua poltrona de veludo lilás com a cabeça de duas cobras entalhas no braço e uma borboleta esculpida na ponta do espaldar do trono. — Como foi com a garota? — perguntou Mariane Castelo enquanto tragava seu charuto com aroma de fumo com cereja. — Veja você mesma, eu sei que tem algo estranho, mas, não sei é

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magia. Pode ser qualquer coisa, intuição, não sei. — Eduarda largou os textos em cima da mesa. — Intuição é um tipo de magia... — Mariane baforou mais uma vez seu charuto. — Leia os textos... Mariane Castelo Sorriu. — Não precisa, eu já li tudo. Vi vocês duas pelo espelho d’água e captei as informações por você. E realmente é intrigante... — Acha que ela não está? — Não, ela está doente. Esquizofrenia, vai precisar se tratar. — Então ela é uma artista nata com psicopatia mental? — Não foi isso que eu disse. Ela tem sim esquizofrenia, mas talvez isso possa ter feito ela despertar uma das coisas mais raras nesse mundo. Depois que fecharmos vamos até à casa dela. — Mariane se levantou e espreguiçou. Pegou seu alicate e cortou a ponta acesa do charuto o devolvendo à cigarrilha. — Eu vou ligar pra ela e... — Ah! Eduarda, deixa de ser besta. Vamos até ela sem ela saber, quando ela estiver dormindo. Eu aceito esse trabalho. Mas o preço que ela vai pagar será caro... — Mas ela disse que não dorme há dias. — Hoje ela vai dormir, minha criança. Pedi para o Cloud colocar uma coisinha no energético dela. Eduarda suspirou e balançou a cabeça. Logo que o futuro daquela garota estava prestes a virar de ponta cabeça. Quando a Baronesa invadia uma casa, nunca era com boas intenções. Era três horas da manhã quando Eduarda e Mariane Castelo entraram no quarto de Beatriz. Olhavam atentas para o rosto borrado da garota. Usava a mesma roupa que estava antes na cafeteria. A casa toda parecia não respirar, os passos das duas não fazia ruído algum e os pais da garota estavam apagados no outro cômodo. O tempo parou completamente. — Então, se ela está doente, porque tudo isso? — Existe uma condição chamada de Coroa Suprema. É quando a coroa de um ser humano se abre completamente ao sobrenatural sem controle algum. Em algumas pessoas a Coroa Suprema trás o benefício da sorte, onde tudo na vida dela começa a seguir uma sequência benéfica

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de bons acontecimentos, é a sintonia da fortuna. Mas a coroa pode se fechar quando o coração é tomado pela escuridão da soberba. Então a maré de sorte tem um limite. E temos também a Coroa Suprema que se assemelha aos olhos do gato, as pessoas começam enxergar bem e a ouvir extremamente bem. Mas, a coroa se fecha quando o coração se enche de escuridão. Então temos o terceiro tipo, o mais raro de todos, a Coroa Suprema do coletivo universal. É a coroa se abrindo completamente e acessando o caos da humanidade, as frequências de todos os seres vivos do universo e de todos os tempos. É essa frequência que possibilita o acesso a qualquer tipo de coisa dessa vida. Você consegue acessar as ideias que já existiram e as ideias que estão existindo e as que ainda serão criadas. Isso possibilita as pessoas de verem com clareza o futuro. Mas é uma frequência maldita que a mente humana não suporta por muito tempo. Na minha vida eu só conheci duas pessoas com o verdadeiro dom da clarividência. Claro que esse mundo é grande e deve ter gente sofrendo com esse dom ou até já morreram por causa dele, mas aqui no Brasil somente um grande homem do espiritismo tinha esse dom. E a segunda pessoa... — Então essa menina é igual... a mim? — Eduarda ficou em silêncio, absorta com a informação. — Sim, mas você tem uma auto condição rara que é suportar a Coroa Suprema, pois você a desenvolveu de forma saudável, afinal você é um prodígio. É magnifico que aqui no Brasil tenha três casos de Coroa Suprema e duas delas na mesma cidade. É assustador. — Você também vai treiná-la como fez comigo? — Não, Eduarda. Infelizmente ela não vai suportar. A Coroa Suprema dela se desenvolveu por causa da esquizofrenia que a fez quebrar com a realidade. Ela já teve sua cisão da realidade e está doente. Ela precisa de um médico. Então, eu vou destruir a coroa dela, fechar pra sempre. É o único jeito dela conseguir sobreviver sem se suicidar ou fazer mal a alguém. Ela pode enlouquecer. — Então aqueles textos são realmente do futuro? — Eduarda se entristeceu. — Temo que sim. Da mesma forma que você acessa pintores de todas as eras para desenhar o passado, presente e o futuro, essa menina acessa os escritores. Mas parece que só consegue captar escritores do futuro. E pelo visto, algo muito estranho vai acontecer. — Eu não quero que ela sofra...

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— Ela não vai. Mas, o fechamento da coroa pode trazer a esquizofrenia mais forte... temos que contar com seus pais para mantê-la viva. — Por que você me trouxe até aqui? Eduarda estava se sentindo mal pela garota. — Quero que saiba se um dia sua Coroa Suprema representar um perigo à sua saúde ou perigo a outras pessoas, saiba que vou fechá-la também. — Você me trouxe aqui para me ameaçar? — Não, minha criança. Isso foi um aviso. Você é minha responsabilidade e me veja como uma deusa. Eu posso te dar com uma mão e tirar com a outra. Eu dei tudo o que você tem. Mas se você se desviar, eu tiro tudo numa velocidade muito maior do que quando te encontrei. Eduarda se sentou na cama ao lado de Beatriz. Suspirou fundo. Beijou a testa da menina e desapareceu da casa irritada com a Baronesa. Com um toque na testa, Mariane retirou a coroa dourada da mente da menina e a fechou. Colocou de volta e retirou toda sua memória desde quando começou a escrever os textos. Tudo foi embora. Até mesmo a sanidade de Beatriz. Sem a coroa, Beatriz sucumbiu a cisão da realidade e se apagou dentro de si mesma. Ficou internada num centro psiquiátrico fora da cidade isolada de si mesma e das outras pessoas. Beatriz durou alguns anos dentro de sua concha até vir a falecer em 2020 quando uma pandemia global se alastrou no mundo todo fazendo as pessoas ficarem em isolamento social. Então, aqueles escritores que abraçaram a pobre Beatriz estavam certos. E todos eles queriam dizer apenas uma coisa: NÃO SAIA AGORA!

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O TELEFONE QUE TOCA RODRIGO SANTOS

Depois de 23 anos, era a primeira vez que Léo morava sozinho. Filho único, tinha crescido cercado de todos os mimos possíveis. Sem rebeldia ou mágoa; a mãe era professora e o pai militar, sempre o trataram muito bem. Não precisou trabalhar quando terminou o Ensino Médio, pôde fazer cursinho e escolher o que cursar. A superfície desse mar de tranquilidade deu uma enrugada quando fez seu outing, ainda no primeiro período da universidade, mas nem de longe foi o trauma que ele achava que seria. Seu pai resistiu um pouco, mas era um cara de cabeça aberta e ia se adaptando como podia. Sua mãe lhe disse apenas “eu sempre soube”, com um abraço e um beijo, e assim as marolas não chegaram a sacudir o barco. Agora, o estágio no escritório de advocacia caminhava para uma efetivação após a formatura, e Léo queria a experiência de ser dono do seu nariz. Queria liberdade, independência, tudo aquilo que morar sozinho representa — principalmente na cabeça de quem nunca morou sozinho. Achou um apartamento no centro de Niterói, longe de sua casa em Icaraí, mas perto o suficiente para voltar caso algo desse errado. “Uma gracinha, Rob”, Léo disse para o namorado ao celular assim que ganhou a rua. Ele havia ficado apaixonado pelo apartamento. Ainda bem. O lockdown total por causa da pandemia do novo vírus foi decretado um dia após a sua mudança. Quem podia, deveria trabalhar de casa para evitar a circulação na cidade e reduzir o contágio. Seus pais o haviam ajudado na mudança, mas agora teriam que ficar separados – seu pai era cardiopata e sua mãe tinha asma, os dois no grupo de risco. Léo estava sozinho em seu apartamento. “Mas Léo, a gente pode aproveitar a oportunidade e ficarmos juntos”, “Não, Rob. Eu não saí de casa para casar, saí pra morar sozinho”. Estavam juntos não fazia seis meses, não fazia sentido juntarem as coisas agora – e nem Léo tinha certeza ainda de que era isso que queria. Não com Rob. — Enfim, só — disse, se jogando no sofá novo da Tok & Stok, e sorriu. Alguns móveis eram novos, outros herdados, mas a casa estava bem montada, com tudo o que ele precisava. Sofá, escritório — regime de home

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office, por enquanto — mesa de jantar, geladeira, micro-ondas... Vinhos e taças. Meia garrafa já tinha ido, e Léo ainda não tinha conseguido enviar todo o trabalho feito em casa. Esperando a instalação de telefone e internet, tinha que rotear o notebook pelo celular e usar a rede de dados. Uma porcaria, enfim. Léo foi à cozinha buscar mais vinho. Quando voltou, o notebook estava fechado. “Estranho”, ele pensou, parado no portal com a taça na mão. Abriu o novamente o computador, e o upload tinha sido cancelado. “Será que eu fechei sem querer? Humpf.” Melhor dormir e não beber mais. Quando estava quase dormindo, viu alguém passar para a cozinha. O apartamento era antigo, pé direito alto e cheio de sombras da rua. Mais uma vez o vinho ficou com a culpa, melhor dormir. No dia seguinte, a primeira coisa que Léo fez foi verificar o trabalho. Havia sido mandado, e recebido um outro tanto. “Não precisa de pressa, Leonardo”, dizia a chefe. Tá bom. Mensagem do Rob no celular de bom dia, ele era um fofo. Foi para a cozinha fazer o café, e lavar a louça do dia anterior enquanto fervia a água. Não deu falta da taça. Passou quase a primeira semana inteira ligando do celular para a operadora de telefonia e para o provedor. Precisava de um telefone fixo — e muito mais da internet, que infelizmente teriam que ser contratados separadamente (“Não oferecemos este pacote na sua rua, senhor Leonardo”, “Mas do outro lado da rua tem!”). Certo que a operadora sempre foi pródiga em desculpas (e atendentes robotizados), mas agora, com a quarentena, trabalhava com equipe mínima apenas em serviços emergenciais. “Mas é uma emergência!”, Léo ainda argumentou, mas a atendente pediu calma, senhor, já está registrada a sua necessidade, o senhor gostaria de anotar o protocolo? Na sexta buscou novamente o vinho. “Estranho, cadê a outra taça?”. Procurava atrás do sofá quando sua mãe ligou. “Não, mãe, está tudo bem, não preciso de nada”, “Seu pai falou que hoje vai passar o filme de guerra na TV”, “Mãe, não tenho TV a Cabo ainda, mãe. Não, internet também não”. Mensagem de Rob no celular, “Cadê você, boy?”. “Tá bom, mãe, beijo. Beijo no pai. Se cuida, sai de casa não, esse vírus não é só um resfriadinho não, tá? Não, mãe, não quero falar com o pai sobre OMS, beijos”.

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“Tô aqui, man” – pegou a taça que estava no armário mesmo. Namoro por chat, que derrota, “mas é o que tem pra hoje”. O papo ia escalando entre “mostra mais”, “que saudade” e “ai que vergonha”, e já estava no vídeo, quando Léo escutou um barulho na cozinha. Vidro quebrando. “Peraí, man”, colocando sem jeito o calção e correndo pra cozinha. A taça estava espatifada no chão, em frente à pia. Léo sentiu todos os poros do antebraço se abrirem como guelras, e uma pressão na nuca. Por que diabos essa taça foi parar ali? Olhou para a sala, a outra taça estava lá, pela metade, ao lado da garrafa do Chardonnay, a segunda. “O que foi, boy?” “Peraí, Roberto” “Ih, chamou pelo nome. Mixou nossa parada?” Léo não sabia o que responder. Olhou em volta devagar, com medo de encontrar alguém – ou alguma coisa – e não viu nada. “Respira, Léo, respira!”, ele disse baixinho. Nada. Pegou uma folha de papel na impressora (“Sabia que tinha esquecido de comprar a pá de lixo!”) e jogou em um saco plástico. Amarrou a boca, escreveu no papel CUIDADO LIXEIRO, VIDRO QUEBRADO e grampeou. “Leléo... Você ainda está aí?” “Menino... Coração tá no fundo da boca! Aconteceu um lance aqui...” “Fundo da boca? Hmmmm...” “É sério, bobo!” Aos poucos Léo foi se acalmando. Terminou a sessão de namoro virtual e a garrafa de vinho. Na cama, segundos antes de cair no sono, teve a nítida impressão de que alguém o observava. Se cobriu com o edredom, tapando até a cara, e sentiu que alguém andava pelo quarto, chegando mesmo perto dele. “Reza, Léo, reza!”. Em vez disso, destapou com violência o rosto e olhou o quarto. Nada. Sozinho, com as sombras que vinham da rua. Coração quase se rasgando pra fora, rezou até dormir. “Senhor, o senhor quer anotar o protocolo?”, “Não quero protocolo, eu quero é a minha internet instalada hoje!”, “Senhor, mas hoje nossas esquipes estão-“ Dia pesado, uma porrada de processos pra escrever, e nada de internet nem telefone. Isso, claro, além do assombramento de toda hora olhar em volta. Em alguns momentos, parecia que algo lhe fugia pelo canto dos olhos. “É só impressão”, Léo se dizia. Até o fim da tarde. Quando começou a escurecer, ele ainda estava debruçado sobre o computador, comendo as sobras do que pedira no almoço. “Sábado-feira”,

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mas ele não podia nem reclamar, vários amigos tinham que sair às ruas, e alguns estagiários já tinham sido afastados pela medida do governo. Quando virou para o lado e olhou para o portal que dava para a cozinha, viu a menina. Parecia ter seis, sete anos, Léo nunca foi bom em adivinhar idade de crianças. Vestia uma camisola branca que ia até o pé, tinha os cabelos pretos emaranhados que batiam nos ombros. Branca — branca até demais, olhos pretos, grandes. Léo congelou, e a menina sorriu. Pelo menos duas horas se passaram naqueles segundos, até que a menina correu para dentro da cozinha, pra fora da visão de Léo. Ele se levantou com dificuldade, uma alegria danada nas pernas, mão no peito. “Ei. Ei, menina!” — era pra ser mais forte, ele sabia. Mas a voz que conseguia emitir era débil, quase uma súplica. Pé ante pé, como se tivesse aprendido a andar ontem, ele foi. Mais curiosidade que coragem, é verdade. Mas foi. Assim como os segundos da visagem, cruzou centímetros quilometrais. Chegando na cozinha, nada. Ele já esperava, claro. Mas talvez tivesse sido melhor se uma criança tivesse realmente invadido a sua casa, um filho do vizinho brincando de esconde-esconde, sei lá. O telefone tocou alto no apartamento, e Léo deu um pulo. “Esses filhos das putas instalaram essa merda e não me avisaram!” Correu e tirou do gancho. “Alô? Alô?” Do outro lado da linha, silêncio. “Alô? Quem está falando?”. “Desculpa, foi engano”. Uma voz de mulher, possivelmente já uma senhora. E desligou. Quando foi deitar, mais tarde, Léo ainda estava com palpitações. Decidiu não beber vinho naquela noite, e olhou a casa toda antes de dormir. Estava prestes a pegar no sono e ouviu uma risadinha fina, alegre. Mas o corpo já estava entregue, e ele nem se lembrava disso no dia seguinte. Os homens vieram cedo e instalaram a internet, e finalmente Léo tinha como mandar o trabalho com mais rapidez — porém também participar de reuniões virtuais, que achava um saco. Com o bônus de serviços de streaming, estava finalmente deitado na cama vendo sua série predileta no streaming quando o telefone tocou. “Alô?” — ninguém falava nada. “Alô? Olha, se você ligou errado eu-“ “Oi...” — a mesma voz do outro dia. “Desculpa se está tarde, eu...” “Não, pode falar. Quem é?” “O senhor é o Leonardo? Que agora está morando no apartamento 403?” “Sim, mas a senhora é?” “Desculpa, meu filho...” e desligou. “Mulher maluca”, ele pensou, voltando pra série. Dois dias

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depois, ele viu a menina de novo. Sentado na cama de barriga pra cima, com o notebook no colo, ele conversava com Rob pelo Skype, quando ela apareceu. Não veio da porta (nem da cozinha, desta vez), foi como se estivesse deitada no pé de sua cama e se levantasse. Ele viu sua cabeça e seus cabelos emaranhados surgirem por trás da tela. E o mesmo sorriso. “Boy? Boy? Léo, o que foi?” “Rob... É que...” Ela não sumiu, nem foi embora. Ficou olhando pra ele fixamente. O sorriso aumentando. “Léo!” Ele fechou o notebook, e com ele a voz de Roberto. A menina usava o mesmo vestido, a camisola branca de babados. Os braços pendidos ao lado do corpo. “Você... Foi você que quebrou minha taça?” Tanta coisa pra dizer, e Léo só conseguiu pensar nisso. O sorriso da menina diminui devagar, até virar um beicinho. Quando ela estendeu a mão direita, segurava o pé quebrado da taça, e o sangue escorria de seus dedos. A boca de Léo se abriu em grito, mas nenhum som saiu dali. O telefone tocou, ele olhou para o aparelho e, quando olhou de novo, a menina não estava mais lá. “Alô?” “Oi... Desculpa ligar a essa hora...” “Olha, senhora, eu estou muito ocupado!”, a voz de Léo tinha subido umas duas oitavas, quase em histeria. “Se a senhora for desligar, desligue logo!” Após um breve momento de pausa, ela suspirou. “Senhor Leonardo... O senhor me desculpe... É que é difícil falar... Mas eu morava aí, neste apartamento...” “No 403?” “Sim, no 403... Eu fui muito feliz aí, e agora o senhor mora aí...” O olho de Léo estava grudado onde a menina havia estado, segundos atrás. Ele respirou fundo. “Senhora, a senhora me desculpe, é que eu esta-“ “A minha filha está aí?” “Oi?!” — quase em soprano, e a ligação caiu. “Alô? Senhora?” Léo batia na tecla, e o telefone continuava mudo. Agarrado com os joelhos, viu o dia vencer a noite e entrar pela janela com uma suavidade que não combinava com seus batimentos. Não queria contar pra mãe para não deixá- la mais preocupada, não queria contar pra Roberto pra que ele não questionasse a sua sanidade mental. Teve reunião pelo Skype com o pessoal do escritório pela manhã, e dormiu a tarde inteira.

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Acordou com o telefone. Já era noite. “Alô! Fala comigo, por favor!” “Oi, Leonardo... Sou eu...” “Eu sei! O que aconteceu com sua filha?” “A gente morava aí... A gente era muito feliz, sabe? Ela era uma menina muito boazinha...” “Qual é o seu nome, senhora? E qual o nome da menina? QUAL O NOME DELA!?” “O nome dela é Sara... Não faça nenhum mal, ela já sofreu o bastante.” Léo ouviu o choro vindo da cozinha. Largou o telefone e correu pra lá. Sara estava sentada no chão, com o rosto coberto pelas mãos, e seu corpo franzino sacudia a cada soluço. “Sara...” — ele estendeu a mão, mas não passou disso. “Sara. O que aconteceu?” A menina tirou as mãos do rosto e levou à barriga, levantando o olhar para Léo. Estava sorrindo, mas um sorriso triste. “Tenho dor...” — E soluçou, como que engasgada. De repente, começou a vomitar em golfadas. Sangue escuro, como borra de café, sobre seu vestido, seu colo. Leonardo correu para o quarto e fechou a porta, arfando. Sara continuava chorando na cozinha. Ele colocou uma música alta, e cobriu a cabeça com o edredom, e ainda assim escutava os gemidos da menina. Ele chorou, rezou e pediu por sua mãe até dormir, como não fazia desde que tinha oito anos. Sem poder perguntar para os vizinhos (mesmo se conhecesse algum deles, estavam em quarentena), tentou pesquisar na internet sobre o apartamento no dia seguinte. E no dia seguinte ao seguinte. Nada achou. Quando o telefone tocou, à noite, ele já sabia quem era. “... ela era uma menina feliz, vivia rindo...” “Mas o que aconteceu, senhora?” “O senhor não maltrata ela não, ela não merece...” A mulher não contava. Ele sabia que a menina tinha morrido ali, de alguma maneira, e seu fantasma estava preso naquele apartamento. Os dias se passavam, e Léo sempre via Sara pelo canto dos olhos. Ora ela estava sentada na sala brincando com uma boneca fofolete, ora passava correndo de um cômodo pra outro, mas quando ele olhava de novo, não estava mais lá. A mãe ligava toda noite. “Ela adorava essa boneca fofolete”, ela disse um dia, quando Léo perguntou. Mas não contava da morte, falava apenas que a menina era um doce, era inteligente, esperta, carinhosa. Essas coisas de mãe.

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Léo já estava quase se acostumando a viver com um fantasma dentro de casa, quando um dia acordou com um grito. Um grito estridente, de cortar cirurgicamente cada fibra de coragem e de razão. Ele correu para a cozinha, e Sara estava lá, chorando. “Sara, meu anjo...” Ela não olhou pra ele. “Eu quero minha mãe”, ela chorava. “Minha mãe...” “Sara, está tudo bem... Olha pra mim...” “Eu quero minha mãe...” “Eu falei com ela no telefone, está tud-“ “MENTIRA!” — ela gritou, e quando levantou a cabeça, Léo viu o rosto de uma criança morta. Que fala. “Sara. Sara!” — Ele não sabia o que dizer pra acalmar a meninafantasma. Então se lembrou da boneca. “Cadê aquela bonequinha bonita que você estava brincando?” O telefone começou a tocar. O rosto da menina voltou aos poucos ao seu “normal”, com seus olhos negros grandes e seu sorriso quimérico. Ela então apontou para o armário da pia. Quando Léo olhou, ela se levantou e correu na direção dele. O susto fez com que o rapaz caísse sentado, mas o impacto não veio. A menina passou por dentro de seu corpo e sumiu. O telefone tocava insistentemente agora. Léo se levantou e puxou o gancho, mas a mulher do outro lado da linha só chorava. “O QUE ACONTECEU COM SUA FILHA!”, ele gritou, mas do fone saíam apenas gemidos e uivos de dor. “PELAMORDEDEUS, o que aconteceu com Sara!” O telefone ficou mudo. Em um acesso de fúria, ele arrancou o aparelho da parede a varou do outro lado do quarto. Chorando, ligou pra Rob e contou tudo. “Amanhã eu vou aí, Léo. Calma. Eu sei, mas você precisa de mim. Procura se acalmar. Toma alguma coisa pra dormir. Na manhã seguinte, ainda grogue por causa do remédio, lembrou de Sara apontando para o armário. Lá no fundo, ele achou um pacote. Era a boneca fofolete, enrolada em um jornal. A notícia do jornal? Mãe e filha encontradas mortas em um apartamento do Centro de Niterói. Aparentemente, a mãe deu vidro moído para a menina comer — que morreu vomitando sangue — e depois cortou os pulsos com os cacos de uma taça de vinho. A bonequinha fofolete era azul, e sorria. Leonardo acordou de seu torpor com o barulho do interfone. “Rob?” “Senhor Leonardo... Aqui é da telefônica. O senhor desculpe a demora, mas viemos finalmente instalar a linha do senhor. O aparelho está conectado à tomada?”

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Andando pela Noite Artur Laizo

Estávamos conversando Douglas, Luciano e eu em frente ao relógio da estação da rede ferroviária e os dois vampiros resolveram que iriam para outros lugares da cidade. A quarentena do coronavírus estava deixando todo mundo trancado em casa e Douglas, o vampiro de Juiz de Fora, sugeriu que se ficássemos juntos nenhum dos três conseguiria nada naquela noite. Douglas estava muito bem. Estava feliz com a perspectiva de resolver alguns problemas sentimentais com suas várias garotas. O cabelo longo e preto do vampiro muito branco voava com o vento da noite. Ele estava com cento e setenta anos e parecia cada dia mais jovem. Ele sorriu e nos disse: — Vocês só tomem cuidados porque à noite todos os gatos são pardos. — Ele riu da brincadeira. — Se pelo menos a gente conseguir um gato já estará no lucro — observou Luciano sorrindo. Luciano estava no mundo das sombras há menos tempo que nós dois. Ele foi transformado por Douglas e nesses quarenta anos de existência fez muita confusão. É um vampiro jovem e, movido pelo impulso da idade, se meteu em muitas encrencas. É um vampiro que prefere os rapazes mais jovens, mas não descarta nenhum homem tanto para sexo como para se alimentar. Eu? Eu sou Frederich Augspartem, um vampiro solitário. Não sei mais quantos anos de vida nas trevas possuo. Como tenho uma existência mais longa, hoje a falta do sangue humano não me causa a tão desesperadora crise de abstinência como vemos nos vampiros mais jovens. Já vivi muitas vidas e muitos amores. Isso eu conto depois. — O que você sugere? — perguntei. — Eu vou dirigir por aí — definiu Douglas. — Vou de carro para esses bairros de periferia. O povo, apesar da ordem de confinamento, fica nas ruas ou fazendo festinhas, procurando a morte. — Ele riu. — Eu sou a morte. Douglas ficava ainda mais bonito quando ria. — Eu gosto mesmo de centro da cidade — explicou Luciano. — Vou caçar algum perdido no centro.

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— Tudo bem — concordei. — Eu vou sair andando por aí. Douglas entrou em seu carro e saiu a toda aproveitando a rua deserta. Luciano e eu andamos mais um pouco e quando estávamos perto do viaduto que liga a Avenida Itamar Franco à Avenida Brasil. Luciano, para fazer graça, saiu correndo por cima do viaduto de braços abertos imitando um avião. Era muito divertido vê-lo fazendo isso em dias de muito movimento. Com sua velocidade vampírica ele passava entre os carros morrendo de rir. Eu decidi passar por baixo do viaduto. Eram vinte e três horas de uma noite bastante escura e havia chovido mais cedo. Eu imaginei que iria caminhar muito tempo sem encontrar nenhum humano nas ruas. Não encontrei, mas fui encontrado. Quando passava pelo espaço mais escuro daquela rua, sob a construção de concreto eu ouvi um ruído sutil. Uma respiração ao longe que somente meus ouvidos de vampiro ouviriam. Eu continuei andando e senti quando ao meu lado se aproximou um rapaz de vinte e dois anos. Eu deveria ser, para ele, a recompensa da noite. Um homem jovem — quando fui transformado, tinha apenas vinte anos e nada mudou —, bem-vestido, bonito e com toda a aparência de um lorde. O bandido que estava indo para sua casa, observou-me passando e pensou que poderia aumentar as férias do dia. Ele se aproximou e eu percebi, apesar do cheiro de suor, álcool e cigarros, que seu sangue era exatamente da “safra” que mais me agrada. Os vampiros sentem o cheiro do sangue e há aqueles que nos são mais apetitosos, mais sabor. Há sangue que tomamos pela simples necessidade de nos alimentar. O rapaz se aproximou e perguntou: — Tem um cigarro aí? — Eu não fumo — respondi e continuei andando. — E um dinheiro? Me dá o que você tem aí - ordenou ele. Eu parei e olhei para ele. Ele se assustou por que eu o encarei, mas se recompôs e voltou a me abordar: — Quero dinheiro… — Ele riu. — Ou daqui você não passa. Eu olhei para ele novamente e vi em sua mão uma arma de fogo. Deveria ter comprado aquilo em algum mercado negro — qualquer lugar tem —, mas a Taurus brilhava na sua mão igualmente suja. Eu sorri. Ele se espantou a me ver sorrindo e não ver mais. Eu desapareci de sua frente e reapareci nas suas costas cutucando seu ombro esquerdo. Ele se virou rapidamente e quase atirou.

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— Não desperdice munição, rapaz — ordenei-lhe. — O que é você? — ele perguntou, assustado. — O que você quiser — respondi. Ele não sabia o que dizer e eu novamente corri de um lado para outro, sendo impossível que ele me acompanhasse com sua visão de humano e reapareci ao seu lado direito sorrindo. — O que vai ser? — perguntei sorrindo e deixando minhas presas aparecerem além dos meus lábios inferiores. — Como assim? — perguntou ele, apavorado. — Assim - terminei eu. Eu envolvi o espaço onde estávamos em luz vermelha dos meus olhos e ele ficou paralisado de medo. Eu podia sentir seu coração batendo muito depressa. Esse medo jogava mais adrenalina no sangue e temperava melhor esse alimento tão bom. O rapaz não conseguia falar, não conseguia se mexer e então eu cravei meus dentes em sua jugular esquerda. O sangue quente entrou pela minha boca e apesar do resíduo de álcool e cigarro, era exatamente o sangue que eu mais gostava de tomar. Ele era um bandido que, mesmo tendo pouca idade, já havia matado três pessoas no seu bairro e estava iniciando o caminho de tráfico de drogas. Enquanto sugava seu sangue, conhecia tudo o que ele já fizera na vida e tudo que ainda iria fazer. Eu não poderia deixá-lo vivo. Acabei com todo o seu sangue, estraçalhei os músculos do seu pescoço e deixei seu corpo morto caído no mesmo lugar. Perto do viaduto fica uma sede do exército. Fui até lá e chamei o guarda de serviço. O rapaz veio até mim assustado e eu lhe disse que havia um corpo caído no chão. Ele pegou o celular para chamar ajuda e eu desapareci na sua frente. Em pouco tempo, exército e polícia estavam no local tomando as providências com o bandido morto no viaduto. Afastei-me do local. Aquela noite não estava boa para ficar nas ruas. Decidi ir para casa do Douglas, mesmo que ele e Luciano chegassem bem mais tarde, eu ficaria sozinho, tomaria algumas vodcas e leria um bom livro de autor nacional, talvez de algum autor de Juiz de Fora. Fui para casa. Douglas mora desde 1902 debaixo do Parque Halfeld, a praça principal da cidade agora está bloqueada para evitar aglomerações por causa da pandemia. Entrei e estava satisfeito pela noite e por estar sozinho em casa. Outras aventuras ainda iriam acontecer enquanto eu estivesse em Juiz de Fora.

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O Sabor da Culpa Leonardo C. de Campos

— Você pegou o presente do Arthur? — questionou Clarissa, sem muita paciência. Sergio apenas deu de ombros e bateu a porta do seu Fox preto com força, mordendo uma maçã que havia pego para a longa viagem à casa dos pais de Clarissa, era aniversário de seu cunhado. Não se dava bem com a família de sua amada, desde que começaram a sair juntos na época da faculdade, piorou quando decidiu trancar o curso de administração, sendo chamado por seu sogrão de “preguiçoso sem futuro”. A moça entrou no carro, fechou a porta calmamente, respirou fundo e manteve os olhos em Sergio. — Eu entendo que vocês não se dão bem, mas poxa, eles são minha família também. Me ajuda nessa. — Sergio estava olhando para baixo, estava envergonhado. Balançou a cabeça concordando. O dia estava ensolarado, a pista estava tranquila para um período de férias. Até mais ou menos a metade do caminho, as coisas mudam, se depararam com um enorme caminhão, daqueles em que a velocidade não passa dos 60Km/h, e Sergio ficou irritado pouco metros depois. Vendo que a seta havia sido ligada, Clarissa alertou seu marido de que não era uma boa ideia, a faixa era contínua e a visão não era das melhores, mas ele não deu atenção e entrou na pista contrária. Ao entrar na pista para fazer a ultrapassagem, viu faróis, seu reflexo foi sair da pista, virando todo o volante, mas o outro veículo estava mais próximo do que imaginava. Olhou rapidamente para sua noiva antes da colisão. ... Abriu os olhos repentinamente ao ouvir o som repetitivo e irritante de seu despertador. 8h da manhã, os números a frente de uma foto da moça que tanto conhecia, mais uma noite horrível de sono. Não conseguia descansar desde o início do... Apocalipse? 67 dias trancafiado em casa e nenhuma explicação vinda dos Órgãos Superiores, apenas o que se viu nos

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noticiários no início da tal pandemia, as pessoas contaminadas chegavam a um nível extremo de loucura e não viam solução além do fim da vida, e, para piorar, não obtinham informações sobre o contágio. Muitos ignoravam esses avisos vindos da mídia, “baboseira de comunista”, uma fantasia, mesmo com o índice de suicídios e homicídios subindo drasticamente. Em pouco tempo, o mundo estava um caos. Em plena luz do sol, cidadãos tinham ataques, começavam a falar sozinhos, a chorar e buscar as piores soluções para acabar com o sofrimento. Em uma das edições do telejornal, enquanto uma jornalista discorria ao vivo sobre a atual situação, um jovem, que aparentava não ter mais de 16 anos, começou a gritar desesperadamente, se ajoelhou no chão, e começou a bater repetidamente sua cabeça no asfalto, gritando pedidos de desculpas. A câmera filmou isso por pouco tempo, mas o suficiente para não sair nunca mais de sua mente. A televisão foi perdendo os sinais, o mesmo ocorreu com a internet, essa falta de acesso à informação e, no caso de Sérgio, a solidão leva qualquer ser humano a loucura. Vivia sozinho desde o acidente. Não era sua culpa, mas quando se está com as mãos no volante, você é o responsável, pelo menos era o que sua consciência e a família da vítima diziam. Acendeu as luzes, mais um dia com energia, abriu o armário em busca de algo que enganasse um pouco seu estômago, mas encontrou apenas duas latas de cerveja e uma embalagem de iogurte vencido, todo seu estoque estava chegando ao fim, precisaria sair de casa, mas o medo era muito maior. Sempre foi um homem um tanto quanto ousado, no entanto, hoje, teme a morte, teme o que poderia haver do outro lado, teme seu julgamento divino. Era a morte pela fome ou uma esperança cega. Tinha que escolher. Parou em frente a porta e a encarou por alguns segundos, não passava por ela a meses, seria uma boa ideia? Respirou fundo e abriu. Estava gelado, o vento de frio de julho o atingiu em cheio o fazendo tremer. Saindo de seu apartamento, havia apenas aquele silêncio tão familiar. O mercado não era muito longe, estava a apenas alguns metros, tudo estava bem, ele rapidamente pegaria comida e voltaria, apertou o passo em direção a seu destino e viu a porta de vidro do estabelecimento estilhaçada. Passou pelos estilhaços, estava escuro, apalpou as paredes a procura um disjuntor, encontrou e posicionou a pequena alavanca para cima, uma

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luz forte irradiou pelo prédio. A sua frente, encostada em uma prateleira, havia uma mulher, seus olhos sem brilho o encaravam, uma poça rasa de sangue a sua volta, seus pulsos haviam sido cortados com o diamante de um anel manchado que estava ao lado, semelhante ao que dera a sua amada quando a pediu em noivado, um dos dias mais felizes de sua vida. Por todo o estabelecimento viu mais alguns corpos, suas situações mostraram o desespero, a busca por uma morte rápida, exceto um homem, não muito mais novo que Sergio, que havia se pendurado acima de um balcão com uma corda, só Deus sabe o quanto ele agonizou até receber o beijo da morte. Pegando tudo que achava necessário, decidiu voltar ao seu templo. Quase na saída, passou por uma pilha de maçãs, a grande maioria já estava podre, mas avistou uma perfeitamente atraente, aproveitou e a levou consigo. A ida até o apartamento foi tranquila, viu os mesmos carros e sentiu a mesma solidão. Nenhum corpo aparecera por ali neste período. Então chegou em casa em segurança. Após se trocar, deitou-se em seu sofá, mais um dia e seu coração ainda batia. Pegou a maçã, a coisa mais bonita que via em tempos. Não demorou muito para que desse a primeira mordida, seguida de várias outras, jogando o que sobrou do fruto ao lado do sofá e, com o sabor doce em seus lábios, adormeceu. Acordou subitamente, olhando seu smartphone, era 1:47 da madrugada, dormira por um bom tempo. Se sentou e esfregou seus olhos, precisava comer mais alguma coisa, estava faminto. Foi até a cozinha, pegou uma panela e colocou água para ferver enquanto pegava um pacote de macarrão, esperou o líquido borbulhar para então despejar pouco menos da metade do pacote na água fervente. Enquanto a massa cozinhava, Sergio foi até a sala buscar seu aparelho celular, mas congelou com o que viu. Sentada no sofá, do jeito que se lembrava, estava Clarissa, com os cabelos castanhos presos em um longo rabo de cavalo, sua pele clara e suave, seus olhos verdes o encaravam, por estranho que pareça, cheios de vida. Uma lágrima começou a escorrer pelo rosto de Sergio: — Clarisse — disse com uma voz trêmula —, como...? Ela apenas o encarou com um leve sorriso, dando tapinhas no sofá, indicando que sentasse a seu lado. Lentamente, ele caminha e se senta, sem tirar os olhos de sua amada, que após muito tempo estava ali novamente. Ele desabou a chorar, encostando seu rosto nos ombros da moça.

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— Quanto tempo, Sergio — disse ela calmamente, com a voz aconchegante na qual se recordava. — Eu senti tanta falta... depois do que houve... eu fiquei perdido, sozinho... — Depois que você me matou? — disse ela com o mesmo tom de voz, Sergio abriu os olhos bruscamente. — Depois que você acabou com tudo? Com o coração acelerado, Sergio recuou para longe do sofá, o rosto a qual conhecia continuava lá, mas não parecia Clarisse, algo estava diferente. — O que foi? — disse ela. — Vai negar que tirou minha vida? Vai negar que não pensou em mim quando ultrapassou aquele caminhão na faixa contínua? A voz foi ficando mais alta e imponente. — Já era de se esperar que sua impaciência causaria problemas sérios! — Não... não é verdade! — questionou Sergio, com as lágrimas aumentando. O sorriso no rosto de Clarisse não existia mais, as palavras eram vomitadas com ódio, desprezo e tristeza, sentimentos que atingiram Sergio no fundo de seu coração, refletindo nas lágrimas que atingiam o chão. — Eu sempre te amei Clarisse, você era tudo pra mim, não foi intencional, eu nunca me perdoei pelo que aconteceu.... — Eu também nunca te perdoei! — rebateu ela, impiedosa – quem é você para viver e não eu? Você não merece a vida! Com o sentimento de culpa, essas afirmações faziam cada vez mais sentido, quem era ele para viver? Ele não merecia o dom da vida, ele não era nada. Com a respiração descontrolada, encarou o olhar de desprezo da única mulher no qual havia amado. Se levantou as pressas do chão gelado, indo em direção a cozinha, o macarrão borbulhava na panela, abriu a gaveta com talheres e pegou uma pequena faca e, involuntariamente, escorreu-a pelo seu pulso direito e depois pelo esquerdo, de forma que não houvesse mais barreira entre o sangue e o exterior. Deixou a faca cair ao chão e caminhou lentamente até o sofá, onde seu eterno amor o esperava, ele se sentou ao seu lado, deitou a cabeça em seus ombros, a água do macarrão transbordou pela panela até o fogo. Enquanto sua visão ia escurecendo, fitou o que sobrara da maçã no chão e se lembrou do gosto doce da fruta em seus lábios.

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Do lado de dentro Juliana Rabelo

— Coragem. Você, mais cinco minutos. Cante sua canção. Vamos. Cante comigo. Bem baixinho para ela não ouvir. Isso. Muito bom. Agora temos que escolher outra. Ainda faltam dois minutos. Pronto. Pode abrir a porta. Estou ficando louca. Quem conversa com a própria consciência em terceira pessoa? Eu sei. Os loucos. E aqueles que foram encurralados ao extremo da razão, como eu. Saio devagar. Olho pela janela e confirmo. Ela já se foi. Com a tesoura de unha na mão, passo em revista, cômodo por cômodo. A diferença entre a vida e a morte é sempre um ato banal que você fez. Ou que deixou de fazer. Alguém podia ter tirado o carro da garagem para ela, enquanto ela ficou escondida me esperando. Que situação imaginar isso da própria mãe, meu Deus. Terminado o meu tour, me sento na cadeira da sala. Cubro o rosto com as mãos, e pelo quadragésimo sexto dia eu choro. Aprisionada no meu próprio lar. Sozinha. Sem acesso à televisão ou telefone. As portas trancadas. Sempre que posso olho pela janela, fechada com cadeado, em busca de uma alma bondosa. Mas as ruas estão vazias. Ontem vi minha vizinha de longe, e acenei. Mas ela estava andando tão rápido, e com o rosto todo coberto, que não me viu. Onde está todo mundo? Eu preciso de ajuda. Alguém precisa perceber o que a minha mãe está fazendo comigo. Nem sempre foi assim. Ela me levava para o trabalho dela. Era legal. Ela trabalha em uma funerária. Faz a preparação dos mortos para que sejam honrados uma última vez pelos vivos. Um trabalho super importante, que ninguém quer fazer. Eu gosto. Não tenho nojo. Nem medo. Eles parecem dormir. Ela me deixava pôr os sapatos deles. Tudo deve estar belo e digno. Eu também gosto de arrumar as flores. Nesta época ela me amava. Mas tudo mudou. Não sei direito o porquê. Mas sei quando. Foi no dia que ela me deixou presa dentro de um dos caixões. Eu estava esperando ela terminar o último cliente, sentada ao lado do caixão já preparado para alocar o seu corpo. Então ela ordenou:

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— Entre e se deite. Agora! Obedeci. Foi assim que ela me ensinou. Então ela cerrou subitamente a tampa. E colocou uma coroa em cima do vidro. Entrei em pânico. Não conseguia me mexer, como se eu já estivesse morta. Não conseguia nem fechar os olhos. Na penumbra eu olhava para o vidro e me via. E me sentia morrer conforme meu hálito o embaçava e eu desaparecia. Perdi a noção do tempo. Quando a luz voltou e vi a minha mãe, eu entendi. Ela queria me matar. Era apenas uma questão de tempo. Como sempre minha mãe foi econômica nas palavras. — Me desculpe filha. Foi necessário. E a partir do dia seguinte ela não me levou mais ao trabalho. Passou a me deixar sozinha, com as portas fechadas. Mas eu recebia visitas. Tenho alguns bons amigos de quem ela gosta. Sempre vinha alguém aqui. Conservamos, fazíamos exercícios, estudávamos. Um amigo para cada coisa que precisa ser feita. Só que de repente todo mundo deixou de vir. E eu comecei a ficar preocupada. Ela também mudou. Passou a manter pelo menos uma distância de dois metros. E só falar comigo o mínimo, para me dar o meu remédio e a minha comida. Mas sempre de máscara, como se eu fosse contagiosa. Da primeira vez que ela fez isso eu entrei no quarto e chorei durante horas. Minha mãe não tem nojo dos mortos. Mas tem nojo de mim. Quando finalmente tive coragem para sair do quarto, descobri que ela já não estava mais em casa, assim como a televisão e o computador. Todos haviam partido. Em cima da mesa só um bilhete. “Minha filha: é para o seu bem. Estamos em quarentena, por causa da pandemia lembra? Virei para casa apenas para dormir e deixar a sua comida e os seus remédios do dia. Precisa ser assim, pois trabalho com os mortos e não quero contaminar você. Você também não pode sair de casa. Tirei a televisão para que você não fique vendo os telejornais o dia todo. Acredite em mim. É melhor assim. Um beijo.” E assim ela assumiu que sou uma prisioneira. Por que ela me odeia tanto assim? Por que mereço ser enterrada em vida? Agora boba é ela, se acha que eu acreditei nesta história de pandemia e vírus mortal. Balela para que eu não procure ajuda com medo de morrer. Demorei para conseguir começar a bolar um plano de fuga. Foi quando percebi que ela havia aumentado a dose dos meus remédios. Tenho um

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problema de saúde. Por isso não frequento a escola. Ia quando pequena, mas em algum momento parei. Os remédios estavam me deixando mole, sonolenta. Foi quando decidi parar de tomar. Escondida é claro. Aos poucos as coisas foram clareando e eu entendi tudo. Ela estava me dopando. Para que eu morresse assim devagar. Para que qualquer pessoa que me visse, mesmo de longe, acreditasse que fiquei louca e morri. Me matei com remédios. Ou cortei meus pulsos. Qualquer coisa fácil dela fazer comigo quase desacordada. Ninguém vem me ver. Ninguém iria questionar. Ela prepararia meu corpo na funerária e ninguém jamais desconfiaria de nada. O plano perfeito. Até eu descobrir. Por isso parei de tomar os remédios. Não a vejo mais. Finjo o tempo todo que estou dormindo. Mas carrego a tesoura de unha sempre na mão fechada. Se ela chegar perto de mim para me machucar eu irei me defender. Treinei em um pedaço de fraldinha crua. A tesoura é pequena, mas capaz de furar bem a carne. — Agora chega de se lamuriar. Nós temos um plano, lembra? O tempo está passando, tic tac, tic tac .... Ela daqui a pouco vai voltar. Está certo. Estamos trabalhando na porta. Desisti de tentar copiar a chave. Agora meu foco são as dobradiças. É mais difícil do que parece. Especialmente se você não tiver uma chave de fenda adequada. Mas eu raspei uma faca de cozinha no chão, num canto que está com uma pedra quebrada e fez uma quina, até ela ficar bem afiada. Agora uso para desatarraxar a porta da área de serviço. Eu sou inteligente, já tenho 17 anos. Fiz o teste. Botei uma cadeira na frente da porta. E esperei por três dias. Ela não mexeu na cadeira. Logo, não mexeu na porta. Logo, não vai perceber que eu estou arrancando as dobradiças. Só falta um parafuso. Tenho que terminar hoje. Meu tempo se esgotou. Ontem ela trouxe para casa o seu kit de maquiagem. Eu vi escondido no quarto dela, durante a minha ronda. O que ela usa no trabalho. Sinal de que ela espera ter um defunto em casa para maquiar. Então a identidade da vítima é muito óbvia. Acelero meu processo. Consegui! Agora o mais difícil. Erguer a porta para ela se soltar. Tão pesada... Não tenho forças... — Vamos! Ouça, ela está estacionando na garagem!!! Temos o tempo dela abrir a porta e atravessar a sala! Eu não quero morrer! Não agora.

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Com um grito abafado levanto a porta. Consigo que ela se desgrude da base! Encosto de qualquer jeito na parede. E saio do quintal. Para onde correr agora? Nesta hora ouço ela empurrando a porta atrás de mim. E gritando. — Minha filha, onde está você? Volte aqui! Você não pode ficar na rua! Congelo sob o som da sua voz. É maior que eu. Me volto para trás lentamente. Ela já me viu. Caminha em minha direção. Nesta hora estendo a tesoura. Está na hora de inverter este jogo. — Filha o que é isso? Uma tesoura? Me dê querida. — Não. — Filha! Estou mandando que me dê esta tesoura. — Não dou. Não vou deixar você encostar em mim. — Do que você está falando filha? Me dê esta tesoura, por favor... — Eu já entendi tudo. Você não me ama. Você é má. Você me aprisionou. Você quer me matar. Mas eu sou mais esperta que você. E mais forte. Eu não vou morrer. — Minha filha você não está tomando seus remédios?! Meu Deus! Ela cobre o rosto desesperada. Agora ela entendeu que eu estou livre. E forte. — Minha filha, calma. Volte para dentro vamos conversar — ela fala agora devagar e doce. A fingida. Enquanto se aproxima de mim. Mais fingida ainda sou eu, fazendo cara de boazinha... — Eu vou ligar para o Dr. Ricardo. Tudo irá se resolver. Olhe só, já está chamando, ele mora a duas casas, daqui a pouco ele chega. Venha comigo... Quando ela encosta em mim, eu desfiro o golpe. Com força, como treinei. Pega bem na carne do seu braço. Ela grita alto de dor. Ouço Ricardo ao telefone — Alô? Mara?! Golpeio de novo. Agora na perna. Ela cai. Então ela chega. A hora em que eu erro. Como eu disse antes “a diferença entre a vida e a morte é sempre um ato banal que você fez.” Eu quis olhar nos olhos dela uma última vez. O sangue já havia encharcado sua roupa. Ela estava deitada na grama de forma largada, como um defunto que ninguém quis arrumar. Ela respira

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com dificuldade. Eu sou humana. Não sou ma. Ela é. Não posso deixar ela morrer assim, sem a dignidade que ela dedicou a tantos outros mortos. Me sento ao seu lado. Endireito o seu corpo. Ela geme, mas não reage. Já está quase lá. Arrumo o seu cabelo, tirando do seu rosto. Olho nos seus olhos onde só resta um fiado de luz, esperando a hora de fechá-los. Quero que ela se vá olhando para mim. Então sinto a agulhada forte no meu pescoço desprotegido. E num instante tudo se apaga. Mas não antes de ouvir minha consciência dizer: — Sua fraca! Você só precisava ter deixado ela para trás. Agora morreremos. Nós duas.

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Eles Já Estavam lá Rodrigo Santos

A culpa não é dos cachorros, sabe? Aliás, quem tem culpa nessa história? Acredito que nenhuma parte dela caiba aos cães. Eles estavam lá, como sempre estiveram. Emoldurados na paisagem urbana, se alimentando de sobras de comida e de um pouco carinho por aí. Então veio a quarentena, humanos trancafiados em casa por meses devido a uma nova doença, então a coisa degringolou em uma escalada surpreendente. Sem sobras ou afagos, os cachorros da rua começaram a ter que buscar a sua comida. As sobras das entregas não eram suficientes. Cadê o potinho com ração? O garfo raspado no prato? Caramelos, malhados, barbudinhos, todos a vagar, famintos. Aqui em São Gonçalo começou com um barbudinho. Caolho, assim ele era conhecido pelos lojistas da Rua da Feira. Andando por aqui e por ali, brigando com outros cães menores, ele era o vira-lata alfa da região. Cara de mau, principalmente por causa do olho semifechado que lhe garantia o apelido, intimidava os outros cachorros e algumas crianças. Ele esperou, o danado do Caolho. Seu Jair acordou seis e meia, não acreditava nessa história de grupo de risco, todo mundo um dia ia morrer mesmo, né? “Papai, você tem que ficar em casa, esse vírus é mortal para os idosos!” dizia seu filho. Logo ele, militar da reserva, com histórico de atleta? “Eu sei me cuidar, minha filha.” Sem máscara, claro. Foi só seu Jair sair da padaria pro Caolho ir atrás. Antes que chegasse na primeira esquina, o primeiro ataque foi no saco plástico, que chegava a se enrugar com a temperatura do pão, recém-saído do forno. — Sai daqui, miserável! — Seu Jair sacudia o saco de pão pra afastar Caolho, que recuou momentaneamente. Porém... Fome, né? Uma das três forças ancestrais, que une todos os seres vivos. Caolho avançou no saco de novo, o velho puxou. Caolho latiu, e apareceram um caramelo e um pequenininho que lembrava um Yorkshire. Seu Jair olhou para o lado, e comentou com o vento, como se esse fosse um bom interlocutor: “Agora você vê, é gangue de cachorro, isso?”

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O Caramelo avançou, seu Jair ameaçou um chute, mas o Falso Yorkshire foi no tornozelo da perna base. O velho gritou, e o Caolho avançou. Pão que nada, o cheiro do sangue. Caolho mordeu primeiro a canela seca da perna que o chutou, por puro despeito. O gosto de ferrugem na língua, a promessa da carne. Narinas e pupilas se dilataram, e os três cachorros atacavam de uma vez só. Seu Jair não conseguiu mais ficar em pé (apesar de seu histórico de atleta), e foi ao chão. Bateu com os cotovelos na calçada, o saco de pão se arrebentou, e os cachorros atacaram. O velho gritava e esperneava, mas Caolho insistia no buraco já aberto na canela. O Caramelo, até agora na contenção, avançou na bocarra aberta do velho, arrancando o lábio inferior e um pedaço da bochecha. Outros cachorros apareceram, saídos de becos e terrenos baldios. A coisa toda foi muito rápida, e quando o dono da padaria saiu para ver o que acontecia, não teve muito o que fazer. O corpo de Seu Jair servia de refeição para sete ou oito vira-latas, que levantavam seus focinhos molhados de sangue apenas para rosnarem um com outro. Foi difícil dispersar o bando, quatro ou cinco homens com gritos, e paus e pedras, claro. Cães feridos em debandada, semblantes chocados e o cadáver do velho, retalhado, no chão. O fato isolado em si já seria uma catástrofe. Na capa do jornal local e nos grupos de mensagens, a foto do plástico preto e alguns transeuntes, poucos, de máscara a observarem a cena. “Isso nunca aconteceu por aqui”, “Aquele pretinho a gente chamava até de Gabigol!”, eram as aspas dos munícipes, traumatizados. Mas o mal não anda só, não é? Seu Jair, enterrado no cemitério São Miguel, tinha contraído o vírus mortal antes de sofrer a blitz doguínea. Mesmo sob estrita vigilância da família em casa, saía escondido para jogar sueca na praça, o desgraçado. O Seu Marinho — parceiro de longa data, suboficial da reserva da Marinha — até usava máscara e faceshield (que tara de sueca, não é não?), mas eles não imaginavam que as mãos que cortavam ouros, paus, copas e espadas também distribuíam a doença. E os cachorros, os que primeiro se alimentaram da carne dura do velho Jair, também haviam se contaminado. Não dá pra dizer se o chamado da natureza predatória ajudou (o lobo ancestral contido em cada Totó, em cada Princesa), mas é certo que o vírus agiu diferente nos cães. Eles se tornaram mais agressivos, mais famintos. Dois dias depois, a matilha do Caolho atacou uma mãe e uma criança na praça. E um vendedor de panos de prato. O entregador da farmácia,

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derrubado de sua bicicleta. Por toda a cidade, gangues rivais de cães se enfrentavam, praticavam agora inclusive o canibalismo. O Falso Yorkshire mesmo, coitado, foi vitimado em um embate com cães rivais, da Praça Zé Garoto. Os territórios eram loteados, a patrulhados por vira-latas de olhos vermelhos e sede de sangue. Os cachorros de casa — shi-tzus, salsichas, poodles e pugs — pegavam a doença e atacavam seus donos, então abriramse os portões e a liberdade sangrenta os abraçou. Alguns humanos foram atacados e sobreviveram, porém, a contaminação do vírus modificado era devastadora. Além dos sintomas respiratórios, a doença atacava o sistema circulatório. Quem era mordido, não durava três dias. O sangue virava uma borra, e a pessoa morria de parada cardíaca, não sem antes verter sangue pelos olhos, ouvidos e outros buracos menos nobres. As tentativas de repressão foram inócuas. Ainda precisávamos ficar em casa por causa da doença. A prefeitura tentou veneno, mas os animais não comeram. Ou percebiam o veneno, ou agora só queriam comida que sangrasse. Relatos de invasões a casas, e teve gente matando cachorro a tiro. Os animais abatidos eram devorados pelos outros, no meio da rua. Não era uma coisa bonita de se ver. Nos dias de sol, o cheiro de carniça atraía outros animais, e o vírus modificado — selvagem, voraz — se espalhava no reino animal. Urubus, gatos. Ratos. Ratos são realmente um grande problema. Há mais ou menos um mês, a comunidade científica internacional, em um trabalho conjunto inédito, conseguiu achar a vacina para o vírus que acometia os humanos. No momento, o resto do mundo retoma aos poucos a vida normal: governos em uma luta incessante para a recuperação da economia, pessoas se abraçando à beira da praia, fanfarras e cirandas. Campeonatos esportivos. Menos aqui. O Brasil é zona proibida. Não houve como conter a contaminação dos animais; quanto mais rígidas as barreiras, mais casos isolados brotam em diferentes regiões (ratos são mesmo um problema, juntos às aves de rapina). Agora, estamos todos trancados em casa, sem comunicação física com o exterior. Ralos vedados, janelas trancadas. Olho pela janela e vejo um falcão comendo o olho gelatinoso de um cachorro inchado, vísceras expostas. Tenho quase certeza de outro dia eu vi uma onça. Carregando um braço.

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Ao Entardecer de Cada Dia Talya Maura

15 de julho de 2025 O mundo deixou de ser o que era há cinco anos.... Nesse período, eu tinha 16 anos, com uma ótima família, sonhos — como de prestar a graduação de relações internacionais fora do país — bons amigos, entre outros privilégios que qualquer adolescente da minha idade sonharia. Agora, me encontro num velho prédio alto espelhado, vivendo dentro do seu subsolo que é amplo e seguro o suficiente para me proteger das criaturas que um dia já foram humanas. Ah! Também não posso esquecer que tenho uma pequena companheira de oito anos, mas bem mais esperta do que eu. Seu nome é Alane, ela tem cabelos castanhos como a terra e olhos tão vivos quanto gotas d´água sob uma folha. Também temos, Lily, uma cadela da raça doberman que adotamos nas nossas caças. Ela também é muito esperta e sagaz. Com elas não me sinto tão solitária, apesar das lembranças do início de tudo ainda me assombrarem, e que sei, que irão me perseguir a vida toda. — Carlaaa, a Lily achou alguma coisa na porta de entrada — gritava freneticamente, Alane. — Já vou! — Bom agora precisarei encerrar esse pequeno trecho do diário, até qualquer dia, se eu conseguir escrever novamente. — O que você acha que é? – A curiosidade de Alane era extremamente irritante às vezes. Ela sabia do risco que as criaturas traziam, mas ela queria entender mais como tudo se deu e o porquê de as pessoas terem virado as criaturas de corpos envergados e que agora são quadrúpedes. É complicado. As coisas evoluíram de uma forma muito rápida e descontrolada, e assim, me encontro inventando histórias, que não sei explicar, de uma forma simples de que não voltaremos ao normal e que somos as únicas coisas vivas bípedes descendentes dos homos. E se houver outros de nós, acabaram declinando ao seu apogeu como os demais. — Fique atrás de mim, Alane. Não sei o que tem atrás da porta e isso pode ser muito perigoso. Sabe como as criaturas são muito rápidas.

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Ela me obedeceu e se afastou. Comecei a abrir a porta devagar. Estava com uma pistola na mão, enquanto me encostava um pouco na porta entreaberta. Não escutava som de passos e não sabia onde estava a cadela. Resolvi abrir com tudo. Nada. Exceto por um rato morto em estado avançado de putrefação. Para vocês, pode parecer besteira e só bastaria pegar o animal e o jogar fora, mas aquele pequeno cadáver, pelo seu cheiro forte e nauseante, pode acabar entregando nossa localização. Corri até o outro lado do subsolo e peguei um galão de gasolina, joguei no cadáver e atei fogo com um isqueiro velho. O cheiro de fumaça, por algum motivo, deixa as criaturas nauseadas, por isso, no início, usávamos o fogo para afastar as criaturas, mas o vírus sofre mutações muito rápido, e apesar do fogo ainda ser uma fraqueza, a velocidade e a inteligência se desenvolveu muito rápido. O que causou nossa queda. Depois do ocorrido, saímos a procura de suprimentos no mercadinho mais próximo. Estava fazendo muito frio e os meus pés doíam, afinal, andávamos quase todos os dias, uma média de 2 km por duas vezes na semana, sendo que logo precisaríamos nos mudar de onde estávamos, e por justamente ter explorado toda aquela área. Mas ainda não fazia a menor ideia de onde começar. — Carla, já são meio-dia, precisamos andar rápido!! Poucos alimentos estavam disponíveis essa semana. Laticínios, carnes e frutas já tinham se estragado por completo e só nos restavam poucos embutidos e processados. Peguei o que podia e que também cabia dentro da mochila. — Alane, já pegou tudo que precisávamos? — Silêncio. — Alane? Andei devagar até Alane para entender o que estava acontecendo. Ela estava do outro lado do mercadinho. Parada e silenciosa, como se estivesse num tipo de paralisia. Dobrei mais um corredor até chegar a ela. Fiquei atrás dela quando percebi que por trás da janela da porta de entrada havia uma das criaturas, que pelo visto, estava tentando se alimentar, mas sem sucesso. Isso era mal, muito mal... Peguei Alane pela mãozinha e fiz gesto de “shhhh” assim que me virei para ela. Consentiu. Já estava acostumada aquela situação, porém, dessa vez foi diferente. Nunca encontramos uma das criaturas dentro das cidades.

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Quando houve o surto, era comum elas zanzarem pela cidade, estava no início da pandemia, mas depois da destruição completa, a maioria se retirou para fora das cidades, sendo a mata seu habitat preferido. Por isso era muito estranho ver elas pela cidade. Fazia 2 anos desde a chacina e um ano se escondendo deles. Mas não era momento de pensar sobre isso. Comecei a andar devagar com Alane até a janela dos fundos do mercadinho. Era um lugar bem pequeno, mas aquele caminhar me doía na alma, porque parecia que não tinha fim, até eu ouvir a porta da frente bater. Parei de imediato porque a criatura entrou. O medo chegava a engasgar e prender nossa respiração, e novamente, puxei minha pequena companheira para trás, de modo mais lento possível e fazendo sinal que ela tapasse a boca com as mãos. A criatura se encontrava do outro lado da prateleira de comida. Um passo errado e nosso fim estaria ali. A janela dos fundos que seria nossa rota de fuga agora estava sendo “bisbilhotada” pela criatura. O pânico agora inundava meu corpo de uma forma que não sabia explicar, mas o pior ainda estava por vir. Seguimos então, lentamente, para a porta de frente, mas havia mais três criaturas a procura de comida. Estávamos cercadas. Peguei minha mochila — e agradeci a Deus não sei quantas vezes por esse dia, pois essa mochila não era de zíper e sim de cordão, como se fosse um saco — e procurei por qualquer coisa que pudesse chamar a atenção da criatura que estava dentro do mercadinho. Revirei, revirei, até encontrar um ioiô que meu pai tinha me dado e eu o considerava da sorte. Era a última lembrança que tinha da minha família... mas se eu durasse mais tempo ali, não teria um final agradável. Então tracei um plano louco. Através da linguagem de sinais, pedi a Alane que assim que eu abrisse um pouco da porta e jogasse o ioiô diretamente na lata de lixo que tinha noutro lado da rua, correríamos como se não houvesse amanhã. Ela consentiu. Então abri vagarosamente a porta da frente, numa abertura suficiente que passasse o pequeno objeto, observei se as criaturas ainda estavam distraídas. Ainda estavam, e joguei ele com toda a força que tinha na lata de lixo. O barulho foi estridente. Não sabia se era o termo certo, mas fazia muito tempo que não sabia o que era um som que afetasse suficientemente os decibéis dos meus ouvidos, então aquele som era quase que uma novidade para mim.

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Em seguida, tudo aconteceu muito rápido: assim que joguei o ioiô, puxei o braço de Alane, e nós que nos encontrávamos atrás da última prateleira, corremos para a janela dos fundos a criatura já tinha dado um salto e corria em direção da porta da frente, porém, enquanto subíamos a janela, acabei derrubando um vaso que nem sequer tinha avistado ao lado do caixa. Assim que ele caiu, umas das bestas percebeu e começou a ir em nossa direção. Do outro lado da janela, eu e Alane corríamos o máximo que podíamos, porém, a criatura era muito mais rápida e conseguiu pular em mim, mas antes, tinha me virado quando percebi que estava se aproximando. Levantei os braços e os dobrei e coloquei abaixo do seu pescoço. Eu nunca tinha olhado uma tão de perto. Seu rosto era alongado, maxilar estreito, olhos esbugalhados e com pupilas muito dilatadas, narinas muito grandes e seus dentes eram longos. Em todo o seu corpo não havia pelos, a pele era lisa e delicada, mas compensava nas garras. Estava perdendo forças e cada segundo que passava a criatura se aproximava mais e mais. Não ia aguentar mais, até... Vi um risco preto atravessar minha visão. Era Lily. Ela o atacou diretamente no rosto e saíram rolando e uma briga de vida ou morte tinha começado. Alane correu até minha direção e falou que tinha a desamarrado para me ajudar. Fiquei louca quando ela terminou a frase: — Por que você fez isso? Ela pode matar a Lily. É isso que você quer?! — Eu fiz isso porque não sabia o que fazer para te ajudar e não queria te perder, IDIOTA” Seus gritos e suas lágrimas percorriam por todo o meu consciente, fazendo me lembrar das últimas frases da minha mãe, quando ela se sacrificou para me salvar: “eu que não posso perder você, Carl... por todos os erros que cometi, estou pagando por eles, mas você precisa continuar... SOBREVIVA. ” E naquela tarde, Lily deu seu último suspiro assim como a criatura.

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30 de julho de 2025 Lily conseguiu matar a criatura, porém, antes de conseguirmos comemorar, a criatura conseguiu reunir forças e atacou diretamente o pescoço de Lily. O cravar dos dentes da criatura foi o suficiente para levar nossa alegria diária. Quando a vida de ambas foi devidamente jazida dos seus corpos, só fizemos embrulhar o corpo de Lily e a levei nas costas. Era pesada, mas as criaturas estavam se aproximando, peguei Alane pelo braço e saímos cuidadosamente de volta a estrada. Andamos pela estrada, silenciosamente, o clima ficou estranho depois da morte da Lily. Convivíamos só um ano, mas pareciam anos de convivência, uma família...o pior é que nem podíamos chorar por nossos mortos. Ao caminhar, Alane dizia que a Lily estava se mexendo atrás de mim. Disse que parasse com brincadeira, o momento não era oportuno, mas daí também comecei a sentir algo se mexendo nas minhas costas. Tirei a Lily que estava amarrada num lençol que sempre levo para que Alane não pegue chuva e o arremessei no chão. Meus olhos viam, mas não queriam processar a imagem que estava ali se formando... Lily estava se debruçando dentro do lençol e estava tentando sair daquele labirinto estreito. Sua boca se abria diversas vezes, estava tentando rasgar o lençol. Ela estava se transformando em uma das criaturas. E pior que fazia sentido. O vírus que extinguiu a humanidade era o da raiva! Que passou por uma mutação extremamente volátil e quase impossível de ser controlada. Era tão letal quanto a AIDS, pois levava o infectado a morte em uma semana e tão contagiosa quanto a COVID-19, só bastava um único espirro e o contágio era certo. Entretanto, havia uma característica que nenhum desses vírus possuía: a transformação. Primeiro, o infectado começa a lacrimejar pelos olhos, depois começa a suar muito e em seguida esmorece de fraqueza. Três dias depois, apresenta um comportamento violento e perigoso, o que torna esse vírus totalmente atípico dos demais — a violência — e nos últimos, apresenta os sintomas normais de uma gripe — febre, vômito, diarreia, insuficiência respiratória e logo após a morte. Não se sabe bem como a morte se dá, se é pela insuficiência respiratória ou pela diminuição do sistema imunológico.

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As pesquisas não conseguiram avançar como deveriam, devido à mutação e muito menos deu para observar a evolução desse vírus em indivíduos. Mesmo que estes sejam próximos a você... sim, o primeiro pesquisador a estudar o vírus RAW-1 — assim ficou conhecido — foi meu pai e também foi o primeiro a ser contaminado e dar início do contágio e bem... agora vocês sabem como minha família morreu. Entretanto, me vejo em outra situação delicada – a transformação de Lily – precisava matá-la, mas não queria que Alane visse a cena. Peguei no meu braço esquerdo com força e o apertei forte o suficiente até Alane tocar no bolso da minha calça e olhar para mim. Seus olhos eram tristeza, mas que já havia aceitado o seu destino e balançou com a cabeça. Peguei uma pedra próxima de uma árvore e levantei ela com dificuldade, mas o suficiente que atingisse Lily sem deixar ela sofrendo. A agradeci e assim o fiz. Tempos complicados, baby.

Acordei cedo, estávamos dormindo numa loja de brinquedos, porque Alane queria ficar abraçada a um ursinho. Ela disse que seria o nosso novo companheiro e que a ajudaria consolar pela morte de Lily e dos pais dela. Eu fiquei em silêncio. Não cabia a mim julgá-la, já fiz coisa pior, então peguei minha gaita, que era uma das poucas coisas que me restava e que mantinha minha sanidade e comecei a tocar. Meu cabelo ruivo estava sem cor e brilho, e meus óculos estavam muito sujos e embaçados. Eu queria tanto chorar, mas nem para isso conseguia ter forças. Primeiro, porque prometi a mamãe que me manteria viva e segundo, não queria que Alane ficasse triste. Ela também era a única coisa que tinha. E já estava tarde, hora de sairmos. — Alane, precisamos ir! — Ok!! Andamos pelas estradas desertas. Enquanto caminhávamos, lembrei porque não fui contaminada igual aos meus pais. Na época, três dias antes da minha vida virar de cabeça para baixo, estava passando uns dias com a minha avó que morava perto do colégio onde estudava. Ela me ajudava a escapar de “fininho” às vezes e era a única que sabia que namorava escondido. O nome dele era Diego, parecia um menino Tumblr e era bem

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bonito. Ele dizia que gostava de mim. Não sabia como, mas gostava e tinha também minha melhor amiga, Laura, que me ajudava ainda mais a sair de “fininho” para me encontrar com Diego. Nesse período estávamos reunidos para comemorar a admissão de Laura na faculdade de Engenharia Naval na UFRJ. Ela ia me deixar, acho que começou dali a minha falta de sensibilidade de chorar. Não veria mais os olhos verdes e delicados de Laura, nem o sorriso gentil da minha avó e nem o abraço aconchegante de Diego, nem a seriedade dos meus pais que chegaram naquele dia.... meu pai enlouquecido atacando o pescoço de Diego e matando a Laura com uma peixeira. Só me salvei, porque minha mãe me escondeu dentro de um suíte no quarto da minha avó e me pediu que assim que ela fechasse a porta, pulasse a janela e não olhasse para trás e que fosse em casa que teria um roteiro de fuga e como me esconder das criaturas. Ela não sabia se daria certo, mas foi o melhor que pensou. Queria dizer a ela que deu muito certo... — Carla, você já percebeu que toda vez que nos mudamos é sempre no final de uma tarde, exatamente as 17:00 horas? — Nem tinha reparado. — É! Desde que a Lily faleceu nós sempre nos mudamos ao final da tarde às cinco horas e falta 20 minutos para encontrarmos onde será nosso esconderijo. — E como sabe que já encontramos o nosso próximo esconderijo? — Bom, observando a Lily, ela sempre ia para lugares grandes e que tinham comida, como aquele mercado logo ali e ele é bem seguro. E também, porque as criaturas estão chegando. — Como sabe que as criaturas estão chegando? — Porque no dia que a Lily morreu, antes de sairmos, aquele rato morto, não morreu por morrer, sabe? Ele foi trazido por uma das criaturas e jogado perto de onde a gente mora, Lily só o pegou e trouxe. — E você só me avisa agora? Alane, isso é sério, isso sugere que estamos sendo seguidas desde que saímos dali! Sabe o que pode... — Mas fique calma! Lily vai nos proteger naquele mercado grande ali, junto aos nossos pais e quem sabe não encontramos armas. A calma e serenidade de Alane me deixava nervosa, mas também confiante, mesmo sendo interrompida. Resolvi deixar meu medo de lado.

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Não estava sozinha, tinha uma companheira esperta e forte comigo, por isso não há o que temer. E assim, seguimos até o mercado. Não sabemos se viveríamos até amanhã, porém, enquanto ela ainda estivesse do meu lado, não iria temer mal algum. E de mãos dadas seguimos e que fosse o que fosse, até o entardecer daquele dia.

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O Império das Feras Jéssica Cardoso

Eu vou contar a história de como o mundo quase acabou. E ela começa no ano de 2020 quando teve início o que ficou conhecido como a Grande Crise. Na 6ª Província, que na época tinha outro nome, surgiu um terrível vírus desconhecido que em cerca de três anos, graças a ignorância e a irresponsabilidade de muitos, aniquilou aproximadamente 50% da população mundial. Simultaneamente a essa situação ocorriam perseguições a determinados grupos, o cenário era de caos. Em 2027, a situação se agravou, crises políticas que vinham acontecendo há muito tempo ocasionaram golpes de estado por todo o mundo, com passe livre para eliminar qualquer tipo de oposição, foi um banho de sangue. Em 2029, uma droga que foi muito utilizada na vã tentativa de conter o vírus teve o seu uso disseminado em escala global de forma obrigatória, o pretexto era de evitar possíveis novos surtos de doenças, mas a verdade é que a fórmula dessa droga havia sido alterada causando amnésia naqueles que tomassem e todos aqueles que não tomassem seriam eliminados. Todos os que tomaram a droga apagaram por 3 dias e quando acordaram as lembranças dos dias sombrios que passaram haviam desaparecido, junto ao mundo que eles conheciam. Jornais e revistas? Sumiram. A internet? Não passava de um enorme vazio. As escolas? Não são mais as mesmas, tudo o que se aprende são letras e números. Televisões? Ficaram fora do ar por uma semana e quando voltaram tudo o que passava eram desenhos infantis e o Jornal Real. Continentes? Países? Presidentes? Nada disso existia mais, agora o mundo era dividido em 8 Províncias, cada qual governada por um Rei e todos sob as ordens do Imperador. O meu conhecimento sobre esse período se deve ao meu pai que, na época, foi um dos que conseguiram burlar o governo e não tomar a droga, ele quer que eu saiba a verdade. Mas a história que eu vim contar é outra. Tudo começou com mais um dia normal na 3ª Província, estava voltando para casa e, quando cheguei,

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a televisão estava ligada no Jornal Real, o que eu estranhei já que o meu pai não assistia aos programas imperiais, mas lá estava ele, sentado em frente à televisão, havia horror em seu rosto. Um estranho acidente havia acontecido na 5ª Província, 3 militares imperiais e 5 médicos haviam desaparecido em um hospital próximo a uma colina, a suspeita é de que eles tenham sido atacados por algum animal selvagem. “Que tragédia!” eu pensei, mas não entendia o porquê meu pai continuava perplexo. — Pai? O que foi? Mas ele não me respondeu, então eu perguntei de novo e foi como se ele saísse de um transe. — Isso está errado. Não existem colinas em qualquer região habitada naquela província e por que teria um hospital em uma área tão remota? E o que mais me intriga, só havia 5 médicos no hospital? Se sim, por quê? Se não, como ninguém viu um animal grande o suficiente não só para matar, mas para desaparecer com 5 médicos e 3 militares imperiais? A história não bate, querida, tem alguma coisa errada acontecendo. A princípio, eu achei que era exagero do meu pai devido a tudo o que ele sabia, mas, com o tempo, cada vez mais casos surgiam por toda a 5ª Província e logo também apareceram na 6ª e na 7ª Província e, em pouco tempo, essas 3 províncias estavam em quarentena. Histórias surgiram por toda a parte, havia quem acreditava que isso era obra de Lobisomens, outros do Chupa Cabra, até os Wookiees foram acusados, mas a verdade é que ninguém sabia o que estava acontecendo. Rapidamente começaram a surgir casos por todas as províncias, a minha foi uma das últimas e eu me lembro até hoje como aconteceu. O Rei não tomou nenhuma medida de prevenção mesmo com casos já na 2ª Província. Nesse dia eu tive que sair mais tarde da escola, já estava anoitecendo, mas, precisei seguir o meu caminho sozinha, foi então que em uma rua próxima a que eu estava, eu ouvi o som mais aterrorizante que eu já ouvi em toda a minha vida, rugidos altos e diferentes de qualquer outro conhecido, carregados de dor e gritos de pânico seguidos por um silêncio ensurdecedor e logo após houve novos rugidos, fiquei completamente paralisada e foi então que eu vi, refletido pela luz da lua, a sombra do que parecia ser um enorme animal, mas que andava sobre duas patas, agora eu entendi a história dos lobisomens. Corri o mais rápido que pude para a minha casa e entrei gritando ofegante:

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— Chegaram! Estão lá fora! Pude ver novamente o horror nos olhos do meu pai. Naquela mesma noite a minha mãe fez as malas e partiu sem dizer para onde, tudo que ela me disse era que precisava ir. Dois dias depois o mundo inteiro estava de quarentena. Os números de casos cresciam descontroladamente, portas fechadas por todas as partes, casas vazias e cada vez mais os números se tornavam rostos e nomes conhecidos. Durante todo o dia se ouviam gritos e rugidos, o medo, a insegurança e a incerteza por não se saber o que estava acontecendo cresciam cada vez mais. Passava os meus dias olhando por uma brecha na cortina da janela, meu único contato com o mundo exterior, o pensamento sobre as coisas horríveis que estavam acontecendo e as que a nem sequer sabíamos que estavam explodiam no meu peito a ponto de me sufocar, tentava vislumbrar um futuro, mas tudo o que enxergava era uma névoa de incertezas então o que me restava era continuar esperando que os dias incertos chegassem ao fim, mesmo sem saber quantos faltavam. Meses depois, um grupo de caçadores conseguiu sedar e capturar uma criatura, descobriu-se então que essas feras eram uma espécie de mutação humana e a verdade começou a aparecer. O clima já vinha tenso entre as províncias há muito tempo, reis queriam se libertar do Império, expandir territórios e começar os seus próprios regimes absolutistas. Isso levou a guerras por todas as partes e à perda de muitas vidas. Apesar de parecer confiante, o Imperador temia que a situação saísse de seu controle, ele então investiu milhões na criação de um super exército para manter o seu domínio. O desenvolvimento da chamada poção ocorreu na surdina, mas quando os testes em humanos começaram a situação saiu do controle e o segredo imperial veio a público. No dia 5 do nono mês, um sargento e dois soldados imperiais foram a um laboratório escondido no alto de uma colina para testarem a poção. Às 21h iniciou o primeiro teste e as mudanças previstas começaram a ocorrer, o sargento ficou muito mais alto e mais forte, e então testaram os soldados, 20 minutos depois um imprevisto aconteceu, o sargento crescia descontroladamente, suas costas se encurvavam, pelos apareciam por todo corpo, os dentes mais pareciam presas e logo o mesmo ocorreu aos soldados, eles começaram a se comportar de forma agressiva, os médicos buscaram

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abrigo em outra sala e ligaram para o socorro, porém do outro lado da linha só se escutou gritos, coisas quebrando e o que pareciam rugidos. Devido sua localização, a ajuda demorou para chegar e tudo que encontraram foi sangue e pedaços de roupas, os médicos e militares haviam desaparecido. Descobriu-se que quando alguém era atacado se transformava no que o atacou, devido ao instinto feroz a situação se agravou rapidamente. Os covis dessas feras ficavam em pontos escondidos como cavernas e florestas pelo mundo. Quando a minha mãe saiu naquela noite ela estava indo salvar o mundo. Ela é cientista e foi para a 8ª Província trabalhar com pessoas que assim como ela e o meu pai não tomaram a droga e agora estavam atrás de respostas para o que estava acontecendo. Devido à 8ª Província ser congelada era o local mais seguro para que trabalhassem. Grupos de expedições foram atrás de respostas e, apesar de algumas perdas, eles conseguiram a localização e as fotos de um dos covis e ainda capturaram uma das feras. Com o material genético obtido criaram um soro capaz de reverter a mutação e salvar a vida do hospedeiro. Outro grupo de expedição foi enviado para capturar mais uma fera para testarem a cura. No dia 2 do mês sete, ocorreu o primeiro teste e 30 minutos depois a reversão já acontecia, uma hora depois tínhamos o primeiro curado, logo o segundo teste foi realizado e também foi um sucesso. A cura foi descoberta! Agora o problema era como espalhar a cura em larga escala para pacientes que não sabíamos onde estavam. Foi aí que o meu pai entra em cena, ele é cartógrafo e alguém de confiança para descobrir potenciais covis e assim terem informações suficientes para irem a público com a solução do problema. Meus pais viajaram até a Capital, na 1ª Província, para uma reunião com o Imperador, mostraram todas as evidências e depois de horas o convenceram e elaboraram um plano. O plano era de que 100 mil aviões sobrevoassem o mundo por 3 dias espalhando a cura e depois grupos de militares levando equipamentos com o soro iriam em todos os covis. E foi o que fizeram. Nos dias que seguiram ao fim da missão nenhum caso foi registrado e aos poucos o mundo voltava ao normal, ou próximo disso. Os contaminados recuperados foram reintegrados à sociedade. E essa é a história de como o mundo foi salvo das feras, de nós mesmos.

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OS QUE AMAM SOBREVIVEM: Uma carta sobre a infecção Kaique Cesar

12 de junho de 2020 Na verdade, não sei bem ao certo se este é o dia de hoje, já me perdi nesta quarentena... Faz alguns meses que o mundo ruiu. Olá! Como você está? Espero que bem. Espero que esta carta alcance alguém, espero que eu não esteja escrevendo em vão. Para muitos, o ruim desta quarentena interminável está em ficar preso dentro de casa, para outros está em andar lá fora e correr os riscos, mas para mim está dentro de minha mente, ou era isso que eu achava. Desde o início destes dias evitei abrir a porta, pois eu sei que algo sem forma e sem face se escondia lá fora, os noticiários só mencionavam as tragédias e cada programa que eu assistia o perigo parecia mais eminente. De alguma forma essa doença não mata somente, ela muda a pessoa, ela traz à tona o que cada um é! Uns têm odiado os outros, desprezando a vida de forma deliberada, odeiam animais, odeiam seres humanos, as etnias, as opções, as deficiências e até os empregos, sinto como se o respeito e a empatia estivesse morrendo, como se o amor se esfriasse no mundo, como se esse sentimento estivesse infectado. Eu moro no terceiro andar do prédio onde você pegou esta carta pendurada, pois é, só consegui deixar em frente mesmo, gostaria de ter enviado para um amigo já que não tenho família, mas minha condição não me permite sair muito de casa e, além disso, não quero esbarrar com uma daquelas coisas. É, meu colega, nem me apresentei. Que educação a minha. Meu nome é Tuam, em latim significa “Seu” o que é engraçado, pois não pertenço a ninguém. Em malaio, Tuam é qualquer calor que é demarcado em partes inflamatórias ou dolorosas. Sou quase uma doença. Isto é engraçado, pois, às vezes, me sinto assim, me sinto como um mal que as pessoas aturam, acelerado, nauseado, taquicardíaco, com medo, os médicos dizem que

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tenho transtorno de ansiedade e algo a mais, ou seja, minha cabeça é quebrada. Fico feliz que ainda está lendo a carta de um estranho, sinal que o seu amor ainda não foi infectado. Então, colega, te deixo um conselho: muito cuidado ao andar por aí, o álcool ou as máscaras ajudam contra o vírus, mas não contra o que vem com ele, algo do mau, que te cega e a partir de seu contato você não olha para o próximo como antes, todos são só mais um número e como números são sem vida, você não valoriza a vida, você perde o amor. Talvez você não acredite, mas eu vejo o mau que se espalha, uma névoa negra que envenena a alma das pessoas, as vezes ela vem e traz a mentira, outra ela aflora a ganância, talvez você a chame de demônio ou de uma força alienígena, um ser elementar ou sei lá o que, mas ela está aqui, ela está aí agora ao seu lado enquanto você lê minha carta. Colega, eu não sei como me manter são e até questiono minha sanidade, mas eu sei que isso existe e pegou carona nessa pandemia, alguns me chamariam de sensitivo, mas desde o início eu sabia que a coisa ia ficar feia. Às vezes, na madrugada, eu os escuto sussurrando pelas ruas, manchas negras que pairam sobre as pessoas, algo de ruim foi liberado, não sei de onde ou o porquê, mas eu sei que este surto não é normal. Sabe, eu decidi deixar esta carta para alguém, pois eu vi essa coisa rondando minha casa, eu não estou doente nem nada, mas meu vizinho está e não é de um vírus, nem sequer tossiu, ele está doente do mau, aquela mancha negra o tocou, ele profere palavras ruins, espanca sua mulher, odeia o seu filho e blasfema, pois usa o nome Divino acima de tudo. Tento pensar que a sombra ao te tocar faz isso, mas imagino se o ódio já não está dentro destas pessoas. Talvez esse mal esteja rondando porque Deus quis, talvez ele tenha visto que a humanidade sim é uma praga. Eu não sou religioso nem nada, mas minha mãe dizia que no fim dos tempos o amor de muitos se esfriaria, que viriam doenças e pragas, talvez estejamos vivendo isso, ou talvez seja só a mãe natureza nos dando o troco com a ajuda de algum ser nefasto. Não sei, só sei que estou muito cansado para continuar, enquanto eu escrevia esta carta ela andava pelos corredores do prédio. Mas não permitirei que ela me pegue. Obrigado por ler a minha carta colega, espero que você fique bem, espero que viva e que após isso tudo, o mundo tenha pessoas melhores ou então não aprendemos nada da vida. Fique vivo, lute contra, resista por mais difícil que seja. Não permita que o seu amor seja infectado! Tuam

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Incertezas Marcari

Eu andava na calçada com passos rápidos, podia ouvir o eco do barulho dos sapatos nos pedregulhos. O Mundo amanheceu em silêncio. O azul do céu e o calor do sol revelaram um mundo vazio. Só o aterrorizante silêncio percorreu o mundo, os continentes. Ninguém entendeu nada. O contágio do vírus Covid-19, causou dor e morte. Essa era a força do novo vírus que rapidamente ocupou todos os lugares e as cidades. O povo permaneceu em seu lar, perplexo e confuso diante da dor do próximo e o terror de perder rapidamente seus entes queridos. Que medo! Como enfrentar o inimigo invisível, mil vezes menor que uma célula humana. O maior inimigo do homem em 2020? Em todos os países surgiram possibilidades, remédios milagrosos que não salvaram ninguém. O homem em sua arrogância e egoísmo investiu por muitos anos suas riquezas em armamentos. Não pensou na ciência, ou na necessidade de preparar equipamentos e medicamentos para situações de emergência. O maior engano, terrível e letal. Levou a vida de milhares de pessoas em meio a tanto choro e dor. Muitos órfãos no mundo. Eu refletia sobre a minha vida e todos estes acontecimentos e enquanto caminhava, parecia que alguém estava seguindo meus passos. Parei, olhei atentamente a minha volta e não vi ninguém. Parecia o fim do Mundo. Todas as lojas fechadas, todas as ruas desertas. Como um filme terrível de suspense. Gostaria de descrever todos os sentimentos que invadiam o meu ser. Variavam de sensação de desespero, medo, pavor até a conformidade de estar no caminho do fim. Engraçado, novamente a sensação de estar sendo seguida. Já podia ver ao longe o portão de minha casa, mas a sensação de dúvida persistia em minha mente. Haveria uma razão para que o Mundo inteiro sofresse tanta dor e tudo que estava acontecendo. Uma guerra invisível entre nações com uma arma biológica capaz de aos poucos dizimar toda a humanidade ou um castigo ao descaso com a natureza.

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Cheguei em casa, com a cabeça repleta de suposições, até as mais malucas possíveis. Viver no isolamento sem poder conversar com outras pessoas ou trocar ideias parecia insuportável depois de algumas semanas de solidão. Sentia muita aflição e sempre com a sensação de não estar só. Acontecia sempre que saía e o fato de não cruzar com carros ou outras pessoas aumentava a sensação de perseguição. Talvez estivesse ficando meio tantã em meio a Pandemia. Em uma longa noite de insônia e pavor, na incerteza da vida, eu ouvi barulhos fora da casa, parecia que alguém batia nas janelas suavemente, como uma alma penada ou quem sabe um assaltante. Fiquei totalmente gelada e arrepiada sem nenhuma ação. Perdi a noção do tempo e me encolhi na cama. No entanto, o barulho persistia e não parecia que teria fim. Com muita coragem venci o terror e lentamente fui andando em direção a janela. Olhei e vi um gato preto, batendo com a patinha e pedindo auxílio. Abri a janela e o acolhi. Estava com muita fome e perdido, era um animal bonito. Então esse era o meu ser invisível que espreitava os passos em todos os cantos. Já fazia mais de uma semana que estava me seguindo e assustando os meus caminhos. Resolvi adotar o gato preto. Agora um novo amigo para o isolamento da Pandemia. Dei-lhe o nome de Asclépio, em homenagem ao Deus grego da medicina e da cura.

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Não Saia Agora

Semente do Recomeço Heverson de Souza e Costa

O que lhe congelava os ossos não era o medo do que podia acontecer, mas o pavor de enfrentar a realidade. Sobre a mesa de centro da sala o álbum de casamento era a lembrança mais sólida de um sonho que parecia eterno, mas que inexplicavelmente se desfez como cinzas carregadas pelo vento. Há dois anos realizou o seu grande desejo, casar-se com seu único amor, há um ano, numa sucessão de fatos que pareciam demonstrar que a felicidade chegara para ficar, ambos foram aprovados num concurso público para o qual estudaram e se prepararam, objetivando alcançar uma estabilidade financeira e profissional para terem o primeiro filho. Após se mudarem, pleitearam uma transferência para ficarem mais próximos da família, à qual também conseguiram juntos a exatos seis meses. Então há apenas um mês, Heitor decidira mudar-se antes dela para que organizasse tudo enquanto ela encerrava suas vidas naquele local e pudesse partir ao seu encontro na tão almejada nova localidade. Foi nesse momento que inexplicavelmente a sorte parecera converterse numa malévola ironia do destino. Incompreensivelmente o mundo parecera enlouquecer e uma aparentemente insignificante doença, que surgira em algum ponto remoto da China, se espalhara por cada canto do planeta, num ritmo frenético, transformando a realidade e a rotina de todos ao redor do globo. Na mesma semana que Heitor partiu, foram constatados os primeiros casos no país, e ainda podia ouvir sua voz ao ligar-lhe avisando que chegara bem “Não se preocupe meu amor, está tudo tranquilo aqui. Fiz uma boa viagem e em breve estaremos juntos novamente no nosso novo lar”. Mas aquele sonho que parecia tão próximo de se concretizar seria apagado e vagaria eternamente no vácuo dos sonhos perdidos e não realizados. Na próxima conversa que tiveram, ele lhe contou que não se sentia bem e que logo procuraria um médico. Também a tranquilizou afirmando que era apenas uma indisposição causada pela mudança. Contudo, o num outro momento que falaram por telefone, ela ouviu uma

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voz apreensiva e cansada que lhe dava uma péssima notícia: Heitor havia sido contaminado pelo novo vírus e deveria permanecer em isolamento. Desse ponto adiante, uma sequência caótica de eventos sucedeu-se. Ela parou de receber suas chamadas e, desesperada, não aguentou ficar mais em casa e tentou partir para estar ao seu lado e ajudá-lo, mas os aeroportos haviam sido fechados e não havia a mínima possibilidade de tomar um voo para ir ao seu encontro. Sua ansiedade era proporcional à ausência de comunicação e crescia progressivamente tal como as notícias que envolviam aquela doença que agora era considerada uma pandemia. Uma ameaça invisível que não dava trégua. Alguns dias depois, numa chamada abrupta de algum desconhecido, ela recebeu o golpe da pior notícia anunciando-lhe que o amor da sua vida havia morrido e deveria ser enterrado o mais rápido possível para evitar contaminações. Simplesmente não havia palavras que pudessem sintetizar seu desespero e a sua dor. Com certeza haveria algum engano naquela informação. Era impossível que Heitor houvesse partido. E caso isso fosse verdade, como ele poderia ser arrancado da sua vida sem ao menos dizer adeus? Num vislumbre de consciência, concluiu que não há nenhum controle sobre a vida, e que da noite para o dia, podíamos deixar de existir, como uma formiga esmagada aleatoriamente pelos passos de um ser humano. Seríamos meras formigas pisoteadas por uma força maior a que chamamos de Deus? Haveria alguma lógica nessa estranha existência? Como poderiam enterrar seu marido sem que ela estivesse presente ou qualquer outra pessoa da família? De repente o caos instalara-se no seu cotidiano e ela sentia-se impotente e incapaz de tomar qualquer atitude. Nem mesmo o abraço consolador dos amigos e familiares lhe era permitido. Estava distante e isolada, restando-lhe apenas o frio contato oferecido por celulares e computadores. Cada um deveria viver a própria dor isolado no espaço de sua casa, chorando suas próprias lágrimas e buscando forças que pareciam remotas para permanecer vivo e são. Era tudo extremamente sufocante. Retirou a aliança do dedo e a colocou sobre o álbum de fotografias sem nenhuma coragem para abri-lo e recordar aqueles doces momentos. Como era possível que em tão pouco tempo tudo mudasse tragicamente e seus sonhos fossem massacrados por uma ameaça invisível?

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Não Saia Agora

Já não havia pessoas nas ruas, a situação a cada dia mais alarmante obrigara as autoridades a decretarem quarentena e todos se trancavam na aparente segurança dos seus lares, evitando qualquer forma de contato ou proximidade. Finalmente o ser humano tornara-se vítima do próprio isolamento que vinha se impondo inconscientemente ao longo dos anos. O silêncio opressor das paredes que a cercavam a estavam levando à insanidade. Já não suportava assistir às notícias e muito menos ver as imagens de inúmeras vidas serem sepultadas em valas comuns e imaginar quem em alguma daquelas a pessoa com quem escolhera passar o restante dos seus dias estaria enterrada, sendo lhe extirpada impiedosamente, sem chances de um último toque, um último abraço, um último olhar. Sem se conter e num ímpeto de desespero, saiu às ruas em busca de um alívio. Àquela hora, fim do dia, tudo estava deserto, e uma fria brisa soprava em sua direção anunciando a chegada do inverno. Queria gritar e chorar, mas a dor era tão forte que parecia congelada dentro do seu peito. Sem se conter, correu como louca pela rua deserta, tentando encontrar um resquício de vida ou algo que fizesse sentido em tudo aquilo. Quase na esquina deteve-se cansada, o peito arfando diante do esforço realizado quando uma viatura da polícia dobrou logo adiante e ao vê-la parou a alguns metros. “Senhora, por favor, volte para casa! Não é seguro estar nas ruas!” Num completo mundo surreal o policial usava máscara e parecia temer qualquer forma de contato com a sua figura desamparada na rua deserta. Totalmente impotente para expressar qualquer reação, deu-lhe as costas e voltou para o seu lar como gentilmente recomendou o policial. O poente envolvia a tudo e o interior da sua casa estava cheio de sombras que pareciam engoli-la, mas não se preocupou em ligar nenhuma luz. Simplesmente caminhou até o quarto e, sem forças, deixou-se cair sobre a cama, permitindo que o cansaço e a desesperança a conduzissem para o conforto de um sono reparador. Talvez ali, na inconsciência dos seus sonhos, poderia ser feliz por algum momento. Enquanto se desligava da angustiante realidade, das penumbras que a envolviam, um vulto se destacou tomando uma forma humana e aproximando-se do seu corpo estendido sobre a cama. Tentou inutilmente tocá-la, mas sua nova condição não lhe permitia tal gesto, restando-lhe apenas contemplar sua amada esposa daquela perspectiva em que se encontrava.

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Ele, como sombra, queria tanto poder dizer que apesar de não estar vivo, ainda estava por perto e que nada havia mudado em relação aos seus sentimentos. Vê-la sofrer, naquela inconveniente situação, apenas aumentava a sua dor e deixava a escuridão que o envolvia ainda mais gélida e angustiante. Seu tempo havia se esgotado e ele queria muito se entregar ao sono eterno, mas ainda não podia fazê-lo por mais que se sentisse cansado. Tudo o que mais queria era que ela soubesse que ele estava ali para cuidar dela e só depois poderia dizer-lhe adeus definitivamente. Enquanto isso, permaneceria ao redor, invisível aos olhos do seu amor e mergulhado no vazio gélido das sombras, zelando para que ela não fosse mais uma vítima daquele inimigo desconhecido como ele havia sido, e pudesse gerar o fruto da sua união que ainda levava inconscientemente no seu ventre. Então, quando ela tivesse consciência da semente da esperança que carregava dentro de si, entenderia que nem tudo estava perdido, e encontraria um nobre motivo para seguir adiante. A partir desse momento, ele estaria livre para partir e entregar-se ao sono eterno e inconsciente da consoladora amiga morte que permanecia à sua espera no manto infinito do vazio.

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Não Saia Agora

Mais uma Vez... Gustavo Suzuki

Viver é sofrer e sobreviver é encontrar um significado no sofrimento. Friedrich Nietzsche O peso de minhas pálpebras parece aumentar cada vez mais. A secreção, dura como pedra, me impede de abrir os olhos imediatamente. Como se eu quisesse mesmo abrir eles... Sei que a realidade dura me espera lá fora, fora de mim, fora desse meu sentimento de culpa. Mas por que me sinto culpado? O que eu fiz de errado? Eu apenas não quero mais estar aqui, lidar com isso, lidar comigo... Como cheguei nesse ponto? Era um jovem alegre e sempre rodeado de amigos, me conheciam como alma da festa! Sempre estava alegre e pronto para ajudar a todos que precisam! Eu tinha orgulho de como eu era, tinha mesmo! Mesmo colocando as necessidades dos outros á frente das minhas, eu sempre estava contente em ajudar. Mas, por que eu não me sinto mais bem comigo mesmo? Já não sou mais jovem, tenho meus 30 e poucos anos, já sou um “adulto formado”, mas sou um adulto bem diferente do que me imaginava quando mais jovem... Não tenho casa, não tenho carro, ainda vivendo com minha mãe. Acabei de perder meu emprego, isso tudo antes de acontecer o pior, esta maldita pandemia... Penso nas notícias, na política, nas pessoas que nunca mais vão voltar... Tudo isso dói. Mas nada dói mais do que eu abrir meus olhos, não quero enfrentar esse mundo cinza, não quero sentir o mal, o julgamento das pessoas, o preconceito, a dor, não quero a dor. Não. Mas apesar de tudo, preciso enfrentar isso... Forço mais um pouco, passo meus dedos pelos meus olhos, virandome de barriga pra cima esboço um esforço para abri-los. Raios de luz invadem minha janela criando sombras variadas. A luz da manhã desenha formatos lindos... Mas, por que eu não sinto nada? Tudo o que passei nestes últimos anos, em minha vida, a morte parece menos terrível quando se está cansado não é mesmo? E sim, estou cansado, muito!

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No mesmo ano perdi duas pessoas que me amavam muito, pessoas que cuidavam de mim, que torciam por mim! Parece que não tenho mais ninguém que quer meu bem nesse mundo. A pandemia que veio depois disso só piorou esses sentimentos. Mesmo se eu pudesse sair, lá fora não é mais seguro! E essa melancolia me assombra... Quero sair, me divertir com meus amigos, jogar novamente videogame como antigamente, quero me divertir de novo comigo. Mas não sei se é a falta de noção das pessoas esse dia me parece mais longe ainda. Elas não respeitam as medidas protetivas, e isso me deixa possesso! Mas esse ódio não me ajuda, infelizmente.. Ódio é uma palavra forte demais, dizem que as palavras têm poder, mas fico imaginando uma palavra melhor, talvez seja algo ao contrário do amor-próprio, um desgosto talvez? Uma não gratidão? E o motivo de sentir isso talvez seja a melhor maneira de identificar um nome justo para essa situação. Sinto-me inútil, sinto-me incompetente. Cara, não tá fácil isso meu irmão... Tudo o que vivi em minha vida me levou a este ponto, todas decisões, todos os erros e acertos (tudo bem que foram muito mais erros do que acertos né, mas ok!), mas eu nunca tinha desanimado a esse ponto, saca? Então o que eu posso fazer para resolver isso? Acabar com minha vida? É uma opção. Nada lá fora nesse mundo pandêmico me espera a não ser morte e pessoas que me odeiam! Mas mesmo assim eu reluto considerar isso, afinal, não sou exatamente um ser religioso, mas acredito que estamos aqui por um motivo, talvez eu ainda acredite que eu tenha um motivo! Lembro-me do sorriso das pessoas ao me verem em cima de um palco, ser considerado divertido, legal, isso acalenta meu coração de um jeito especial! Mas como vou sentir isso novamente se o mundo lá fora só escurece cada vez mais? Talvez eu tenha que resolver aqui, dentro de mim primeiro, lutar por mim! Ótimo, interessante, mas como começar? Entender que o amor-próprio é necessário, mas como todo tipo de amor ele é conquistado! O que eu já fiz de bom para me amar? Fiz pessoas sorrirem, ajudei algumas pessoas a não passar mais fome, ajudei amigos em situações que precisavam de ajuda, honrei minha família,

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Não Saia Agora

mesmo custando minha felicidade, lutei cada segundo para conquistar o meu amor... Não é bem algo heroico, mas isso conta... Acho... Não, não, eu tenho que ter certeza! Isso conta sim, eu tenho que acreditar nisso, eu tenho que me agarrar nisso, eu tenho... Ok, está decidido, vou lutar! E como já dizia uma frase que vi num post de Orkut num passado distante “O que não provoca minha morte faz com que eu fique mais forte.” Enfim levanto-me mais uma vez... Será que hoje terei um bom dia?

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Não Saia Agora

Quem sou eu

Jennifer Galmon

Fui acordada com um balde de água gelada e um soco no estômago. As pedras de gelo acertaram meu rosto e a água ardia minha pele. Desperta, o frio estendia até minha espinha e meu coração estava queria sair pela boca. Não sei o que está acontecendo e muito menos quem eu sou. O homem grande, esquisito com cigarro na boca ria enquanto me dava tapas no rosto para me despertar completamente. Minha vista embaçada foi retornando aos poucos e então pude visualizar um homem gordo, careca, com barba a fazer e um balde nas mãos. Jogou água em mim mais uma vez. Eu gritei de frio. — Bom dia, criança... — disse uma voz doce. Quando a água dos meus olhos se dissipou eu pude enxergar um homem loiro, olhos azuis e um rosto que misturava melancolia, desdém e satisfação. — Qual é seu nome? — perguntou o loiro com um tom mais doce e calmo. Meu nome? Eu comecei a ficar ofegante, eu não conseguia me lembrar quem eu era e muito menos o que eu estava fazendo aqui. Minha mente estava uma bagunça e por mais que eu tentasse lembrar, os cacos das memórias se misturavam e tudo parecia desconexo e sem sentido. Uma casa, uma mulher, um cachorro, meu Deus, soldados. Nada fazia sentido... — Eu... eu não... não sei... — balbuciei enquanto tentava juntar os pedaços. — Ótimo, bom começo. Tenha calma, no seu tempo. Não vamos nos ater a detalhes. — O homem tirou um chocolate do casaco branco, abriu e deu uma mordida. A partir de hoje você vai se chamar Pérola. Salvamos você do mundo externo, a pandemia destruiu 70% da nossa atmosfera e você foi salva pela nossa tecnologia. Estava com a COVID-19 A30 e quando a encontramos você estava numa pilha de corpos. Ou seja, não sabemos quem é você de verdade, e muito menos da onde você veio. Agora você precisa saber que você é uma paciente importante e está de quarentena.

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— Água gelada, pedras de gelo na minha cabeça, soco no meu estômago, estou amarrada numa cadeira. Pra mim isso tem outro nome... — Perfeito! Sua memória cognitiva está ótima. — O loiro bateu palma. — Acho que a doença atingiu apenas sua memória. Você será tratado no nosso núcleo de salvação intensiva. — Salvação... Mal terminei de pensar e levei um choque. Tudo se apagou, mas eu ainda os escutava num som abafado. A última coisa que ouvi foi a voz doce do loiro ordenando: preparem a transfusão. Essa é minha... *** Trabalhar para núcleo rebelde não tem sido fácil, os dias acordados e os momentos de tensão, me obrigam a tomar café cada vez mais. Eu nunca sei quando vou parar com uma bala na cabeça ou no fundo de um poço enquanto arrancam minhas unhas. Tudo ficou difícil depois que descobrimos a cura. O governo nos atacou como se fossemos o próprio diabo e a morte rondava cada corredor dos laboratórios. O vírus da COVID-19 tomou o mundo deixando nosso planeta em estado de Pandemia Mundial. E o mais assustador foi que esse evento avançou a biotecnologia de uma forma nunca vista antes, trinta anos em três. As pessoas contaminadas foram morrendo aos montes e com o tempo o vírus teve diversas manifestações de transmutação ficando impossível a cura e enquanto isso a biomedicina ia avançando e os virologistas mais importantes e sagrados. Era julho, muito frio, e estávamos na 30ª mutação, a chamamos de COVID-19 A30. A mutação mais perversa do vírus, morte cerebral com máxima capacidade motora. Ou seja, o individuo morria em três dias, mas continuava andando e sobrevivendo. Os resquícios de memória faziam o corpo continuar vivendo até que o cérebro apagava e as pessoas andavam a vagar como mortos-vivos. Nesse estado vegetativo o vírus se alastrava tão rápido que agora ele podia passar pelo ar. Por isso desenvolvemos as máscaras de carvão aditivado com uma propriedade de pureza e nano máquinas que conseguiam neutralizar o vírus antes de atingir os pulmões. No entanto, a máscara tinha um prazo de três horas de funcionamento. Foi o último objeto que eu entreguei para aquela jornalista antes dela desaparecer em Amparo, uma cidadezinha destruída do interior de São Paulo. Além da máscara ela estava com todas

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as pesquisas e os relatos de dias memoráveis quando tudo isso ainda estava começando. Eram casos, diários e contos de dias onde o vírus ainda era um bebê. Por sorte localizamos a jornalista em um dos armazéns dos militares em Campinas, pelo visto, a pequena Amparo não foi uma boa protetora e aquela mulher foi pega. O primeiro esquadrão explodiu a entrada principal e entramos com cautela para averiguar a situação. O ar lá dentro estava 100% puro, então nos dividimos para diminuir os danos nas estruturas e evitar que o ar de fora entrasse. É nessas horas que me arrependo de ter sido cientista pelo governo. Ser um soldado e intelectual é muito cansativo. Então fiquei sozinho com meu grupo, éramos em dez pessoas. Quando eu entrei em um dos laboratórios, fiquei muito assustado. Os médicos e militares estavam sem máscaras e não pareciam estar infectados. Os tiros ecoaram por todos os lados, não podíamos poupar ninguém, a não ser a nossa jornalista. Destruímos quase todos naquele laboratório, mas tivemos muitas perdas e no final éramos eu e mais dois. Explodimos a porta de uma sala cirúrgica, então a descobrimos. A nossa jornalista estava no meio de uma transfusão junto do general das forças armadas de uma base principal do estado. Ambos sem máscara alguma, isso me intrigou. Tiramos o general da maca e o levamos conosco. A jornalista estava bem, testamos negativo para a COVID-19 A30. Então pedi para testarem em alguns corpos e, por incrível que pareça, nenhum deles estava com o vírus. Salvamos a jornalista e então descobrimos toda a verdade. Há um ano os militares descobriram uma 31ª mutação. Eles conseguiram descobrir pessoas assintomáticas onde o vírus se mutou e se transformou num poderoso anticorpo livrando o individuo de qualquer tipo de doença existente. Foram chamados de “Limpadores”. Nossa jornalista era uma dessas. Estava saudável e estável. Mesmo ela testando positivo para a COVID-19, seu corpo não tinha nenhum sintoma e seus níveis de vitaminas estavam excelentes. Achamos mais quatro pessoas presas consideradas assintomáticas. Eles eram a cura. Pelos registros dos militares, uma transfusão de sangue limpava o vírus no indivíduo infectado e, ao mesmo tempo, criava super anticorpos que deixava as pessoas imunes de inúmeras doenças. Foram mais de oitocentas doenças testadas. Aquelas pessoas eram os ratos de laboratório do governo e também eram a vacina contra a COVID-19. Isso não podia sair dali.

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De modo inacreditável, as quatro pessoas que encontramos presas eram tipo sanguíneo A- e somente a jornalista era O+. Por isso essa pobre coitada tinha sido caçada nesse tempo todo. Então eu precisava fazer isso. Eu isolei a área e fiz com que os rebeldes se escondessem todos no centro da fortaleza. Com a ajuda de um outro amigo, explodimos tudo com uma bomba de núcleo superaquecido C754, destruímos todo mundo lá dentro. Não sobrou ninguém. Não dá pra sobreviver no calor do núcleo do sol, 27 milhões de graus. O mapa de campinas terá que ser remodelado futuramente. Onde estou? Bem, acho que a verdadeira pergunta é: Quem eu sou?

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