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O TELEFONE QUE TOCA
from Não Saia Agora
O TELEFONE QUE TOCA RODRIGO SANTOS
Depois de 23 anos, era a primeira vez que Léo morava sozinho. Filho único, tinha crescido cercado de todos os mimos possíveis. Sem rebeldia ou mágoa; a mãe era professora e o pai militar, sempre o trataram muito bem. Não precisou trabalhar quando terminou o Ensino Médio, pôde fazer cursinho e escolher o que cursar. A superfície desse mar de tranquilidade deu uma enrugada quando fez seu outing, ainda no primeiro período da universidade, mas nem de longe foi o trauma que ele achava que seria. Seu pai resistiu um pouco, mas era um cara de cabeça aberta e ia se adaptando como podia. Sua mãe lhe disse apenas “eu sempre soube”, com um abraço e um beijo, e assim as marolas não chegaram a sacudir o barco.
Agora, o estágio no escritório de advocacia caminhava para uma efetivação após a formatura, e Léo queria a experiência de ser dono do seu nariz. Queria liberdade, independência, tudo aquilo que morar sozinho representa — principalmente na cabeça de quem nunca morou sozinho.
Achou um apartamento no centro de Niterói, longe de sua casa em Icaraí, mas perto o suficiente para voltar caso algo desse errado. “Uma gracinha, Rob”, Léo disse para o namorado ao celular assim que ganhou a rua. Ele havia ficado apaixonado pelo apartamento.
Ainda bem. O lockdown total por causa da pandemia do novo vírus foi decretado um dia após a sua mudança. Quem podia, deveria trabalhar de casa para evitar a circulação na cidade e reduzir o contágio. Seus pais o haviam ajudado na mudança, mas agora teriam que ficar separados – seu pai era cardiopata e sua mãe tinha asma, os dois no grupo de risco.
Léo estava sozinho em seu apartamento. “Mas Léo, a gente pode aproveitar a oportunidade e ficarmos juntos”, “Não, Rob. Eu não saí de casa para casar, saí pra morar sozinho”. Estavam juntos não fazia seis meses, não fazia sentido juntarem as coisas agora – e nem Léo tinha certeza ainda de que era isso que queria. Não com Rob. — Enfim, só — disse, se jogando no sofá novo da Tok & Stok, e sorriu. Alguns móveis eram novos, outros herdados, mas a casa estava bem montada, com tudo o que ele precisava. Sofá, escritório — regime de home
office, por enquanto — mesa de jantar, geladeira, micro-ondas... Vinhos e taças.
Meia garrafa já tinha ido, e Léo ainda não tinha conseguido enviar todo o trabalho feito em casa. Esperando a instalação de telefone e internet, tinha que rotear o notebook pelo celular e usar a rede de dados. Uma porcaria, enfim.
Léo foi à cozinha buscar mais vinho. Quando voltou, o notebook estava fechado. “Estranho”, ele pensou, parado no portal com a taça na mão. Abriu o novamente o computador, e o upload tinha sido cancelado. “Será que eu fechei sem querer? Humpf.” Melhor dormir e não beber mais.
Quando estava quase dormindo, viu alguém passar para a cozinha. O apartamento era antigo, pé direito alto e cheio de sombras da rua. Mais uma vez o vinho ficou com a culpa, melhor dormir. No dia seguinte, a primeira coisa que Léo fez foi verificar o trabalho. Havia sido mandado, e recebido um outro tanto. “Não precisa de pressa, Leonardo”, dizia a chefe. Tá bom. Mensagem do Rob no celular de bom dia, ele era um fofo. Foi para a cozinha fazer o café, e lavar a louça do dia anterior enquanto fervia a água. Não deu falta da taça.
Passou quase a primeira semana inteira ligando do celular para a operadora de telefonia e para o provedor. Precisava de um telefone fixo — e muito mais da internet, que infelizmente teriam que ser contratados separadamente (“Não oferecemos este pacote na sua rua, senhor Leonardo”, “Mas do outro lado da rua tem!”). Certo que a operadora sempre foi pródiga em desculpas (e atendentes robotizados), mas agora, com a quarentena, trabalhava com equipe mínima apenas em serviços emergenciais. “Mas é uma emergência!”, Léo ainda argumentou, mas a atendente pediu calma, senhor, já está registrada a sua necessidade, o senhor gostaria de anotar o protocolo?
Na sexta buscou novamente o vinho. “Estranho, cadê a outra taça?”. Procurava atrás do sofá quando sua mãe ligou. “Não, mãe, está tudo bem, não preciso de nada”, “Seu pai falou que hoje vai passar o filme de guerra na TV”, “Mãe, não tenho TV a Cabo ainda, mãe. Não, internet também não”. Mensagem de Rob no celular, “Cadê você, boy?”. “Tá bom, mãe, beijo. Beijo no pai. Se cuida, sai de casa não, esse vírus não é só um resfriadinho não, tá? Não, mãe, não quero falar com o pai sobre OMS, beijos”.
Não Saia Agora
“Tô aqui, man” – pegou a taça que estava no armário mesmo. Namoro por chat, que derrota, “mas é o que tem pra hoje”.
O papo ia escalando entre “mostra mais”, “que saudade” e “ai que vergonha”, e já estava no vídeo, quando Léo escutou um barulho na cozinha. Vidro quebrando. “Peraí, man”, colocando sem jeito o calção e correndo pra cozinha.
A taça estava espatifada no chão, em frente à pia. Léo sentiu todos os poros do antebraço se abrirem como guelras, e uma pressão na nuca. Por que diabos essa taça foi parar ali? Olhou para a sala, a outra taça estava lá, pela metade, ao lado da garrafa do Chardonnay, a segunda. “O que foi, boy?” “Peraí, Roberto” “Ih, chamou pelo nome. Mixou nossa parada?” Léo não sabia o que responder. Olhou em volta devagar, com medo de encontrar alguém – ou alguma coisa – e não viu nada. “Respira, Léo, respira!”, ele disse baixinho. Nada. Pegou uma folha de papel na impressora (“Sabia que tinha esquecido de comprar a pá de lixo!”) e jogou em um saco plástico. Amarrou a boca, escreveu no papel CUIDADO LIXEIRO, VIDRO QUEBRADO e grampeou.
“Leléo... Você ainda está aí?” “Menino... Coração tá no fundo da boca! Aconteceu um lance aqui...” “Fundo da boca? Hmmmm...” “É sério, bobo!” Aos poucos Léo foi se acalmando. Terminou a sessão de namoro virtual e a garrafa de vinho. Na cama, segundos antes de cair no sono, teve a nítida impressão de que alguém o observava. Se cobriu com o edredom, tapando até a cara, e sentiu que alguém andava pelo quarto, chegando mesmo perto dele. “Reza, Léo, reza!”. Em vez disso, destapou com violência o rosto e olhou o quarto.
Nada. Sozinho, com as sombras que vinham da rua. Coração quase se rasgando pra fora, rezou até dormir.
“Senhor, o senhor quer anotar o protocolo?”, “Não quero protocolo, eu quero é a minha internet instalada hoje!”, “Senhor, mas hoje nossas esquipes estão-“
Dia pesado, uma porrada de processos pra escrever, e nada de internet nem telefone. Isso, claro, além do assombramento de toda hora olhar em volta. Em alguns momentos, parecia que algo lhe fugia pelo canto dos olhos. “É só impressão”, Léo se dizia. Até o fim da tarde.
Quando começou a escurecer, ele ainda estava debruçado sobre o computador, comendo as sobras do que pedira no almoço. “Sábado-feira”,
mas ele não podia nem reclamar, vários amigos tinham que sair às ruas, e alguns estagiários já tinham sido afastados pela medida do governo.
Quando virou para o lado e olhou para o portal que dava para a cozinha, viu a menina. Parecia ter seis, sete anos, Léo nunca foi bom em adivinhar idade de crianças. Vestia uma camisola branca que ia até o pé, tinha os cabelos pretos emaranhados que batiam nos ombros. Branca — branca até demais, olhos pretos, grandes. Léo congelou, e a menina sorriu.
Pelo menos duas horas se passaram naqueles segundos, até que a menina correu para dentro da cozinha, pra fora da visão de Léo. Ele se levantou com dificuldade, uma alegria danada nas pernas, mão no peito.
“Ei. Ei, menina!” — era pra ser mais forte, ele sabia. Mas a voz que conseguia emitir era débil, quase uma súplica. Pé ante pé, como se tivesse aprendido a andar ontem, ele foi. Mais curiosidade que coragem, é verdade. Mas foi. Assim como os segundos da visagem, cruzou centímetros quilometrais. Chegando na cozinha, nada.
Ele já esperava, claro. Mas talvez tivesse sido melhor se uma criança tivesse realmente invadido a sua casa, um filho do vizinho brincando de esconde-esconde, sei lá.
O telefone tocou alto no apartamento, e Léo deu um pulo. “Esses filhos das putas instalaram essa merda e não me avisaram!”
Correu e tirou do gancho. “Alô? Alô?” Do outro lado da linha, silêncio. “Alô? Quem está falando?”. “Desculpa, foi engano”. Uma voz de mulher, possivelmente já uma senhora. E desligou. Quando foi deitar, mais tarde, Léo ainda estava com palpitações. Decidiu não beber vinho naquela noite, e olhou a casa toda antes de dormir. Estava prestes a pegar no sono e ouviu uma risadinha fina, alegre. Mas o corpo já estava entregue, e ele nem se lembrava disso no dia seguinte. Os homens vieram cedo e instalaram a internet, e finalmente Léo tinha como mandar o trabalho com mais rapidez — porém também participar de reuniões virtuais, que achava um saco. Com o bônus de serviços de streaming, estava finalmente deitado na cama vendo sua série predileta no streaming quando o telefone tocou.
“Alô?” — ninguém falava nada. “Alô? Olha, se você ligou errado eu-“ “Oi...” — a mesma voz do outro dia. “Desculpa se está tarde, eu...” “Não, pode falar. Quem é?” “O senhor é o Leonardo? Que agora está morando no apartamento 403?” “Sim, mas a senhora é?” “Desculpa, meu filho...” e desligou. “Mulher maluca”, ele pensou, voltando pra série. Dois dias
Não Saia Agora
depois, ele viu a menina de novo. Sentado na cama de barriga pra cima, com o notebook no colo, ele conversava com Rob pelo Skype, quando ela apareceu. Não veio da porta (nem da cozinha, desta vez), foi como se estivesse deitada no pé de sua cama e se levantasse. Ele viu sua cabeça e seus cabelos emaranhados surgirem por trás da tela. E o mesmo sorriso. “Boy? Boy? Léo, o que foi?”
“Rob... É que...” Ela não sumiu, nem foi embora. Ficou olhando pra ele fixamente. O sorriso aumentando. “Léo!” Ele fechou o notebook, e com ele a voz de Roberto. A menina usava o mesmo vestido, a camisola branca de babados. Os braços pendidos ao lado do corpo.
“Você... Foi você que quebrou minha taça?” Tanta coisa pra dizer, e Léo só conseguiu pensar nisso. O sorriso da menina diminui devagar, até virar um beicinho. Quando ela estendeu a mão direita, segurava o pé quebrado da taça, e o sangue escorria de seus dedos. A boca de Léo se abriu em grito, mas nenhum som saiu dali. O telefone tocou, ele olhou para o aparelho e, quando olhou de novo, a menina não estava mais lá. “Alô?”
“Oi... Desculpa ligar a essa hora...” “Olha, senhora, eu estou muito ocupado!”, a voz de Léo tinha subido umas duas oitavas, quase em histeria. “Se a senhora for desligar, desligue logo!”
Após um breve momento de pausa, ela suspirou. “Senhor Leonardo... O senhor me desculpe... É que é difícil falar... Mas eu morava aí, neste apartamento...”
“No 403?” “Sim, no 403... Eu fui muito feliz aí, e agora o senhor mora aí...”
O olho de Léo estava grudado onde a menina havia estado, segundos atrás. Ele respirou fundo.
“Senhora, a senhora me desculpe, é que eu esta-“ “A minha filha está aí?” “Oi?!” — quase em soprano, e a ligação caiu. “Alô? Senhora?” Léo batia na tecla, e o telefone continuava mudo.
Agarrado com os joelhos, viu o dia vencer a noite e entrar pela janela com uma suavidade que não combinava com seus batimentos. Não queria contar pra mãe para não deixá- la mais preocupada, não queria contar pra Roberto pra que ele não questionasse a sua sanidade mental. Teve reunião pelo Skype com o pessoal do escritório pela manhã, e dormiu a tarde inteira.
Acordou com o telefone. Já era noite. “Alô! Fala comigo, por favor!” “Oi, Leonardo... Sou eu...” “Eu sei! O que aconteceu com sua filha?” “A gente morava aí... A gente era muito feliz, sabe? Ela era uma menina muito boazinha...”
“Qual é o seu nome, senhora? E qual o nome da menina? QUAL O NOME DELA!?” “O nome dela é Sara... Não faça nenhum mal, ela já sofreu o bastante.” Léo ouviu o choro vindo da cozinha. Largou o telefone e correu pra lá. Sara estava sentada no chão, com o rosto coberto pelas mãos, e seu corpo franzino sacudia a cada soluço.
“Sara...” — ele estendeu a mão, mas não passou disso. “Sara. O que aconteceu?” A menina tirou as mãos do rosto e levou à barriga, levantando o olhar para Léo. Estava sorrindo, mas um sorriso triste.
“Tenho dor...” — E soluçou, como que engasgada. De repente, começou a vomitar em golfadas. Sangue escuro, como borra de café, sobre seu vestido, seu colo.
Leonardo correu para o quarto e fechou a porta, arfando. Sara continuava chorando na cozinha. Ele colocou uma música alta, e cobriu a cabeça com o edredom, e ainda assim escutava os gemidos da menina. Ele chorou, rezou e pediu por sua mãe até dormir, como não fazia desde que tinha oito anos.
Sem poder perguntar para os vizinhos (mesmo se conhecesse algum deles, estavam em quarentena), tentou pesquisar na internet sobre o apartamento no dia seguinte. E no dia seguinte ao seguinte. Nada achou. Quando o telefone tocou, à noite, ele já sabia quem era.
“... ela era uma menina feliz, vivia rindo...” “Mas o que aconteceu, senhora?” “O senhor não maltrata ela não, ela não merece...” A mulher não contava. Ele sabia que a menina tinha morrido ali, de alguma maneira, e seu fantasma estava preso naquele apartamento.
Os dias se passavam, e Léo sempre via Sara pelo canto dos olhos. Ora ela estava sentada na sala brincando com uma boneca fofolete, ora passava correndo de um cômodo pra outro, mas quando ele olhava de novo, não estava mais lá.
A mãe ligava toda noite. “Ela adorava essa boneca fofolete”, ela disse um dia, quando Léo perguntou. Mas não contava da morte, falava apenas que a menina era um doce, era inteligente, esperta, carinhosa. Essas coisas de mãe.
Não Saia Agora
Léo já estava quase se acostumando a viver com um fantasma dentro de casa, quando um dia acordou com um grito. Um grito estridente, de cortar cirurgicamente cada fibra de coragem e de razão.
Ele correu para a cozinha, e Sara estava lá, chorando. “Sara, meu anjo...” Ela não olhou pra ele. “Eu quero minha mãe”, ela chorava. “Minha mãe...” “Sara, está tudo bem... Olha pra mim...” “Eu quero minha mãe...”
“Eu falei com ela no telefone, está tud-“ “MENTIRA!” — ela gritou, e quando levantou a cabeça, Léo viu o rosto de uma criança morta. Que fala.
“Sara. Sara!” — Ele não sabia o que dizer pra acalmar a meninafantasma. Então se lembrou da boneca. “Cadê aquela bonequinha bonita que você estava brincando?”
O telefone começou a tocar. O rosto da menina voltou aos poucos ao seu “normal”, com seus olhos negros grandes e seu sorriso quimérico. Ela então apontou para o armário da pia. Quando Léo olhou, ela se levantou e correu na direção dele. O susto fez com que o rapaz caísse sentado, mas o impacto não veio. A menina passou por dentro de seu corpo e sumiu.
O telefone tocava insistentemente agora. Léo se levantou e puxou o gancho, mas a mulher do outro lado da linha só chorava.
“O QUE ACONTECEU COM SUA FILHA!”, ele gritou, mas do fone saíam apenas gemidos e uivos de dor. “PELAMORDEDEUS, o que aconteceu com Sara!”
O telefone ficou mudo. Em um acesso de fúria, ele arrancou o aparelho da parede a varou do outro lado do quarto. Chorando, ligou pra Rob e contou tudo. “Amanhã eu vou aí, Léo. Calma. Eu sei, mas você precisa de mim. Procura se acalmar. Toma alguma coisa pra dormir.
Na manhã seguinte, ainda grogue por causa do remédio, lembrou de Sara apontando para o armário. Lá no fundo, ele achou um pacote.
Era a boneca fofolete, enrolada em um jornal. A notícia do jornal? Mãe e filha encontradas mortas em um apartamento do Centro de Niterói. Aparentemente, a mãe deu vidro moído para a menina comer — que morreu vomitando sangue — e depois cortou os pulsos com os cacos de uma taça de vinho. A bonequinha fofolete era azul, e sorria.
Leonardo acordou de seu torpor com o barulho do interfone. “Rob?” “Senhor Leonardo... Aqui é da telefônica. O senhor desculpe a demora, mas viemos finalmente instalar a linha do senhor. O aparelho está conectado à tomada?”