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Do lado de dentro
from Não Saia Agora
Do lado de dentro Juliana Rabelo
— Coragem. Você, mais cinco minutos. Cante sua canção. Vamos. Cante comigo. Bem baixinho para ela não ouvir. Isso. Muito bom. Agora temos que escolher outra. Ainda faltam dois minutos. Pronto. Pode abrir a porta.
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Estou ficando louca. Quem conversa com a própria consciência em terceira pessoa? Eu sei. Os loucos. E aqueles que foram encurralados ao extremo da razão, como eu.
Saio devagar. Olho pela janela e confirmo. Ela já se foi. Com a tesoura de unha na mão, passo em revista, cômodo por cômodo. A diferença entre a vida e a morte é sempre um ato banal que você fez. Ou que deixou de fazer. Alguém podia ter tirado o carro da garagem para ela, enquanto ela ficou escondida me esperando. Que situação imaginar isso da própria mãe, meu Deus.
Terminado o meu tour, me sento na cadeira da sala. Cubro o rosto com as mãos, e pelo quadragésimo sexto dia eu choro. Aprisionada no meu próprio lar. Sozinha. Sem acesso à televisão ou telefone. As portas trancadas. Sempre que posso olho pela janela, fechada com cadeado, em busca de uma alma bondosa. Mas as ruas estão vazias. Ontem vi minha vizinha de longe, e acenei. Mas ela estava andando tão rápido, e com o rosto todo coberto, que não me viu. Onde está todo mundo? Eu preciso de ajuda. Alguém precisa perceber o que a minha mãe está fazendo comigo.
Nem sempre foi assim. Ela me levava para o trabalho dela. Era legal. Ela trabalha em uma funerária. Faz a preparação dos mortos para que sejam honrados uma última vez pelos vivos. Um trabalho super importante, que ninguém quer fazer. Eu gosto. Não tenho nojo. Nem medo. Eles parecem dormir. Ela me deixava pôr os sapatos deles. Tudo deve estar belo e digno. Eu também gosto de arrumar as flores. Nesta época ela me amava. Mas tudo mudou. Não sei direito o porquê. Mas sei quando.
Foi no dia que ela me deixou presa dentro de um dos caixões. Eu estava esperando ela terminar o último cliente, sentada ao lado do caixão já preparado para alocar o seu corpo. Então ela ordenou:
— Entre e se deite. Agora!
Obedeci. Foi assim que ela me ensinou. Então ela cerrou subitamente a tampa. E colocou uma coroa em cima do vidro. Entrei em pânico. Não conseguia me mexer, como se eu já estivesse morta. Não conseguia nem fechar os olhos. Na penumbra eu olhava para o vidro e me via. E me sentia morrer conforme meu hálito o embaçava e eu desaparecia. Perdi a noção do tempo. Quando a luz voltou e vi a minha mãe, eu entendi. Ela queria me matar. Era apenas uma questão de tempo.
Como sempre minha mãe foi econômica nas palavras. — Me desculpe filha. Foi necessário.
E a partir do dia seguinte ela não me levou mais ao trabalho. Passou a me deixar sozinha, com as portas fechadas. Mas eu recebia visitas. Tenho alguns bons amigos de quem ela gosta. Sempre vinha alguém aqui. Conservamos, fazíamos exercícios, estudávamos. Um amigo para cada coisa que precisa ser feita. Só que de repente todo mundo deixou de vir. E eu comecei a ficar preocupada.
Ela também mudou. Passou a manter pelo menos uma distância de dois metros. E só falar comigo o mínimo, para me dar o meu remédio e a minha comida. Mas sempre de máscara, como se eu fosse contagiosa. Da primeira vez que ela fez isso eu entrei no quarto e chorei durante horas. Minha mãe não tem nojo dos mortos. Mas tem nojo de mim.
Quando finalmente tive coragem para sair do quarto, descobri que ela já não estava mais em casa, assim como a televisão e o computador. Todos haviam partido. Em cima da mesa só um bilhete.
“Minha filha: é para o seu bem. Estamos em quarentena, por causa da pandemia lembra? Virei para casa apenas para dormir e deixar a sua comida e os seus remédios do dia. Precisa ser assim, pois trabalho com os mortos e não quero contaminar você. Você também não pode sair de casa. Tirei a televisão para que você não fique vendo os telejornais o dia todo. Acredite em mim. É melhor assim. Um beijo.”
E assim ela assumiu que sou uma prisioneira. Por que ela me odeia tanto assim? Por que mereço ser enterrada em vida? Agora boba é ela, se acha que eu acreditei nesta história de pandemia e vírus mortal. Balela para que eu não procure ajuda com medo de morrer.
Demorei para conseguir começar a bolar um plano de fuga. Foi quando percebi que ela havia aumentado a dose dos meus remédios. Tenho um
Não Saia Agora
problema de saúde. Por isso não frequento a escola. Ia quando pequena, mas em algum momento parei. Os remédios estavam me deixando mole, sonolenta. Foi quando decidi parar de tomar. Escondida é claro. Aos poucos as coisas foram clareando e eu entendi tudo. Ela estava me dopando. Para que eu morresse assim devagar. Para que qualquer pessoa que me visse, mesmo de longe, acreditasse que fiquei louca e morri. Me matei com remédios. Ou cortei meus pulsos. Qualquer coisa fácil dela fazer comigo quase desacordada. Ninguém vem me ver. Ninguém iria questionar. Ela prepararia meu corpo na funerária e ninguém jamais desconfiaria de nada. O plano perfeito. Até eu descobrir.
Por isso parei de tomar os remédios. Não a vejo mais. Finjo o tempo todo que estou dormindo. Mas carrego a tesoura de unha sempre na mão fechada. Se ela chegar perto de mim para me machucar eu irei me defender. Treinei em um pedaço de fraldinha crua. A tesoura é pequena, mas capaz de furar bem a carne. — Agora chega de se lamuriar. Nós temos um plano, lembra? O tempo está passando, tic tac, tic tac .... Ela daqui a pouco vai voltar.
Está certo. Estamos trabalhando na porta. Desisti de tentar copiar a chave. Agora meu foco são as dobradiças. É mais difícil do que parece. Especialmente se você não tiver uma chave de fenda adequada. Mas eu raspei uma faca de cozinha no chão, num canto que está com uma pedra quebrada e fez uma quina, até ela ficar bem afiada. Agora uso para desatarraxar a porta da área de serviço. Eu sou inteligente, já tenho 17 anos. Fiz o teste. Botei uma cadeira na frente da porta. E esperei por três dias. Ela não mexeu na cadeira. Logo, não mexeu na porta. Logo, não vai perceber que eu estou arrancando as dobradiças. Só falta um parafuso. Tenho que terminar hoje.
Meu tempo se esgotou. Ontem ela trouxe para casa o seu kit de maquiagem. Eu vi escondido no quarto dela, durante a minha ronda. O que ela usa no trabalho. Sinal de que ela espera ter um defunto em casa para maquiar. Então a identidade da vítima é muito óbvia. Acelero meu processo. Consegui! Agora o mais difícil. Erguer a porta para ela se soltar. Tão pesada... Não tenho forças... — Vamos! Ouça, ela está estacionando na garagem!!! Temos o tempo dela abrir a porta e atravessar a sala! Eu não quero morrer! Não agora.
Com um grito abafado levanto a porta. Consigo que ela se desgrude da base! Encosto de qualquer jeito na parede. E saio do quintal. Para onde correr agora? Nesta hora ouço ela empurrando a porta atrás de mim. E gritando. — Minha filha, onde está você? Volte aqui! Você não pode ficar na rua!
Congelo sob o som da sua voz. É maior que eu. Me volto para trás lentamente. Ela já me viu. Caminha em minha direção. Nesta hora estendo a tesoura. Está na hora de inverter este jogo. — Filha o que é isso? Uma tesoura? Me dê querida. — Não. — Filha! Estou mandando que me dê esta tesoura. — Não dou. Não vou deixar você encostar em mim. — Do que você está falando filha? Me dê esta tesoura, por favor... — Eu já entendi tudo. Você não me ama. Você é má. Você me aprisionou. Você quer me matar. Mas eu sou mais esperta que você. E mais forte. Eu não vou morrer. — Minha filha você não está tomando seus remédios?! Meu Deus!
Ela cobre o rosto desesperada. Agora ela entendeu que eu estou livre. E forte. — Minha filha, calma. Volte para dentro vamos conversar — ela fala agora devagar e doce.
A fingida. Enquanto se aproxima de mim. Mais fingida ainda sou eu, fazendo cara de boazinha... — Eu vou ligar para o Dr. Ricardo. Tudo irá se resolver. Olhe só, já está chamando, ele mora a duas casas, daqui a pouco ele chega. Venha comigo...
Quando ela encosta em mim, eu desfiro o golpe. Com força, como treinei. Pega bem na carne do seu braço. Ela grita alto de dor. Ouço Ricardo ao telefone — Alô? Mara?!
Golpeio de novo. Agora na perna. Ela cai.
Então ela chega. A hora em que eu erro. Como eu disse antes “a diferença entre a vida e a morte é sempre um ato banal que você fez.” Eu quis olhar nos olhos dela uma última vez.
O sangue já havia encharcado sua roupa. Ela estava deitada na grama de forma largada, como um defunto que ninguém quis arrumar. Ela respira
Não Saia Agora
com dificuldade. Eu sou humana. Não sou ma. Ela é. Não posso deixar ela morrer assim, sem a dignidade que ela dedicou a tantos outros mortos.
Me sento ao seu lado. Endireito o seu corpo. Ela geme, mas não reage. Já está quase lá. Arrumo o seu cabelo, tirando do seu rosto. Olho nos seus olhos onde só resta um fiado de luz, esperando a hora de fechá-los. Quero que ela se vá olhando para mim.
Então sinto a agulhada forte no meu pescoço desprotegido. E num instante tudo se apaga. Mas não antes de ouvir minha consciência dizer: — Sua fraca! Você só precisava ter deixado ela para trás. Agora morreremos. Nós duas.