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Eles Já Estavam lá
from Não Saia Agora
Eles Já Estavam lá Rodrigo Santos
A culpa não é dos cachorros, sabe? Aliás, quem tem culpa nessa história? Acredito que nenhuma parte dela caiba aos cães.
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Eles estavam lá, como sempre estiveram. Emoldurados na paisagem urbana, se alimentando de sobras de comida e de um pouco carinho por aí. Então veio a quarentena, humanos trancafiados em casa por meses devido a uma nova doença, então a coisa degringolou em uma escalada surpreendente. Sem sobras ou afagos, os cachorros da rua começaram a ter que buscar a sua comida. As sobras das entregas não eram suficientes. Cadê o potinho com ração? O garfo raspado no prato?
Caramelos, malhados, barbudinhos, todos a vagar, famintos. Aqui em São Gonçalo começou com um barbudinho. Caolho, assim ele era conhecido pelos lojistas da Rua da Feira. Andando por aqui e por ali, brigando com outros cães menores, ele era o vira-lata alfa da região. Cara de mau, principalmente por causa do olho semifechado que lhe garantia o apelido, intimidava os outros cachorros e algumas crianças. Ele esperou, o danado do Caolho.
Seu Jair acordou seis e meia, não acreditava nessa história de grupo de risco, todo mundo um dia ia morrer mesmo, né? “Papai, você tem que ficar em casa, esse vírus é mortal para os idosos!” dizia seu filho. Logo ele, militar da reserva, com histórico de atleta? “Eu sei me cuidar, minha filha.” Sem máscara, claro.
Foi só seu Jair sair da padaria pro Caolho ir atrás. Antes que chegasse na primeira esquina, o primeiro ataque foi no saco plástico, que chegava a se enrugar com a temperatura do pão, recém-saído do forno. — Sai daqui, miserável! — Seu Jair sacudia o saco de pão pra afastar Caolho, que recuou momentaneamente. Porém... Fome, né? Uma das três forças ancestrais, que une todos os seres vivos.
Caolho avançou no saco de novo, o velho puxou. Caolho latiu, e apareceram um caramelo e um pequenininho que lembrava um Yorkshire. Seu Jair olhou para o lado, e comentou com o vento, como se esse fosse um bom interlocutor: “Agora você vê, é gangue de cachorro, isso?”
O Caramelo avançou, seu Jair ameaçou um chute, mas o Falso Yorkshire foi no tornozelo da perna base. O velho gritou, e o Caolho avançou. Pão que nada, o cheiro do sangue. Caolho mordeu primeiro a canela seca da perna que o chutou, por puro despeito. O gosto de ferrugem na língua, a promessa da carne. Narinas e pupilas se dilataram, e os três cachorros atacavam de uma vez só. Seu Jair não conseguiu mais ficar em pé (apesar de seu histórico de atleta), e foi ao chão. Bateu com os cotovelos na calçada, o saco de pão se arrebentou, e os cachorros atacaram. O velho gritava e esperneava, mas Caolho insistia no buraco já aberto na canela. O Caramelo, até agora na contenção, avançou na bocarra aberta do velho, arrancando o lábio inferior e um pedaço da bochecha. Outros cachorros apareceram, saídos de becos e terrenos baldios. A coisa toda foi muito rápida, e quando o dono da padaria saiu para ver o que acontecia, não teve muito o que fazer. O corpo de Seu Jair servia de refeição para sete ou oito vira-latas, que levantavam seus focinhos molhados de sangue apenas para rosnarem um com outro. Foi difícil dispersar o bando, quatro ou cinco homens com gritos, e paus e pedras, claro.
Cães feridos em debandada, semblantes chocados e o cadáver do velho, retalhado, no chão. O fato isolado em si já seria uma catástrofe. Na capa do jornal local e nos grupos de mensagens, a foto do plástico preto e alguns transeuntes, poucos, de máscara a observarem a cena. “Isso nunca aconteceu por aqui”, “Aquele pretinho a gente chamava até de Gabigol!”, eram as aspas dos munícipes, traumatizados. Mas o mal não anda só, não é? Seu Jair, enterrado no cemitério São Miguel, tinha contraído o vírus mortal antes de sofrer a blitz doguínea. Mesmo sob estrita vigilância da família em casa, saía escondido para jogar sueca na praça, o desgraçado.
O Seu Marinho — parceiro de longa data, suboficial da reserva da Marinha — até usava máscara e faceshield (que tara de sueca, não é não?), mas eles não imaginavam que as mãos que cortavam ouros, paus, copas e espadas também distribuíam a doença. E os cachorros, os que primeiro se alimentaram da carne dura do velho Jair, também haviam se contaminado.
Não dá pra dizer se o chamado da natureza predatória ajudou (o lobo ancestral contido em cada Totó, em cada Princesa), mas é certo que o vírus agiu diferente nos cães. Eles se tornaram mais agressivos, mais famintos. Dois dias depois, a matilha do Caolho atacou uma mãe e uma criança na praça. E um vendedor de panos de prato. O entregador da farmácia,
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derrubado de sua bicicleta. Por toda a cidade, gangues rivais de cães se enfrentavam, praticavam agora inclusive o canibalismo. O Falso Yorkshire mesmo, coitado, foi vitimado em um embate com cães rivais, da Praça Zé Garoto. Os territórios eram loteados, a patrulhados por vira-latas de olhos vermelhos e sede de sangue. Os cachorros de casa — shi-tzus, salsichas, poodles e pugs — pegavam a doença e atacavam seus donos, então abriramse os portões e a liberdade sangrenta os abraçou. Alguns humanos foram atacados e sobreviveram, porém, a contaminação do vírus modificado era devastadora. Além dos sintomas respiratórios, a doença atacava o sistema circulatório. Quem era mordido, não durava três dias. O sangue virava uma borra, e a pessoa morria de parada cardíaca, não sem antes verter sangue pelos olhos, ouvidos e outros buracos menos nobres.
As tentativas de repressão foram inócuas. Ainda precisávamos ficar em casa por causa da doença. A prefeitura tentou veneno, mas os animais não comeram. Ou percebiam o veneno, ou agora só queriam comida que sangrasse. Relatos de invasões a casas, e teve gente matando cachorro a tiro. Os animais abatidos eram devorados pelos outros, no meio da rua. Não era uma coisa bonita de se ver. Nos dias de sol, o cheiro de carniça atraía outros animais, e o vírus modificado — selvagem, voraz — se espalhava no reino animal. Urubus, gatos. Ratos. Ratos são realmente um grande problema.
Há mais ou menos um mês, a comunidade científica internacional, em um trabalho conjunto inédito, conseguiu achar a vacina para o vírus que acometia os humanos. No momento, o resto do mundo retoma aos poucos a vida normal: governos em uma luta incessante para a recuperação da economia, pessoas se abraçando à beira da praia, fanfarras e cirandas. Campeonatos esportivos. Menos aqui. O Brasil é zona proibida. Não houve como conter a contaminação dos animais; quanto mais rígidas as barreiras, mais casos isolados brotam em diferentes regiões (ratos são mesmo um problema, juntos às aves de rapina). Agora, estamos todos trancados em casa, sem comunicação física com o exterior. Ralos vedados, janelas trancadas. Olho pela janela e vejo um falcão comendo o olho gelatinoso de um cachorro inchado, vísceras expostas. Tenho quase certeza de outro dia eu vi uma onça. Carregando um braço.