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OS QUE AMAM SOBREVIVEM: Uma carta sobre a infecção
from Não Saia Agora
Não Saia Agora
OS QUE AMAM SOBREVIVEM: Uma carta sobre a infecção Kaique Cesar
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12 de junho de 2020
Na verdade, não sei bem ao certo se este é o dia de hoje, já me perdi nesta quarentena... Faz alguns meses que o mundo ruiu.
Olá!
Como você está? Espero que bem.
Espero que esta carta alcance alguém, espero que eu não esteja escrevendo em vão. Para muitos, o ruim desta quarentena interminável está em ficar preso dentro de casa, para outros está em andar lá fora e correr os riscos, mas para mim está dentro de minha mente, ou era isso que eu achava. Desde o início destes dias evitei abrir a porta, pois eu sei que algo sem forma e sem face se escondia lá fora, os noticiários só mencionavam as tragédias e cada programa que eu assistia o perigo parecia mais eminente. De alguma forma essa doença não mata somente, ela muda a pessoa, ela traz à tona o que cada um é!
Uns têm odiado os outros, desprezando a vida de forma deliberada, odeiam animais, odeiam seres humanos, as etnias, as opções, as deficiências e até os empregos, sinto como se o respeito e a empatia estivesse morrendo, como se o amor se esfriasse no mundo, como se esse sentimento estivesse infectado.
Eu moro no terceiro andar do prédio onde você pegou esta carta pendurada, pois é, só consegui deixar em frente mesmo, gostaria de ter enviado para um amigo já que não tenho família, mas minha condição não me permite sair muito de casa e, além disso, não quero esbarrar com uma daquelas coisas.
É, meu colega, nem me apresentei. Que educação a minha. Meu nome é Tuam, em latim significa “Seu” o que é engraçado, pois não pertenço a ninguém. Em malaio, Tuam é qualquer calor que é demarcado em partes inflamatórias ou dolorosas. Sou quase uma doença. Isto é engraçado, pois, às vezes, me sinto assim, me sinto como um mal que as pessoas aturam, acelerado, nauseado, taquicardíaco, com medo, os médicos dizem que
tenho transtorno de ansiedade e algo a mais, ou seja, minha cabeça é quebrada. Fico feliz que ainda está lendo a carta de um estranho, sinal que o seu amor ainda não foi infectado. Então, colega, te deixo um conselho: muito cuidado ao andar por aí, o álcool ou as máscaras ajudam contra o vírus, mas não contra o que vem com ele, algo do mau, que te cega e a partir de seu contato você não olha para o próximo como antes, todos são só mais um número e como números são sem vida, você não valoriza a vida, você perde o amor. Talvez você não acredite, mas eu vejo o mau que se espalha, uma névoa negra que envenena a alma das pessoas, as vezes ela vem e traz a mentira, outra ela aflora a ganância, talvez você a chame de demônio ou de uma força alienígena, um ser elementar ou sei lá o que, mas ela está aqui, ela está aí agora ao seu lado enquanto você lê minha carta.
Colega, eu não sei como me manter são e até questiono minha sanidade, mas eu sei que isso existe e pegou carona nessa pandemia, alguns me chamariam de sensitivo, mas desde o início eu sabia que a coisa ia ficar feia. Às vezes, na madrugada, eu os escuto sussurrando pelas ruas, manchas negras que pairam sobre as pessoas, algo de ruim foi liberado, não sei de onde ou o porquê, mas eu sei que este surto não é normal. Sabe, eu decidi deixar esta carta para alguém, pois eu vi essa coisa rondando minha casa, eu não estou doente nem nada, mas meu vizinho está e não é de um vírus, nem sequer tossiu, ele está doente do mau, aquela mancha negra o tocou, ele profere palavras ruins, espanca sua mulher, odeia o seu filho e blasfema, pois usa o nome Divino acima de tudo. Tento pensar que a sombra ao te tocar faz isso, mas imagino se o ódio já não está dentro destas pessoas.
Talvez esse mal esteja rondando porque Deus quis, talvez ele tenha visto que a humanidade sim é uma praga. Eu não sou religioso nem nada, mas minha mãe dizia que no fim dos tempos o amor de muitos se esfriaria, que viriam doenças e pragas, talvez estejamos vivendo isso, ou talvez seja só a mãe natureza nos dando o troco com a ajuda de algum ser nefasto. Não sei, só sei que estou muito cansado para continuar, enquanto eu escrevia esta carta ela andava pelos corredores do prédio. Mas não permitirei que ela me pegue. Obrigado por ler a minha carta colega, espero que você fique bem, espero que viva e que após isso tudo, o mundo tenha pessoas melhores ou então não aprendemos nada da vida. Fique vivo, lute contra, resista por mais difícil que seja.
Não permita que o seu amor seja infectado!
Tuam