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Ao Entardecer de Cada Dia
from Não Saia Agora
Ao Entardecer de Cada Dia Talya Maura
15 de julho de 2025
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O mundo deixou de ser o que era há cinco anos.... Nesse período, eu tinha 16 anos, com uma ótima família, sonhos — como de prestar a graduação de relações internacionais fora do país — bons amigos, entre outros privilégios que qualquer adolescente da minha idade sonharia.
Agora, me encontro num velho prédio alto espelhado, vivendo dentro do seu subsolo que é amplo e seguro o suficiente para me proteger das criaturas que um dia já foram humanas. Ah! Também não posso esquecer que tenho uma pequena companheira de oito anos, mas bem mais esperta do que eu. Seu nome é Alane, ela tem cabelos castanhos como a terra e olhos tão vivos quanto gotas d´água sob uma folha. Também temos, Lily, uma cadela da raça doberman que adotamos nas nossas caças. Ela também é muito esperta e sagaz. Com elas não me sinto tão solitária, apesar das lembranças do início de tudo ainda me assombrarem, e que sei, que irão me perseguir a vida toda. — Carlaaa, a Lily achou alguma coisa na porta de entrada — gritava freneticamente, Alane. — Já vou! — Bom agora precisarei encerrar esse pequeno trecho do diário, até qualquer dia, se eu conseguir escrever novamente. — O que você acha que é? – A curiosidade de Alane era extremamente irritante às vezes.
Ela sabia do risco que as criaturas traziam, mas ela queria entender mais como tudo se deu e o porquê de as pessoas terem virado as criaturas de corpos envergados e que agora são quadrúpedes. É complicado. As coisas evoluíram de uma forma muito rápida e descontrolada, e assim, me encontro inventando histórias, que não sei explicar, de uma forma simples de que não voltaremos ao normal e que somos as únicas coisas vivas bípedes descendentes dos homos. E se houver outros de nós, acabaram declinando ao seu apogeu como os demais. — Fique atrás de mim, Alane. Não sei o que tem atrás da porta e isso pode ser muito perigoso. Sabe como as criaturas são muito rápidas.
Ela me obedeceu e se afastou. Comecei a abrir a porta devagar. Estava com uma pistola na mão, enquanto me encostava um pouco na porta entreaberta. Não escutava som de passos e não sabia onde estava a cadela. Resolvi abrir com tudo.
Nada. Exceto por um rato morto em estado avançado de putrefação. Para vocês, pode parecer besteira e só bastaria pegar o animal e o jogar fora, mas aquele pequeno cadáver, pelo seu cheiro forte e nauseante, pode acabar entregando nossa localização.
Corri até o outro lado do subsolo e peguei um galão de gasolina, joguei no cadáver e atei fogo com um isqueiro velho. O cheiro de fumaça, por algum motivo, deixa as criaturas nauseadas, por isso, no início, usávamos o fogo para afastar as criaturas, mas o vírus sofre mutações muito rápido, e apesar do fogo ainda ser uma fraqueza, a velocidade e a inteligência se desenvolveu muito rápido. O que causou nossa queda.
Depois do ocorrido, saímos a procura de suprimentos no mercadinho mais próximo. Estava fazendo muito frio e os meus pés doíam, afinal, andávamos quase todos os dias, uma média de 2 km por duas vezes na semana, sendo que logo precisaríamos nos mudar de onde estávamos, e por justamente ter explorado toda aquela área. Mas ainda não fazia a menor ideia de onde começar. — Carla, já são meio-dia, precisamos andar rápido!!
Poucos alimentos estavam disponíveis essa semana. Laticínios, carnes e frutas já tinham se estragado por completo e só nos restavam poucos embutidos e processados. Peguei o que podia e que também cabia dentro da mochila. — Alane, já pegou tudo que precisávamos? — Silêncio. — Alane?
Andei devagar até Alane para entender o que estava acontecendo. Ela estava do outro lado do mercadinho. Parada e silenciosa, como se estivesse num tipo de paralisia.
Dobrei mais um corredor até chegar a ela. Fiquei atrás dela quando percebi que por trás da janela da porta de entrada havia uma das criaturas, que pelo visto, estava tentando se alimentar, mas sem sucesso. Isso era mal, muito mal...
Peguei Alane pela mãozinha e fiz gesto de “shhhh” assim que me virei para ela.
Consentiu. Já estava acostumada aquela situação, porém, dessa vez foi diferente. Nunca encontramos uma das criaturas dentro das cidades.
Não Saia Agora
Quando houve o surto, era comum elas zanzarem pela cidade, estava no início da pandemia, mas depois da destruição completa, a maioria se retirou para fora das cidades, sendo a mata seu habitat preferido. Por isso era muito estranho ver elas pela cidade. Fazia 2 anos desde a chacina e um ano se escondendo deles.
Mas não era momento de pensar sobre isso. Comecei a andar devagar com Alane até a janela dos fundos do mercadinho. Era um lugar bem pequeno, mas aquele caminhar me doía na alma, porque parecia que não tinha fim, até eu ouvir a porta da frente bater. Parei de imediato porque a criatura entrou. O medo chegava a engasgar e prender nossa respiração, e novamente, puxei minha pequena companheira para trás, de modo mais lento possível e fazendo sinal que ela tapasse a boca com as mãos. A criatura se encontrava do outro lado da prateleira de comida. Um passo errado e nosso fim estaria ali.
A janela dos fundos que seria nossa rota de fuga agora estava sendo “bisbilhotada” pela criatura. O pânico agora inundava meu corpo de uma forma que não sabia explicar, mas o pior ainda estava por vir. Seguimos então, lentamente, para a porta de frente, mas havia mais três criaturas a procura de comida. Estávamos cercadas.
Peguei minha mochila — e agradeci a Deus não sei quantas vezes por esse dia, pois essa mochila não era de zíper e sim de cordão, como se fosse um saco — e procurei por qualquer coisa que pudesse chamar a atenção da criatura que estava dentro do mercadinho. Revirei, revirei, até encontrar um ioiô que meu pai tinha me dado e eu o considerava da sorte. Era a última lembrança que tinha da minha família... mas se eu durasse mais tempo ali, não teria um final agradável. Então tracei um plano louco.
Através da linguagem de sinais, pedi a Alane que assim que eu abrisse um pouco da porta e jogasse o ioiô diretamente na lata de lixo que tinha noutro lado da rua, correríamos como se não houvesse amanhã. Ela consentiu. Então abri vagarosamente a porta da frente, numa abertura suficiente que passasse o pequeno objeto, observei se as criaturas ainda estavam distraídas. Ainda estavam, e joguei ele com toda a força que tinha na lata de lixo.
O barulho foi estridente. Não sabia se era o termo certo, mas fazia muito tempo que não sabia o que era um som que afetasse suficientemente os decibéis dos meus ouvidos, então aquele som era quase que uma novidade para mim.
Em seguida, tudo aconteceu muito rápido: assim que joguei o ioiô, puxei o braço de Alane, e nós que nos encontrávamos atrás da última prateleira, corremos para a janela dos fundos a criatura já tinha dado um salto e corria em direção da porta da frente, porém, enquanto subíamos a janela, acabei derrubando um vaso que nem sequer tinha avistado ao lado do caixa. Assim que ele caiu, umas das bestas percebeu e começou a ir em nossa direção.
Do outro lado da janela, eu e Alane corríamos o máximo que podíamos, porém, a criatura era muito mais rápida e conseguiu pular em mim, mas antes, tinha me virado quando percebi que estava se aproximando. Levantei os braços e os dobrei e coloquei abaixo do seu pescoço. Eu nunca tinha olhado uma tão de perto. Seu rosto era alongado, maxilar estreito, olhos esbugalhados e com pupilas muito dilatadas, narinas muito grandes e seus dentes eram longos. Em todo o seu corpo não havia pelos, a pele era lisa e delicada, mas compensava nas garras.
Estava perdendo forças e cada segundo que passava a criatura se aproximava mais e mais. Não ia aguentar mais, até...
Vi um risco preto atravessar minha visão. Era Lily. Ela o atacou diretamente no rosto e saíram rolando e uma briga de vida ou morte tinha começado.
Alane correu até minha direção e falou que tinha a desamarrado para me ajudar. Fiquei louca quando ela terminou a frase: — Por que você fez isso? Ela pode matar a Lily. É isso que você quer?! — Eu fiz isso porque não sabia o que fazer para te ajudar e não queria te perder, IDIOTA”
Seus gritos e suas lágrimas percorriam por todo o meu consciente, fazendo me lembrar das últimas frases da minha mãe, quando ela se sacrificou para me salvar: “eu que não posso perder você, Carl... por todos os erros que cometi, estou pagando por eles, mas você precisa continuar... SOBREVIVA. ”
E naquela tarde, Lily deu seu último suspiro assim como a criatura.
Não Saia Agora
30 de julho de 2025
Lily conseguiu matar a criatura, porém, antes de conseguirmos comemorar, a criatura conseguiu reunir forças e atacou diretamente o pescoço de Lily. O cravar dos dentes da criatura foi o suficiente para levar nossa alegria diária. Quando a vida de ambas foi devidamente jazida dos seus corpos, só fizemos embrulhar o corpo de Lily e a levei nas costas. Era pesada, mas as criaturas estavam se aproximando, peguei Alane pelo braço e saímos cuidadosamente de volta a estrada.
Andamos pela estrada, silenciosamente, o clima ficou estranho depois da morte da Lily. Convivíamos só um ano, mas pareciam anos de convivência, uma família...o pior é que nem podíamos chorar por nossos mortos.
Ao caminhar, Alane dizia que a Lily estava se mexendo atrás de mim. Disse que parasse com brincadeira, o momento não era oportuno, mas daí também comecei a sentir algo se mexendo nas minhas costas. Tirei a Lily que estava amarrada num lençol que sempre levo para que Alane não pegue chuva e o arremessei no chão. Meus olhos viam, mas não queriam processar a imagem que estava ali se formando...
Lily estava se debruçando dentro do lençol e estava tentando sair daquele labirinto estreito. Sua boca se abria diversas vezes, estava tentando rasgar o lençol. Ela estava se transformando em uma das criaturas.
E pior que fazia sentido. O vírus que extinguiu a humanidade era o da raiva! Que passou por uma mutação extremamente volátil e quase impossível de ser controlada. Era tão letal quanto a AIDS, pois levava o infectado a morte em uma semana e tão contagiosa quanto a COVID-19, só bastava um único espirro e o contágio era certo.
Entretanto, havia uma característica que nenhum desses vírus possuía: a transformação. Primeiro, o infectado começa a lacrimejar pelos olhos, depois começa a suar muito e em seguida esmorece de fraqueza. Três dias depois, apresenta um comportamento violento e perigoso, o que torna esse vírus totalmente atípico dos demais — a violência — e nos últimos, apresenta os sintomas normais de uma gripe — febre, vômito, diarreia, insuficiência respiratória e logo após a morte. Não se sabe bem como a morte se dá, se é pela insuficiência respiratória ou pela diminuição do sistema imunológico.
As pesquisas não conseguiram avançar como deveriam, devido à mutação e muito menos deu para observar a evolução desse vírus em indivíduos. Mesmo que estes sejam próximos a você... sim, o primeiro pesquisador a estudar o vírus RAW-1 — assim ficou conhecido — foi meu pai e também foi o primeiro a ser contaminado e dar início do contágio e bem... agora vocês sabem como minha família morreu.
Entretanto, me vejo em outra situação delicada – a transformação de Lily – precisava matá-la, mas não queria que Alane visse a cena. Peguei no meu braço esquerdo com força e o apertei forte o suficiente até Alane tocar no bolso da minha calça e olhar para mim. Seus olhos eram tristeza, mas que já havia aceitado o seu destino e balançou com a cabeça.
Peguei uma pedra próxima de uma árvore e levantei ela com dificuldade, mas o suficiente que atingisse Lily sem deixar ela sofrendo. A agradeci e assim o fiz.
Tempos complicados, baby.
Acordei cedo, estávamos dormindo numa loja de brinquedos, porque Alane queria ficar abraçada a um ursinho. Ela disse que seria o nosso novo companheiro e que a ajudaria consolar pela morte de Lily e dos pais dela. Eu fiquei em silêncio. Não cabia a mim julgá-la, já fiz coisa pior, então peguei minha gaita, que era uma das poucas coisas que me restava e que mantinha minha sanidade e comecei a tocar.
Meu cabelo ruivo estava sem cor e brilho, e meus óculos estavam muito sujos e embaçados. Eu queria tanto chorar, mas nem para isso conseguia ter forças. Primeiro, porque prometi a mamãe que me manteria viva e segundo, não queria que Alane ficasse triste. Ela também era a única coisa que tinha. E já estava tarde, hora de sairmos. — Alane, precisamos ir! — Ok!!
Andamos pelas estradas desertas. Enquanto caminhávamos, lembrei porque não fui contaminada igual aos meus pais. Na época, três dias antes da minha vida virar de cabeça para baixo, estava passando uns dias com a minha avó que morava perto do colégio onde estudava. Ela me ajudava a escapar de “fininho” às vezes e era a única que sabia que namorava escondido. O nome dele era Diego, parecia um menino Tumblr e era bem
Não Saia Agora
bonito. Ele dizia que gostava de mim. Não sabia como, mas gostava e tinha também minha melhor amiga, Laura, que me ajudava ainda mais a sair de “fininho” para me encontrar com Diego. Nesse período estávamos reunidos para comemorar a admissão de Laura na faculdade de Engenharia Naval na UFRJ. Ela ia me deixar, acho que começou dali a minha falta de sensibilidade de chorar.
Não veria mais os olhos verdes e delicados de Laura, nem o sorriso gentil da minha avó e nem o abraço aconchegante de Diego, nem a seriedade dos meus pais que chegaram naquele dia.... meu pai enlouquecido atacando o pescoço de Diego e matando a Laura com uma peixeira. Só me salvei, porque minha mãe me escondeu dentro de um suíte no quarto da minha avó e me pediu que assim que ela fechasse a porta, pulasse a janela e não olhasse para trás e que fosse em casa que teria um roteiro de fuga e como me esconder das criaturas. Ela não sabia se daria certo, mas foi o melhor que pensou. Queria dizer a ela que deu muito certo...
— Carla, você já percebeu que toda vez que nos mudamos é sempre no final de uma tarde, exatamente as 17:00 horas? — Nem tinha reparado. — É! Desde que a Lily faleceu nós sempre nos mudamos ao final da tarde às cinco horas e falta 20 minutos para encontrarmos onde será nosso esconderijo. — E como sabe que já encontramos o nosso próximo esconderijo? — Bom, observando a Lily, ela sempre ia para lugares grandes e que tinham comida, como aquele mercado logo ali e ele é bem seguro. E também, porque as criaturas estão chegando. — Como sabe que as criaturas estão chegando? — Porque no dia que a Lily morreu, antes de sairmos, aquele rato morto, não morreu por morrer, sabe? Ele foi trazido por uma das criaturas e jogado perto de onde a gente mora, Lily só o pegou e trouxe. — E você só me avisa agora? Alane, isso é sério, isso sugere que estamos sendo seguidas desde que saímos dali! Sabe o que pode... — Mas fique calma! Lily vai nos proteger naquele mercado grande ali, junto aos nossos pais e quem sabe não encontramos armas.
A calma e serenidade de Alane me deixava nervosa, mas também confiante, mesmo sendo interrompida. Resolvi deixar meu medo de lado.
Não estava sozinha, tinha uma companheira esperta e forte comigo, por isso não há o que temer.
E assim, seguimos até o mercado. Não sabemos se viveríamos até amanhã, porém, enquanto ela ainda estivesse do meu lado, não iria temer mal algum.
E de mãos dadas seguimos e que fosse o que fosse, até o entardecer daquele dia.