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Semente do Recomeço

Semente do Recomeço Heverson de Souza e Costa

O que lhe congelava os ossos não era o medo do que podia acontecer, mas o pavor de enfrentar a realidade. Sobre a mesa de centro da sala o álbum de casamento era a lembrança mais sólida de um sonho que parecia eterno, mas que inexplicavelmente se desfez como cinzas carregadas pelo vento.

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Há dois anos realizou o seu grande desejo, casar-se com seu único amor, há um ano, numa sucessão de fatos que pareciam demonstrar que a felicidade chegara para ficar, ambos foram aprovados num concurso público para o qual estudaram e se prepararam, objetivando alcançar uma estabilidade financeira e profissional para terem o primeiro filho.

Após se mudarem, pleitearam uma transferência para ficarem mais próximos da família, à qual também conseguiram juntos a exatos seis meses. Então há apenas um mês, Heitor decidira mudar-se antes dela para que organizasse tudo enquanto ela encerrava suas vidas naquele local e pudesse partir ao seu encontro na tão almejada nova localidade.

Foi nesse momento que inexplicavelmente a sorte parecera converterse numa malévola ironia do destino. Incompreensivelmente o mundo parecera enlouquecer e uma aparentemente insignificante doença, que surgira em algum ponto remoto da China, se espalhara por cada canto do planeta, num ritmo frenético, transformando a realidade e a rotina de todos ao redor do globo.

Na mesma semana que Heitor partiu, foram constatados os primeiros casos no país, e ainda podia ouvir sua voz ao ligar-lhe avisando que chegara bem “Não se preocupe meu amor, está tudo tranquilo aqui. Fiz uma boa viagem e em breve estaremos juntos novamente no nosso novo lar”.

Mas aquele sonho que parecia tão próximo de se concretizar seria apagado e vagaria eternamente no vácuo dos sonhos perdidos e não realizados. Na próxima conversa que tiveram, ele lhe contou que não se sentia bem e que logo procuraria um médico. Também a tranquilizou afirmando que era apenas uma indisposição causada pela mudança. Contudo, o num outro momento que falaram por telefone, ela ouviu uma

voz apreensiva e cansada que lhe dava uma péssima notícia: Heitor havia sido contaminado pelo novo vírus e deveria permanecer em isolamento.

Desse ponto adiante, uma sequência caótica de eventos sucedeu-se. Ela parou de receber suas chamadas e, desesperada, não aguentou ficar mais em casa e tentou partir para estar ao seu lado e ajudá-lo, mas os aeroportos haviam sido fechados e não havia a mínima possibilidade de tomar um voo para ir ao seu encontro.

Sua ansiedade era proporcional à ausência de comunicação e crescia progressivamente tal como as notícias que envolviam aquela doença que agora era considerada uma pandemia. Uma ameaça invisível que não dava trégua.

Alguns dias depois, numa chamada abrupta de algum desconhecido, ela recebeu o golpe da pior notícia anunciando-lhe que o amor da sua vida havia morrido e deveria ser enterrado o mais rápido possível para evitar contaminações.

Simplesmente não havia palavras que pudessem sintetizar seu desespero e a sua dor. Com certeza haveria algum engano naquela informação. Era impossível que Heitor houvesse partido. E caso isso fosse verdade, como ele poderia ser arrancado da sua vida sem ao menos dizer adeus? Num vislumbre de consciência, concluiu que não há nenhum controle sobre a vida, e que da noite para o dia, podíamos deixar de existir, como uma formiga esmagada aleatoriamente pelos passos de um ser humano.

Seríamos meras formigas pisoteadas por uma força maior a que chamamos de Deus? Haveria alguma lógica nessa estranha existência? Como poderiam enterrar seu marido sem que ela estivesse presente ou qualquer outra pessoa da família? De repente o caos instalara-se no seu cotidiano e ela sentia-se impotente e incapaz de tomar qualquer atitude.

Nem mesmo o abraço consolador dos amigos e familiares lhe era permitido. Estava distante e isolada, restando-lhe apenas o frio contato oferecido por celulares e computadores.

Cada um deveria viver a própria dor isolado no espaço de sua casa, chorando suas próprias lágrimas e buscando forças que pareciam remotas para permanecer vivo e são. Era tudo extremamente sufocante.

Retirou a aliança do dedo e a colocou sobre o álbum de fotografias sem nenhuma coragem para abri-lo e recordar aqueles doces momentos. Como era possível que em tão pouco tempo tudo mudasse tragicamente e seus sonhos fossem massacrados por uma ameaça invisível?

Não Saia Agora

Já não havia pessoas nas ruas, a situação a cada dia mais alarmante obrigara as autoridades a decretarem quarentena e todos se trancavam na aparente segurança dos seus lares, evitando qualquer forma de contato ou proximidade. Finalmente o ser humano tornara-se vítima do próprio isolamento que vinha se impondo inconscientemente ao longo dos anos. O silêncio opressor das paredes que a cercavam a estavam levando à insanidade. Já não suportava assistir às notícias e muito menos ver as imagens de inúmeras vidas serem sepultadas em valas comuns e imaginar quem em alguma daquelas a pessoa com quem escolhera passar o restante dos seus dias estaria enterrada, sendo lhe extirpada impiedosamente, sem chances de um último toque, um último abraço, um último olhar.

Sem se conter e num ímpeto de desespero, saiu às ruas em busca de um alívio. Àquela hora, fim do dia, tudo estava deserto, e uma fria brisa soprava em sua direção anunciando a chegada do inverno. Queria gritar e chorar, mas a dor era tão forte que parecia congelada dentro do seu peito. Sem se conter, correu como louca pela rua deserta, tentando encontrar um resquício de vida ou algo que fizesse sentido em tudo aquilo. Quase na esquina deteve-se cansada, o peito arfando diante do esforço realizado quando uma viatura da polícia dobrou logo adiante e ao vê-la parou a alguns metros.

“Senhora, por favor, volte para casa! Não é seguro estar nas ruas!”

Num completo mundo surreal o policial usava máscara e parecia temer qualquer forma de contato com a sua figura desamparada na rua deserta. Totalmente impotente para expressar qualquer reação, deu-lhe as costas e voltou para o seu lar como gentilmente recomendou o policial.

O poente envolvia a tudo e o interior da sua casa estava cheio de sombras que pareciam engoli-la, mas não se preocupou em ligar nenhuma luz. Simplesmente caminhou até o quarto e, sem forças, deixou-se cair sobre a cama, permitindo que o cansaço e a desesperança a conduzissem para o conforto de um sono reparador. Talvez ali, na inconsciência dos seus sonhos, poderia ser feliz por algum momento.

Enquanto se desligava da angustiante realidade, das penumbras que a envolviam, um vulto se destacou tomando uma forma humana e aproximando-se do seu corpo estendido sobre a cama. Tentou inutilmente tocá-la, mas sua nova condição não lhe permitia tal gesto, restando-lhe apenas contemplar sua amada esposa daquela perspectiva em que se encontrava.

Ele, como sombra, queria tanto poder dizer que apesar de não estar vivo, ainda estava por perto e que nada havia mudado em relação aos seus sentimentos. Vê-la sofrer, naquela inconveniente situação, apenas aumentava a sua dor e deixava a escuridão que o envolvia ainda mais gélida e angustiante.

Seu tempo havia se esgotado e ele queria muito se entregar ao sono eterno, mas ainda não podia fazê-lo por mais que se sentisse cansado. Tudo o que mais queria era que ela soubesse que ele estava ali para cuidar dela e só depois poderia dizer-lhe adeus definitivamente. Enquanto isso, permaneceria ao redor, invisível aos olhos do seu amor e mergulhado no vazio gélido das sombras, zelando para que ela não fosse mais uma vítima daquele inimigo desconhecido como ele havia sido, e pudesse gerar o fruto da sua união que ainda levava inconscientemente no seu ventre.

Então, quando ela tivesse consciência da semente da esperança que carregava dentro de si, entenderia que nem tudo estava perdido, e encontraria um nobre motivo para seguir adiante. A partir desse momento, ele estaria livre para partir e entregar-se ao sono eterno e inconsciente da consoladora amiga morte que permanecia à sua espera no manto infinito do vazio.

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