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O Sabor da Culpa

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Quem sou eu

Quem sou eu

O Sabor da Culpa Leonardo C. de Campos

— Você pegou o presente do Arthur? — questionou Clarissa, sem muita paciência.

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Sergio apenas deu de ombros e bateu a porta do seu Fox preto com força, mordendo uma maçã que havia pego para a longa viagem à casa dos pais de Clarissa, era aniversário de seu cunhado. Não se dava bem com a família de sua amada, desde que começaram a sair juntos na época da faculdade, piorou quando decidiu trancar o curso de administração, sendo chamado por seu sogrão de “preguiçoso sem futuro”.

A moça entrou no carro, fechou a porta calmamente, respirou fundo e manteve os olhos em Sergio. — Eu entendo que vocês não se dão bem, mas poxa, eles são minha família também. Me ajuda nessa. — Sergio estava olhando para baixo, estava envergonhado. Balançou a cabeça concordando.

O dia estava ensolarado, a pista estava tranquila para um período de férias. Até mais ou menos a metade do caminho, as coisas mudam, se depararam com um enorme caminhão, daqueles em que a velocidade não passa dos 60Km/h, e Sergio ficou irritado pouco metros depois. Vendo que a seta havia sido ligada, Clarissa alertou seu marido de que não era uma boa ideia, a faixa era contínua e a visão não era das melhores, mas ele não deu atenção e entrou na pista contrária.

Ao entrar na pista para fazer a ultrapassagem, viu faróis, seu reflexo foi sair da pista, virando todo o volante, mas o outro veículo estava mais próximo do que imaginava. Olhou rapidamente para sua noiva antes da colisão.

Abriu os olhos repentinamente ao ouvir o som repetitivo e irritante de seu despertador. 8h da manhã, os números a frente de uma foto da moça que tanto conhecia, mais uma noite horrível de sono. Não conseguia descansar desde o início do... Apocalipse? 67 dias trancafiado em casa e nenhuma explicação vinda dos Órgãos Superiores, apenas o que se viu nos

noticiários no início da tal pandemia, as pessoas contaminadas chegavam a um nível extremo de loucura e não viam solução além do fim da vida, e, para piorar, não obtinham informações sobre o contágio.

Muitos ignoravam esses avisos vindos da mídia, “baboseira de comunista”, uma fantasia, mesmo com o índice de suicídios e homicídios subindo drasticamente.

Em pouco tempo, o mundo estava um caos. Em plena luz do sol, cidadãos tinham ataques, começavam a falar sozinhos, a chorar e buscar as piores soluções para acabar com o sofrimento. Em uma das edições do telejornal, enquanto uma jornalista discorria ao vivo sobre a atual situação, um jovem, que aparentava não ter mais de 16 anos, começou a gritar desesperadamente, se ajoelhou no chão, e começou a bater repetidamente sua cabeça no asfalto, gritando pedidos de desculpas.

A câmera filmou isso por pouco tempo, mas o suficiente para não sair nunca mais de sua mente.

A televisão foi perdendo os sinais, o mesmo ocorreu com a internet, essa falta de acesso à informação e, no caso de Sérgio, a solidão leva qualquer ser humano a loucura. Vivia sozinho desde o acidente. Não era sua culpa, mas quando se está com as mãos no volante, você é o responsável, pelo menos era o que sua consciência e a família da vítima diziam.

Acendeu as luzes, mais um dia com energia, abriu o armário em busca de algo que enganasse um pouco seu estômago, mas encontrou apenas duas latas de cerveja e uma embalagem de iogurte vencido, todo seu estoque estava chegando ao fim, precisaria sair de casa, mas o medo era muito maior. Sempre foi um homem um tanto quanto ousado, no entanto, hoje, teme a morte, teme o que poderia haver do outro lado, teme seu julgamento divino. Era a morte pela fome ou uma esperança cega. Tinha que escolher.

Parou em frente a porta e a encarou por alguns segundos, não passava por ela a meses, seria uma boa ideia? Respirou fundo e abriu. Estava gelado, o vento de frio de julho o atingiu em cheio o fazendo tremer. Saindo de seu apartamento, havia apenas aquele silêncio tão familiar. O mercado não era muito longe, estava a apenas alguns metros, tudo estava bem, ele rapidamente pegaria comida e voltaria, apertou o passo em direção a seu destino e viu a porta de vidro do estabelecimento estilhaçada.

Passou pelos estilhaços, estava escuro, apalpou as paredes a procura um disjuntor, encontrou e posicionou a pequena alavanca para cima, uma

Não Saia Agora

luz forte irradiou pelo prédio. A sua frente, encostada em uma prateleira, havia uma mulher, seus olhos sem brilho o encaravam, uma poça rasa de sangue a sua volta, seus pulsos haviam sido cortados com o diamante de um anel manchado que estava ao lado, semelhante ao que dera a sua amada quando a pediu em noivado, um dos dias mais felizes de sua vida.

Por todo o estabelecimento viu mais alguns corpos, suas situações mostraram o desespero, a busca por uma morte rápida, exceto um homem, não muito mais novo que Sergio, que havia se pendurado acima de um balcão com uma corda, só Deus sabe o quanto ele agonizou até receber o beijo da morte.

Pegando tudo que achava necessário, decidiu voltar ao seu templo. Quase na saída, passou por uma pilha de maçãs, a grande maioria já estava podre, mas avistou uma perfeitamente atraente, aproveitou e a levou consigo.

A ida até o apartamento foi tranquila, viu os mesmos carros e sentiu a mesma solidão. Nenhum corpo aparecera por ali neste período. Então chegou em casa em segurança.

Após se trocar, deitou-se em seu sofá, mais um dia e seu coração ainda batia. Pegou a maçã, a coisa mais bonita que via em tempos. Não demorou muito para que desse a primeira mordida, seguida de várias outras, jogando o que sobrou do fruto ao lado do sofá e, com o sabor doce em seus lábios, adormeceu.

Acordou subitamente, olhando seu smartphone, era 1:47 da madrugada, dormira por um bom tempo. Se sentou e esfregou seus olhos, precisava comer mais alguma coisa, estava faminto. Foi até a cozinha, pegou uma panela e colocou água para ferver enquanto pegava um pacote de macarrão, esperou o líquido borbulhar para então despejar pouco menos da metade do pacote na água fervente. Enquanto a massa cozinhava, Sergio foi até a sala buscar seu aparelho celular, mas congelou com o que viu. Sentada no sofá, do jeito que se lembrava, estava Clarissa, com os cabelos castanhos presos em um longo rabo de cavalo, sua pele clara e suave, seus olhos verdes o encaravam, por estranho que pareça, cheios de vida. Uma lágrima começou a escorrer pelo rosto de Sergio: — Clarisse — disse com uma voz trêmula —, como...?

Ela apenas o encarou com um leve sorriso, dando tapinhas no sofá, indicando que sentasse a seu lado. Lentamente, ele caminha e se senta, sem tirar os olhos de sua amada, que após muito tempo estava ali novamente. Ele desabou a chorar, encostando seu rosto nos ombros da moça.

— Quanto tempo, Sergio — disse ela calmamente, com a voz aconchegante na qual se recordava. — Eu senti tanta falta... depois do que houve... eu fiquei perdido, sozinho... — Depois que você me matou? — disse ela com o mesmo tom de voz, Sergio abriu os olhos bruscamente. — Depois que você acabou com tudo?

Com o coração acelerado, Sergio recuou para longe do sofá, o rosto a qual conhecia continuava lá, mas não parecia Clarisse, algo estava diferente. — O que foi? — disse ela. — Vai negar que tirou minha vida? Vai negar que não pensou em mim quando ultrapassou aquele caminhão na faixa contínua?

A voz foi ficando mais alta e imponente. — Já era de se esperar que sua impaciência causaria problemas sérios! — Não... não é verdade! — questionou Sergio, com as lágrimas aumentando. O sorriso no rosto de Clarisse não existia mais, as palavras eram vomitadas com ódio, desprezo e tristeza, sentimentos que atingiram Sergio no fundo de seu coração, refletindo nas lágrimas que atingiam o chão. — Eu sempre te amei Clarisse, você era tudo pra mim, não foi intencional, eu nunca me perdoei pelo que aconteceu.... — Eu também nunca te perdoei! — rebateu ela, impiedosa – quem é você para viver e não eu? Você não merece a vida!

Com o sentimento de culpa, essas afirmações faziam cada vez mais sentido, quem era ele para viver? Ele não merecia o dom da vida, ele não era nada. Com a respiração descontrolada, encarou o olhar de desprezo da única mulher no qual havia amado. Se levantou as pressas do chão gelado, indo em direção a cozinha, o macarrão borbulhava na panela, abriu a gaveta com talheres e pegou uma pequena faca e, involuntariamente, escorreu-a pelo seu pulso direito e depois pelo esquerdo, de forma que não houvesse mais barreira entre o sangue e o exterior. Deixou a faca cair ao chão e caminhou lentamente até o sofá, onde seu eterno amor o esperava, ele se sentou ao seu lado, deitou a cabeça em seus ombros, a água do macarrão transbordou pela panela até o fogo. Enquanto sua visão ia escurecendo, fitou o que sobrara da maçã no chão e se lembrou do gosto doce da fruta em seus lábios.

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