histórias de saudade, distância e espera
SÓ QUERIA TE DIZER
FICHA
Índice 9
Uma Eternidade a Mais
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Solo de Bandoneón
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A Canção do Silêncio
Ana Cava
Ernane Catroli
Heverson Souza e Costa
15 Chuva
Jurema Rangel
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O que é ter um amigo?
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Ovelha Desgarrada
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Pequenos detalhes
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Tô me guardando pra quando esse dia chegar
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Aquele Abraço
Patrícia Bahiense Rodrigo Santos Rodrigo Santos Alvaro Senra
Antonio Carlos Sarmento
31 Diferenças
Antonio Carlos Sarmento
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E, chegou à meia-noite
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Sobre músicas, fotografias e machucados cicatrizando
41
O Normal se Desnormalizou
45
Shakespeare tinha razão...
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O céu estrelado
Aron Pedro
Isabella Rodrigues Jailson França Jeane Lima
Jéssica Cardoso
51
O Som do Coração
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Tua órbita
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Olhos nos olhos
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Ainda é tudo teu aqui
S. F. O’Neill
Gabrielle Roveda Juliana Rabelo
Leonardo Martins
61 Vermelhidão
Leonardo Martins
63
O Homem e o Carnaval
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Quando tudo é espera
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É Isso aí
71
Sujeito contido, verbo livre
73
Foi sepultado hoje, o negro Zé...
75
Preciso te conhecer
79
Abraço a distância
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Estou só
Lourildo Costa Marisa Ribas Félix Hilton
Sulamita Marques D’Araújo
Denise Doro
Marco Antônio Santos Mara Feitosa Perruci
83 Estradas...
Mara Feitosa Perruci
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Fuga em pânico
Marco Antônio Santos
Apresentação
Só Queria te Dizer que a vida é cheia de histórias, muitas, repletas de momentos que se alternam entre alegrias e tristezas, mas todos capazes de encantar e, mais que isso, somar dividendos para o nosso crescimento. Quando conseguimos colocar esses momentos no papel, de modo a eternizar sonhos e verdades, é por demais espetacular, é com certeza um feito que merece ser comemorado, assim como a vida! Poder dizer o que sentimos com todas as letras nos deixa livres, nos possibilita exorcizar todos os medos, ansiedades, nos torna mais vigorosos e ricos como pessoas, expurgando toda a sorte de reveses. Imagine, então, perpetuar tudo isso em um livro, e o melhor: ao lado de outras pessoas que de alguma forma também sonharam e se sentiram encorajadas a colocar no papel suas realidades e até ficções. Só Queria te Dizer que a vida é bela e decifrá-la é algo fantástico, uma viagem que somente através dos livros conseguimos imortalizar. Este livro é a prova viva do poder da palavra escrita e a certeza de que ser protagonista da história ou o seu narrador é um mérito que poucos conseguem ter. Portanto, viver com vocês esses momentos, acredite, foi algo apaixonante e inesquecível, pois mesmo após a leitura da última página deste livro, tudo o que está escrito nele vai ficar para sempre dentro de mim como um marco simbolizando o valor do saber bem dizer.
Artur Rodrigues Organizador 5
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histórias de saudade, distância e espera
SÓ QUERIA TE DIZER
SÓ QUERIA TE DIZER
Uma Eternidade A Mais Ana Cava
Talvez fosse seu momento mais prematuro de solidão. Sentia um vazio que nunca havia sentido. Um frio em pleno janeiro. Não seria a única, a primeira, mas não queria esse pesadelo. Nas manhãs aquele homem alegre saía para trabalhar e jurava voltar com rosquinhas, aquelas diversas, salgadas,amanteigadas, recheadas de carinho. E não esquecia. Muito menos de levar as filhas à praia para, felizes, catar conchinhas. E cantavam e brincavam como se tudo fosse eterno. E foi. Nas lembranças. Lembranças tantas de meninas felizes. Um dia um grito. Uma internação, seguida de outra até ser finito todo o conflito, toda dor. Até ser sepultado um corpo, mas nunca o amor. E o único querer foi de um dia a mais, um ano a mais, uma eternidade a mais. Não havia vitimismo, apenas uma dor real de perder de vista o toque, o abraço, o olhar de um ser muito amado. Não havia desespero, mas uma saudade colocada no colo pesa uma tonelada. Você sabe. Assim começava o distanciamento que nunca foi ausência. As lembranças continuavam povoando mente e coração. E o tempo seguiu em frente. E o pai não mais existiu fisicamente. E ela moça adolescente, virou mulher. E aprendeu que a vida normalmente poderia ser precedida de bons e maus momentos. Até que um dia, ela se viu diante de uma pandemia e só queria te dizer que a vida tem muitos casos e esse eu te conto outro dia. Até.
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SÓ QUERIA TE DIZER
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SÓ QUERIA TE DIZER
Solo De Bandoneón Ernane Catroli
(…) e pode ser que tenhas te exilado atendendo a um apelo interior. Irrevogável. Mas como saber agora de ti - figura de pedra. E se por aqui me embrenho é porque algo nos sustém ainda que por um fio. Um fio de palavras. Revejo a letra da música da nossa história real. O papel com a tua caligrafia miúda desfazendo nas dobras. Mais antiga, a lembrança de aprender dar o nó na gravata quando tu me tornaste um expert na tarefa. E estávamos tão próximos. Tão próximos e aquele calor abrasador. Data deste dia o acerto para dividirmos o mesmo apartamento. E reviver aquela paixão, ancorado na tua juventude, é reacender o arco-íris flamejante. Que o tempo. O tempo amplifica o inextinguível de uma memória. E quem não iria querer a cabine do comandante se, àquela época, o nosso cotidiano de total irrealidade. Há muito não tenho notícias tuas e troco o ritmo e as palavras para agora te escrever na ânsia de uma-publicação-digital-ou-impressa-âmbitonacional na qual – de pronto – tu te reconheças. Programação do dia. É como o rodar de um filme. Tu ainda existes. E existes com tua voz redonda, um jeito de andar, a camisa aberta no peito e tudo mais que sei de ti até os cheiros da última refeição que partilhamos. Depois. Depois esta minha outra voz e postura, mas sem deixar de aqui registrar o legado tão pouco extasiante da tua performance sexual com as pantominas de eterno flerte – que soubeste usar – sem comprometimento. Sem o comprometimento com as entranhas. E o que me apaziguá é não ter sido partícipe na mesma intensidade daquele teu falso tesão. Mas o maior descuido - quando te elegi meeiro nessa trajetória de veredas – e exibindo alianças que também resultaram arames retorcidos. Ah! E não esquecer no calmo desta hora: vendi o nosso apartamento mobiliado tal e qual o deixaste. Levei somente o quadro do Rodrigo de Haro. Tão lúgubre. 11
SÓ QUERIA TE DIZER
Ah! Meu querido, o triunfo de não mais abrigar nenhuma testemunha sob o meu teto. Cansaço demais. E saibas que sei das fantasias dos reencontros somados às distâncias e às camadas do Tempo. Assim como sei que este conto de um só pulsar – uma mesma atmosfera – é tanto mais vida. Ela própria. Vida. Por onde ainda mapeio teus sinais neste meu corpo gasto, antes que tu sejas total esquecimento. A alma acesa.
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SÓ QUERIA TE DIZER
A Canção do Silêncio Heverson Souza e Costa
Sentia falta da música que outrora enchia cada cômodo da sua velha casa, e já não podia mais ouvir, embora guardasse no interior do seu peito o ritmo de cada canção que no passado lhe despertou tantas emoções. A idade não lhe pesou no corpo, mas levou-lhe a audição, sendo talvez aquela uma infeliz ironia da vida que lhe poupava do martírio de ouvir os ecos da solidão. Mesmo assim, buscava encarar com suavidade o tempo que lhe restava, aceitando com gratidão tudo que a vida lhe proporcionava. Sobre sua mesa a cada manhã, a porcelana chinesa cuidadosamente disposta sobre o forro, ao lado da colher de sobremesa, próximos à vela acesa onde se sentava para aquecer sua alma. Todos aqueles detalhes demonstravam, o quanto seu ser estava carregado de sutilezas. Era a sensibilidade de um homem que viveu cada estação, se apaixonou no auge do verão e disse adeus no alvorecer do inverno, respeitando as peculiaridades de cada condição. Não teve filhos, mas teve um grande amor que cultivou e do qual cuidou até o momento que o acaso o levou. Sozinho, no mesmo lar em que viveu, ali permaneceu, e mesmo sem poder ouvir os sons ao seu redor, jamais deixou de cultivar a beleza e a harmonia que preenchia os seus dias de grata alegria. Naquele quarteirão, seu lar se perdera entre outras construções, à sua esquerda havia um prédio, cujas sacadas davam vista para o jardim que criara no fundo da sua casa. Ali vivia sua maior alegria, entre plantas e flores, cultivava seus maiores amores. A vida parecia em perfeita harmonia até que uma inesperada notícia invadiu cada canto do planeta, e para ele que não podia mais ouvir, as frases escritas na TV lhe anunciaram a chegada daquela estranha pandemia. Se ainda escutasse, quisera notasse, que a cada dia o barulho que invadia a rua aos poucos foi desvanecendo, dando espaço para o silêncio que expressava o desalento que cada um estava vivendo. Vendo as notícias transcorrendo, percebia a seriedade do que estava acontecendo, mas tomava muito cuidado para que a tristeza e o desalento não invadissem seu ser, nem maculassem a sobriedade de cada amanhecer. 13
SÓ QUERIA TE DIZER
Já não podia caminhar nas ruas, pois a ameaça invisível espreitava a todos e não poupava àqueles que já viveram muitas auroras. Por isso, refugiar-se entre suas flores era a melhor saída para esquecer toda a tristeza que sondava lá fora. Todos os dias cuidava do seu jardim, cultivando-o como o seu maior bem e esquecendo toda a melancolia que assolava o mundo afora, sentia o ritmo das canções que outrora aqueceram seu velho coração. Então, numa daquelas manhãs, enquanto cuidava das plantas, percebeu que da construção irmã, o que restava de uma bela Dália, caía e se desfazia, espalhando ao redor suas pétalas, como se num último ato dissesse adeus àquele mundo ingrato. Olhando para o alto vislumbrou, olhos carregados de dor, no rosto de uma velha dama cujo passar dos anos a beleza o tempo não poupou. Mas para alguém como ele, havia algo mais a se ver além da efemeridade referente a uma juventude impertinente. Ao ser percebida, envergonhada ela ficou, e mesmo diante do seu tímido sorriso, apressadamente ela se retirou. Naquele instante uma decisão tomou: por que não lhe devolver o sorriso? E para alegrar-lhe, dálias ele cultivou. Pacientemente ele as plantou e quando despercebida a triste dama voltou a mirar seu jardim, com ternura ele as ofertou. Seus lábios um elogio murmurou, e contente com o seu júbilo, utilizando-se de uma fina caligrafia lhe indagou: “Quando tudo passar, posso te levar flores?” Em contrapartida, ela lhe respondeu, que as flores receberiam e um suéter lhe teceria, e com outra gentileza lhe agradeceria. Contente ele ficou e de imediato a proposta aceitou. Só lhe restava contar que o som de sua voz não poderia escutar, e sob a égide de seu olhar com receio ousou a verdade lhe revelar. Sábio são os anos que às pessoas cabe ensinar, a bela arte do tolerar! Com aquele triste sorriso que marcava seu olhar, ternamente ela disse não se importar, e como se pudessem ver mais além do que os seus olhos pudessem alcançar, prometeram-se um ao outro cuidar. Pois, quando toda a tristeza que carrega aqueles inusitados dias passar, tranquilamente poderão se encontrar, e então, quando um ao outro olhar, terão a ser certeza que a vida lhes deu a chance de estarem juntos num novo recomeçar. 14
SÓ QUERIA TE DIZER
Chuva
Jurema Rangel
De repente, o tempo muda. O vento forte afasta o sol quente, atípico nessa época do ano, encrespa as ondas do mar, balança o galho das árvores, empurra as pessoas para casa. O Cristo Redentor, que avisto da minha janela, desaparece encoberto por uma névoa fina. Aos poucos, nuvens negras se formam e pingos de chuva começam a cair. Pingos de prata na réstia da luz da tarde. Dentro de mim, os pensamentos acompanham o ritmo preguiçoso das nuvens cinzentas que tomam conta do céu e anunciam que a chuva vem para ficar. Mas, ao contrário desse recado tão claro, meu coração está calmo. Não se agita ao prenúncio de tempo turbulento. Meu coração está feliz. Tenho a impressão que a chuva traz a bem aventurança coroada por bênçãos recebidas. Acredito na transformação das pessoas, na essência do ser humano, no potencial fraterno que mora em cada um. Que boas notícias a chuva traz! Parece que a chuva vem para limpar o que de ruim existe, para levar o que não serve. Renovar. Chove lá fora. Fina cortina de chuva que desvenda o arco-íris no meu coração!
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SÓ QUERIA TE DIZER
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SÓ QUERIA TE DIZER
O que é ter um amigo? Patrícia Bahiense
Tempos de reflexão, tempos de rotina e repetição de hábitos. Os dias estão sempre iguais. Nesse período de quarentena, tenho revivido muitas lembranças. Sempre, desde adolescente, vivi cercada de amigos. Minha casa estava sempre cheia, com festas e comemorações. E assim continuou por muito tempo. Tive a minha filha, casei, tive experiências diversas na vida, mas pude perceber o seguinte: meus verdadeiros amigos sempre estiveram presentes. Em tempos de solidão, de dificuldades, de afastamento, às vezes, o que precisamos é apenas de uma palavra, de um conforto, de um carinho, mesmo que seja virtual. Ter um amigo é tudo isso, mesmo que ele não diga nada, apenas fique ao seu lado, em silêncio, ou que te chame a atenção, e diga a verdade. Amigos de verdade não são falsos e não mentem. Querem apenas que você seja feliz e siga no caminho do bem e, de preferência, ao lado deles.
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SÓ QUERIA TE DIZER
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SÓ QUERIA TE DIZER
Ovelha Desgarrada Rodrigo Santos
– Você está bem? Óbvio que ela não estava. Os cabelos cortados à máquina, rente ao couro cabeludo, deixavam entrever algumas cicatrizes, novas e antigas. Olheiras profundas deixavam o azul de seus olhos opaco, como a pintura de um Corcel II estacionado há décadas na Avenida 18 do Forte. Uma calça de moletom escondia uma provável magreza – logo Elaine, cujas formas sempre causaram inveja a todas nós – e um casaco que eu nunca tinha visto (e que já vivera dias melhores) se jogava por cima de uma camisa velha de futebol. Não dava nem pra saber se era um garoto ou uma garota. – Estou indo... E o pessoal da escola? – Vão bem... Todos perguntam por você. – Mentira, ninguém queria saber dela, só eu. Nem o Tiago queria ouvir falar no nome de Elaine (“Pára de falar nessa menina, ela escolheu o caminho dela e eu não quero minha namorada envolvida com esse tipo de gente”), em menos de um ano parecia que ela deixara de existir nas vidas de todos. Menos na minha. Estudamos juntas desde o jardim. Era a minha melhor amiga, das panelinhas de plástico a confidências da puberdade. “A gente vai ser amigas para sempre, não vai?”, dizia Elaine antes das fotos abraçadas ou depois de corações partidos. Ninguém sabia os segredos que Elaine chorava em silêncio, ninguém via as marcas de cinto e mãos na sua carne branca. Nem eu. Elaine tentava comer o copão de açaí que eu levara com alguma dignidade, mas a fome é um algoz espaçoso e desesperado. Não devia comer há dias. Tomei coragem e perguntei: – Você volta? – Não sei. Meu dente está sujo? – E sorriu, mostrando os dentes pretos em mais uma brincadeira antiga, só nossa. Ri também. – Sua porca! E esse cachorrinho fofo? 19
SÓ QUERIA TE DIZER
– É o Bob. Coloquei essa correia velha pra servir de coleira e agora ele é meu. Não é, Bob? Não é? – O filhote de vira-lata se tremia todo de felicidade. – É uma graça... Você está morando onde? Pela primeira vez o semblante de Elaine se ensombreceu, e eu vi que havia feito a pergunta errada. A gente se encontrava uma vez na semana ali, na esquina da antiga escola (não esta, onde ninguém queria ser amigo de uma drogada refugiada do próprio lar). Eu levava açaí, algum dinheiro e um livro, mas havia perguntas que não podiam ser feitas. Sobre a droga, sobre o motivo da fuga, sobre a vida de agora. Após um desconfortável silêncio, ela murmurou “acho melhor você ir andando. Tia Geiza deve estar preocupada”. – Semana que vem então? – Semana que vem, amiga. – E nos abraçamos. Tomei coragem e sussurrei em seu ouvido: “Amigas para sempre, lembra?”, apenas para abreviar o abraço e ver Elaine passar as costas da mão suja nos olhos. Foi a última vez que vi minha melhor amiga. Toda semana apareço na mesma esquina, e levo o Harry Potter que ela havia me pedido. Para sempre.
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SÓ QUERIA TE DIZER
Pequenos detalhes Rodrigo Santos
Um grande amor é formado por uma vasta colheita de pequenos detalhes. Você salvou a minha vida pelo menos duas vezes – aquela em que a gente passou no meio do tiroteio e você deu a ré no carro do teu pai pra fugir foi uma delas – mas são os passos mínimos do balé da convivência que me fazem falta. Você não largava a toalha na cama, mas a deixava pendurada na porta de qualquer jeito, toda amarfanhada, e ela continuavam molhada do mesmo jeito. Mas você também tinha a mania de esticar a passadeira da cozinha porque tinha medo de que eu caísse. “Vocês parecem que têm o pé de enceradeira”, toda vez, e eu ria, tentando imaginar o que seria um pé de enceradeira. Você fazia café pra mim, o melhor café que eu já tomei em toda a minha vida. Eu sentada no sofá, mexendo no celular, e você vindo com aquela caneca do nosso enxoval – aquela branca, com uma rachadura visível e que você não deixava eu jogar fora – e o café fumegando (“não pode deixar a água ferver senão cozinha o pó”; cheio de métodos, o seu pequeno mundo caótico). E agora, que você se foi, quem vai fazer café pra mim? Sua voz se levantava uma oitava quando falávamos de amor. Você franzia o nariz sem perceber, e fazia uma cara de menino envergonhado que você deve ter feito no primeiro amor. Eu só especulava tal evento, claro, sem o menor ciúme dessa menina, porque tenho certeza de que ela não percebeu, e nem você. Mas eu achava bonitinho quando você queria pedir alguma coisa, e encostava a testa na minha, olhava e falava baixo. Eu ouvia, ouvi todas as vezes, mas perguntava “o quê?” só pra você repetir novamente – às vezes mais de uma vez, porque gostava também do tom de sua voz quando se exasperava de leve (não brigando, essa melodia nunca me agradou). Eu conhecia cada nota, cada escala que sua voz solfejava na vida e as lia como partituras em braile. E não pude ouvir o seu compasso final. 21
SÓ QUERIA TE DIZER
Você ria das piadas da TV, de gente se estuporando nas tardes de domingo por tentarem coisas idiotas enquanto o Faustão desfilava seus bordões rotos. Nomeava cada cinema que São Gonçalo já teve (“Aqui em Santa Catarina era o Cine Floresta!”) toda vez que passava por um, apenas para dizer “esta cidade já teve onze cinemas de rua”, e sempre terminava falando do cinema da Venda da Cruz e sua sessão dupla de sexo e caratê. Dessa vez eu não ria apenas para te agradar, eu realmente achava engraçado os nomes dos filmes e suas combinações (“Era ‘Operação Dragão em letras maiores e Minha cabrita, minha tara embaixo, dá pra acreditar?”, e eu ria e ria dentro do carro). Do que eu vou rir agora? Os risos, as falas, as falhas, a coreografia cotidiana da rotina em que rodávamos no salão da vida, olhando para a orquestra a esperar a próxima música e não percebíamos os sublimes movimentos que fazíamos na pista lotada. Os gigantescos detalhes mínimos que constroem um amor tão bonito como o nosso, e que nos envolvia de forma tão aconchegante quanto um edredom velho – como aquele, do mesmo enxoval que a xícara rachada. E agora, sem você aqui, a realidade é uma colcha esburacada, com a qual tento me cobrir para me proteger de todo frio do mundo.
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SÓ QUERIA TE DIZER
Tô me guardando pra quando esse dia chegar Alvaro Senra
Na quinta-feira, depois do Carnaval, eu e ela deixamos tudo arrumado no porta-malas do carro. Partiríamos na manhã seguinte para São Paulo, onde deixaríamos nosso filho, prestes a iniciar o ano letivo. De lá, ela aproveitaria e pegaria o ônibus para Minas e retomaria o trabalho, enquanto eu voltaria para nossa casa em Niterói. Tudo ocorreu de acordo com o planejado. Ida tranquila, com uma parada para almoçar e tomar um café. Depois, uma reta só até São Paulo, aonde jantamos e passamos a noite. Na manhã seguinte, deixei-a na rodoviária e levei meu filho até a república onde vive com outros colegas. Prometemos, todos, nos rever no máximo até a Semana Santa. Peguei, então, a estrada de volta, uma viagem sem sobressaltos, e retornei tranquilamente para casa. Tudo certo, na próxima segunda a vida volta à rotina e vamos nos falando. Se der pé, arranjo um jeito de no meio de março, antes mesmo da Semana Santa, fazer uma surpresa e passar uns dias com ela em Minas. Não deu pé. Duas semanas depois começam as dificuldades de movimentação. Vejo as notícias: o COVID se espalha e o número de infectados começa a aumentar. Tenho receio de sair às ruas. Estou ilhado em Niterói. Ela, isolada em Minas. Nosso filho, fechado com os colegas na república em São Paulo. Chega o outono, minha época favorita de subir a Mantiqueira, friozinho entrando pela janela do carro, os tucanos e os ipês soberanos ao longo das estradas, para ao final encontrá-la e ficar no quintal enchendo o saco dos gatos, partilhando gostosamente o café servido com bolo, fazendo nada juntos. Mas não é isso que acontece. Fico no apartamento, o sol delicioso do outono entra sem pedir licença pela janela, e eu me limito a contemplá-lo, tão perto dele, tão longe dela. 23
SÓ QUERIA TE DIZER
Mantemos a esperança do encontro na Semana Santa. O feriado vem. Mas nada. Não há transporte possível. A promessa é adiada para o feriado de Tiradentes. Não dá. Um pouquinho mais, quem sabe até 1º de maio tudo se resolve. Vem o lockout. No início, procuro manter a vida com os ritos de sempre, na expectativa de um hiato complicado, mas curto. Aos poucos, de forma quase imperceptível, as coisas começam a desandar. Os horários cotidianos criados ao longo de décadas de hábitos regulares se desorganizam, inclusive para coisas tão triviais como ir ao banheiro ou tomar o café da manhã. O sono se desordena. Começo a me sentir meio parecido com os gatos, acordando, comendo e dormindo, numa liturgia que começa a ter efeitos para o conjunto de outras coisas de minha vida. Um dia, vou à farmácia e compro máscaras. Volto a caminhar e a pegar sol, como antídotos para a ansiedade. Com o lockout, paro novamente. Coisas sagradas, como a cerveja no boteco, o papo com os amigos, o bom dia ao motorista do ônibus, o sorriso e o esporro nos alunos começam a se distanciar na memória. Em pouco tempo, nomes e lugares são esquecidos, como se eu tivesse recebido um flash daquela arma futurista de MiB – Homens de Preto! Adquiro o hábito de ir para as janelas, de dia a olhar para as cabecinhas lá embaixo, tentando conferir quem usa ou não usa máscara, de noite a gritar Fora Bozo! Brigo com uns evangélicos que promovem uma espécie de culto-relâmpago na rua. Canso. Resolvo botar em dia as leituras e os filmes, mas me saturo. Até que, quase sem reparar, me vejo acordando de novo bem cedo, como sempre fiz, e conversando com ela, mexendo em seus cabelos e tomando café, tudo pela tela do celular. Em certo dia no início de maio brigamos online, de forma absolutamente igual às brigas que periodicamente tínhamos quando estávamos um ao lado do outro. Um marco da nova existência. Passo a lanchar com meu filho, pelo computador. Me vejo bebendo com os amigos por esses aplicativos de que nunca guardo o nome, cada um em sua casa, com um copo na mão. Uma nova forma de existir nasce aos poucos da desordem trazida pelo vírus? Uma nova ordem, da desorganização? Um desfuturo, a partir do não-presente? 24
SÓ QUERIA TE DIZER
Por uma dessas coincidências da vida, começo a ler O Deserto dos Tártaros, do escritor italiano Dino Buzatti. A vida do jovem oficial Giovanni Drogo, deslocado para uma fortaleza no fim do mundo, sempre na expectativa de uma transferência ou de uma guerra com um inimigo invisível que nunca ataca, e sua gradativa adaptação a uma vida reclusa, longe de seus sonhos de paixão e heroísmo. Leio de um jato só, da primeira à última página. Fico inquieto. Como Giovanni Drogo, meu apartamento se transformou numa fortaleza em meio a uma fronteira inóspita, à espera da chegada do inimigo invisível, não o exército tártaro, mas o vírus, que pode estar à espreita em qualquer lugar lá fora. Enquanto isso, todos os fazemos refeições juntos, eu aqui em Niterói, ela lá em Minas, ele em São Paulo. Conversamos, rimos, brigamos. Paramos de fazer planos. Já não nos dizemos mais coisas como: vamos viajar no recesso de julho, ou, que tal a gente se encontrar no sete de setembro? Meus sonhos se reduziram ao extremo da trivialidade. Minha promessa amorosa é: quando o desfuturo se transformar em futuro de novo, e nós nos reunirmos, quero lhes servir uma xícara de café e cortar um pedaço de bolo. Tô me guardando pra quando esse dia chegar.
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SÓ QUERIA TE DIZER
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SÓ QUERIA TE DIZER
Aquele Abraço
Antonio Carlos Sarmento
Convidei-o para fazer um passeio na Floresta da Tijuca. Ele aceitou na hora. Completamente apaixonado pela natureza, nunca recusaria um convite destes. Eu havia conhecido ali uma trilha leve, quase toda plana, sombreada, excelente para caminhar, respirar, escutar e usufruir de uma pausa na vida de cidade grande do Rio de Janeiro. Num desfile de moda a beleza está em quem caminha na passarela, mas naquela trilha quem caminha é que desfruta da beleza. Uma alternância de árvores e vegetações menores, pássaros e pequenos animais, riachos murmurantes e um cheiro perfumoso, inigualável, que vai mudando com a paisagem numa deliciosa miscelânea. Ventos e sopros vindos sabe-se lá de onde, provocando um frescor na alma. Desde o dia em que estive lá pela primeira vez, só me ocorria trazê-lo para conhecer este pedacinho de mata, milagrosamente ainda virgem e intocado em meio ao gigantismo e aridez da cidade. Numa manhã de sábado do mês de abril, o mais belo do ano no Rio de Janeiro, ingressamos na trilha. A minha expectativa era muito alta: eu o conhecia há muito tempo e sabia que sua marca mais forte era o amor à natureza. Lembrei-me dele várias vezes olhando a lua cheia, com os braços abertos feito um Cristo, agradecendo a Ele por aquela criação divina. Ou como se desejasse entregar-se àquele brilho prateado e ir até lá para conhecer de perto. Fomos caminhando lado a lado e desde os primeiros passos os olhos dele brilhavam mais que os reflexos do sol no riacho que passava ao lado. – Que maravilha – disse ele. – Respire fundo para limpar seus pulmões com este ar puro, cheio de oxigênio. Inspirava barulhentamente enquanto abria e elevava os braços. Em seguida expirava quase assobiando, como se estivesse eliminando acúmulos indesejáveis. Depois de alguns metros, apontou-me duas árvores: 27
SÓ QUERIA TE DIZER
– Está vendo estes eucaliptos? São da mesma espécie, mas diferem entre si. Um tem o tronco retilíneo e mais elevado; o outro tem uma suave inclinação para o lado. As copas também diferem em galhos e folhas: uma mais frondosa e ramificada e a outra quase redonda. Não existem duas árvores da mesma espécie que sejam iguais. Você pode plantar do mesmo lote de sementes, no mesmo dia, no mesmo local, centenas delas, regá-las da mesma forma e no final terá árvores diferentes. As árvores são como os seres humanos: irrepetíveis! Eu que nunca tinha olhado as árvores sob esta perspectiva, depois daquele dia, nunca mais olhei as árvores sem esta perspectiva. Vale aqui uma breve interrupção neste passeio, que ainda não chegou ao seu auge. Dias depois, passando pelas ruas da cidade, fui vendo pela janela do carro a uniformidade dos prédios construídos. Os envidraçados então parecem ser sempre o mesmo em locais diferentes. Será que beleza e diversidade andam juntas? Nunca gostei de Shopping e neste dia descobri que é porque são absolutamente idênticos: as mesmas lojas, com a mesma arrumação de vitrines, banheiros com o mesmo cheiro, corredores com o mesmo piso. Tudo igual. E ainda centralizam a venda de comida num local que têm a coragem de chamar de “praça” de alimentação. De praça não há nada; não existe praça sem graça. Na sequência ele quis molhar as mãos no riacho e passar na nuca aquela água fresca. Fomos seguindo e ele parava para cheirar as plantas, aguçava o ouvido para reconhecer cantos de pássaros, catava folhas no chão apenas para tocá-las e observar seu desenho. Enfim, ali estava ele por inteiro, feliz como uma criança num espetáculo de circo, com seus sentidos saciados por aquela orquestra de cores, texturas, sons e aromas. Após uns 30 minutos, já nos aproximando do trecho final, a trilha alargava-se um pouco e, alguns passos à frente, formava-se, aí sim, uma pequenina praça, cheia de graça. Ao centro reinava uma árvore alta, de tronco liso, com uns 60 cm de diâmetro. Ele parou! Olhou a árvore de cima a baixo algumas vezes. Depois, sem vacilar, abraçou-a apertando os braços e colando o rosto e o corpo. Ali ficou imóvel, de olhos fechados, num silêncio de catedral. Pareciam uma coisa só. Dois irrepetíveis... Isso eu nunca tinha visto. Lembrava-me de alguma foto em que as pessoas davam as mãos e rodeavam uma grande árvore para deixar evidente 28
SÓ QUERIA TE DIZER
o seu tamanho. Mas aquele abraço carinhoso, terno e emocionado nunca mais saiu da minha lembrança. Só depois de uns dois minutos ele soltou, lentamente, acariciando-a e afastando-se aos poucos, como quem quisesse ficar. Abriu os olhos. Sua expressão era de quem acabou de fazer uma oração profunda e fervorosa. Quebrou o silêncio: – A árvore é um ser vivo. Abraçando a gente sente a energia dela. E ela gosta... Ele faleceu há poucos anos. E desde então tenho vontade de voltar lá e, chegando à mesma árvore, abraçá-la amorosamente por dois minutos e dizer-lhe: – Sabe quem te mandou este abraço? Meu pai!
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Diferenças
Antonio Carlos Sarmento
Ele tinha uns 70 anos e ela, talvez, uns 5 anos a menos. Eu estava do lado de fora do restaurante, sentado num banco, aguardando a minha família chegar e vendo-os pelo vidro do fundo do salão. Não sei por que, passei a observá-los. Gostaria de estar de óculos escuros para disfarçar, apontar a cabeça em outra direção, mantendo o olhar no casal. Mas óculos escuros à noite seria demais... Tive que manter a discrição sem perder detalhes da descrição. Ambos tinham boa aparência: ele, cabelo bem cortado, uma camisa social azul-escuro de colarinho italiano, coluna ereta, gestos firmes, olhar calmo e, mesmo à distância, posso garantir que usava um bom perfume. Ela estava de costas, mas de vez em quando, com o movimento de cabeça, era possível perceber o perfil elegante e bem cuidado. Apesar da idade, como quase todas as mulheres desta faixa etária, não possuía cabelos brancos... Usava uma roupa bege e por cima uma espécie de xale, trançado com originalidade nos ombros, cujas pontas derramavam-se pelas costas. Mas o que atraiu minha atenção foi, antes de tudo, o fato de que destoavam de quase todas as demais mesas do salão. Eles simplesmente conversavam, olho no olho. Parecia que, para eles, aquela era a única mesa do restaurante. Um salão inteiro, cheio de gente e apenas existia aquela mesinha de dois lugares. O garçom chegou trazendo um vinho branco num balde de gelo: mostrou só a ela a garrafa. Estranhei. Ela acenou positivamente e foi servida. Fiquei atento e ainda mais interessado. O garçom retornou com uma garrafa de vinho tinto, apresentou a ele e serviu. Dois vinhos diferentes numa mesa de casal! Aquilo me intrigou. Eles brindaram, cada um bebeu um pouco, pousaram as taças contrastantes e deram as mãos. Ficaram um bom tempo naquele enlevo, acariciando as mãos, trocando olhares, sorrisos e palavras. 31
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Pareciam haver ali nítidas preferências opostas em relação a cores claras e escuras. Uma diferença marcante, no trajar e na bebida. Foi o gatilho para uma divagação: se viesse um pratinho misto de azeitonas verdes e pretas, ela comeria apenas as verdes e ele as pretas. Na escolha dos pratos, ela iria comer um peito de frango ou peixe enquanto ele, um filé mignon, provavelmente... A sobremesa dela, um sorvete de creme e a dele, um de chocolate. Aqueles dois pareciam conviver tranquilamente com divergentes preferências. Pensei então que seria um problema se um tentasse trazer o outro para o seu próprio gosto: – Vinho tinto é o verdadeiro vinho. Experimenta este. Você vai aprender a gostar. – Não quero aprender. Estou satisfeita assim. – Você cismou com isso. Se tomasse o tinto evitaria termos que pedir duas garrafas. – Se for por isso pede só uma garrafa. Do branco! – Tá, deixa pra lá! Fiquei imaginando quantas outras diferenças haveria entre eles, como em todo casal. E como é preciso controlar a nossa tendência de querer fazer o outro semelhante a nós mesmos. Até em coisas irrelevantes... Acabamos, muitas vezes, apreciando no outro apenas aquilo que é semelhante em nós. Como se fossemos uma peça de quebra-cabeças, a exigir uma outra que se ajuste perfeitamente a todas as características e nuances. Nossa incorrigível afeição pelo igual e rejeição pelo diferente. Aqueles dois pareciam ter superado tudo isso e encontrado o caminho da verdadeira aceitação: se divertiam com o que é diverso. Fiz um passeio com o olhar pelo ambiente. Constatei com tristeza o protagonismo do celular. Por incrível que pareça, em todas as demais mesas, havia celulares estacionados ou em plena atividade. Quanta gente com as “armas” na mesa, prontas a agredir a sua companhia ao ausentar-se com as longas espiadas na tela. Especialmente nas mesas de casais, onde na maioria das vezes, a retaliação do outro é fazer o mesmo: ambos aderidos ao celular como película de vidro. Corpos presentes, almas ausentes... Aí me veio uma digressão: será que o celular funciona como uma fuga das diferenças? Talvez o que nos atraia tanto nele seja a homogeneidade dos 32
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grupos, das opiniões, dos interesses semelhantes. Ali o comando é nosso: se surge uma divergência podemos sair do grupo, bloquear o contato ou ignorar. Só visitamos os sites que nos interessam, só vemos as notícias que queremos, só falamos com quem pensa como nós, só ouvimos o que nos agrada. E sempre protegidos pela distância, sem ter que enfrentar o olhar do outro. É o império da vontade própria, a prevalência do nosso jeito de ser. O solitário troglodita que temos no peito encontra ali a sua caverna! Sem incômodos, sem interrupções, sem contrariedades, sem ter que ceder, sem diferenças... Voltei à única mesa de casal do restaurante. Ele tirou do bolso um pequeno envelope e entregou a ela, que abriu e passou a ler o conteúdo. Não pude ver o rosto, mas ao terminar de ler, ela reagiu pegando as duas mãos dele e beijando carinhosamente. Depois escorregou a mão direita pela face esquerda dele, numa carícia suave, percorrendo da orelha até o queixo. Ele foi ao céu e voltou, sorrindo com os olhos. Neste momento minha família chegou e precisei ir embora, ainda olhando para trás... Para mim, aquilo que eu estava assistindo era, verdadeiramente, fazer amor em público!
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E, chegou à meia-noite Aron Pedro
Para a bela Cinderela
O ano era 2017, próximo ao final do verão. Chegando à rodoviária cumprimentei meus recentes colegas - eu tinha acabado de ingressar em um novo colégio, distante da minha cidade, para cursar o ensino médio. – Tudo bem, pessoal? – Olá, Arthur. Claro! Como não estaria? Estou extremamente animado com o início das aulas – disse um colega. Em meio a tanta empolgação para a minha partida, eu não percebi uma menina, parecia bem nova, além de muito bonita, afastada em um canto. Foi a primeira vez que vi você, não conversamos naquele momento, mas a sua imagem já estava guardada em minha memória. Por algum motivo desconhecido, chamou a minha atenção. Curiosamente, depois descobri que você era irmã desse colega o qual falou comigo com grande empolgação. Mais tarde, concretizei uma forte amizade com ele, entretanto, nunca contei, até hoje, o meu antigo interesse por você, a flor mais linda que já tinha visto. Posteriormente, não tentei fazer nenhum contato contigo. Em 2017 fui calouro e minha rotina era de semi-internato - voltava para casa apenas aos finais de semana. Portanto, não tive tempo e também não me preocupei muito em conhecer qualquer garota para namorar. O tempo passou rápido, pisquei meus olhos, era 2019. Eu estava no último ano do ensino médio. A minha classe tinha aproximadamente 200 alunos. Um dia, em meio à multidão do pátio do meu antigo colégio, encontrei o seu irmão. E, por alguma razão misteriosa, naquele dia me lembrei daquela linda menina da rodoviária. Fiquei bastante curioso para saber como você estava. Já passara 2 anos e meio. Ainda assim, esperei alguns dias, tomei coragem, e finalmente mandei a clássica mensagem. – Oi, tudo bem? 35
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Surpreendentemente, você me respondeu. Depois disso, ficamos íntimos rapidamente, foi algo tão natural e sincero, que mesmo hoje, nunca passei por isso com outra garota. Conversávamos à noite, você sempre estava animada. Mesmo deitado na minha cama, no alojamento do meu colégio, pela madrugada, o sono não nos separava - ou algum colega que reclamava da luz do meu celular. Naqueles dias, você vivia numa torre de marfim. Eu não podia te ver e nem você podia me ver. As circunstâncias não eram favoráveis, na verdade, nunca foram. Mas, o destino tinha reservado uma data para o nosso encontro. O meu baile de formatura. Janeiro veio e o nosso tão sonhado dia também. Eu já tinha imaginado esse momento várias vezes. Chegando ao local, fiquei muito nervoso. Na realidade, eu não sabia se você realmente gostava de mim, fiquei com medo de estar iludido. Mesmo assim, comecei a te ver como uma princesa naquela noite, curiosamente você tinha certas semelhanças com algumas, pois, além de ser lindíssima, era também determinada, corajosa, curiosa, persistente e, além do mais, ainda vivia “presa em um castelo”. Sempre desejei ser seu príncipe encantado, mas, verdadeiramente, eu sempre soube que estava muito longe de ser encantado – e ainda mais longe de ser um príncipe. De fato, eu me sentia como um simples plebeu que um dia sonhou com uma princesa. Mesmo reconhecendo a minha real condição contigo, tentei ao menos buscar um coração nobre. Pois, você foi digna de toda a nobreza de um cavaleiro. Entrei no salão e sentei-me à minha mesa, aguardando você. A decoração estava perfeita, muito florida, o céu também conspirou ao nosso favor. Ele estava estrelado e a Lua sorria para nós, enviando seu lindo brilho, abençoando o nosso encontro. Além disso, tinha um lago bem grande que dava um ótimo ar romântico. Naquele momento eu percebi que tudo estava perfeito, ou melhor, quase perfeito, pois ainda faltava você. Instantes depois, seu irmão veio com a sua família. Vi você sentada à mesa. Senti meu coração apertando, ondas quebravam no meu estômago. Estava divina, tão linda, tão perfeita. Por certo, estava como uma princesa. Fitei meus olhos nos seus, fui a sua direção e tirei-lhe da sua mesa. Caminhamos para um local perto do lago, assim poderíamos conversar 36
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melhor. Envolvi meus braços nos seus e sentamos em uma poltrona. Naquele momento, pude admirar melhor a sua perfeição. Verdadeiramente o mundo parou, você brilhou mais que a Lua e as estrelas. Seu vestido era todo detalhado, parecia que era feito de pérolas e cristais muito brilhantes. Sua pele era como seda, seu cabelo era tão escuro, tão liso e tão lindo. Percebi que até o vento o admirava, pois várias vezes ele o acariciava, cuidadosamente, tocando nos seus fios, para que eles ondulassem serenamente como as ondas do mar. Seus olhos resplandeciam como o sol, e o seu sorriso... Ah! O seu sorriso, ele aquecia ainda mais o meu coração. Naquele momento você se tornou a minha princesa e eu não queria que aquela noite acabasse. Confesso que, enquanto conversava contigo, eu não fazia ideia do que dizia, fiquei encantado, apenas queria te beijar e dizer o quanto eu te amava, tudo foi um conto de fadas. Pouco tempo depois, a pandemia veio. E, como um badalar de sinos de uma igreja, anunciou que à meia-noite havia chegado. Como a Cinderela você teve que se afastar de mim. A magia de toda noite acabou, aos poucos você se distanciou ainda mais. E, naquele momento, percebi, mesmo se não houvesse a pandemia, você não queria realmente ser a minha princesa. Eu nunca esqueci aquela lição. Afinal, mesmo que buscasse um coração nobre, eu ainda era um plebeu. Ainda assim, aprendi que situações que não trazem dor ou sofrimento não ajudam para o crescimento. Além do mais, ninguém pode ganhar nada sem sacrificar alguma coisa. Todavia, quando o sofrimento é superado, ganhamos um coração forte o bastante para que nada o desanime. Um verdadeiro coração nobre. Por esse fato, faço este bilhete – muito mal escrito e elaborado – como forma de agradecimento. Pois, agora você sabe que teve grande protagonismo na jornada de um plebeu que conseguiu se tornar um nobre cavaleiro. E, finalmente, hoje posso dizer: eu estou pronto para procurar a minha verdadeira princesa.
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Sobre músicas, fotografias e machucados cicatrizando Isabella Rodrigues
Decidi escutar todas as músicas que me lembram você. Numa tentativa de sentir a saudade em excesso, inteira e profundamente só para ver se o reservatório dela esgota e deixa de vir em migalhas, dia após dia, desde que te vi sair do trem quando sua estação chegou. Mas não funcionou. Então arrumei uma folha de papel e uma caneta quase sem tinta com o pensamento de que te escrevendo talvez esse sentimento flua de mim para o universo e finalmente me deixe. Achei que se eu sumisse você me procuraria. Ingenuidade a minha. Você nunca foi previsível como os outros e isso não mudaria de uma hora pra outra. Agora, seis meses depois desde que nos encontramos pela última vez, me pego vendo as fotografias que revelei daquela nossa viagem. Eu poderia jurar que tinha te esquecido quase que por completo, mas ainda é algo semelhante a não respirar. Eu não consigo ficar sem por muito tempo. E quando a música que você me apresentou no nosso primeiro encontro tocou no modo aleatório da playlist do meu celular, as lágrimas jorraram para fora do meu peito como uma barragem se rompendo, impossível de conter. Admirando a espontaneidade que seu sorriso transmite nas fotos se torna impossível não questionar: você ainda pensa em mim? Algum dia pensou na possibilidade de existir um nós? É doloroso sentir sua falta nas madrugadas, quando o mundo está silencioso e minha mente agitada me toma pelas mãos. Penso se fiz algo de errado, me pergunto se minha loucura te assustou, penso tanto e tanto e é tão incerto. Você dizia que eu pensava demais e precisava canalizar isso para o mundo externo. Estou seguindo seu conselho. Sinto falta de te olhar nos olhos e te deixar sem graça, de deitar na areia contigo e enrolar meus dedos nos cachos de seu cabelo, de mergulhar no 39
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mar e perder a noção do tempo conversando sobre o que viesse na cabeça. Uma das coisas que não te disse é que todas as vezes que conversávamos eu sentia como se estivesse trocando ideias com uma extensão de mim mesma. Você era capaz de traduzir meus pensamentos em palavras suas como ninguém nunca fez antes. Provavelmente foi isso o que fez com que eu me apaixonasse. Aquela conexão quase palpável que fazia com que até os momentos de silêncio fossem aconchegantes. “E por falar em saudade, onde anda você?” a voz de Toquinho cantarola enquanto a caneta corre pelo papel. Quero o seu bem independente de onde estiver andando. Sempre fui um livro aberto quanto a tudo o que eu queria, mas nunca soube o que você quis. Acredito que nem você soubesse. Decidi não sofrer por você e não estou sofrendo agora, mesmo com as lágrimas correndo para fora. Não é nada que dê para matar, longe disso. É só saudade. Um pouco de apego. A verdade é que eu sobrevivo muito bem sem você, mas dói quando acho que você se foi e uma das músicas que você me apresentou toca no rádio. É como esquecer do machucado cicatrizando e só lembrar quando sem querer algo faz com que ele volte a arder. A gente nunca esquece, me disseram, o que muda é que uma hora a ausência deixa de causar aquela sensação de vazio que nos faz querer respirar mais fundo. Ainda assim, não me contento em manter as questões aprisionadas comigo. Você sentiu algo por mim em algum momento? Quero que saiba, se tiver dúvidas quanto a isso, que eu senti. Senti oceanos e ainda sinto. Espero que com o curso dos dias, das semanas e dos anos você seja apenas uma lembrança boa. Lembrança de quando eu era jovem e criava muitas expectativas. Lembrança de um ciclo que terminou para que outro pudesse recomeçar. A vontade é queimar essa carta logo que eu terminá-la, mas caso ela chegue na sua casa, resumo tudo o que eu quero te dizer em uma última palavra, aquela que eu usava para me despedir e que sempre me vem à mente quando penso no que vivemos juntos: Gratidão.
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O Normal Se Desnormalizou Jailson França
Muxoxos, caretas, biquinhos... sorrisos; de repente desapareceram por trás das diversas cores moldadas em formas e cortes quase sempre idênticos. Cores essas que apagaram o brilho dos charmosos batons, o branco dos sorrisos, ocultaram os desdentados e esconderam até os desbotados pelo tempo... disfarçaram tão bem os sorrisos amarelados muitas vezes forçados pelo desatino do momento. E as tantas cores surgiram como um símbolo de distanciamento forçado entre as pessoas. Já não importa mais ter um lipstick francês ou italiano, a lente de contato dentária, o piercing de ouro. A boca e o nariz tornaram-se órgãos íntimos, tímidos, meio que envergonhados, quase intocáveis. As cores das bandeiras de todas as nacionalidades foram retalhadas, embaralhadas e sobrepostas em todas as faces, neutralizando traços pessoais de cada um, transformando esses rostos em identidades visuais que se resumem em pares de olhos... e esses olhos agora se encontram e se insinuam buscando o próprio destaque na sociedade. E é preciso aprender a ler as emoções do outro através de olhares, que muitas vezes não se deixam compreender devido o gesto facial ter sido encoberto, a fala ter sido parcialmente suprimida, os soluços censurados, os gritos atenuados. Mas, o grito da alma de cada um ainda ecoa entre fendas de incertezas e clama pelo fim do desconhecido. De repente o que não era possível tornou-se obsoleto: o consumo desenfreado cessou, as grandes máquinas da economia desengrenaram, e cada um parou diante de si mesmo e da própria família, compartilhando uma tigela de pipoca na frente da tv, mexendo uma pedra de xadrez mesmo sem entender qual a estratégia, ouvindo discos antigos, folheando livros, organizando coisas velhas, redescobrindo um hobby, rindo de uma piada contada pela inocência de uma criança e até arriscando a contar outra... e percebeu que não morreria por ter parado de fazer o uso desmedido de 41
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todo o tempo que o seu corpo e mente suportara. Agora sobra tempo pra tudo, e cada um anseia pelo retorno do normal anormal: de não ter tempo pra nada... mas, se for sobrevivente. Diante do caos surgiram as nomeações, as desonerações... Entre medidas provisórias e emendas constitucionais emergiram as manipulações desavergonhadas do capital do povo amordaçado, que só observa e tenta espernear pelos direitos... mas, que direitos? Foram todos sonegados... transformaram tudo em deveres: de não ir aos shoppings, de não ir à praia, de não viajar, de não usar o próprio carro, de não ir trabalhar... de ficar dentro de casa e pagar as contas. De que adiantou a invenção dos supersônicos, dos foguetes que lançam seres pra conquistar a lua, das tentativas absurdas para colonizar marte, dos poderosos satélites que monitoram os pontos mais longínquos do universo? De que adiantou a comunicação entre qualquer outra pessoa do mundo acessível a um simples toque do indicador pelas redes sociais? Contudo, cabe aqui um pensamento: “será que o VIRUS se propagou através das redes sociais? Somente assim para alcançar diversos pontos extremos num espaço de tempo tão pequeno.” É... não faz sentido! Mas, a disseminação incalculável de fake news através das redes é um fato, e cada qual que se alimenta com as inferências, sofre as aflições do medo, da angústia e da depressão. De que adiantou segregar as nações com a truculência das guerras? Se um microrganismo invisível aos olhos da humanidade ultrapassou os muros de uma civilização que se diz moderna, rompeu as mais intransponíveis fronteiras do mundo e colocou a humanidade em stand by, e está transformando vidas em números... meras estatísticas. Um vírus que está pondo todo o mundo para trabalhar em prol dele: que seja para aprender a se defender, a aniquilar ou até conviver com ele. Todos unidos por uma única causa, ou seja, quase todos: estudam pra descobrir um antídoto, um remédio ou até mesmo um veneno e ainda não enxergaram que tem que se dobrar e buscar a cura que está no Ser Supremo. E não haverá entendimento entre um Dr. House e os antivirais, enquanto politizarem o desafio e superfaturarem os ganhos sobre as perdas 42
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irreparáveis de vidas humanas. E assim, continuaremos fazendo uso da última moda predominante do século, uma tendência mundial criada por essa força negativa e invisível que não discrimina a cor, a raça, a religião, a etariedade ou a classe social. Mas, domina, sufoca e abate, sem dó nem piedade. Agora entendemos que regras foram feitas para serem quebradas: Quem já viu pessoas entrarem disfarçadas em um banco e saírem com dinheiro sem serem abordadas, presas ou assassinadas? Era uma vez... o velho oeste. É o novo normal. E perante a situação atual ressurge a força e a perseverança no novo ser humano, já moldado em uma forja de dificuldades, que ainda sente medo até do ar que respira e não confia mais nem na própria roupa que veste. Mas, se agarra em um fio de esperança que ainda resta e o faz continuar a sonhar por um futuro favorável. E cabe aqui fazermos uma releitura de um trecho da obra Encontro Marcado de Fernando Sabino: “... De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro.” E assim, somente nos resta agora, interpretarmos e absorvermos esse pensamento e acreditarmos que dias melhores virão. Pois, é fato que, entre dor, tristeza e revolta, o amor prevalece, o povo se reinventa e o mundo não para. ...Enquanto uns choram, outros vendem máscaras. Salve a máscara!
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Shakespeare tinha razão... Jeane Lima
Despediu-se naquele dia como se fosse voltar amanhã. Não contava, enquanto seguia para casa após o trabalho, encontrar-se com um inimigo que lhe torturaria por muitos dias e lhe ameaçaria a vida. Professor Victor, como era conhecido na faculdade, fora contaminado pelo insólito vírus. Os alunos, assustados e ainda sem saber direito o que isso significava, ficaram preocupados. Mas era só um possível vírus gripal! Afirmavam os desavisados. Teoria descartada poucos dias depois, quando a pandemia se instalava em vários países do mundo. As aulas foram suspensas. Alunos e professores com suspeita de contágio, alarmaram os administradores da instituição, aderindo à quarentena determinada pelas autoridades nacionais. Momento de muita tensão, insegurança e temor para a população. Victor, agora, lutava pela vida na UTI de um hospital público. Sua família sofria. Muitas famílias sofriam. Entes queridos contaminados eram internados e não retornavam para suas casas. Pais demitidos, devido à crise rapidamente instaurada, temiam não atender as necessidades dos filhos. Os preços exorbitantes fizeram com que, os que tiveram salários reduzidos, diminuíssem suas compras no mercado e deixassem pendentes contas diversas. O Professor, semanas depois saiu da UTI e aplaudido pelos profissionais que cuidaram da sua recuperação, deixou o hospital. No mesmo período, um colega de trabalho e um de seus alunos entraram em óbito num renomado hospital da cidade. Pessoas isoladas, choravam a saudade dos amados distantes. Torturadores covardes, torturavam suas vítimas enquanto as mantinham trancadas com a desculpa da pandemia. Meses se passaram... 45
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Sofrimento. Depressão. Lágrimas. Mortes. Quando, enfim, nasceu um novo dia... Surgimento da vacina! Esperança! Lágrimas, agora de alívio. As aulas presenciais retornaram e o Professor Victor estava lá para receber os alunos. Chegaram aos poucos, quietos, ressabiados. Ninguém se cumprimentou com a mão, tampouco com abraço ou beijo. Os “ois” se deram com os olhares, ainda inseguros. O azul do céu estava mais vibrante, as ruas estavam limpas, a poluição havia diminuído. Nos metrôs, trens e ônibus as pessoas falavam baixo, reclamavam menos e não empurravam tanto. Algo havia mudado. Lições foram aprendidas. Algumas pessoas retomaram a fé esquecida e os clamores a Deus foram mais constantes. Ficou evidente que não controlamos o amanhã e que Shakespeare tinha razão ao dizer: “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que a vã filosofia dos homens possa imaginar”. Diante do mistério não há desigualdade alguma. Pobres sobreviveram, assim como ricos morreram, pois não dependia de dinheiro, nem de quem podia mais. Quem conseguiu entender os momentos introspectivos para reflexão e autoaceitação não cometeu suicídio e nenhum homicídio sequer. Saiu mais forte, amando e respeitando mais a si e ao próximo. Ao contrário dos que permitiram que seus traumas e refusões os dominassem e os destruíssem emocionalmente e/ou fisicamente. Como o vizinho do Professor Victor que em ataque de fúria quase ceifou a existência da companheira de anos. Amores foram testados; alguns sobreviveram ao confinamento, outros não suportaram conhecer de tão perto o companheiro escolhido. Novas amizades surgiram e até novos amores propiciados pelas redes 46
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sociais. Projetos engatilhados morreram, enquanto novos nasceram. O que era considerado seguro desmoronou e o improvável se destacou. A vida provou ser uma antítese. E, assim, seguiu com novos comportamentos e predileções para os sobreviventes do surto pandêmico viral.
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O céu estrelado Jéssica Cardoso
A noite cai e aos poucos o céu se enche de estrelas, mesmo na cidade, com tantas luzes, é possível perceber um novo brilho na escuridão da noite, um triste brilho fúnebre das mais de 35.000 novas estrelas que recentemente chegaram ao céu. Nas ruas, que deveriam estar desertas e silenciosas, é possível, por cima de todo o barulho de pessoas vazias de amor e pobres de alma, o choro das mães, o choro das mais de 50.000 famílias que ganharam uma estrelinha no céu. As floriculturas estão vazias, enquanto os cemitérios estão cheios de flores, flores carregadas de amor e dor. Sentada em minha janela, ouvindo o choro e a dor que cada vez chega mais perto, observo cada estrela indo embora e a luz do sol começando a emergir, vejo os meus olhos e torço para que uma luz no fim do túnel também possa surgir.
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O Som do Coração S. F. O’Neill
Um pouco antes de tudo isso começar, de todo esse afastamento e distanciamento das coisas e das pessoas que a gente ama, muito antes de imaginar que um organismo microscópico seria o motivo de tanta dor, eu costumava passar todos os dias pelo mesmo caminho enquanto seguia para o trabalho. Nunca tinha prestado atenção nela antes mesmo passando todos os dias por aquele lugar exatamente naquela hora. Mas a música... a música era um detalhe à parte... a mesma todos os dias e por infinitas vezes... Ela ficava ali parada olhando para o nada e ouvindo aquela música repetidamente... Era em um idioma que eu não entendia mas suas vozes combinadas e aquela batida... era perfeita. Naquele dia, pela primeira vez, parei para ouvir e o que eu senti foi como se meu mundo inteiro estivesse destruído... Uma dor incomensurável tomou conta do meu coração e eu não conseguia compreender. Só sentir... As lágrimas tomaram conta dos meus olhos e quase não consegui chegar ao meu destino. Os dias seguiram iguais. A menina de branco, a música alta e a minha dor a cada vez que escutava. Curiosa fui buscar a tradução para meu idioma e a história da criação da letra pois ao traduzir vi que era cheia de significados. Três amigos. Dois partiram. A que ficou escreveu a música... E eu só soube da existência deles quando já não existiam mais... eu não sabia o motivo de tanta dor, cheguei a pensar em TPM ou algo do tipo, afinal eu era manteiga derretida que chorava até em comercial de TV...foi bem doloroso saber do motivo de suas partidas e essa música criada pela melhor amiga... A letra e o significado embutido ali doeu muito... doeu demais. E afinal tinha um motivo para isso. Estar longe de quem se ama pode ser muito doloroso... Agora e, só agora, entendi. 51
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Tua órbita
Gabrielle Roveda
Ei, 1. Com licença, posso ocupar um minuto do seu tempo? — Veja o número 9. 2. Sou astronauta despreparado para desvendar teu infinito. — Veja o número 11. 3. Há um completo universo aí, onde cada constelação é uma memória tua. — Veja o número 12. 4. Eu, com essa minha vocação de pesquisador astrônomo de Google, não sei te decifrar nem nessas minhas linhas poéticas. — Veja o número 7. 5. Elas contam histórias, janelas da alma em pedaços irregulares da massa de uma galáxia belíssima. — Veja o número 13. 6. Com o único objetivo de te fazer presença em mim com poesia. 7. Talvez a verdade seja que não quero. — Veja o número 10. 8. Olhe no espelho, há um universo inteiro vagando dentro do teu olhar. Quero que olhe para ele com atenção. — Veja o número 3. 9. Quero que olhe para o céu, não, não esse. — Veja o número 8. 10. Não quero porque é melhor te descobrir pouco a pouco, aproveitando o caminho com calma. — Veja o número 15. 11. Tu bem sabe minha fissura pelo desconhecido, mas com você sou diferente. — Veja o número 4. 12. Todas essas estrelas formam quem você é. Independente do brilho, independente da idade que cada uma carrega. — Veja o número 5. 13. Lotada de nebulosas, buracos negros, asteroides, sóis e planetas que só você entende. — Veja o número 2. 14. A verdade é que esse embaraço todo é porque estou olhando para o céu e imaginando teu olhar a olhar para mim mais uma vez. — Veja o número 16. 15. Te construir em mim, me construir em ti sem intenção. — Veja o número 14. 16. Acho que só queria dizer que sinto saudade, uma saudade que transborda entre mundos, contrariando a distância. — Veja o número 6.
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Olhos nos olhos Juliana Rabelo
“Está decretado que hoje é o prazo limite para que Carolina Flores diga ao seu pai o que pensa. Mas só poderá falar a verdade.” — Agora que está decretado não podemos mais fugir. Ouviu meu pai? Grito em voz alta, mais para mim mesma, pois tenho certeza que ele não consegue me ouvir. O isolamento não me impediu de falar com meu pai. Meu caso é o oposto. O isolamento me obrigou a falar com ele. Agora que passo os dias trancada em casa, acabei me tornando mais pensativa. E de pensamento em pensamento, eu tinha que acabar chegando nele e na nossa necessidade de, enfim, conversarmos. Era inevitável. É assim que acontece com as coisas importantes que a gente decide ignorar nesta vida. Ficam escondidas esperando a hora certa de dar o bote. E a hora chegou ontem a noite. Estava deitada na rede, ouvindo música. Uma comemoração bem tranquila de aniversário. Até que eu comecei a ouvir “Father and son”. Pronto. O dia começou comigo chorando por causa dos áudios de parabéns da minha mãe. Fez todo sentido o dia terminar comigo chorando por conta da ausência de parabéns do meu pai. É estranha a vida. Cheia de coisas pitorescas. Por que eu chorei? Saudades eu acho. Eu sinto saudades do meu pai. Do pai que poderia ter sido. Do pai que ontem ligaria para mim, nem que fosse apenas para dizer uma palavra: Parabéns. Mas também sinto raiva do pai que não ligou. Do pai que não sabe a data. Do pai que me deixou sofrer sem se importar com isso. Já cansei de arrastar este entulho! Mas, ao mesmo tempo, não quero olhar isso de frente. Me sinto quase como uma vítima da síndrome de Estocolmo, presa ao que me agride. Por isso baixei um decreto. Para ser obrigada por algo inquestionável como uma lei, já que a lógica não está dando conta do recado. 55
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Eu sou uma mulher com uma missão difícil. Respiro fundo. Abro a adega e viro uma dose de vodca para ter coragem. Não me critique. Não é um hábito. É uma necessidade momentânea. Subo as escadas decidida. Eu tenho o direito de finalmente dizer a ele o que penso. Paro na porta. Respiro fundo. Até meu coração desacelerar. Entro com cuidado. Encosto a testa no espelho grande do quarto. A sua textura fria me acalma. Torna tudo real. Vamos começar. Olhos nos olhos como tem que ser. — Oi pai. — Oi Carolina. — Precisamos conversar. — Eu sei. Mas não sei se quero ouvir. — Você não tem opção meu pai. Está decretado. Somos obrigados. E eu quero fazer. Não aguento mais segurar. — Mas agora, que já se passaram trinta anos? — Porque agora foi meu aniversário. E eu senti saudades. — Eu não entendo. Você já sentiu tanta coisa por mim. Por que saudades? — Não faço a menor ideia. — Mas você sente saudades do quê? — Sinto saudades da ilusão de ter um pai. Ilusão esta que preenchia o meu buraco. Enquanto eu sabia muito pouco sobre você, eu podia imaginar tudo. Porque quando não se sabe nada, qualquer coisa é possível. E uma criança sempre imagina um mundo colorido. Então eu imaginava que você era um agente secreto em uma missão, e que um dia iria voltar para mim. — E você gostava que fosse assim? — Sim. Eu gostava. Meu buraco tinha uma capa. Mas aí rolou a adolescência. — O mundo virou preto? — Preto no branco. E aí precisamos concordar que a sua figura não fica muito bonita. Você me abandonou. E depois não voltou para buscar o que havia abandonado. Como se eu fosse pouca merda. — Carolina... 56
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— Sem essa pai. Foi o que você fez e pronto. E todo o meu buraco se encheu de raiva. Preta, lustrosa e escorregadia, como piche. Eu quase morri afogada dela. O piche gruda em você, sabia? Uma desgraça. Mas então percebi que você não merecia ter o poder sobre minha morte. Ter tido poder sobre a minha vida já era o bastante. — É justo. — Por isso apaguei você. E veio a indiferença. — Indiferença? Então por que estou aqui agora? — Porque ao apagar você, eu descobri que apaguei parte de mim. E comecei a sentir falta da parte apagada. Eu sentia falta da minha parte que é a sua herdeira. Então eu tinha que saber o que era eu, o que era você, e o que era nós dois. Mas como se não sabia nada sobre você? Nem o seu nome? Por isso pressionei a minha mãe até saber tudo. — E o que ela disse? — Ela disse que você era encantador. E um belo filho da puta. Que só uma vez você ameaçou mudar de ideia e vir me ver. Mas este momento passou rápido. E então você se foi. E só voltou porque eu dei um jeito de trazer você aqui. — Tudo isso é verdade. — Você foi um frouxo egoísta. — Sim, eu fui. — Você me negou o seu amor. — Sim eu neguei. — Você fez com que eu me sentisse sem valor. — Não era a minha intenção. Mas sim eu fiz. — Por tudo que você me fez eu tenho o direito atacar você. Eu quero gritar na sua cara. Eu quero desprezar você. Eu quero ver você sofrer por mim. — Não chore. — Choro sim! É o mínimo que posso fazer com tudo o que você me deixou de herança. Eu quero brigar com você, de verdade! E depois quero fazer as pazes. E talvez conseguir convencer você de que me abandonar foi um erro. E que vale a pena me amar. 57
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— Mas você inverteu tudo. Você não precisa me convencer que vale a pena te amar. Sou eu que deveria convencer você de que vale a pena me amar. A culpa não é sua. Eu errei. Eu perdi você. Mas eu não disse. E você jamais me amará. Eu gostaria que você tivesse me amado. — Mas como posso amar alguém que me abandonou? — Eu não sei. Mas eu queria. Se você me amasse, eu seria livre. — Então o que fazemos agora? Eu e você? — A verdade minha filha? — É o que está escrito no decreto. — A verdade é que eu não sei. Mas isso não importa. Eu estou morto há muito tempo. Não posso fazer nada. Mas você pode. Então o que faremos agora? Eu e você? Descolo a testa do espelho. Mal consigo ver a minha imagem borrada pelas lágrimas. Eu e eu. Eu e ele. Pelo menos o mais perto dele que posso chegar agora. A metade que trago em mim. Graças a Deus – e a mamãe – temos a outra metade, meu pai. A que sabe o que fazer. A que consegue fazer qualquer coisa. Inclusive amar você. Para que eu também seja livre. E por fim faremos algo juntos, como pai e filha.
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Ainda é tudo teu aqui Leonardo Martins
Olá. Já faz um tempo que a gente não se vê. Metade desse tempo é devido à pandemia que ocorre no mundo inteiro e, a outra metade, é que já andávamos afastado mesmo. Queria saber como vai você. Estive pensando muito em nós, no amor que sentimos, nas palavras que falamos, na forma como terminamos. Confesso que se eu soubesse que aquele seria nosso último almoço, eu teria me atrasado para voltar para o trabalho, tinha te pago mais um sorvete e tinha te dado um beijo mais demorado. As notícias na televisão me assustam. Peço aos céus todos os dias que você esteja bem, que essa doença não te alcance e que você esteja feliz. Às vezes eu penso em pegar um ônibus, sair da cidade e ir atrás de você. Se eu pudesse, arrancaria a máscara e te beijaria como nunca antes, mas o tempo atual não nos permite. Temos que amar a distancia, usar da tecnologia para matar a saudade e guardar nossas vontades dentro da mente e do coração porque essa é uma das melhores formas de cuidar de quem a gente ama e eu não gostaria de te colocar em perigo. Nunca gostei. Pra me sentir mais perto de você, ontem eu coloquei seu filme preferido na TV. Em algumas falas eu até conseguia ouvir sua voz, em outras cenas eu conseguia sentir sua animação com o que estava acontecendo e na cena das tartarugas, lembra? Nessa cena eu juro que enxerguei seu olho brilhando com a mesma emoção de quando assistimos pela última vez. Eu ainda cuido dos nossos peixes. Confesso que alguns deles morreram, mas eu coloquei outros no lugar e eles estão se dando super bem. Esse aquário foi presente mutuo do Dia dos Namorados há uns dois anos. Colocamos nomes nos peixes, compramos um aquário minúsculo, só que nunca faltou amor por eles. Na primeira vez que nossos peixes morreram, nós choramos, na segunda ficamos tristes, nas outras nós já estávamos acostumados. Acho que nosso amor foi peixes que tentamos cuidar dentro 59
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de um aquário quando devíamos ter colocado juntos no mar. Na primeira vez que terminamos, nós choramos, depois ficamos tristes e hoje nos acostumamos. Eu fui seu Oliver e você minha Leslie. Enfim, me mande notícias. Nós estamos tendo tempo para pensar. Nossa vida já não é mais a mesma. Sei que conseguimos amadurecer, também sei que você pensa e mim como eu penso em você, talvez, só não tenha o mesmo objetivo que eu. Devo te ligar qualquer dia, fazer uma vídeo chamada e voltar pras suas redes sociais. Só nessa quarentena eu já senti por você, amor, raiva, paixão, ódio, saudade, desejo, tristeza, alivio, preocupação, mas o que sempre prevalece acima dos outros sentimentos e o que eu só queria te dizer, queria não, preciso! “eu preciso dizer que te amo, te ganhar ou perder sem engano, é eu preciso dizer que te amo... tanto.”
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Vermelhidão
Leonardo Martins
Nós nos conhecemos já faz um tempo, é verdade, mas voltamos a nos falar mesmo no meio dessa quarentena, no meio dessa confusão toda que o mundo está. Te achei ali perdida no Messenger e decidi te chamar. Desculpa, mas eu nem lembro o que falei no início, e desculpa porque provavelmente eu usei de alguma desculpa pra te chamar daquela forma. Queria poder te ver. Conversando com você já descobri que você é vegetariana, que é linda eu já sabia, descobri que você é de peixes e que pessoas de peixes são incríveis, eu sabia que era advogada e nos últimos dias eu me tornei seu réu, ou seu refém, ainda não entendi bem, afinal, às vezes me pego preso você e com muita vontade de estar preso em você. Já sonhei tanto com você nas semanas que se passaram que eu já acordo com muita raiva por tudo ainda ser só um sonho. Queria poder te ver, mas, essa doença não deixa. Por falar em sonho, você ainda vai realizar algum deles? Ou alguma parte deles? Me empolguei no dia que eu estava te contando do sonho que eu tive, sério, me empolguei tanto que já não sabia o que era sonho ou o que era vontade manifestada no meio das minhas falas de prazer. Às vezes acho que não devia ter te contado tudo, mas eu nunca soube esconder nada. Espero que tenha ouvido a música que te enviei, aquela da Vanessa da Mata que se chama vermelho. Vermelho são os seus beijos, vermelhos são os seus olhos, e vermelho é o seu sutiã que você tira quando chega cansada de mais um dia de trabalho. Vermelho eu fico quando te vejo assim, vermelho é a cor que representa a intensidade das coisas, que desperta a fome, o desejo, sendo assim, com a licença poética que o texto me permite, eu posso dizer que “Eu vermelho você”. Acho que você vai entender bem isso. Desculpa se pareço maluco as vezes ou se te perturbo demais. Nosso vinho ainda tá aqui, a playlist fala muito de mim e estou torcendo para tudo 61
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acabar logo, ainda que a gente não vá viver nada, eu quero poder te ver, matar saudade, vontade, ou simplesmente jogar conversa fora e valorizar que enfim podemos estar perto fisicamente fazendo qualquer coisa. Me convida pra alguma coisa pós quarentena? Essa é minha carta aberta para o desejo. Nós vemos em breve. com Vermelhidão, do seu admirador. Até.
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O Homem E O Carnaval Lourildo Costa
Era bem de manhãzinha. As pessoas ainda dormiam dentro de suas casas, enquanto os primeiros ônibus vomitavam foliões que chegavam fatigados por virarem a noite nas folias do carnaval. Olhos modorrentos estampavam os rostos bem poucos aformoseados da gente que passou a noite na farra e na folia. Eram caras cobertas pelos véus da licenciosidade e da pândega. Os passageiros desciam ziguezagueantemente à procura de abrigo. Será que alguns lembrariam da casa que deixaram na noite anterior, do filho carente de pão e da mulher que necessita de carinho? Os veículos de comunicação de massa já traziam as primeiras notícias que precederam aquela quarta-feira de cinzas. A vida carnavalesca é cheia de diversões, de folias e de folguedos. Todavia, depois da festança, aparecem as prestações atrasadas e o minguado salário que ficou reduzido a quase nada durante as noites de folgança ruidosa. Muitos, talvez, não conciliassem o sono, devido os gritos da mulher que clamava por um pedaço de pão para o filho faminto. O homem, ainda em estado de sonolência, colocaria a culpa na inflação que corrói as economias de cada dia. A mulher acabaria concordando com o marido recém-chegado da farra, mesmo estando aborrecida, mas aceitaria o argumento de que o custo altíssimo era o vilão da vida desafortunada – só para não discordar do marido. Não percebiam que o viver se tornava mais tristonho, após cada carnaval. Era bem de manhãzinha. Entre os transeuntes enfadados de sono, vi descer um homem que muito mal se aguentava sobre o próprio corpo. A fantasia parecia-lhe um fardo, de tão incômoda. O que deveria passar em sua memória? Talvez ainda pudesse ouvir o rumor de muitas vozes, como as vozes de uma grande multidão neurastênica; gente cantando e gritando, muita gente pulando atrás de uma máscara. Também guardava na memória os sorrisos artificiais do coletivo de pessoas eufóricas e suadas de tanto pular. As vozes em tom excessivamente alto agora doíam em seus 63
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ouvidos, lágrimas rolavam nas faces ao ritmo do samba. Muitos batiam os pés, outros balanceavam o corpo, outros sacudiam as mãos. No meio daquele turbilhão de pessoas que dançavam redemoinhando o homem via a si mesmo, extraordinariamente se divertindo, diante das mulatas seminuas que arfavam os peitos seminus à sua frente. Elas pareciam rir tanto que os seus seios cresciam imperceptivelmente com o fluir e o refluir da respiração. Três dias e três noites foram suficientes para esquecer a mulher que reclamava copiosamente, o filho já doente por causa da fome. Pelo menos, durante o carnaval, poderia gritar e dar altas gargalhadas e ninguém se importaria com isso. Era bem de manhãzinha e uma tonalidade pouco fúlgida ameaçava misturar-se aos fantoches ambulantes que caminhavam pela avenida. Os fantoches, pelo menos, são versáteis e espontâneos, ao contrário dos seres mortos vivos que caminhavam em direção às suas casas. O mundo parecialhes pequeno, diante do oceano de problemas que se transformaram num enorme salão de pandemônios. Milhares de pessoas estão voltando dessa festa. Alguns se fantasiaram de presidentes e houve até quem se vestisse de ministro do carnaval. Era bem de manhãzinha e vi descer aquele homem ziguezagueante que carregava uma taça quebrada em uma das mãos. Parei, por um instante, para fitá-lo até desaparecer na última esquina. Quantos, na mesma situação, dobrariam aquele canto do cruzamento da avenida como fuga da tétrica realidade. Ao tentarem conciliar o sono, ouviriam apenas as vozes grugulejantes de uma criança e irritadiça de uma mulher rixosa.
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Quando tudo é espera Marisa Ribas
São quase cem dias sem compartilhar pessoalmente com meus amigos meus pensamentos e visão de mundo. Uma reclusão voluntária em favor da minha vida e de todos os outros. A solidão é a companhia constante que entristece a alma. A voz calada na garganta escondida na máscara de proteção escapa pelas mãos e pelos dedos em troca de mensagens que apenas esboçam o pensamento primário e não elaboram conceitos. – Que saudade do riso solto! Das discussões acirradas da cultura, política, sociedade e opiniões de todos os acontecimentos. Saudade de encontrar e abraçar bem forte todos os que amo! O pensamento recluso em pequenas frases e versos esparsos no Facebook, no Instagram não satisfazem o corpo e alma que tem tanta vida para compartilhar. E toda a arte de ouvir uma música e tocar junto acordes e partituras harmonizando vidas e sons? Deixar o corpo trabalhar com a música envolvendo a alma em doce acalanto. Só quimeras no YouTube, alimentando nas lives dos artistas mais queridos. E a Literatura, um vazio infinito de ouvir o outro próximo, o talento emergente de refletir a arte só por ser arte. São muitos sentimentos e infindáveis pensamentos de amor, dor, alegria, raiva, agradecimento. Um estar consigo mesmo na maior parte do tempo. Aprender a conhecer a si mesmo e refletir as relações com os outros. Uma vivência inesperada que a Pandemia trouxe até o meu íntimo ser . Sou refém da Pandemia, mas não vou me dar por vencida. Vou lutar até o fim. Até que tudo dê certo! Planejar uma nova vida, ainda desconhecida. Um pouco desconcertante e também assustador. Mas também uma aventura fascinante! Um mundo frágil com Pandemias e situações de pobreza e desestabilidade social. Novos desafios para a minha existência. Momentos na História da humanidade me ensinam que nossos ancestrais passaram por dificuldades extremas. E estou aqui para vencer e prosperar! E você o que espera do futuro? 65
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É Isso aí Félix Hilton
Eu era ainda muito jovem, sai de um primeiro casamento aos 26 anos, casei com uma amiga sem o saber, pois fiz seminário e pouco entendia de relacionamentos amorosos. Mas a vida é assim, não podemos parar de caminhar. Professor desde os dezenove anos, ainda amo a profissão apesar de todas as suas dificuldades em um país que pouco se preocupa com esta faceta da sociedade. Fiz um concurso público e passei, seria agente de saúde, deixei um filho de três anos, mas sempre o via, até hoje somos grandes amigos, a minha ex é uma mulher formidável, nunca discutimos, nos separamos porque percebemos que éramos grandes amigos. Para exercer a função de agente de saúde foi preciso fazer um curso de trinta dias na Fundação Santo André, e neste curso conheci muitas pessoas legais, uma delas a que é a merecedora da música escolhida cuja frase tomei para nossa vida de amor: “Não consigo parar de te olhar”. Na verdade, tive que conquistá-la durante toda a minha vida, lembrava então daquele filme em que uma loira muito bonita acordava todos os dias sem saber quem era, exceto os de relacionamento próximo, é assim que eu me sentia diante da minha amada, mas era muito bom conquista-la. Nas reuniões do grupo, umas vinte pessoas eu ficava sempre na posição contrária ao dela a fim de olhá-la, não conseguia parar. Logicamente que ela percebeu. Certo dia um dos rapazes do grupo disse para mim que iria pedia a Marli em namoro, ela não sabe disso até hoje, aí tive que ter coragem de pedi-la antes, acho que até hoje ele ri deste feito. Naquele mesmo dia eu a levei para lanchar, ela ama vinho. Estávamos em um balcão conversando. Eu a olhava insistentemente, amava cada traço de seu rosto. De repente ela bateu a mão na taça de vinho, já vazia, neste momento eu a olhava e sem tirar os olhos de um sorriso tão lindo peguei a taça 67
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no ar e a coloquei sobre o balcão. Ela estranhou o feito, como eu teria tamanho reflexo, foi o início de uma longa história de amor que precisará de inúmeras conquistas. No dia seguinte recebi os direitos trabalhistas de uma empresa onde eu trabalhava, e por incrível que pareça eu não sabia ainda como eram as pernas da minha amada. A primeira coisa que fiz foi lhe comprar de presente uma linda saia, entreguei para ela com segundas intenções é claro, neste dia eu já sentava ao lado dela, todos sabiam que estávamos namorando. Eu sempre chegava mais cedo que ela, sentei-me no lugar de costume e a aguardei. Ela foi pontual. Entrou tão linda, vestida com a saia que eu dera que meus olhos deviam brilhar muito, aliás, um detalhe, quando ficou muito feliz a cor dos meus olhos clareiam, de esverdeado para a verde-claro, naquele dia na certa ficou o mais claro possível, tamanha a paixão. Neste dia, os ônibus entraram em greve, e na hora de ir embora a opção era ir a pé, caronas não conseguimos entre os colegas, caminhos opostos. Mas, ao sair, um corpo de bombeiro ofereceu carona. Mas só cabia um de nós, certamente ela iria, mas soltou uma frase inesquecível: “Venha, eu sento no seu colo” Até hoje está frase faz parte dos meus pensamentos, apaixonado do jeito que eu estava, imagina. Fomos até o centro de Santo André abraçados, este fato marcou muito nossas vidas. Daquele dia até o final do curso namoramos, alguns fatos marcaram este período. Fui até a casa dela, havia marcado, é claro, mas chegando lá um rapaz sem camisa e calção me atendeu, perguntei por ela, mas fiquei preocupado com quem seria o rapaz, depois que entrei o conheci, era um de seus irmãos. Neste dia conheci a Tia Deja e o Vardão, duas figuraças, infelizmente após vinte anos ela morreu em um acidente de automóvel e o Vardão ficou paraplégico. O primeiro beijo foi na rua da casa dela, fiquei até tarde e no final da noite ela foi me levar até a esquina. Beijamo-nos por um longo tempo, foi outro dia inesquecível. A primeira noite que passei com ela foi percebida pela irmã, mas fui bem acolhido em seguida. Neste dia, inesquecível conheci a minha amada, nunca mais deixaria de olhar para ela sem o carinho que sinto até hoje. Marli é uma ótima dançarina, logo comprei roupas especiais para a 68
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dança do ventre e ela amava estes momentos, eu mais ainda. Ela era também uma ótima nadadora, demorou um pouco, mas compramos uma chácara com piscina em Guararema, amava olhar ela mergulhar, fazia-o para me provocar. Foram longos anos de alegria, festas, vendo os nossos filhos crescerem, o primeiro meu é do primeiro casamento, chama-se Leandro, e ela também tinha um do primeiro casamento chamado Gabriel, ambos com idades semelhantes, com o tempo nasceu Henrique, e por fim a Isabela. A chácara é testemunha de muita alegria, corriam o tempo todo, conviviam com animais regionais, tais como os esquilos, pássaros, borboletas, sapos, cobras, sim havia muitas cobras no local, mas nunca aconteceu nada de ruim, cuidávamos. Professora e eu também professor, tínhamos uma vida tranquila. Olhava-a caminhar, meu pique era menor que o dela, olhava-a dançar, também não aguentava o ritmo como a minha amada, aqui acrescento um parêntese, íamos a bailes e muitos queriam dançar com ela, e eu educadamente permitia só para vê-la dançar, ficava hipnotizado com seus passos, olhava-a estudar, fiz em madeira para ela um móvel de cama, onde ela se encaixava perfeitamente ficando numa posição confortável, banharse, e tantas outras cenas gravadas que jamais se apagarão, mesmo distante, é como se fosse naquele momento, deixei-a ir por amar demais, quero a felicidade dela, nem que seja longe deste coração que pulsa ao ritmo de cenas que jamais se apagarão. Brincava de nunca conhecê-la totalmente, todo dia uma novidade, a cada momento um brilho no olhar, uma dança diferente, os cabelos ainda mais sedosos e negros, minha amada é índia, filha de índios que moravam em tribo, vieram para a cidade grande, não compreenderam o estilo de vida e entregaram-se à bebida, morreram jovens como tantos outros milhares devido ao choque cultural. Olhava-a o tempo todo, e foi assim até o final desta história de amor que duraram dezenove anos, mas como eu disse no começo, um amor de reconquistas diárias, chega uma hora que a mulher quer mais que isso.
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Sujeito contido, verbo livre Sulamita Marques
Para Piêtra, com saudades Este texto precisa caminhar onde não vou e ver o que meus olhos não podem. Estou parada no espaço, mas corro no tempo. Escrevo e digo além de mim, ouço além do outro, sou permeada pelo mundo que imagino, cadeira de rodas feita de cadeira, duas rodas de bicicleta e duas rodas de triciclo infantil. Em meus sonhos sou engenheira, sou anfitriã e cozinheira de multidão. Eu não canto, eu tô trabalhando, eu sou humano. Tento cantar e os dedos doem pressionados nas cordas ácidas da vida. Veneno de formiga, cortador de legumes. Um dia o mundo vai lembrar de tudo assim como eu me lembro do mato. Hoje todos estamos em cubos ramificados em outros cubos, cuja porta-liberdade dá de frente pra rua proibida. Lugar do vírus, natureza. É proibido sair, é proibido pisar no chão e sentir o cheiro do mato. É obrigatório a prisão dos olhos ao movimento lento da barata que come os dedos dos pés do mendigo. Ele não tem casa. É obrigatório contar os passos da formiga amarela, número, distância percorrida da porta da sala ao buraco da pia. De tudo isso eu sei e não sei. No escuro penso nos meses, pais e irmã. Amo. Durmo quente, feliz e crente que vou acordar dormindo amanhã. Não sei se é domingo, mas eu vou estar presente no mesmo lugar e ausente do ônibus que corre pela Cosme Ferreira. Meu bairro não para, assim como não param os pés escravos nas pinguelas e o estupro nas terras indígenas. Eu não estou sozinha. Onde eu piso muita coisa aconteceu. E sobre as marcas escondidas pelo cimento-asfalto, as pessoas andam como se não houvesse doença nem (des)governo. Vivo enquanto na casa da frente uma mulher ouve gritos e chora. Vivo enquanto um bebê morre por falta de oxigênio dentro da nave mãe. Sangue, vírus. Às vezes também me falta ar. Pausa. Olho o movimento da rua, encruzilhada. Tiro a máscara para o ar anistiado entrar. Contaminado. Higienizo meus olhos com a língua comprida que tenho. Converso com a mesinha para saber se há esperança. Viro na cama, me torno mosquito. Ouço o apito da fábrica que produz massa. Nada é tão frágil quanto a massa. Cuidado. Eu só sei que existo por causa do tempo que passou. Por isso tudo que escrevo é o que preciso escrever. E um dia ainda vou ler em voz alta para que 71
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você ouça em um fone ou numa caixa de som. Distanciamento. Do fim ao começo, sempre estivemos afastados, assim como dizia o professor de física na sala 4 naquela terça-feira de 2004. Nenhum corpo se toca, minha boca nunca tocou coisa alguma. Meu corpo mente. “Atualizaram a lista do corona, bebê. Três mortes agora.”. Até logo.
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Foi sepultado hoje, o negro Zé... D’Araújo
Foi sepultado hoje, o negro Zé... Não, Não vai passar em nenhum canal de TV. Em uma daquelas reportagens maravilhosas na cobertura do sepultamento de alguém importante. Isso mesmo, a morte do Zé não tem a menor importância. Ele não foi politico, jogador de futebol, piloto de fórmula I. Nem tão pouco fez alguma descoberta no campo da ciência que o levasse a concorrer ao prêmio Nobel. Nunca pertenceu a nenhum sindicato, pois sempre trabalhou informalmente. Não foi ator, apresentador. Não amigos, ele não vai ter o seu nome, no letreiro de uma grande Loja de departamentos, Nem escrito em placas de uma grande avenida, rua, viela, ponte ou pinguela. O dia do seu nascimento, padecimento ou falecimento, não vai constar no calendário como um dia comemorativo, pois o Zé não foi Padre, pastor, ou Bispo. Nem mesmo um famoso cantor, compositor ou Poeta importante. Ele já veio ao mundo em desvantagem, pois nasceu em uma velha estalagem. Filho de mãe solteira, mesmo assim nunca bateu carteira. Quis o criador, talvez para aumentar sua dor que sua pele fosse de cor. Isso no mundo que vivemos é um problema, pois há um grande grupo de imbecis que acha que a cor da pele compromete a inteligência, na verdade, acho que esses tipos é que o seu cérebro desbotou junto a pele. Ele foi apenas um trabalhador anônimo que criou os seus filhos, apenas 73
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com o suor do seu próprio rosto, e a calosidade das suas mãos. Nunca se arrependeu de ser honesto, de viver baseando na própria consciência. Não vai ter nenhuma nota em nenhum jornal ou revista. O mundo nunca vai ficar sabendo da sua existência. Certamente nenhum grande autor vai se prontificar a escrever o texto da sua lápide. Onde descreva os grandes feitos do Zé, para sobreviver com o seu mísero salário. E certamente o seu túmulo não vai se tornar um ponto de peregrinação pelo milagre de transformar os seus filhos em homens de caráter, apesar de tudo ao redor contar totalmente contra. Mesmo assim o seu nascimento acabou virando uma nota, os seus sonhos uma melodia, e sua existência uma grande poesia. Nenhuma grande gravadora ousou convocá-lo para a sua playlist. Nenhuma Editora vai publicar os versos do seu viver. Infelizmente se você não mora, nem está fazendo turismo em ribeira mole, nos confins do inexistente, onde nasceu, viveu e morreu o Zé... Você não vai ficar sabendo nada da sua vida. Por isso tomei a liberdade de deixar por escrito esta humilde existência, e não espero por este gesto me tornar maior ou menor do que fui. Simplesmente mais um Zé, que pra muitos, é ninguém... Mas que pra mim. Ser eu mesmo, me basta.
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Preciso te conhecer Denise Doro
Hoje fazem exatamente cem dias que me encontro isolada do convívio social. Seguindo as recomendações dadas para esse período de Pandemia, jamais imaginei que chegaria aos quarenta e cinco anos para vivenciar esse caos mundial. Sou Anita, estatura mediana, cabelos castanhos, sócia numa loja de produtos para beleza, que se encontra fechada por motivos óbvios. Desde que tudo começou, minha sócia por ter condições financeiras excelentes, preferiu parar com as atividades e somente retornarmos quando o evento terminar. Causou-me um grande temor, pois não sabemos quando terminará. No início pensei em dissolver a sociedade, mas ela preferiu resolver toda a parte jurídica, porque não tínhamos empregados, acertou acordos com nossos fornecedores, e assumiu as dívidas a serem pagas alegando que depois eu a ressarciria, já que a loja é dela. Essa atitude me tranquilizou um pouco. Hoje, passados tantos dias, começo a preocupar-me. Tendo um casamento desfeito e sem filhos, morando sozinha num apartamento minúsculo na cidade de Juiz de Fora, a solidão vem me afetando de todas as maneiras. Apesar de nada me faltar, porque tenho boas reservas, o fato de não poder ver meus familiares, que residem em outro Estado e sair para estar com amigos trouxe-me uma angústia sem medidas. Comecei a usar mais o smartphone e nessas horas de vida virtual instalei a conselho de uma amiga um aplicativo de relacionamentos. Confesso que nunca fui muito simpática a eles. Sei de histórias bizarras e outras muito desconcertantes ocorridas com pessoas que conheço. Porém, no ímpeto de me distrair, queria mesmo era brincar. E se me aborrecesse sairia da mesma maneira que entrei. 75
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A saudade de estar com alguém, ser abraçada e abraçar, ser beijada e beijar, me consumia. Existem dias que choro muito. Já em outros me animo um pouco. O smartphone ajuda a conter a distância, não sendo a mesma coisa quando usamos como a única alternativa de relacionamento à distância. Ao entrar fiz um perfil sem muitas informações, porque sei dos perigos do excesso dessas nas redes sociais. O pouco que escrevi era verdadeiro. Uma foto bem recente e pronto. Arranjei nova distração. As curtidas não paravam e fui me empolgando. Tive uma abordagem por mensagem de um homem extremamente grosseiro. E o coloquei em seu devido lugar, bloqueando-o. No entanto, essas mensagens de cantadas indecorosas não cessavam... Ao fim de dois dias resolvi desinstalar o aplicativo. Ao entrar para deletar o perfil e a conta me deparei com uma mensagem muito educada de um homem residente no Estado do Rio de Janeiro, numa cidade serrana chamada Petrópolis. Olhei seu perfil e constatei de que se tratava de um homem maduro, cinquenta e cinco anos e de boa aparência. A profissão que lá estava era de advogado. Diante de alguém tão amável, resolvi continuar a conversa. Acabei fazendo o que não queria, mas ele foi persuasivo. Trocamos número de celular e WhatsApp. No WhatsApp estabelecemos muitos bate-papos. De início eram muito sobre nossas vidas e gostos. Combinamos de não usarmos o recurso de vídeo até que víssemos alguma possibilidade de relacionamento e isso durou exatamente um mês. Ao final já parecia termos confiança suficiente para as ligações pelo telefone. Dessa maneira tal como os diálogos escritos passaram a ser telefonemas longos todas as noites. Ele estava trabalhando em casa durante esse período. Após dois meses resolvemos abrir conversas com vídeo para nos vermos através dele. Foi de um impacto benéfico, já estávamos apaixonados pela voz, pelos gostos e pelas inúmeras afinidades. Eu conhecia por fotos a família dele e ele a minha. Sentimos que se tratava de uma relação mais que de amizade. Tivemos uma química muito forte. 76
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Tal acontecimento veio reafirmar que realmente teríamos tudo para dar certo. Nas conversas de vídeo ele me apresentou sua casa, todas as dependências, seu cachorro, enfim, eu fiz o mesmo. Em nossas comunicações que já duram oitenta dias, fazemos muitos planos, porém, o principal será nos conhecermos pessoalmente. Podemos nos abraçar e nos beijar. Nosso único impedimento são as restrições da Pandemia e nada mais. Entre os sonhos que temos, o primeiro é passarmos um fim de semana juntos numa pousada da cidade onde ele reside. Ali veremos se um convívio mais íntimo será capaz de reafirmar o que pensamos sentir um pelo outro. Se percebermos que é autêntico faremos de tudo para ficarmos juntos numa vida em comum. Serão feitos ajustes em nossas vidas. Só quando estivermos frente a frente poderemos resolver e traçarmos nossa vida dali pra frente. À princípio, desejo ficar aqui, caso isso não seja possível, terei que sair da sociedade e mudar-me para Petrópolis. É uma experiência inusitada. Muita ansiedade e questionamentos tipo: – E se eu não gostar do jeito dele? – E se ele não gostar de mim como através do celular? Muitas dúvidas passam pela minha mente e pela dele. O que posso afirmar é que vou pagar minha língua, pois sempre julguei as pessoas que diziam ter se conhecido pelas redes sociais e que acabaram casados e vivendo muito bem. Eu tinha um preconceito em relação ao assunto. Certamente eu estou contando os dias para ter a oportunidade de estar com Carlos. Somente uma coisa eu tenho que fazer... Preciso te conhecer.
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SÓ QUERIA TE DIZER
Abraço a distância Marco Antônio Santos
Você sempre se esquece de colocar o celular pra carregar. Entro em desespero quando não atende. Eu, hein. Sê bobo, tô morta não, garoto. Toda vez é isso! Saio de casa correndo, né, chego aqui e você abre a porta, ainda com cara de surpresa, pergunta se está tudo bem. Assim, ela sempre me recebe, quando não reclama ou só diz: Oi. Fala! A lâmpada da cozinha está piscando, o gás parece que não chega ao fim de semana. Dá pra trocar? Não consigo usar esse negócio de agenda eletrônica, anoto tudo no caderninho. Tem notícias da Celeste? Você almoçou? Fiz aquele frango com batatas. Seu irmão ainda não pagou esta conta, ligam todo dia. Já disse pra ele tirar meu telefone desse cadastro. No final da tarde, recolho um pedaço do bolo de fubá e o pote com o frango. Precisa de dinheiro? Não, mãe. Se precisar te falo, ainda estou te devendo aquela prestação do carro. Lembra? Deixa prá lá. Você não pagou a minha luz e a TV mês passado? Se precisar de algum, me liga e vem buscar. O vizinho de baixo fica escutando tudo, escreve a senha da conta aqui. Tá bom, mãe. Sábado eu volto. Fica com Deus e se cuida, filho. Então, a gente se abraça e eu lhe dou um beijo no rosto, enquanto ela fica no corredor até eu entrar nas escadas. Ouço o barulho da porta. É sempre assim. Sempre foi assim. Não sei como explicar, mas o isolamento traz os pequenos detalhes da memória a um nível insuportável. Meses, apenas deixando as compras na porta e avisando pelo interfone que tudo da lista foi comprado. Sapatos do lado de fora, máscaras e álcool nas mãos pra entrar e deixar o cartão do banco e as sacolas dentro da pia. Ela fica de longe, com a máscara que aprendeu a fazer com os restos de uma colcha velha, matéria de orgulho por costurar a proteção. Essa senhora que eu chamo de mãe, por 56 anos me abraçou e beijou meu rosto. Na primeira vez que subi as escadas da escola, em fila, com outra mulher segurando minha mão; antes de entrar na sala de espera do aeroporto e só voltar dois anos depois com o título de 79
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doutor em literatura, ao subir no altar e depois de descer, de mãos dadas com mais outra mulher. Ou simplesmente quando vou de visita. Agora tudo está proibido. Tudo está renegociado pra depois de não sei quando. Quando? O abraço de mãe deveria ser flexibilizado, beijo de mãe talvez tenha uma vacina potente. E eu olho pelo que sobra acima da máscara e vejo a vontade de me abraçar no franzir da testa. Mas os olhos, marejados, fogem com vergonha de chorar em época de pandemia. Quem sabe o choro da saudade do que está perto, do que está a um metro e meio venha mais forte, porque é engolido com saliva grossa. É silencioso por ter sido silenciado. O mesmo um metro e meio de distância para continuar a amar com medo do invisível vírus ameaçador. Não entender o porquê ainda estar viva e ter que passar por um isolamento, dentro de uma casa pequena, e ter os filhos ao longe. Não saber como lidar com esse mundo que não deu certo e seguir outro rumo desconhecido. Quantos respiradores ainda pulsarão pra que este cenário volte a ser argumento de um filme barato de ficção científica? A vida roubada aos 87 anos. Só tenho cinco garrafas de água. Acho que dá até sábado. Tá bem, mãe. Trago no sábado. Não precisa, deixei os sapatos lá fora. Passa o álcool em gel no cartão. Lava até as frutas. Um beijo. Outro... O corpo quer dizer. Mas está restrito a abrir a porta com o papel toalha. Os olhos evitam o encontro das mãos higienizadas. Os olhos se acendem com a máscara a esconder as dobras da boca, o nariz ofegante. Os olhos são a identidade. Falam e respiram pela face oculta. Ela olha para o pé da porta. Eu olho para a porta do 102. Vai com deus, meu filho! Sei que está no corredor, aguardando eu fazer a curva. Não volto, não retorno. Só digo “Beijo, mãe!” Desabo no segundo degrau.
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Estou só
Mara Feitosa Perruci
Estou só. Não porque não haja ninguém em casa. Abro a janela e o mundo está frio e cinza. Olho para a mão que empunha esta caneta e a vejo pálida. Estou só. Não que não haja sons, eles existem e me invadem sem consentimento: o tique-taque do relógio, o carro que passa na rua, os cachorros do apartamento de cima. Todos os sons que insistem em me mostrar que há vida ao meu redor. Mas eu continuo só. Pensei em algumas pessoas com quem pudesse trocar algumas ideias, conversar sobre qualquer coisa e, quem sabe, se surgisse oportunidade, pedir socorro, talvez um mágico elixir que levasse esta solidão para longe. Mas não chamo ninguém. Pode ser que um esteja muito ocupado para jogar conversa fora, pode ser que outro ainda precise mais falar do que ouvir, outro ainda more longe demais para uma ligação no meio do dia. Pode ser que eu esteja só demais para falar com alguém. Uma ária das Bodas de Fígaro, de Mozart é minha única companhia, um desafio técnico a ser vencido. Talvez o único elo que me ligue à vida que prossegue apesar de mim. Eu a ouço repetidamente numa tentativa de mergulhar nesta vida que temporariamente se afastou de mim. Olho meu piano... transformado em mero instrumento de trabalho, não reclama e, pacientemente, agrada meu retorno por prazer. A flauta, não sei onde está. Sinto falta daquele instrumento que depende que eu lhe sopre o fôlego de vida para cantar. Vejo-me como ela. Falta-me o fôlego de vida, a paixão. Parece que todos se foram e estou só. Gostaria de saber qual o caminho. Eu os seguiria de bom grado. Ao nos reencontrarmos faríamos uma grande festa e tudo seria colorido. Eu não mais estaria só e minha casa não estaria vazia. Eu abriria 81
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a janela e um arco-íris invadiria meus olhos colorindo-me por dentro e por fora; e a ária não seria mais um desafio, mas uma promessa; e os amigos estariam todos ao meu redor por maior que fossem as distâncias. Mas não sei o caminho e minha companhia continua a ser a sopranoviolino que repete, repete, repete e insiste que eu a acompanhe. Não tenho forças, me sinto só. Tenho a agenda cheia de compromissos e pessoas, mas me sinto só. Talvez seja o dia chuvoso e frio, talvez seja um passageiro estado de espírito, mas como diz o poeta “eu hoje acordei tão só, mais só do que merecia”. E isso dói.
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Estradas...
Mara Feitosa Perruci
Há algum tempo, eu e minha prima tínhamos 5 anos e nosso projeto de futuro era morarmos na mesma casa e comprarmos dois patinetes. Grandes projetos para quando completássemos 10 anos. Aos onze anos, meu futuro perfeito se realizaria quando aquele menino de sorriso largo e contagiante da sétima série notasse que eu existia e me dissesse: “Oi!” Aos dezessete, fazer uma faculdade, qualquer uma, já seria excelente! Aos vinte e dois, terminar a faculdade e conseguir um emprego de salto alto seria um belo futuro. Expectativas que se renovam, se fundem e se transformam num único fim: ser o que realmente sou, buscar este “sou” que, como num caleidoscópio, se forma a partir de muitos “eus”. E, inundada por este “Eu”, tomo o patinete e continuo buscando-me. Vejo ao longe o largo sorriso do menino e lhe digo: “Oi!”, carrego comigo toda a bagagem da faculdade para a qual me deixei conduzir e que não me levou para o alto, mas me permitiu um salto bastante confortável para um hoje de tênis. Continuo projetando um futuro. Não sonho um futuro – os sonhos se realizam no mágico mundo do “Tudo-Pode”. Não creio em mágica, creio em perseverança. Por isso projeto o meu futuro. Sei onde quero chegar e caminho. Às vezes a estrada é acidentada e meu patinete parece que vai se desmanchar. É neste momento que descubro que não caminho só, há pessoas comigo! Pessoas que, sem saber, me dão ferramentas para consertar o que parecia sem conserto e sigo em frente. E levo cada uma delas comigo, guardo-as carinhosamente em minha caixinha de segredos... E caminho. Um projeto é um querer; o realizar cabe a mim. Guardo o patinete, não vejo mais o menino – seguiu por caminhos muito distantes – nutro-me 83
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de minha bagagem, levanto a cabeça e sigo à pé. Sigo com meus próprios passos, é mais seguro, é mais Meu. A caixinha de segredos? Levo-a comigo junto ao coração. Se o cansaço bater, o tênis furar ou o desânimo tentar me fazer parar abro a caixinha e tudo se renova. E quando chegar na estação projetada, quero continuar para além do revelado, continuar ao lado de cada um dos meus segredos guardados, compartilhar com cada um o quão importantes foram todos a cada passo da viagem. Não chegarei a lugar algum sozinha, chegarei com todos vocês, meus segredos, ao meu redor e lá então faremos uma grande festa!
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Fuga em pânico
Marco Antônio Santos
Já sei que será mais um dia lento. A cabeça não para de pensar como atravessar uma pandemia sem me machucar, sem romper com alguém que insiste em acreditar que tudo não passa de um complô do sistema. Difícil isolar-se e contatar o mundo por uma tela fria que sabe mais do que a poesia que escrevi ontem para o jornal. De repente, o apartamento substituiu a cidade e o computador, o remédio contra a loucura. Nem sempre o apartamento teve esse cheiro de usado. Nem sempre coloquei relógios nos cômodos da casa, além do despertador do celular para me avisar que a hora da aula chegou e devo acessar o link da maldita plataforma. Fichários, anotações e tutoriais enchem a mesa de vidro que era somente para transparecer a sopeira de porcelana cheia de chaves antigas e perdidas pela memória as suas fechaduras. Termina a aula, alunos se esvaem em ok’s mentirosos. Ligo a tv em busca de uma curva alinhada, ou notícias de vacina. Os dados assombram e falam a verdade dessa tragédia. No entanto, as ruas estão vazias, não como ontem, quando alguém ameaçava multar transeuntes que se negavam em ficar em casa. Uma abelha entra na sala, quem sabe para salvar minha monotonia. Rápida, esperta, grande, sadia, ela pousa nas bananas da fruteira. Outra abelha percorre a cozinha em busca do pote de mel sobre o aparador. Nunca uma abelha havia entrado nesse apartamento de terceiro andar. Nunca havia matado uma abelha desta maneira, com o livro de sonetos e poemas satânicos. Um desses controles me levará ao ridículo da evasão do tempo. Tento mais um canal. Um filme, o sexo pronto para uma ejaculação solitária. A única que pode haver em isolamento do amor. Um noticiário explora números e gráficos. Em outro, a apresentadora, em pânico, mostra as imagens das praias tomadas por peixes-voadores, enguias, e crustáceos 85
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brilhantes. Preciso, correndo, colocar toalhas nas portas. Lá fora, um pássaro berra e outro bica as rosas do deserto que plantei ano passado e que, neste mês, vigam a natureza tardia com imensas flores violetas. Enquanto morcegos chineses sobrevoam virilmente as mangueiras da calçada. Até ontem, estava florida. Como as mangas cresceram pela manhã e exalam esse cheiro doce, enjoativo? Como todas as flores cresceram no jardim da portaria? E as abelhas? Lavo as mãos, volto ao computador, busco uma voz humana e só ouço os números da tragédia que ampliam outras tragédias humanas. Na internet, as imagens mostram estacionamentos tomados por zebras, hienas e supermercados saqueados por araras e gambás. Posso ver os fios balançando com os micos que correm em malabarismos excêntricos. Não são os mesmos. Há uns menores, filhotes, experimentam os brotos das flores da alameda e as amêndoas, sem medo de caírem. Abelhas e percevejos insistem em entrar. Umas morrem ao baterem de encontro ao vidro. Pelo interfone, chamo o zelador. Será que há alguma colmeia perto do prédio? Não sei. Nunca tivemos dessas. Os besouros assustados ameaçam os passantes de máscaras sem sorriso. Algum livro que deixei para ler na velhice pode me salvar da angústia de pensar como se chega ao fim do túnel dos desesperados. Mas os gatos tomaram conta do muro do prédio e cantam uma toada mediúnica. Fecho correndo as janelas e portas, com medo de os micos pularem para dentro de casa. Telefono para a defesa civil, talvez, quem sabe, obtenho alguma explicação. Nada, os ratos roem as linhas do poste. Tudo parece novo e anunciado. O ar horrivelmente fresco, as folhas soltas inundam o assoalho das ruas. Enquanto os homens se fecham de pânico, o gel atrai mais abelhas. Pelas brechas, pelas bicas, pelos ralos, as borboletas brotam em contaminação in natura. A ameaça de adoecer e morrer nas filas para um motor pulmonar permite que a vida tome seu posto. Já não há nenhuma imagem transmitida pelos canais famintos de novidades, os lagartos e búfalos tomaram as antenas. Uma nuvem de gafanhotos, pelo que vejo pela fresta da cortina, celebra a boa nova. É a esperança que entra pela tarde e colore o espaço de um azul agressivo, 86
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quando tudo já se dava por perdido. Quando nós íamos, felizes, observar felinos e elefantes no zoológico e modificar o rumo dos rios. Só dá tempo de pegar os documentos e a chave do carro. Mas, no sinal, a pandemia de quadrúpedes disputa o lugar com os carros amassados e confusos. Sigo pela rua esquerda, a que vai direto à rodovia. Deixo em casa meus peixes e as poucas garrafas de vinho e vodka abertas pelas lagartixas. Difícil subir a serra com pouca visão à frente e com o retrovisor coberto pelas aranhas e cigarras. Mas chego. Entro na estrada de barro, um silêncio vazio desliza pelas rádios locais. No chalé das palmeiras, o burro percebe minha chegada e os cães latem de alegria. Não há ninguém na casa, na padaria, na praça, na igreja, na prefeitura, na delegacia. Os bois se servem das frutas e legumes do mercado. Na porta, nesse momento, chama uma senhora, sem máscara, e me pergunta o que fazer com o crocodilo que está dormindo após lanchar os pães e a torta que ela havia preparado para a minha chegada. Quem sabe uma revolta. Quem sabe a natureza decidiu vencer nossas mãos nesses 40 anos. É tudo incerto. É tudo um mistério de um tempo roubado pelo medo da morte plantado em cada ar que sai dos pulmões sangrados. Não há nada a fazer, a não ser, levantar, abrir a cortina e as janelas, trocar de roupa, colocar a máscara e preparar o café diário, enquanto a roupa bate na lavadora.
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