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Olhos nos olhos
Olhos nos olhos Juliana Rabelo
“Está decretado que hoje é o prazo limite para que Carolina Flores diga ao seu pai o que pensa. Mas só poderá falar a verdade.” — Agora que está decretado não podemos mais fugir. Ouviu meu pai? Grito em voz alta, mais para mim mesma, pois tenho certeza que ele não consegue me ouvir.
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O isolamento não me impediu de falar com meu pai. Meu caso é o oposto. O isolamento me obrigou a falar com ele. Agora que passo os dias trancada em casa, acabei me tornando mais pensativa. E de pensamento em pensamento, eu tinha que acabar chegando nele e na nossa necessidade de, enfim, conversarmos. Era inevitável. É assim que acontece com as coisas importantes que a gente decide ignorar nesta vida. Ficam escondidas esperando a hora certa de dar o bote. E a hora chegou ontem a noite. Estava deitada na rede, ouvindo música. Uma comemoração bem tranquila de aniversário. Até que eu comecei a ouvir “Father and son”. Pronto. O dia começou comigo chorando por causa dos áudios de parabéns da minha mãe. Fez todo sentido o dia terminar comigo chorando por conta da ausência de parabéns do meu pai.
É estranha a vida. Cheia de coisas pitorescas. Por que eu chorei? Saudades eu acho. Eu sinto saudades do meu pai. Do pai que poderia ter sido. Do pai que ontem ligaria para mim, nem que fosse apenas para dizer uma palavra: Parabéns. Mas também sinto raiva do pai que não ligou. Do pai que não sabe a data. Do pai que me deixou sofrer sem se importar com isso.
Já cansei de arrastar este entulho! Mas, ao mesmo tempo, não quero olhar isso de frente. Me sinto quase como uma vítima da síndrome de Estocolmo, presa ao que me agride. Por isso baixei um decreto. Para ser obrigada por algo inquestionável como uma lei, já que a lógica não está dando conta do recado.
Eu sou uma mulher com uma missão difícil. Respiro fundo. Abro a adega e viro uma dose de vodca para ter coragem. Não me critique. Não é um hábito. É uma necessidade momentânea.
Subo as escadas decidida. Eu tenho o direito de finalmente dizer a ele o que penso. Paro na porta. Respiro fundo. Até meu coração desacelerar. Entro com cuidado. Encosto a testa no espelho grande do quarto. A sua textura fria me acalma. Torna tudo real. Vamos começar. Olhos nos olhos como tem que ser. — Oi pai. — Oi Carolina. — Precisamos conversar. — Eu sei. Mas não sei se quero ouvir. — Você não tem opção meu pai. Está decretado. Somos obrigados. E eu quero fazer. Não aguento mais segurar. — Mas agora, que já se passaram trinta anos? — Porque agora foi meu aniversário. E eu senti saudades. — Eu não entendo. Você já sentiu tanta coisa por mim. Por que saudades? — Não faço a menor ideia. — Mas você sente saudades do quê? — Sinto saudades da ilusão de ter um pai. Ilusão esta que preenchia o meu buraco. Enquanto eu sabia muito pouco sobre você, eu podia imaginar tudo. Porque quando não se sabe nada, qualquer coisa é possível. E uma criança sempre imagina um mundo colorido. Então eu imaginava que você era um agente secreto em uma missão, e que um dia iria voltar para mim. — E você gostava que fosse assim? — Sim. Eu gostava. Meu buraco tinha uma capa. Mas aí rolou a adolescência. — O mundo virou preto? — Preto no branco. E aí precisamos concordar que a sua figura não fica muito bonita. Você me abandonou. E depois não voltou para buscar o que havia abandonado. Como se eu fosse pouca merda. — Carolina...
— Sem essa pai. Foi o que você fez e pronto. E todo o meu buraco se encheu de raiva. Preta, lustrosa e escorregadia, como piche. Eu quase morri afogada dela. O piche gruda em você, sabia? Uma desgraça. Mas então percebi que você não merecia ter o poder sobre minha morte. Ter tido poder sobre a minha vida já era o bastante. — É justo. — Por isso apaguei você. E veio a indiferença. — Indiferença? Então por que estou aqui agora? — Porque ao apagar você, eu descobri que apaguei parte de mim. E comecei a sentir falta da parte apagada. Eu sentia falta da minha parte que é a sua herdeira. Então eu tinha que saber o que era eu, o que era você, e o que era nós dois. Mas como se não sabia nada sobre você? Nem o seu nome? Por isso pressionei a minha mãe até saber tudo. — E o que ela disse? — Ela disse que você era encantador. E um belo filho da puta. Que só uma vez você ameaçou mudar de ideia e vir me ver. Mas este momento passou rápido. E então você se foi. E só voltou porque eu dei um jeito de trazer você aqui. — Tudo isso é verdade. — Você foi um frouxo egoísta. — Sim, eu fui. — Você me negou o seu amor. — Sim eu neguei. — Você fez com que eu me sentisse sem valor. — Não era a minha intenção. Mas sim eu fiz. — Por tudo que você me fez eu tenho o direito atacar você. Eu quero gritar na sua cara. Eu quero desprezar você. Eu quero ver você sofrer por mim. — Não chore. — Choro sim! É o mínimo que posso fazer com tudo o que você me deixou de herança. Eu quero brigar com você, de verdade! E depois quero fazer as pazes. E talvez conseguir convencer você de que me abandonar foi um erro. E que vale a pena me amar.
— Mas você inverteu tudo. Você não precisa me convencer que vale a pena te amar. Sou eu que deveria convencer você de que vale a pena me amar. A culpa não é sua. Eu errei. Eu perdi você. Mas eu não disse. E você jamais me amará. Eu gostaria que você tivesse me amado. — Mas como posso amar alguém que me abandonou? — Eu não sei. Mas eu queria. Se você me amasse, eu seria livre. — Então o que fazemos agora? Eu e você? — A verdade minha filha? — É o que está escrito no decreto. — A verdade é que eu não sei. Mas isso não importa. Eu estou morto há muito tempo. Não posso fazer nada. Mas você pode. Então o que faremos agora? Eu e você?
Descolo a testa do espelho. Mal consigo ver a minha imagem borrada pelas lágrimas. Eu e eu. Eu e ele. Pelo menos o mais perto dele que posso chegar agora. A metade que trago em mim. Graças a Deus – e a mamãe – temos a outra metade, meu pai. A que sabe o que fazer. A que consegue fazer qualquer coisa. Inclusive amar você. Para que eu também seja livre. E por fim faremos algo juntos, como pai e filha.