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Tô me guardando pra quando esse dia chegar

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Fuga em pânico

Fuga em pânico

SÓ QUERIA TE DIZER Tô me guardando pra quando esse dia chegar Alvaro Senra

Na quinta-feira, depois do Carnaval, eu e ela deixamos tudo arrumado no porta-malas do carro. Partiríamos na manhã seguinte para São Paulo, onde deixaríamos nosso filho, prestes a iniciar o ano letivo. De lá, ela aproveitaria e pegaria o ônibus para Minas e retomaria o trabalho, enquanto eu voltaria para nossa casa em Niterói. Tudo ocorreu de acordo com o planejado. Ida tranquila, com uma parada para almoçar e tomar um café. Depois, uma reta só até São Paulo, aonde jantamos e passamos a noite. Na manhã seguinte, deixei-a na rodoviária e levei meu filho até a república onde vive com outros colegas. Prometemos, todos, nos rever no máximo até a Semana Santa. Peguei, então, a estrada de volta, uma viagem sem sobressaltos, e retornei tranquilamente para casa. Tudo certo, na próxima segunda a vida volta à rotina e vamos nos falando. Se der pé, arranjo um jeito de no meio de março, antes mesmo da Semana Santa, fazer uma surpresa e passar uns dias com ela em Minas. Não deu pé. Duas semanas depois começam as dificuldades de movimentação. Vejo as notícias: o COVID se espalha e o número de infectados começa a aumentar. Tenho receio de sair às ruas. Estou ilhado em Niterói. Ela, isolada em Minas. Nosso filho, fechado com os colegas na república em São Paulo. Chega o outono, minha época favorita de subir a Mantiqueira, friozinho entrando pela janela do carro, os tucanos e os ipês soberanos ao longo das estradas, para ao final encontrá-la e ficar no quintal enchendo o saco dos gatos, partilhando gostosamente o café servido com bolo, fazendo nada juntos. Mas não é isso que acontece. Fico no apartamento, o sol delicioso do outono entra sem pedir licença pela janela, e eu me limito a contemplá-lo, tão perto dele, tão longe dela.

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Mantemos a esperança do encontro na Semana Santa. O feriado vem. Mas nada. Não há transporte possível. A promessa é adiada para o feriado de Tiradentes. Não dá. Um pouquinho mais, quem sabe até 1º de maio tudo se resolve. Vem o lockout. No início, procuro manter a vida com os ritos de sempre, na expectativa de um hiato complicado, mas curto. Aos poucos, de forma quase imperceptível, as coisas começam a desandar. Os horários cotidianos criados ao longo de décadas de hábitos regulares se desorganizam, inclusive para coisas tão triviais como ir ao banheiro ou tomar o café da manhã. O sono se desordena. Começo a me sentir meio parecido com os gatos, acordando, comendo e dormindo, numa liturgia que começa a ter efeitos para o conjunto de outras coisas de minha vida. Um dia, vou à farmácia e compro máscaras. Volto a caminhar e a pegar sol, como antídotos para a ansiedade. Com o lockout, paro novamente. Coisas sagradas, como a cerveja no boteco, o papo com os amigos, o bom dia ao motorista do ônibus, o sorriso e o esporro nos alunos começam a se distanciar na memória. Em pouco tempo, nomes e lugares são esquecidos, como se eu tivesse recebido um flash daquela arma futurista de MiB – Homens de Preto! Adquiro o hábito de ir para as janelas, de dia a olhar para as cabecinhas lá embaixo, tentando conferir quem usa ou não usa máscara, de noite a gritar Fora Bozo! Brigo com uns evangélicos que promovem uma espécie de culto-relâmpago na rua. Canso. Resolvo botar em dia as leituras e os filmes, mas me saturo.

Até que, quase sem reparar, me vejo acordando de novo bem cedo, como sempre fiz, e conversando com ela, mexendo em seus cabelos e tomando café, tudo pela tela do celular. Em certo dia no início de maio brigamos online, de forma absolutamente igual às brigas que periodicamente tínhamos quando estávamos um ao lado do outro. Um marco da nova existência. Passo a lanchar com meu filho, pelo computador. Me vejo bebendo com os amigos por esses aplicativos de que nunca guardo o nome, cada um em sua casa, com um copo na mão.

Uma nova forma de existir nasce aos poucos da desordem trazida pelo vírus? Uma nova ordem, da desorganização? Um desfuturo, a partir do não-presente?

Por uma dessas coincidências da vida, começo a ler O Deserto dos Tártaros, do escritor italiano Dino Buzatti. A vida do jovem oficial Giovanni Drogo, deslocado para uma fortaleza no fim do mundo, sempre na expectativa de uma transferência ou de uma guerra com um inimigo invisível que nunca ataca, e sua gradativa adaptação a uma vida reclusa, longe de seus sonhos de paixão e heroísmo. Leio de um jato só, da primeira à última página. Fico inquieto. Como Giovanni Drogo, meu apartamento se transformou numa fortaleza em meio a uma fronteira inóspita, à espera da chegada do inimigo invisível, não o exército tártaro, mas o vírus, que pode estar à espreita em qualquer lugar lá fora. Enquanto isso, todos os fazemos refeições juntos, eu aqui em Niterói, ela lá em Minas, ele em São Paulo. Conversamos, rimos, brigamos. Paramos de fazer planos. Já não nos dizemos mais coisas como: vamos viajar no recesso de julho, ou, que tal a gente se encontrar no sete de setembro? Meus sonhos se reduziram ao extremo da trivialidade. Minha promessa amorosa é: quando o desfuturo se transformar em futuro de novo, e nós nos reunirmos, quero lhes servir uma xícara de café e cortar um pedaço de bolo. Tô me guardando pra quando esse dia chegar.

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