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Diferenças

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Fuga em pânico

Fuga em pânico

Diferenças Antonio Carlos Sarmento

Ele tinha uns 70 anos e ela, talvez, uns 5 anos a menos. Eu estava do lado de fora do restaurante, sentado num banco, aguardando a minha família chegar e vendo-os pelo vidro do fundo do salão. Não sei por que, passei a observá-los. Gostaria de estar de óculos escuros para disfarçar, apontar a cabeça em outra direção, mantendo o olhar no casal. Mas óculos escuros à noite seria demais... Tive que manter a discrição sem perder detalhes da descrição.

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Ambos tinham boa aparência: ele, cabelo bem cortado, uma camisa social azul-escuro de colarinho italiano, coluna ereta, gestos firmes, olhar calmo e, mesmo à distância, posso garantir que usava um bom perfume. Ela estava de costas, mas de vez em quando, com o movimento de cabeça, era possível perceber o perfil elegante e bem cuidado. Apesar da idade, como quase todas as mulheres desta faixa etária, não possuía cabelos brancos... Usava uma roupa bege e por cima uma espécie de xale, trançado com originalidade nos ombros, cujas pontas derramavam-se pelas costas.

Mas o que atraiu minha atenção foi, antes de tudo, o fato de que destoavam de quase todas as demais mesas do salão. Eles simplesmente conversavam, olho no olho. Parecia que, para eles, aquela era a única mesa do restaurante. Um salão inteiro, cheio de gente e apenas existia aquela mesinha de dois lugares.

O garçom chegou trazendo um vinho branco num balde de gelo: mostrou só a ela a garrafa. Estranhei. Ela acenou positivamente e foi servida. Fiquei atento e ainda mais interessado. O garçom retornou com uma garrafa de vinho tinto, apresentou a ele e serviu. Dois vinhos diferentes numa mesa de casal! Aquilo me intrigou. Eles brindaram, cada um bebeu um pouco, pousaram as taças contrastantes e deram as mãos. Ficaram um bom tempo naquele enlevo, acariciando as mãos, trocando olhares, sorrisos e palavras.

Pareciam haver ali nítidas preferências opostas em relação a cores claras e escuras. Uma diferença marcante, no trajar e na bebida. Foi o gatilho para uma divagação: se viesse um pratinho misto de azeitonas verdes e pretas, ela comeria apenas as verdes e ele as pretas. Na escolha dos pratos, ela iria comer um peito de frango ou peixe enquanto ele, um filé mignon, provavelmente... A sobremesa dela, um sorvete de creme e a dele, um de chocolate. Aqueles dois pareciam conviver tranquilamente com divergentes preferências. Pensei então que seria um problema se um tentasse trazer o outro para o seu próprio gosto: – Vinho tinto é o verdadeiro vinho. Experimenta este. Você vai aprender a gostar. – Não quero aprender. Estou satisfeita assim. – Você cismou com isso. Se tomasse o tinto evitaria termos que pedir duas garrafas. – Se for por isso pede só uma garrafa. Do branco! – Tá, deixa pra lá!

Fiquei imaginando quantas outras diferenças haveria entre eles, como em todo casal. E como é preciso controlar a nossa tendência de querer fazer o outro semelhante a nós mesmos. Até em coisas irrelevantes...

Acabamos, muitas vezes, apreciando no outro apenas aquilo que é semelhante em nós. Como se fossemos uma peça de quebra-cabeças, a exigir uma outra que se ajuste perfeitamente a todas as características e nuances. Nossa incorrigível afeição pelo igual e rejeição pelo diferente. Aqueles dois pareciam ter superado tudo isso e encontrado o caminho da verdadeira aceitação: se divertiam com o que é diverso.

Fiz um passeio com o olhar pelo ambiente. Constatei com tristeza o protagonismo do celular. Por incrível que pareça, em todas as demais mesas, havia celulares estacionados ou em plena atividade. Quanta gente com as “armas” na mesa, prontas a agredir a sua companhia ao ausentar-se com as longas espiadas na tela. Especialmente nas mesas de casais, onde na maioria das vezes, a retaliação do outro é fazer o mesmo: ambos aderidos ao celular como película de vidro. Corpos presentes, almas ausentes...

Aí me veio uma digressão: será que o celular funciona como uma fuga das diferenças? Talvez o que nos atraia tanto nele seja a homogeneidade dos

grupos, das opiniões, dos interesses semelhantes. Ali o comando é nosso: se surge uma divergência podemos sair do grupo, bloquear o contato ou ignorar. Só visitamos os sites que nos interessam, só vemos as notícias que queremos, só falamos com quem pensa como nós, só ouvimos o que nos agrada. E sempre protegidos pela distância, sem ter que enfrentar o olhar do outro. É o império da vontade própria, a prevalência do nosso jeito de ser. O solitário troglodita que temos no peito encontra ali a sua caverna! Sem incômodos, sem interrupções, sem contrariedades, sem ter que ceder, sem diferenças...

Voltei à única mesa de casal do restaurante. Ele tirou do bolso um pequeno envelope e entregou a ela, que abriu e passou a ler o conteúdo. Não pude ver o rosto, mas ao terminar de ler, ela reagiu pegando as duas mãos dele e beijando carinhosamente. Depois escorregou a mão direita pela face esquerda dele, numa carícia suave, percorrendo da orelha até o queixo. Ele foi ao céu e voltou, sorrindo com os olhos.

Neste momento minha família chegou e precisei ir embora, ainda olhando para trás...

Para mim, aquilo que eu estava assistindo era, verdadeiramente, fazer amor em público!

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