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Coroa Suprema
from Não Saia Agora
Coroa Suprema Daniel Constantini
Outubro de 1996 – Amparo – interior de São Paulo
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O amanhecer na cidade de Amparo trazia consigo a harmonia do sol com a brisa da manhã. Soprava o cheiro gostoso de terra molhada com o saboroso aroma de café feito na hora que se espalhava pela rua Duque de Caxias atraindo muitos curiosos. Mistura-se ao cheiro do café o pão quentinho numa harmoniosa complexidade de fragrância que despertava a fome de qualquer pessoa. No entanto, diferente de outros estabelecimentos, a cafeteria Khave Café não era apenas um lugar bacana para se alimentar todas as manhãs e tomar um ótimo café, pois não haviam dúvidas de que aquele era o melhor lugar da cidade. Mariane Castelo, a proprietária, ou a Baronesa do café, abria sua cafeteria todas as manhãs, junto de Eduarda, a artista especial do grupo, Ellen, a cozinheira e seu barista mais antigo, Cloud, um francês com sotaque paulista. Juntos eram uma equipe fantástica. Fazia apenas seis meses desde abertura da cafeteria que trabalhava no ambiente da magia, esoterismo e mistério. Uma decoração completamente roxa, branca e preta, digna da casa de uma feiticeira. Junto do café e pão quentinho, o interior da cafeteria se misturava com fragrâncias de maças, canela e baunilha. E lá dentro a mágica acontecia. Todos faziam seu ritual matinal especializado para cada tipo de cliente. Os clientes que eram atendidos e solicitava uma audiência com Mariane Castelo passavam por uma triagem antes de tudo. Todos eles conversavam antes com Eduarda, uma menina de quinze anos, cega, que pintava artes especiais na cafeteria para alegrar o dia dos clientes. Eduarda era especial, pois sabia pintar todos os estilos artísticos e com sua habilidade ela pintava o futuro dos clientes. Um show bem diferente que se somava às leituras de tarô de Mariane Castelo ou às leituras de borra de café que eram práticas recorrentes do estabelecimento. Porém, naquele dia, alguém desejava desesperadamente encontrar com Mariane Castelo. Tinha um desejo a ser realizado. E como as más línguas no submundo espalhavam, Mariane podia conseguir qualquer coisa que um cliente quisesse. Mas ele precisava ser digno da benfeitoria. Por isso Eduarda fazia a triagem. Ela afastava os curiosos dos desesperados.
Eduarda conversava com os clientes através do telefone, redes sociais ou WhatsApp. Cabelos loiros, pele branca como leite e olhos cinzas. Vestido azul de cetim com uma tiara de borboleta na cabeça. Parecia uma princesa segurando seu bastão de tato que mais parecia um cetro. Apesar da cegueira, Eduarda andava e fazia todas as suas tarefas de forma exemplar como qualquer pessoa. Muitos ainda duvidam de que realmente seja cega. E realmente ela não era realmente cega. Ela conseguia enxergar ao seu redor com a aura. Aura que irradiava em tudo. Nos objetos, pessoas, animais, plantas e elementos da natureza. E foi assim que ela descobriu Beatriz, uma garota de 17 anos que estava explodindo de ansiedade depois que começou a passar no papel tudo que ouvia de madrugada. Não conseguia mais dormir. Ou ela silenciava essas vozes ou enlouquecia. Recorreu ao Khave Café, o único lugar da cidade onde o sobrenatural, a magia e o mistério eram tratados como assuntos de muita importância. — Eu não sei mais o que fazer. Eu não consigo mais dormir, não tenho mais fome e minha ansiedade está explodindo. Estou fazendo tratamento psicológico, mas eu tenho muito medo que me tratem como uma esquizofrênica... — A menina apontava para os papeis em cima da mesa que ela mesma havia escrito.
Beatriz estava vestida de preto, os olhos borrados com maquiagem tentando esconder as olheiras que sobressaiam. Olhos vermelhos de tanto chorar ou de alguma droga, não dava para ter certeza. Pernas balançando sem parar, jeans e coturno preto. Esfregava as mãos em agonia enquanto seu corpo balançava pra frente e pra trás diversas vezes. Tinha falhas em sua voz, melancolia e desespero. Tomava um gole de energético a cada final de sentença e respirava fundo. Era nítido que seu estado mental estava péssimo.
Eduarda ouvia com atenção as palavras de Beatriz e sentia a dor e o desespero da garota. A aura roxa estava escurecendo ao mesmo tempo que parecia desaparecer. Era uma bomba relógio prestes a explodir. — Beatriz... Você está me dizendo que esses textos não são seus, mas você escreveu. Você ouviu pessoas narrando essas histórias na sua cabeça, diferentes autores, diferentes estilos de escrita. Você os compilou e depois uma das vozes te disseram que os textos falam sobre um futuro próximo? – Eduarda passava as mãos folha por folha deixando-as na mesa logo em seguida, folheando com calma.
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— Do jeito que você fala eu pareço uma psicótica.... — Beatriz se ofendeu. — Eu acredito em você, mas eu preciso muito mais que isso pra poder te dar acesso a nossa Baronesa. Sabe, ela não é uma mulher fácil de se lidar. E se eu dou acesso a ela a uma garota mimada com transtornos psicológicos, eu vou me dar mal... — Você precisa acreditar em mim! Esses textos falam sobre uma pandemia, ou um isolamento, que vai acontecer no próximo século. Eu só não sei quando vai acontecer. Parecem textos de ficção, mas as vozes me disseram que a inspiração é uma cadeia de fatores de algo muito complicado que acontecerá. Eu sei que você não pode ler mas... — Eu posso sim, aliás, eu já li tudo. Sou mais rápida que você — alfinetou Eduarda. — Tá vendo esse texto? Uma jornalista que foi presa por saber demais, onde uma tal COVID-19 qualquer coisa infectou o mundo todo. E não é só esse, tem outros falando sobre isolamento ou até mesmo mortos vivos, criaturas. Tem até um vampiro. — Beatriz, vou ser sincera com você. Mesmo você tendo uma péssima aura, eu sinto que você tem uma grande criatividade e pode ter tido uma inspiração pra escrever. Já pensou em ser escritora e publicar esses contos? — Não! Você não entende! Eu não tenho capacidade pra escrever uma coisa dessas, eu nem sabia escrever excesso até ontem antes de ler esses textos. E eu não gosto de ler nada, eu só gosto de ficar em casa, na minha cama e ouvir músicas. Os textos foram soprados nos meus ouvidos, como se fosse... sei lá, aquelas coisas espiritas, como se chama, psitrofia, psicobacia, paraplexia... — Psicografia? — Isso! Será que eu sou uma dessas bruxas que ouvi vozes e escrevem coisas. — Bruxas não fazem isso, espíritas fazem, não confunda as coisas... – Eduarda riu. — Olha, quer saber? Perda de tempo. Ta na cara que você não está acreditando em mim. Eu vou embora. — Beatriz pegou os papéis e se levantou. — Não, espera! — Eduarda interrompeu. — Me deixe levar esses documentos para a Baronesa. Se ela aceitar
falar com você, mesmo eu não acreditando, vocês vão se encontrar, então você pode pedir ajuda a ela. — Por favor, não peço nada mais que isso... eu não aguento mais... — Beatriz suspirou aliviada, mas ainda sentia o peso nas costas e a dor da insônia. — Mas qual é seu verdadeiro pedido? — Eduarda apoiou as mãos no queixo voltando sua atenção à garota. — Eu não tenho esquizofrenia. Meus pais querem me internar e eu não aguento mais ter que me drogar pra poder silenciar as vozes da minha cabeça. Eu não sou mais forte, estou enfraquecendo, eu tenho medo de acabar fazendo alguma coisa que e não consiga nem me arrepender depois. Estou quebrando e explodindo. Eu só quero que essas vozes se calem. — Como você tem tanta certeza que você não esta realmente doente?
Beatriz ficou em silêncio, olhou ao seu redor, então disse: — Não tenho. Mas você vai precisar lavar o seu vestido...
Beatriz saiu do café com um sorriso nos lábios. Eduarda balançou a cabeça e se levantou. Três passos depois, sem perceber, ela esbarrou em uma mulher com uma xícara na mão e o chocolate derramou em seu vestido. — Desculpa... — disse Eduarda, envergonhada. — Eu não... eu não... não a vi...
Então Eduarda riu e foi aos fundos se trocar. Realmente seu vestido seria lavado.
Depois de trocar seu vestido por um vestido vermelho e uma tiara da mesma cor, Eduarda bateu três vezes na porta lilás do fundo da cafeteria. Aquele era o Santuário da Baronesa, o famoso salão lilás, os aposentos de Mariane Castelo onde ela conduzia todas as suas experiências diárias com o misticismo. A porta se abriu e Eduarda entrou com seu bastão tateando a entrada.
Uma sala completamente lilás e branca. Um espelho d’água no centro rodeado por almofadas aconchegantes. Mariane estava esparramada em sua poltrona de veludo lilás com a cabeça de duas cobras entalhas no braço e uma borboleta esculpida na ponta do espaldar do trono. — Como foi com a garota? — perguntou Mariane Castelo enquanto tragava seu charuto com aroma de fumo com cereja. — Veja você mesma, eu sei que tem algo estranho, mas, não sei é
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magia. Pode ser qualquer coisa, intuição, não sei. — Eduarda largou os textos em cima da mesa. — Intuição é um tipo de magia... — Mariane baforou mais uma vez seu charuto. — Leia os textos...
Mariane Castelo Sorriu. — Não precisa, eu já li tudo. Vi vocês duas pelo espelho d’água e captei as informações por você. E realmente é intrigante... — Acha que ela não está? — Não, ela está doente. Esquizofrenia, vai precisar se tratar. — Então ela é uma artista nata com psicopatia mental? — Não foi isso que eu disse. Ela tem sim esquizofrenia, mas talvez isso possa ter feito ela despertar uma das coisas mais raras nesse mundo. Depois que fecharmos vamos até à casa dela. — Mariane se levantou e espreguiçou. Pegou seu alicate e cortou a ponta acesa do charuto o devolvendo à cigarrilha. — Eu vou ligar pra ela e... — Ah! Eduarda, deixa de ser besta. Vamos até ela sem ela saber, quando ela estiver dormindo. Eu aceito esse trabalho. Mas o preço que ela vai pagar será caro... — Mas ela disse que não dorme há dias. — Hoje ela vai dormir, minha criança. Pedi para o Cloud colocar uma coisinha no energético dela.
Eduarda suspirou e balançou a cabeça. Logo que o futuro daquela garota estava prestes a virar de ponta cabeça. Quando a Baronesa invadia uma casa, nunca era com boas intenções.
Era três horas da manhã quando Eduarda e Mariane Castelo entraram no quarto de Beatriz. Olhavam atentas para o rosto borrado da garota. Usava a mesma roupa que estava antes na cafeteria. A casa toda parecia não respirar, os passos das duas não fazia ruído algum e os pais da garota estavam apagados no outro cômodo. O tempo parou completamente. — Então, se ela está doente, porque tudo isso? — Existe uma condição chamada de Coroa Suprema. É quando a coroa de um ser humano se abre completamente ao sobrenatural sem controle algum. Em algumas pessoas a Coroa Suprema trás o benefício da sorte, onde tudo na vida dela começa a seguir uma sequência benéfica
de bons acontecimentos, é a sintonia da fortuna. Mas a coroa pode se fechar quando o coração é tomado pela escuridão da soberba. Então a maré de sorte tem um limite. E temos também a Coroa Suprema que se assemelha aos olhos do gato, as pessoas começam enxergar bem e a ouvir extremamente bem. Mas, a coroa se fecha quando o coração se enche de escuridão. Então temos o terceiro tipo, o mais raro de todos, a Coroa Suprema do coletivo universal. É a coroa se abrindo completamente e acessando o caos da humanidade, as frequências de todos os seres vivos do universo e de todos os tempos. É essa frequência que possibilita o acesso a qualquer tipo de coisa dessa vida. Você consegue acessar as ideias que já existiram e as ideias que estão existindo e as que ainda serão criadas. Isso possibilita as pessoas de verem com clareza o futuro. Mas é uma frequência maldita que a mente humana não suporta por muito tempo. Na minha vida eu só conheci duas pessoas com o verdadeiro dom da clarividência. Claro que esse mundo é grande e deve ter gente sofrendo com esse dom ou até já morreram por causa dele, mas aqui no Brasil somente um grande homem do espiritismo tinha esse dom. E a segunda pessoa... — Então essa menina é igual... a mim? — Eduarda ficou em silêncio, absorta com a informação. — Sim, mas você tem uma auto condição rara que é suportar a Coroa Suprema, pois você a desenvolveu de forma saudável, afinal você é um prodígio. É magnifico que aqui no Brasil tenha três casos de Coroa Suprema e duas delas na mesma cidade. É assustador. — Você também vai treiná-la como fez comigo? — Não, Eduarda. Infelizmente ela não vai suportar. A Coroa Suprema dela se desenvolveu por causa da esquizofrenia que a fez quebrar com a realidade. Ela já teve sua cisão da realidade e está doente. Ela precisa de um médico. Então, eu vou destruir a coroa dela, fechar pra sempre. É o único jeito dela conseguir sobreviver sem se suicidar ou fazer mal a alguém. Ela pode enlouquecer. — Então aqueles textos são realmente do futuro? — Eduarda se entristeceu. — Temo que sim. Da mesma forma que você acessa pintores de todas as eras para desenhar o passado, presente e o futuro, essa menina acessa os escritores. Mas parece que só consegue captar escritores do futuro. E pelo visto, algo muito estranho vai acontecer. — Eu não quero que ela sofra...
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— Ela não vai. Mas, o fechamento da coroa pode trazer a esquizofrenia mais forte... temos que contar com seus pais para mantê-la viva. — Por que você me trouxe até aqui?
Eduarda estava se sentindo mal pela garota. — Quero que saiba se um dia sua Coroa Suprema representar um perigo à sua saúde ou perigo a outras pessoas, saiba que vou fechá-la também. — Você me trouxe aqui para me ameaçar? — Não, minha criança. Isso foi um aviso. Você é minha responsabilidade e me veja como uma deusa. Eu posso te dar com uma mão e tirar com a outra. Eu dei tudo o que você tem. Mas se você se desviar, eu tiro tudo numa velocidade muito maior do que quando te encontrei.
Eduarda se sentou na cama ao lado de Beatriz. Suspirou fundo. Beijou a testa da menina e desapareceu da casa irritada com a Baronesa. Com um toque na testa, Mariane retirou a coroa dourada da mente da menina e a fechou. Colocou de volta e retirou toda sua memória desde quando começou a escrever os textos.
Tudo foi embora. Até mesmo a sanidade de Beatriz. Sem a coroa, Beatriz sucumbiu a cisão da realidade e se apagou dentro de si mesma. Ficou internada num centro psiquiátrico fora da cidade isolada de si mesma e das outras pessoas. Beatriz durou alguns anos dentro de sua concha até vir a falecer em 2020 quando uma pandemia global se alastrou no mundo todo fazendo as pessoas ficarem em isolamento social. Então, aqueles escritores que abraçaram a pobre Beatriz estavam certos. E todos eles queriam dizer apenas uma coisa: NÃO SAIA AGORA!