RIO Á I D do
L BRASI
Curitiba, terça-feira, 8 de junho de 2010 - Ano XII - Especial - Número 572 Jornal-Laboratório do Curso de Jornalismo da Universidade Positivo redacaolona@gmail.com
Estatuto da Criança e do Adolescente
20 ANOS em defesa da garotada
Os cursos do Núcleo de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, da Universidade Positivo (UP), promove hoje um debate referente às conquistas e desafios na promoção e defesa e garantia dos direitos da criança e do adolescente no Brasil. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), criado há 20 anos, já é adulto, porém os direitos previstos nessa lei ainda são negados todos os dias. Confira as reportagens desta edição especial do LONA.
2
Curitiba, terça-feira, 8 de junho de 2010
Expediente
Opinião
Marisa Rodrigues
Reitor: José Pio Martins. Vice-Reitor: Arno Antonio Gnoatto; Pró-Reitor de Graduação: Renato Casagrande; Pró-Reitor de Planejamento e Avaliação Institucional: Cosme Damião Massi; PróReitor de Pós-Graduação e Pesquisa e PróReitor de Extensão: Bruno Fernandes; Pró-Reitor de Administração: Arno Antonio Gnoatto; Coordenador do Curso de Jornalismo: Carlos Alexandre Gruber de Castro; Professores-orientadores: Ana Paula Mira e Marcelo Lima; Editoreschefes: Aline Reis (sccpaline@ gmail.com), Daniel Castro (castrolona@gmail. com.br) e Diego Henrique da Silva (ediegohenrique@hotmail.com).
Missão do curso de Jornalismo “Formar jornalistas com abrangentes conhecimentos gerais e humanísticos, capacitação técnica, espírito criativo e empreendedor, sólidos princípios éticos e responsabilidade social que contribuam com seu trabalho para o enriquecimento cultural, social, político e econômico da sociedade”. O LONA é o jornal-laboratório diário do Curso de Jornalismo da Universidade Positivo – UP Redação LONA: (41) 33173044 Rua Pedro V. Parigot de Souza, 5.300 – Conectora 5. Campo Comprido. Curitiba-PR - CEP 81280-30. Fone (41) 3317-3000
Novo tratamento Tratamento da imprensa a crianças e adolescentes mudou pouco depois da implantação do Estatuto
Mudanças
O Estatuto através do tempo
Nathalia Cavalcanti nathalia.jornal@gmail.com
“Dois menores infratores ainda não foram encontrados”, “Menores infratores representam 17,4% da população carcerária do país”, e “PF prende em flagrante acusado de prostituição de menor” são manchetes de uma agência de notícias e de dois jornais, respectivamente. O que pode estar errado nestas chamadas? Se elas informam e também trazem dados? A forma como as manchetes foram construídas poderia ser considerada adequada, se a veiculação tivesse ocorrido antes da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Mas as manchetes apresentadas são de 2003, 2007 e 2010. Há mais de 20 anos era comum ler matérias, assistir ao telejornal ou acompanhar a programação radiofônica com este tipo de tratamento, quando faziam referência aos até então chamados “menores de idade”. Para impedir o direcionamento incorreto aos meninos e meninas e garantir os seus direitos, em 1990 foi criado o Estatuto. De acordo com o artigo 4º, é “dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”. Mas nem sempre este artigo é respeitado. Isto é notável quando uma parte da imprensa insiste em tornar a sua tarefa superficial, expondo crianças e adolescentes em matérias cujo foco é o espetáculo. Parece que é mais cômodo permanecer nos termos que trazem uma carga sensacionalista. Com a intenção de evitar a manutenção de notícias como essas, a Agência de Noticias dos Direitos da Infância (Andi) apresenta em seu site dicas para os jornalistas de como abordar temas que envolvam as crianças e adolescentes. Iniciativas como esta fazem com que profissionais preocupados com a ética mantenham matérias coerentes na imprensa. No entanto, a mídia que está preocupada com vendas e audiências esquece dos direitos estabelecidos pelo Estatuto, pois a população pode ser atraída pela notícia que torna assídua a repulsa às crianças e jovens em situação de risco. Isto quer dizer que um jovem a quem se atribui a prática de ato infracional não garantirá o sucesso da matéria que expõe o rosto do “menor infrator”. Ou quando apresenta em letras grandes “prostituição de menor”. Esta abordagem subentende que a criança ou adolescente se prostitui por vontade própria, quando na verdade é explorada por terceiro. Logo, exploração sexual comercial de crianças e adolescentes seria o termo correto. O Manual de Imprensa e de Mídia do Estatuto da Criança e do Adolescente menciona ainda que o termo “menor” reproduz o conceito de incapacidade na infância, sendo estigmatizante e discriminatório. Além disso, frequentemente, esta mídia apenas apresenta o fato, não traz informações da causa da situação. Não faz com que a sociedade mergulhe no problema e pense o porquê de acontecerem esses episódios que se tornaram corriqueiros. Logo, induzem a mais um erro, de que não existe recuperação, fragilizando iniciativas favoráveis a inserção do jovem na sociedade. E assim, apenas noticiam os acontecimentos, pois é importante que a população esteja ciente de que “jovens infratores” cometem delitos e que é melhor tomar cuidado, pois a próxima vítima pode ser você. E as crianças e adolescentes se prostituem por tão pouco... Que mundo é esse?! Parece contraditório, mas é a pura verdade! A mídia está desinformada.
Priscila Schip Camiseta estampada com o desenho animado preferido, tênis de luzinha ou sandália de plástico, um boné ou um arco na cabeça. Não é dificil diferenciar, ainda que de longe, um adulto de uma criança. Mas nem sempre foi assim. Há alguns séculos crianças eram vestidas como adultos, sendo vistas como miniaturas. Essa visão de que crianças eram miniaturas de adultos ultrapassava a vestimenta. Na Idade Média, ainda nos primeiros anos de vida (até os sete anos) a criança era afastada de seus pais e passava a conviver com os adultos, contribuindo com as tarefas. A partir desse momento, não era mais possível distingui-los, a criança passava da fase da primeira infância direto para a vida adulta. Foi só no século XVII que o sentimento de infância passou a ser construído. As reformas religiosas católicas e protestantes trouxeram um novo olhar sobre a criança e sua aprendizagem. Dentro da família, a afetividade ganhou mais importância. A aprendizagem, que antes era dada pela convivência durante as tarefas cotidianas com os adultos, passou a dar-se na escola. Esses eram os primeiros passos para a construção da nova concepção de infância. No Brasil Em 1927 foi criado o Código de Menores, o primeiro documento voltado aos menores de 18 anos. Esse documento sofreu uma alteração em 1979 e, embora buscasse a proteção a crianças e adolescentes, tratava disso de forma discriminatória. Associava a pobreza à “delinquência”, as crianças de baixa renda eram consideradas inferiores e deveriam ser tuteladas pelo Estado. O código sustentava a ideia de que os mais pobres tinham um comportamento desviante e certa “tendência natural à desordem”, não podendo se adaptar à vida em sociedade. Para substituir o Código que falsamente protegia pessoas dessa faixa etária, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi criado. E este documento sim é considerado um exemplo quando se trata de promoção dos direitos humanos. Programas criados Embora muita coisa ainda não ultrapasse o papel, com a criação do Estatuto muitas conquistas foram alcançadas. Logo que foi promulgado, Conselhos Tutelares foram implantados no país com o objetivo de garantir a execução do que é previsto pela lei. Segundo dados divulgados pela Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), em 2007, mais de 90% dos municípios brasileiros já contam com Conselhos Tutelares. O conselho tutelar é constituido por Conselheiros que são escolhidos pela comunidade local e cumprem mandato de três anos. Esses conselheiros devem fazer valer os direitos das crianças e dos adolescentes e dar encaminhamento a soluções. Casos de discriminação, exploração, negligência, opressão, violência e crueldade, que apresentam como vítimas crianças e adolescentes, devem receber encaminhamento. Após receber uma denúncia, o Conselho a verifica e, caso ela seja confirmada, passa a receber acompanhamento. Em caso de não cumprimento das medidas o caso é encaminhado ao Ministério Público. Juntamente com o Conselho Tutelar, o Serviço da Central de Resgate Social (SAV) – atendido pelo 156 – é responsável por resgates em lugares onde tendem a ter crianças na rua. O serviço trabalha com equipes de abordagem e via denúncia. No ano passado a Central de resgate foi responsável por 366 encaminhamentos para abrigos.
3
Curitiba, terça-feira, 8 de junho de 2010
Grandes Debates
Ciranda
Na luta
Direitos da Crianças e para que os fundamentos adolescentes do estatuto sejam cumpridos são tema de debate na UP Willian Bressan Para debater os 20 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente e também as reais necessidades para que estes ingressem no status de verdadeira cidadania, o Núcleo de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (NCHSA) da Universidade Positivo, por meio dos cursos de Direito, Jornalismo, Pedagogia e Publicidade e Propaganda, promove hoje às 07h30 e às 19h no Auditório do Bloco Azul, o evento “Criança e Adolescente – Entre o Abuso e o Direito”. O jornalista Alexandre Castro, coordenador do curso de jornalismo da UP, mediará a mesa, que contará com a presença de Marcos Alves da Silva
Cada debatedor exporá seu ponto de vista por dez minutos e depois será a vez das perguntas dos participantes. Uma enquete interativa também irá acontecer durante o evento (advogado), Bettina Augusta Amorim Bulzico (pedagoga) e Renato Cavalher, (publicitário) que falará das crianças como público alvo nas propagandas. À noite, Marcos Alves será substituído por Samir Namur (advogado). A professora dos cursos de pedagogia e direito Bettina Augusta Amorim Bulzico tratará do direito dessa parcela da população à educação, bem como as dificuldades enfrentadas para que o acesso enquanto sujeitos de direito seja concretizado. Para Marcos Alves da Silva, professor de Direito, o estatuto criado em 1990, representa uma grande mudança em relação ao antigo código do menor. “A designação menor caiu de uso porque o menor era sempre o filho do outro. O tratamento a criança e o linguajar tiveram reflexos na sociedade brasileira”, conta. Cada debatedor exporá seu ponto de vista por dez minutos e depois será a vez das perguntas dos participantes. Uma enquete interativa também irá acontecer na hora do evento. Os Grandes Debates são promovidos pelos cursos do Núcleo de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas da UP e ocorrem ao longo de todo o período letivo. Neste ano, já ocorreu um sobre “Liberdades Individuais e Controles Sociais”.
Monique Ferreira Com base no Estatuto da Criança e do Adolescente, sete estudantes de jornalismo de Curitiba criaram uma central de notícias com o objetivo de “produzir um trabalho sistemático de cobertura e análise do que a imprensa publica sobre a infância e adolescência”. A ideia surgiu a partir de uma palestra da ANDI – Agencia de Notícias dos Direitos da Infância. No dia oito de julho de 1998, foi criada a CIRANDA – Central de Notícias dos Direitos da Infância e Adolescência, parte da Rede ANDI. Hoje, nenhuma das fundadoras trabalha como funcionária da Ciranda, mas atuam como colaboradoras. A equipe da central conta com cinco funcionários e dois estagiários, além de estagiários de observação e voluntários. Sobre o Estatuto, a jornalista responsável pela Ciranda, Ana Paula Salomon, ressalta: “É um conjunto de leis maravilhoso, mas, do outro lado, é preciso que haja um movimento que garanta o cumprimento dos direitos que estão no Estatuto”. E esse é um dos trabalhos realizados pela central. A orientação dos veículos de comunicação, a sugestão de pautas especiais, a indicação de fontes qualificadas e o atendimento a estudantes e outros profissionais são algumas das atividades desenvolvidas. Desde 2004, a Ciranda atua também junto à comunidade, por meio de variados projetos educomunicacionais e campanhas. Sempre voltados a problemas que afetam crianças e adolescentes, esses projetos são idealizados e desenvolvidos pela Ciranda, com financiamento externo de empresas, ONGs ou outras instituições sociais. Esses projetos estimulam a criança e o adolescente a serem protagonistas sociais. Por meio da orientação da Central, é promovida uma ampla discussão sobre a realidade de suas comunidades. Um dos projetos, chamado “Navegando nos Direitos”, aborda a questão da exploração sexual e abuso de crianças e adolescentes. O foco das ações é a cidade de Paranaguá, com o maior índice de violência sexual do estado. Ao final do projeto, é produzido um jornal relacionado à violência sexual, aids, sexualidade e drogas e apresentado a estudantes de escolas públicas da cidade. Os problemas enfrentados por crianças e adolescentes no Brasil são complexos, a maioria dos casos está interligada, não há como segmentar o problema e tratar apenas um aspecto. Uma das questões levantadas pela jornalista Ana Paula Salomon diz respeito à relação da criança com a criminalidade. A jornalista explica que uma criança que comete um delito não pode ser apenas punida, é preciso avaliar o contexto. Se essa criança cresceu em
meio à violência, se ela teve uma base familiar, é preciso saber quais foram as condições da família, se houve uma educação escolar decente, se ela teve direito a saúde, a educação e ao lazer. Segundo a jornalista, o que se vê são políticas públicas punitivas crescendo cada vez mais. “Por exemplo, falta um trabalho quantitativo com relação ao numero de crianças em situação de rua no país. Faltam dados estatísticos”, conta. Em 12 anos de existência, a Ciranda já recebeu diversos prêmios, entre eles o Presente do Futuro, que destacou a atuação de jovens mulheres na área social de todo o Brasil. Em 2001, o site da Central foi premiado com o selo Amigo da Criança, pelo reconhecido trabalho de engajamento social na campanha contra a pedofilia. A Ciranda trabalha apoiada no Estatuto da Criança e Adolescente e, ao mesmo tempo o apoia, lutando para garantir que seus fundamentos sejam cumpridos e para mudar o olhar que criminaliza e vitimiza a criança e o adolescente. Diego Henrique da Silva
4
Curitiba, terça-feira, 8 de junho de 2010
Comemoração
Estatuto da Criança e do Adolescente completa
20
anos Diego Henrique da Silva
A sociedade sempre careceu de políticas voltadas para o tratamento edesenvolvimentodas crianças e adolescentes e, após a Segunda Guerra Mundial, a falta destas políticas ficou evidenciada
Sidney da Silva Há 20 anos o Brasil dava um grande passo para melhoria, acompanhamento e tratamento de sua população infanto-juvenil. Com o intuito de proteger e garantir o desenvolvimento adequado na infância e na juventude, baseando-se em conceitos igualitários, éticos e morais para a convivência dos cidadãos, surgia o Estatuto da Criança e do Adolescente, com a premissa de resguardar os direitos de uma parcela da sociedade até então desprotegida pelas políticas públicas de desenvolvimento. O Estatuto institui-se obedecendo ao art. 227 da Constituição, adotando a chamada Doutrina da Proteção Integral, cujo pressuposto básico é de que crianças e adolescentes devem ser vistos como pessoas em desenvolvimento, sujeitos de direitos e destinatários de proteção integral. Privilegiando muitos aspectos que até então eram deixados de lado, o Estatuto garante os direitos e deveres de cidadania a crianças e adolescentes, que deverão ter resguardados estes direitos por meio de todos os setores que compõem a
sociedade, sejam eles a família, o estado ou a comunidade. O estatuto discorre sobre as políticas referentes à saúde, educação, adoção, tutela e questões relacionadas às crianças e adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional. De acordo com o professor de Direito da Criança e do Adolescente e promotor de Justiça do Ministério Público do Paraná Mário Luiz Ramidoff, o Estatuto possui inúmeras e específicas diretrizes humanitárias; cada uma ligada a uma área que se relaciona ao desenvolvimento da criança e do adolescente. Contudo, a diretriz fundante é a humanitária, concebida na área infanto-juvenil como Doutrina da Proteção Integral. Desta maneira, o Conselho Tutelar deve atuar de forma a desenvolver as suas atribuições legais priorizando crianças e adolescentes, segundo o qual toda formulação legislativa, prestação de serviço e atendimento à criança e ao adolescente deverá preceder aos demais cidadãos. “O Conselho Tutelar deverá privilegiar o atendimento das necessidades vitais básicas da criança e do adolescente, buscando prioritariamente
efetivar os direitos individuais – como à vida e à saúde, à educação, ao convívio familiar e comunitário, dentre outros (art. 7º a 69 do Estatuto).” História Para que se possa entender o Estatuto é necessário uma reflexão sobre o desenvolvimento das políticas públicas direcionadas ao público infantil e juvenil do país. A sociedade sempre careceu de políticas voltadas para o tratamento e desenvolvimento das crianças e adolescentes e, após a Segunda Guerra Mundial, a falta destas políticas ficou evidenciada de forma que a sociedade passou a se arrastar em questões de inclusão e preservação dos direitos das crianças; muitas com trabalhos escravagistas e sem condições de desenvolvimento adequadas, eram expostas a tratamentos que prejudicavam o seu desenvolvimento físico e mental. Estes riscos traziam danos irreparáveis no desenvolvimento das crianças e adolescentes, o que fez com que se fortalecesse a ideia de medidas que amparassem este público. Passando por 1979 com a criação do Código de Menores, com o recomeço do ciclo democrático no país, em 1985, e com a Constituição de 1988, chegando até o ano de criação do Estatuto, em 1990. Sob o governo de Fernando Collor de Melo, o primeiro presidente eleito pelo voto popular após o período militar, o Brasil passava a ter uma lei que auxiliaria milhares de crianças e adolescentes a galgar um futuro melhor. Muitas vezes vítimas de maus-tratos, condições de trabalho penosas, abdicação de sua infância e do direito ao lazer, as crianças e adolescentes passaram a ser protegidas contra abusos que poderiam comprometer o seu desenvolvimento psicossocial. Passados 20 anos de Estatuto, surgem algumas reflexões no que se refere ao cumprimento destas políticas e às condições adequadas das crianças e adolescentes. Avaliação De acordo com Ramidoff, as violências estruturais – como a corrupção, a miséria decorrente da má distribuição de renda, a injustiça social que torna “alguns mais iguais do que outros”, – têm gerado problemas graves para a convivência familiar e comunitária. “Os desvios de recursos públicos impedem a implementação de políticas sociais que se destinem à efetivação dos direitos individuais fundamentais à criança e ao adolescente”, afirma. “Assim, é possível verificar a péssima qualidade dos serviços públicos, quando existem, sensivelmente na área da educação, saúde, alimentação e transporte público destinado à população infanto-juvenil brasileira. As dotações orçamentárias deveriam ser absolutamente prioritárias para área infanto-juvenil, contudo, não é o que se verifica nos diversos níveis de governo – Municipal, Estaduais, Distrital e Federal”, completa o promotor. Ramidoff relata ainda que deveria haver uma maior mobilização da opinião pública a respeito dos direitos individuais e garantias fundamentais da criança e do adolescente; defende que não se deve tratá-los baseado em medidas punitivas. Para ele, crianças e adolescentes devem ser so-
5
Curitiba, terça-feira, 8 de junho de 2010
Legislação cializados por meio de medidas pedagógicas. A criança e o adolescente em conflito com a lei devem ser diferentemente responsabilizadas, mas jamais com sanções penais, ressaltando a autenticidade e eficiência das medidas legais que têm contribuído no processo de reestruturação pessoal, familiar e social. “São as medidas judicialmente aplicadas que mais têm contribuído com o desenvolvimento responsável e consequente dos jovens que se encontram em situação de ameaça e/ou violência aos seus direitos individuais e garantias fundamentais; ainda, que, pela prática de atos infracionais”, afirma. Ramidoff defende ainda que o Estatuto acompanhe os aspectos que façam a mediação entre o desenvolvimento da sociedade e das relações sociais, o que não faz com que ele e as demais legislações devam ser modificados por acontecimentos e fatos pontuais, mas sim que se modifiquem conforme novos conhecimentos até então não experimentados, de forma a se criar novas metas e suprir necessidades. Ressalta que neste processo o Estatuto da Criança e do Adolescente precisa ser muito mais conhecido por todos aqueles que trabalham direta e indiretamente com crianças e adolescentes; e até mesmo ser amplamente divulgado nas esferas públicas e privadas da sociedade. “O Estatuto não precisa ser reformulado, precisa, sim, ser conhecido e interpretado em prol da formação democrática e responsável da criança e do adolescente. Pois somente assim seria possível uma mudança radical”, avalia. Para o promotor, por meio da ampla mobilização da opinião pública seria muito mais adequado a implementação de interpretações integrativas dos conteúdos normativos das regras estatutárias com a realidade da vida do mundo vivido por crianças, adolescentes e seus respectivos núcleos familiares. Há muito o que se fazer para garantir às crianças o direito a uma vida digna e um desenvolvimento sustentável; fortalecendo o desejo da sociedade que sonhou com um mundo melhor e mais igualitário, de forma a garantir que estas crianças e adolescentes possam crescer saudáveis e dignamente. A criação do Estatuto da Criança e do Adolescente foi fundamental para o começo de todo este processo, mas para que todas as suas diretrizes sejam cumpridas com êxito, é necessário que haja uma união de todos os órgãos: públicos, privados e da sociedade como um todo, garantindo desta forma um resultado efetivo nas práticas educativas, sociais e para o desenvolvimento destas crianças.
Conheça as 10 razões da Psicologia contra a redução da maioridade penal 1. A adolescência é uma das fases do desenvolvimento dos indivíduos e, por ser um período de grandes transformações, deve ser pensada pela perspectiva educativa. O desafio da sociedade é educar seus jovens, permitindo um desenvolvimento adequado tanto do ponto de vista emocional e social quanto físico; 2. É urgente garantir o tempo social de infância e juventude, com escola de qualidade, visando condições aos jovens para o exercício e vivência de cidadania, que permitirão a construção dos papéis sociais para a constituição da própria sociedade; 3. A adolescência é momento de passagem da infância para a vida adulta. A inserção do jovem no mundo adulto prevê, em nossa sociedade, ações que assegurem este ingresso, de modo a oferecerlhe as condições sociais e legais, bem como as capacidades educacionais e emocionais necessárias. É preciso garantir essas condições para todos os adolescentes; 4. A adolescência é momento importante na construção de um projeto de vida adulta. Toda atuação da sociedade voltada para esta fase deve ser guiada pela perspectiva de orientação. Um projeto de vida não se constrói com segregação e, sim, pela orientação escolar e profissional ao longo da vida no sistema de educação e trabalho; 5. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) propõe responsabilização do adolescente que comete ato infracional com aplicação de medidas socioeducativas. O ECA não propõe
Psicólogos apontam que prender e tratar adolescentes como presos adultos piora o processo de ressocialização e reeducação
impunidade. É adequado, do ponto de vista da Psicologia, uma sociedade buscar corrigir a conduta dos seus cidadãos a partir de uma perspectiva educacional, principalmente em se tratando de adolescentes; 6. O critério de fixação da maioridade penal é social, cultural e político, sendo expressão da forma como uma sociedade lida com os conflitos e questões que caracterizam a juventude; implica a eleição de uma lógica que pode ser repressiva ou educativa. Os psicólogos sabem que a repressão não é uma forma adequada de conduta para a constituição de sujeitos sadios. Reduzir a idade penal reduz a igualdade social e não a violência - ameaça, não previne, e punição não corrige; 7. As decisões da sociedade, em todos os âmbitos, não devem jamais desviar a atenção, daqueles que nela vivem, das causas reais de seus problemas. Uma das causas da violência está na imensa desigualdade social e, conseqüentemente, nas péssimas condições de vida a que estão submetidos alguns cidadãos. O debate sobre a redução da maioridade penal é um recorte dos problemas sociais brasileiros que reduz e simplifica a questão; 8. A violência não é solucionada pela culpabilização e pela punição, antes pela ação nas instâncias psíquicas, sociais, políticas e econômicas que a produzem. Agir punindo e sem se preocupar em revelar os mecanismos produtores e mantenedores de violência tem como um de seus efeitos principais aumentar a violência; 9. Reduzir a maioridade penal é tratar o efeito, não a causa. É encarcerar mais cedo a população pobre jovem, apostando que ela não tem outro destino ou possibilidade; 10. Reduzir a maioridade penal isenta o Estado do compromisso com a construção de políticas educativas e de atenção para com a juventude. Nossa posição é de reforço a políticas públicas que tenham uma adolescência sadia como meta.
6
Curitiba, terça-feira, 8 de junho de 2010 Diego Henrique da Silva
Entrevista
Ainda há
muito o que melhorar
Especialista aponta caminhos para que direitos da criança e do adolescente sejam mais conhecidos e da Diego Henriqu
Daniel Castro
Qual é a importância de o Estatuto ser discutido dentro da universidade? É vital mesmo para a formação de atores sociais que devem não só tecnicamente intervir na realidade social a partir de suas diversas potencialidades, mas, principalmente, como formadores de opinião pública, incentivar a prática profissional responsável e socialmente consequente, a partir de um “olhar” respeitoso e humanitário. Não fosse isto, no Estado do Paraná existe legislação específica que determina a inclusão da matéria relativa ao Estatuto da Criança e do Adolescente nos concursos para assunção de cargos públicos pertinentes e que possuam atribuições diretas e indiretas junto à comunidade infanto-juvenil. A universidade tem a função de capacitar potencialidades diversas para atuação direta e indireta socialmente, e, por isso mesmo, deve integrar os conhecimentos, em particular, entre disciplinas e saberes afins. Portanto, não só o Estatuto da Criança e do Adolescente, mas a própria Constituição da República de 1988, que possui inúmeras matrizes sociais e humanitárias integradas aos interesses indisponíveis, direitos individuais e garantias fundamentais afetas à criança e ao adolescente. Dentro do curso de Direito, qual é o espaço dado à discussão das questões relacionadas às crianças e adolescentes? Por incrível que pareça, nos cursos de graduação e pós-graduação em Direito, no Brasil, é muito raro a disciplina Direito da Criança e do Adolescente constar dos programas e currículos oficiais; senão, figuram apenas como disciplinas optativas. O curso de graduação e pós-graduação em Direito
da Universidade Federal de Santa Catarina é um dos poucos cursos – senão o único – que oferece regularmente como disciplina obrigatória Direito da Criança e do Adolescente; talvez, pela abnegação da ilustre professora Josiane Rose Petry Veronese, uma das mais importantes autoridades na temática, com inúmeras publicações, formação de pesquisadores e participação em bancas e pesquisas, em todo Brasil e no exterior. Antes da Constituição da República de 1988, a criança e o adolescente tinham proteção pela legislação civil; contudo, a responsabilização daqueles que praticassem atos considerados desviados era dada a partir da concepção repressivo-punitiva do Direito Penal. E, por isso, até então, houve um descaso muito grande tanto pela Universidade – que pouco profissionais capacitados formou –, quanto pelas políticas públicas relacionadas à educação para a integração dos estudos e das pesquisas relacionados à infância e à juventude. Como você avalia a divulgação do estatuto na mídia? O que pode ser feito para melhorar? Invariavelmente, o Estatuto é muito pouco divulgado na mídia, salvo nas épocas em que se comemoram o seu advento, quando não a sua violação ou, equivocadamente, para questionar a sua aplicação. Em relação à aplicação do Estatuto, por vezes, de forma preconceituosa, é classificada como excessivamente protetiva quando se pensa nas garantias do adolescente a quem se atribui a prática de ato infracional; de outras vezes, sugerem que o Estatuto é muito pouco conhecido e, por isso, muito pouco aplicado ou obedecido. É preciso coletar dados mais precisos para a divulgação das questões relacionadas aos acontecimentos que envolvam interesses indisponíveis, direitos individuais e garantias fundamentais pertencentes à criança e ao adolescente. É preciso coletar dados mais precisos para a divulgação das questões relacionadas aos acontecimentos que envolvam interesses indisponíveis, direitos individuais e garantias fundamentais pertencentes à criança e ao adolescente. Para além disso, a formação adequada e a capacitação permanente dos diversos profissionais que atuam não só na área de comunicação, mas, também, nas de-
Silva
O ano de 2010 marca os 20 anos da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990). O professor de Direito da Criança e do Adolescente do UniCuritiba e promotor de Justiça do Ministério Público do Paraná Mário Luiz Ramidoff fala sobre as falhas na abordagem do tema. As críticas vão desde o ensino das universidades até o comportamento da mídia no que diz respeito ao tratamento da notícia e aos termos usados de forma errada ao se referirem aos temas relacionados ao Estatuto.
mais áreas que se vinculam ao cuidado direto e indireto de crianças e adolescentes – serviços sociais, pedagogia, psicologia, turismo, medicina, sociologia, antropologia, história, filosofia, dentre outros. Na Universidade, a disciplina Direito da Criança e do Adolescente deveria ser disciplina obrigatória nos Cursos de Graduação, bem como eletiva nos Cursos de Pós-graduação; enquanto,
7
Curitiba, terça-feira, 8 de junho de 2010
Você notou mudanças no comportamento da imprensa com a criação do Estatuto? Os termos considerados errados ainda são muito utilizados? Sim, e muito. Existe em Brasília a Andi, Agência Nacional dos Direitos da Infância – www.andi.org.br –, que se constitui num órgão orientador para a divulgação de matérias jornalísticas, sem conteúdo pejorativo, e, com indicação das “fontes” a serem consultadas para a percepção não preconceituosa acerca das informações e dados de um dado caso concreto. Na verdade, a Andi oferece inúmeros serviços para a capacitação, orientação e referências sobre diversos temas relacionados à infância e à juventude. Entretanto, lamentavelmente, ainda se utilizam indevidamente muitos termos equivocados que, na verdade, ocorrem em virtude mesmo da denominada “linguagem jornalística” que em nome da brevidade, por vezes, acaba truncando a ideia que se quer informar. Por exemplo, para que se evitem estigmatizações ou mesmo tratamentos pejorativos, não se deve mais utilizar expressões como “menor”, “menor infrator”, “ECA”, “punição”. Ao invés disso, é possível respectivamente usar “criança” ou “adolescente”. Criança é a pessoa com até 12 (doze) anos de idade incompletos; e adolescente pessoa com idade entre 12 (doze) anos completos e 18 (dezoito) anos – art. 2º do Estatuto. Não se denomina de “menor infrator”, mas, sim, criança ou adolescente “em conflito com a lei”, senão, criança ou adolescente “a quem se atribui a prática de ato infracional”. “ECA” além da abreviação não recomendada, também pode sugerir pouco caso, Divulgação
Cobertura da mídia acerca dos direitos da criança e do adolescente precisa de muitos avanços. Preconceito e uso de termos errados para se dirigir a esses grupos são alguns dos problemas
quando não dubiedade acerca do que se quer dizer. Por isso, é possível utilizar simplesmente a expressão “Estatuto”. E “punição” e ou “sanção” são expressões que não se utilizam mais na seara infanto-juvenil, cujas medidas são as “específicas de proteção” e “socioeducativas”, as quais possuem conteúdos “protetivos” e “sociopedagógicos”. Estas informações também podem ser buscadas no site da ANDI, a qual possui um “kit” para jornalísticas, um “dicionário” de termos técnicos a serem utilizados, e, concursos para jornalistas, bem como inscrição para jornalistas que divulguem matérias relativas à criança e adolescente, inclusive, com premiações e titulações, como, por exemplo, a do “jornalista amigo da criança”.
Dicas culturais Para ver Anjos do Sol – Brasil, 2006 Direção - Rudi Lagemann Maria (Fernanda Carvalho) é uma jovem de 12 anos que mora no interior do Nordeste brasileiro. No verão de 2002, ela é vendida por sua família a um recrutador de prostitutas. Após ser comprada em um leilão de meninas virgens, Maria é enviada a um prostíbulo localizado perto de um garimpo, na Floresta Amazônica. Após meses sofrendo abusos, ela consegue fugir e passa a cruzar o Brasil através de viagens de caminhão. Mas ao chegar no Rio de Janeiro, a prostituição volta a cruzar seu caminho. Divulgação
que, nos Cursos de Graduação e Pós-graduação de Comunicação (jornalismo, etc.), Psicologia, Pedagogia, Ciências Sociais, Serviço Social, dentre outros, deveriam ser optativa.
Divulgação
Sonhos Roubados – Brasil, 2010 Direção – Sandra Werneck Jéssica (Nanda Costa), Daiane (Amanda Diniz) e Sabrina (Kika Farias) são adolescentes e moram em uma comunidade carioca. Elas eventualmente se prostituem, no intuito de conseguir dinheiro para satisfazer seus sonhos de consumo. Entretanto, mesmo com os problemas do dia a dia, elas tentam se divertir e sonhar com um mundo melhor. Fontes: www.adorocinema.com.br
Para ler Me nin as da No ite De Gilberto Dimenstein - Editora Ática O livr o den unc ia a pro stit uiç ão de me nin as no No rte do Bra sil, mu itas vin das de fam ília s num ero sas e ven did as com o me rca dor ia pel os pró pri os pai s. Ret rat a a che gad a das me nin as aos bor déi s, pri nci pal me nte dos gar imp os, ond e, sem as mín ima s con diç ões , con tra em div ers as doenç as ven ére as, tor nam -se esc rav as. Alé m dis so, é com um enc ont rar gar ota s com 12 ano s tra bal han do no esq uem a, no qua l são fon te de sat isfa ção dos hom ens da reg ião . As nov ata s são col oca das em leil ão ao pas so que os mo rad ore s loc ais obs erv am a pro stit uiç ão infa ntil com alg o nat ura l. o
Tr ab al ho in fa nt il - O di fíc il so nh o de se r cr Au to re s: Cr ist ia nç a in a Po rto , Io la nd a H uz ak e Jô Madalena e seus Az ev ed o colegas de escola denunciam nos as mais diversas jornaizinhos qu e cruéis formas de e escrevem trabalho infantil Um retrato feito que se espalham com indignação pelo país. , mas que també dura realidade da m tra z a Para sler esperança de qu crianças que perd e esta eram a infância Uma obra literá deixe de existir. ria embasada em dados confiáveis documentada co e atualizados, tot m fotos. almente
Para acessar r Portal Pró-menino – www.promenino.org.b os de criandireit dos tia garan a para buir contri busca O site ação, inform da inação dissem da meio por ças e adolescentes esta temática e da do apoio das organizações que lidam com vos do portal sensibilização da população em geral. Os objeti em relação ão cidad o lizar nsabi respo e ar são conscientiz os atores ecer fortal , scente aos direitos da criança e do adole desempenhem do Sistema da Garantia de Direitos para que nte e utilizar as seu papel de forma mais eficaz e eficie ) em prol da (TICs o nicaçã comu e tecnologias da infomração . causa dos direitos da criança e do adolescente
8
Curitiba, terça-feira, 8 de junho de 2010
História
A construção social da
infância
Luma Bendini
A pedofilia cometida por clérigos da Igreja Católica tem causado grande polêmica. A indignação gira em torno do questionamento de como pessoas devotadas à castidade e à vida de celibato cometem crimes tão horrendos. Primeiro erro. Crimes horrendos. Ao invés de questionar se tais fatos não seriam sintomáticos, acusa-se e criminaliza-se. A sociedade maniqueísta aprendeu que chamar o outro de monstro livra-me de qualquer culpa ou remorso, afinal, reconhecer que, além de humano, o ser também é monstruoso é difícil e, quase inaceitável. O segundo erro de abordagem dos casos de pedofilia na Igreja é a falta de um questionamento essencial e aparentemente absurdo: por que as noticias de abuso sexual na infância chocam tanto? Por conta de sua representação social, o personagem padre acresce na polêmica uma pitada de pimenta ardente, mas em qualquer instância a violência sexual infantil causa revolta. Por quê? A resposta não é tão obvia. Não é obvia porque o conceito de infância está Reprodução
longe de ser uma determinação objetiva e absoluta. Segundo a psicologia, a personalidade da pessoa se forma até os seis anos. Ou seja, as respostas para questões existenciais da vida, como o conceito de vida e morte ou a compreensão do seu sexo, são formuladas por cada individuo num período pouco maior que meia década. Mesmo estando de acordo com o sentimento moderno de infância, tal compreensão psicológica não determina o conceito que temos hoje, visto que ele foi construído historicamente. Falar de construção da infância é necessariamente citar Philippe Ariès. Em seu livro A história Social da Criança e da Família, o historiador francês analisa a representação da infância nas artes plásticas a fim de entender como chegamos ao conceito moderno de infância. A explanação do autor começa no décimo segundo século. Para Áries, a ausência de representação da criança na arte medieval não poderia revelar uma limitação de habilidade ou de técnica dos artistas, mas sim evidencia que o conceito de infância não tinha importância ou mesmo existência em tal época: “Isso faz pesar também que, no domínio da vida real, e não mais apenas no de uma transposição estética, a infância era um período de transição logo ultrapassado, e cuja lembrança também era logo perdida”. Philippe Ariès observa que nos primeiros períodos que seguem o século XII, as crianças eram apenas miniaturas dos homens e mulheres. Muitas vezes pintadas e esculpidas com músculos torneados e feição madura, as crianças eram distintas dos adultos apenas pelo seu tamanho (Veja ao lado a pintura das três crianças ressuscitadas por São Nicolau). Esse aspecto é também revelador: não havia espaço para crianças e espaço para adultos, as duas fases de vida do sujeito tinham interesses em comum. Após esse período, a figura da criança vincula-
Muitas vezes pintadas e esculpidas com músculos torneados e feição madura, as crianças eram distintas dos adultos apenas pelo seu tamanho
Diego Hen riqugação Divul e da Silva
se à imagem angelical, visto que o anjo era sempre representado como um jovem, mesmo não delimitando uma idade, mas, sempre com traços leves e afeminados. Essas figuras podem ser vistas nas obras de Botticelli, Fra Angelico e Ghirlandajo ou, como a figura acima, o anjo de Reims. Uma evolução da representação angelical dos jovens começa a aparecer ainda no século XII, com as miniaturas do menino Jesus. Com idealização da maternidade da virgem Maria, a tenra infância entrou no mundo da representação. Na Idade Média, o corpo assexuado das crianças representava ainda a morte e a alma. Essa perspectiva histórica faz compreender que o papel social da criança é construído e modificado conforme as concepções culturais das sociedades. Ou seja, ser criança não é um processo natural pelo qual todo sujeito passa. A noção de que infância é um período da vida voltado para nãoresponsabilidade, descompromisso e brincadeira é uma ideia relativamente recente. A consciência da construção social da infância faz-nos repensar no modelo de educação, de criação e de proteção da criança. Por isso falava sobre a pedofilia no início desse texto. Pode parecer cruel, mas o choque diante das noticias de violência sexual contra criança são fruto da naturalização de um período da vida do sujeito (que ele supostamente precisa ser protegido e poupado), e não necessariamente por ser um ato desnatural, já que desnatural é a própria infância. É certo que o abuso sexual é, além de qualquer coisa, violento. Mas, a noção da construção do conceito de infância não quer justificar a violência sexual infantil, que de fato acredito ser errada, mas apenas chamar atenção para uma perspectiva quase sempre esquecida: a da subjetividade do sujeito. Somos, a cima de tudo, seres sociais.