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Edição 998 - Curitiba, 23 de dezembro de 2016
Procura-se a paz em outras terras
Omar Soufi é um dos mais de 2 mil imigrantes sírios que, ameaçados pela Guerra Civil que destrói o país natal, buscam refúgio – e esperança – no Brasil. p. 8
EDUCAÇÃO INCLUSIVA Pesquisas apontam para um crescimento no número de matrículas de alunos com necessidades especiais nos últimos anos p. 4
MISTÉRIOS RELIGIOSOS Conheça o trabalho de um exorcista curitibano (que em nada se assemelha aos hollywoodianos)
p. 6
SAÚDE A rotina dos que convivem com o mal de Alzheimer, doença que afeta milhões de pessoas no mundo p. 10
COMPORTAMENTO A percepção de moradores de um asilo sobre a vida longe dos familiares
p. 11
ESPORTE A percepção do público sobre o legado dos Jogos Rio 2016
p. 14
CINEMA
Crédito: Pixabay
Henrique Romanine Closer: perto demais e a realidade escancarada do amor p. 16 Gabriel Santos O humanismo dos irmãos Dardenne p. 16 em “Dois Dias, Uma Noite”
EDITORIAL
CRÔNICA
“O preconceito enraizado na sociedade já é tão forte que nem os números alarmantes sobre a violência contra a mulher preocupam suas semelhantes ou conscientizam os homens” p. 2
Ana Paula Severino “Sim ué, eu também tenho opinião. Só porque eu sou a Opinião eu não posso me ter? Ninguém nunca me perguntou o que eu acho sobre esses assuntos que me obrigam a me envolver.” p. 18
Ana França Teixeira “Ah, pobre menina fora do padrão... As dietas de nutricionistas não eram tão ráp. 17 pidas assim quanto ela queria.” Vitória Beatriz p. 20 Poesia: problema inferno
CONTO Bianca Ogliari “Ela cruza a mesa com um olhar de desprezo, que por um momento faz com que a história não tenha nenhum valor, e então começa a dançar pelo salão com seus grandes olhos negros” p. 19
O desemprego bate à porta das casas de milhões de brasileiros
Cenário econômico do país exige mudanças de hábitos e objetivos p. 2 profissionais dos trabalhadores. Saiba como contornar a situação.
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CONTO
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EDITORIAL
ECONOMIA E COTIDIANO
Mais do que gênero: humanidade
Desemprego muda hábitos e perspectivas da população
Por mais que gradativamente as mulheres venham ganhando espaço na nossa sociedade, ainda tem muito que precisa ser feito. O machismo vem fazendo cada vez mais vítimas diariamente, e a culpa disso é o preconceito instalado na cabeça dos indivíduos que compõem nossa sociedade. Por mais que muita gente acredite que o machismo é cometido apenas por homens, comentários nas redes sociais provam que a história não é bem essa. O grande problema é a falta de empatia. Não é difícil ouvir mulheres fazendo comentários sobre a roupa de outras mulheres ou sobre suas atitudes, e isso só faz aflorar ainda mais o machismo e o preconceito enfrentado por mulheres diariamente. O preconceito enraizado na sociedade já é tão forte que nem os números alarmantes sobre a violência contra a mulher preocupam suas semelhantes ou conscientizam os homens, que parecem não entender que o que eles fazem reflete em suas mães, irmãs, namoradas e amigas. No Brasil, a cada 7 minutos uma denúncia sobre violência contra a mulher é registrada, e nesses relatos, basicamente a metade, é sobre violência física. A cada 11 minutos uma mulher é violentada sexualmente, e segundo especialistas, esse número tende a aumentar cada vez mais. E o que preocupa nesses números é que a quantidade de denúncias ainda é muito menor do que o número de ocorrências. Isso só comprova o medo que existe em se denunciar aquele que, na maioria dos casos, é o próprio companheiro da mulher, já que os dados apontam que 70% dos estupros, por exemplo, são cometidos por pessoas bastante próximas das vítimas. A conscientização de todos da sociedade é essencial. Se você sai com seu amigo e ele comenta sobre uma mulher, reclame, alerte. Se você perceber que alguma mulher está sendo constrangida, se manifeste. Não pense que, só por não participar do ato de agressão, você não é também o agressor. A omissão não faz nada além de agravar a situação. Caso você perceba ou veja uma mulher sendo agredida e tenha medo de intervir, ligue 180, chame alguém, peça socorro, você pode ser a voz daquela mulher e, sendo a voz de uma, você ajuda outras milhares. Não se omita. Fale. Não é por não ser com você ou com alguém conhecido que você não deve se sensibilizar. É importante lembrar que, se hoje foi com a Rita do Campo Comprido, ou com a Marina do Batel, amanhã pode ser com a sua irmã, com a sua mãe ou até mesmo com você. Isso não é uma luta de gênero, é uma luta humana.
A taxa de desocupação no estado aumentou em relação ao mesmo período no ano anterior Alana Staidel, Izabella Moreira e Maria Stefani Aguiar
O desemprego no país preocupa, atingindo os piores números em quatro anos. Em Curitiba e Região Metropolitana não é diferente: no segundo trimestre de 2016, a taxa de desocupação é de 8,9%, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), ocasionando um aumento de 3% em comparação com o segundo trimestre do ano anterior, em que a taxa correspondia a 5,9%.
O atual cenário econômico do país é caracterizado pela alta da taxa de juros e da inflação, aumento do endividamento e desemprego. Crédito: Pixabay
As pessoas estão tentando, a todo custo, superar ou driblar a crise que se instala por todo o país. O cenário no Brasil é de taxa de juros em alta, inflação elevada, maior rigidez na liberação de crédito, aumento da inadimplência (endividamento) e, principalmente, crescimento do desemprego. Cerca de 11,5 milhões de brasileiros estão sem ocupação atualmente, segundo dados do IBGE.
EXPEDIENTE
Uma das curitibanas que faz parte das estatísticas de desocupação é Thaynara de Lima Chaves, de 17 anos, que mora no bairro Uberaba com o marido, também desempregado, e sua filha de seis Reitor José Pio Martins Vice-Reitor e Pró-Reitor de Administração Arno Gnoatto Diretor da Escola de Comunicação e Negócios Rogério Mainardes
meses. Ela conta que há mais de nove meses está sem trabalho, e desde então não encontrou mais nenhuma oportunidade de emprego. “A empresa onde meu marido trabalhava faliu e ele foi mandado embora. Ele agora faz ‘bicos’ de pedreiro com o meu pai. Já eu faço diária às vezes.
Segundo dados do IBGE, cerca de 11,5 milhões de brasileiros estão sem ocupação atualmente.
Pró-Reitora Acadêmica Carlos Longo Coordenadora do Curso de Jornalismo Maria Zaclis Veiga Ferreira Professora-orientadora Katia Brembatti
Está bem difícil”, desabafa Thaynara. Ela conta que no momento não tem nenhuma renda fixa, e aguarda um auxílio do governo para receber leite para o seu bebê. O principal critério para ter direito ao benefício é a criança estar com no mínimo 6 meses de vida; após isso, é feita uma visita domiciliar de representantes do Centro de Referência da Assistência Social (CRAS). “Minha filha está na fila de espera do CRAS, e depois eles vêm fazer uma visita aqui em casa para confirmar se precisamos mesmo desse auxílio. Isso vai nos ajudar muito”, completa Thaynara.
Projeto Gráfico Gabrielle Hartmann Grimm Edição e Diagramação Ana Clara Faria Revisão Katia Brembatti
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ECONOMIA E COTIDIANO
Adquirindo novas experiências O desemprego e o momento financeiramente ruim na vida de Emanuelle Borovicz, de 19 anos, fez com que ela resolvesse fazer um curso de colocação de piercing, que foi pago pela namorada, Aline. Hoje, esse trabalho é sua única fonte de renda. “Tiro uns trocados de vez em quando, mas não vale muito a pena. Ter uma renda fixa seria muito melhor”, opina Emanuelle. A experiência despertou seu interesse em abrir um studio de tatuagem e piercing em parceria com a namorada: “Pensamos, sim, em abrir um studio, mas faltam recursos. Precisamos arrumar um emprego fixo até juntar dinheiro para poder abrir nosso próprio negócio”, finaliza Emanuelle. O revendedor Rhuan Carlos Tulcheski, de 19 anos, descobriu sua vocação para as vendas após um longo período sem emprego. Há três anos, depois da sugestão de um amigo, ele resolveu ser reven-
dedor da marca brasileira de perfumaria e cosméticos Hinode. Ele conta que o retorno financeiro e a possibilidade de ampliação dos negócios varia de acordo com a quantidade de vendas que ele faz ao mês. A oportunidade fez Tulcheski descartar a procura de um trabalho com carteira assinada: “Não penso nisso no momento, pois, com o mesmo esforço que você teria no seu emprego convencional, na Hinode você consegue ganhar bem, ter seu próprio negócio e estilo de vida”, diz o vendedor. Estou desempregado. E agora? Para quem está passando por essa situação, a principal recomendação é, primeiramente, não entrar em desespero. O estudante de economia Guilherme Figura Rodrigues, de 22 anos, aconselha as pessoas a aproveitarem o tempo livre para se especializar mais em suas áreas de atuação, adquirindo um maior preparo para o mercado de trabalho e podendo ocupar cargos que tenham uma remuneração maior em um momento de crescimento econômico e pouco desemprego. Além disso, Rodrigues opina que uma boa alternativa é, também, melhorar a “saúde” financeira em tempos de dinheiro escasso, evitando gastos desnecessários. “Sabe aquele pacote de TV a cabo que você nem usa direito? É preciso que sejam colocados na ponta do lápis todos os débitos e que seja feita uma revisão para saber o que realmente precisa ou não permanecer, excluindo as despesas desnecessárias”, completa
Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua)
o estudante. Kátia enfatiza o quanto é primordial não desistir de procurar emprego: “Quem não é visto não é lembrado. O importante é fazer contatos, distribuir currículos. Escreva artigos e comentários em blogs nas suas
áreas de interesse. Visite agências de emprego, pesquise vagas em jornais e na internet”, orienta a economista. Um último recurso são as mídias sociais, que podem ser boas aliadas para mostrar disponibilidade e oferecer serviços.
Faça contatos; Distribua currículos; Escreva artigos; Visite agências de emprego; Pesquise vagas em jornais e na internet.
Crédito: Pixabay
Mudança de hábitos Segundo a economista Kátia Bellei, o país está passando por uma grave crise no mercado de trabalho. O reflexo se nota dentro e fora da casa dos curitibanos. Os consumidores estão pesquisando mais os preços antes das compras, e criando listas de prioridades. “O que não é essencial é deixado de lado, como comer fora, fazer compras no shopping ou ir ao cinema, que agora são considerados artigos de luxo”, comenta Kátia. A economista atribui a onda de desemprego à rigidez das empresas e aos cortes de crédito por parte dos bancos, além do baque da diminuição dos gastos por parte dos consumidores. Como consequência disso, a produção é diminuída e são feitos cortes no quadro de funcionários.
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EDUCAÇÃO
Inclusão: tudo para todos? Com mudanças na legislação e nas estatísticas dos últimos anos, a educação inclusiva vem conquistando espaço no ambiente escolar brasileiro Kamilla Deffert e Markus Kalebe, com colaboração de Ana Clara Faria
Uma escola inclusiva cria um ambiente livre de desrespeito e preconceito. Desde pequenas, as crianças são ensinadas a respeitar os outros com sua infinidade de diferenças. A primeira gargalhada, os primeiros passos, o primeiro machucado, o primeiro desenho – que está guardado até hoje – e como aprendeu a andar de bicicleta são apenas alguns momentos que uma criança – e suas famílias – jamais esquecem. As crianças com necessidades especiais, assim como qualquer outra, também passam por esses momentos. Crescem. Brincam. Estudam. Chegam à faculdade. Mas qual é a dificuldade que elas enfrentam por todo esse caminho? O estudante Juan Vinicius Ortiz, de 18 anos, nascido prematuro, já passou pelo primeiro desafio ao sair do ventre de sua mãe: “A minha bolsa rompeu, antes de entrar no nono mês de gestação. Os médicos até tentaram adiar o parto, mas tive eclampsia [convulsões associadas à hipertensão arterial] e entrei em coma”, conta Lizi Ortiz, emocionada. Para os médicos, o menino nasceria sem vida; mas a criança chorou. “Eles [médicos] não estavam preparados para salvar a vida dele, mas sim a minha, pois já não estavam ouvindo o meu coração”, completa Lizi. Antes de completar nove meses de gestação, a mãe também teve outra complicação: o diabetes. Por causa da doença, o filho nasceu com baixa glicemia e anemia profunda, precisando fazer uma transfusão de sangue. Os dias passaram e, antes de sair do hospital com seu filho nos braços, a mãe foi alertada pelos médicos de que o menino precisaria de cuidados especiais. “Fizeram uma tomografia e apareceram coágulos [no cérebro] devido à
Segundo dados de 2014 do Ministério da Educação, mais de 97 mil professores no país têm qualificação para o ensino especial. Crédito: Pixabay
falta de oxigenação, por causa da complicação do parto. Para os médicos, ele não iria andar e falar”, afirma Lizi. Psicólogo. Pediatra. Fisioterapeuta. Essa era a rotina da família no tratamento de Juan. “No começo foi um susto terrível, pois nós esperávamos uma criança ‘normal’, mas depois tudo foi se ajeitando e continuamos na luta”, comenta. “Ele foi bem forte e está aí até hoje”. Estatísticas do ensino Juan, dentre outras milhões de pessoas no país, tem uma necessidade especial. Segundo o Censo 2000 do IBGE, havia, naquele ano, cerca de três milhões de crianças e adolescentes com algum tipo de incapacidade ou deficiência no Brasil. Desse número, apenas
oitenta mil frequentavam a escola. Segundo o Censo 2010 do IBGE, cerca de 140 mil habitantes do estado do Paraná apresentam deficiência intelectual. Desses, 57% (aproximadamente 80 mil) são alfabetizados. Dados do Ministério da Educação (MEC) do ano de 2014 apontam que cerca de 700 mil estudantes especiais no país são matriculados em classes comuns – desses, 93% estudam em escolas públicas. Entre os anos de 2003 e 2014, houve um aumento de aproximadamente 200% no número de professores qualificados para a educação especial, variando de 3.691 a 97.459 aptos a dar aula para alunos com necessidades especiais.
Inclusão: educação igual para todos Com a saída da família do hospital, Juan e os pais receberam acompanhamento do Centro Regional de Atendimento Integrado ao Deficiente (CRAID). Foi aí que Juan conseguiu uma vaga na escola. “Nós não tivemos nenhuma dificuldade em encontrar uma escola. Lá mesmo [no CRAID] encontraram uma vaga de acordo com as necessidades dele”, conta Lizi. Nos intervalos, os pais levavam a irmã mais velha de Juan à mesma escola para estimulá-lo ao convívio social. “Para muitas crianças com necessidades especiais, a interação com outras crianças ajuda bastante”, comenta a mãe. “O Juan, por conviver desde cedo com outras crianças, teve um desenvolvimento melhor”, avalia. O
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EDUCAÇÃO menino tem aulas de terapia ocupacional, psicologia, artes, matemática e literatura. Segundo dados do Ministério da Educação divulgados em 2015, 42 mil escolas no país foram beneficiadas com recursos pedagógicos multifuncionais de acessibilidade, como forma de auxiliar o atendimento a crianças com deficiência. Também foram criados 30 centros de formação profissional e 55 centros de apoio aos portadores de deficiência visual, assim como o financiamento de núcleos de acessibilidade no ensino superior. Além disso, foram disponibilizados mais de 2.000 veículos adaptados, para o transporte escolar, em 1.541 municípios de todo o país. A importância da acessibilidade Pessoas com deficiência – assim como qualquer outra – precisam circular diariamente pelas cidades, calçadas e ruas, para trabalho, estudo ou lazer. Há três décadas, as políticas de atendimento às pessoas com necessidades especiais ainda nem eram pensadas. Em Curitiba, por exemplo, a primeira política de acessibilidade foi implementada em 1983, com a criação do
Sistema Integrado de Transporte do Ensino Especial (Sites) pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc). O objetivo do sistema é dar assistência aos estudantes de famílias com dificuldades financeiras. Hoje, segundo os dados da URBS – órgão que gerencia o transporte público na capital –, são 56 linhas de ônibus do Sites em toda a cidade, com um total de 60 veículos distribuídos entre as 38 escolas de ensino especializado.
Segundo dados do Ministério da Educação divulgados em 2015, 42 mil escolas no país foram beneficiadas com recursos pedagógicos multifuncionais de acessibilidade. Dos trinta anos desde a criação do ônibus, a atendente de transporte especial Marilda Carneiro trabalha há mais de vinte. Para chegar ao cargo,
NO PARANÁ, MAIS DE 2 MILHÕES DE PESSOAS TÊM ALGUM TIPO DE DEFICIÊNCIA. 1,7 MILHÃO DOS HABITANTES DO ESTADO TÊM DEFICIÊNCIA VISUAL; 700 MIL, DEFICIÊNCIA MOTORA; 500 MIL, DEFICIÊNCIA AUDITIVA; 140 MIL, DEFICIÊNCIA MENTAL/ INTELECTUAL. FONTE: CENSO 2010 IBGE
Crédito (imagem): Pixabay
Nos últimos 12 anos, houve um aumento de mais de 400% no número de matrículas de estudantes com necessidades especiais no Ensino Superior. Crédito: Pixabay
ela conta que precisou fazer alguns cursos – como de primeiros socorros e de atendimento pessoal e psicológico. Mas destaca que é na prática que realmente se aprende a trabalhar com os alunos. “A minha relação com os estudantes é muito boa. Sempre procuro ajudar no que precisam. Também vejo o desenvolvimento deles na escola: já vi alunos [especiais] chegarem à faculdade, e pude perceber como eles melhoram o convívio com as outras crianças por meio do aprendizado na escola”, comenta Marilda. O acesso à educação especializada é um dos itens previstos na Lei de Inclusão – criada há pelo menos 15 anos, mas que só entrou em vigor em 2016. A política de inclusão no Brasil também atingiu o Ensino Superior, que registrou nos últimos 12 anos um aumento de 475% nas matrículas, passando de 5.078 para 29.221 alunos ingressos, segundo o Ministério da Educação. Dentro das universidades encontramos os chamados Centros de Inclusão, que têm como objetivo fazer com que a instituição receba todos os
estudantes, independentemente de suas diferenças. Segundo a supervisora pedagógica do Centro de Inclusão da Universidade Positivo, Izabella Romanetto, a instituição atende todos os tipos de deficiência e necessidades especificas: “Nosso objetivo é que esses alunos sejam respeitados e recebam seu direito à educação de qualidade”, diz Izabella, que explica a necessidade de conscientização de toda a equipe acadêmica que se relaciona com o estudante portador de deficiência. “Orientamos o professor quanto à metodologia, ao modo de atender o aluno em sala de aula especificamente para a necessidade dele. Também orientamos o coordenador do curso e, quando necessário, os colegas de classe”, comenta a supervisora. A inclusão educacional e social vai além da estrutura arquitetônica das instituições de ensino. Não é só uma escada, um corrimão ou uma rampa de acesso. É o respeito. As pessoas devem entender que os portadores de necessidades especiais também fazem parte da mesma sociedade. A diversidade, portanto, precisa ser respeitada.
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MISTÉRIOS RELIGIOSOS
A pacata vida de um exorcista curitibano Sopa de ervilha, contorcionismo e sangue: isso não tem nada a ver com o verdadeiro ritual de exorcismo Guilherme Carraro e Ricardo Heidegger Rodrigues
O dia estava nublado quando estávamos em frente à Livraria Nossa Senhora do Equilíbrio, na Brigadeiro Franco. Entramos no local onde exorcismos já foram realizados. Horas antes, havia um mendigo se debatendo na frente do local. Nas dependências, milhares de imagens sagradas. O local estava frio e bem iluminado – tirando alguns cantos em que estava completamente escuro –, com quadros de Jesus Cristo crucificado encostados na parede. Nós nos deparamos com uma enorme parede vermelha de madeira com uma imagem de Nossa Senhora. Regina, atendente do local, nos recebe com uma voz calma e doce, pedindo para que aguardássemos o padre
Jorge Morkis terminar uma sessão de conjuração de uma menina. A garota em questão estava acompanhada de sua família, e reclamava de dores no abdômen após o exorcismo. Sentados em um grande sofá coberto com uma colcha azul, fomos convidados pelo padre a entrar na sala onde ele faz os rituais. No cômodo, um piso molhado de água benta e vários quadros de Jesus Cristo e do Papa João Paulo II. “Quais seus nomes?”, pergunta o sacerdote, com um aspecto cansado. Com quase 80 anos, o homem é simpático, obeso e com as lentes dos óculos amareladas – algo muito longe dos padres exorcistas que vemos nos filmes hollywoodianos.
Na parede, imagens de Jesus Cristo e do Papa João Paulo II. Crédito: Guilherme Carraro
Nós dizemos nossos nomes e o bairro onde moramos. E falamos que somos jornalistas. Ele nos pede para sentar e guardar a caderneta com as perguntas. Com uma voz lenta, grave e com um perceptível sotaque polaco, Morkis começa a falar sobre como e quando o ritual romano (o manual de como fazer um exorcismo) deve ser usado. “Com o uso criterioso desse ritual, espera-se a superação de duas tendências opostas, ambas
errôneas e muito frequentes entre nossos fiéis. A primeira consiste num certo satanismo, que vê presença do maligno em toda parte, submetendo as pessoas à psicose do medo e irracional do demônio. A segunda tende a considerar o Diabo como personificação simbólica do mal, e não como indivíduo.” Ele termina dizendo que o ritual é a glorificação de Deus sobre o demônio. “Pode fazer as perguntas agora.” O começo Em 2007, um jovem da paróquia São Vicente de Paula cometeu suicídio. Ao ver um ato extremo, que contradiz os mandamentos da Igreja Católica, Morkis começou a se informar e ler sobre os rituais romanos e de seus colegas italianos de sacerdócio. O padre conta que, desde aquele ano, já realizou 5,2 mil exorcismos, dos quais muitos ele ainda se lembra. “O Diabo já ameaçou me matar”, contou ele após comentar sobre um dos casos dos quais o ritual de exorcismo saiu fora de controle – quando, em um dos momentos, um demônio teria se identificado e feito o padre sofrer, posteriormente, um AVC. Devido à restrição de informação que a Igreja Católica impõe aos seus padres e sacerdotes, Morkis preferiu não dar muitos detalhes e nomes. Ele nos contou isso pelo fato de também ser jornalista (formado pela PUC-PR), tendo a percepção de que a mídia não casa com rituais de exorcismo. “A mídia acaba distorcendo muito o que realmente é feito em um exorcismo. Tudo acaba sendo muito fantasioso, fazendo com que as pessoas tenham medo e evitem procurar tal ajuda”, comentou o padre. A essa altura, Morkis movimentava sua muleta e batia com
ela levemente em nossos pés. Dava pra ver ali que o padre escolhia bem suas palavras. Pelo tom tranquilo de Morkis, o clima de tensão que encontramos em nossa entrada no estabelecimento já havia passado. Porém, em uma de suas falas, o padre apontou para nosso lado e comentou, “já expulsei um demônio nesse canto, e durante a realização do exorcismo o indivíduo agarrou meus óculos e me arranhou o rosto inteiro”, causando um certo frio na espinha em nós. “Nunca vi ninguém subir nas paredes e vomitar por tudo”, brincou.
“A mídia acaba distorcendo muito o que realmente é feito em um exorcismo. Tudo acaba sendo muito fantasioso, fazendo com que as pessoas tenham medo e evitem procurar tal ajuda” Morkis fez questão de ler sobre seus certificados do início ao fim, tanto os que foram autentificados pela Igreja Católica como aqueles que comprovam legalmente a sua prática. Morkis, porém, batia na tecla de que não podia dar informações sobre o processo de realização de um exorcismo. O sacerdote se mostrou mais à vontade depois que desligamos o gravador, e até fez piadas sobre a Operação Lava Jato: “Se eu falar mais informações pra vocês, o Japonês da Federal bate aqui na porta pra me levar (risos)”. Além disso, comentou conosco que o livro “Ritual de Exorcismos e Outras
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MISTÉRIOS RELIGIOSOS mas todos sendo de origem humana, e não sobrenatural”, explicou Teresinha após nossa pergunta sobre a comparação do exorcismo com a psicologia. “Muitas pessoas da igreja não aceitam muito bem o exorcismo”.
O padre Jorge Morkis segura o livro “Ritual de Exorcismos e Outras Súplicas”, que utiliza como referência em seu trabalho. Crédito: Ricardo Heidegger Rodrigues
Súplicas”, que ele utiliza em seu trabalho, é acessível para toda a população e pode ser encontrado na Biblioteca Pública do Paraná. Em outros lugares Em um clima totalmente oposto àquele com que nos deparamos em nossa entrevista com o exorcista Jorge Morkis, fomos até a Paróquia Nossa Senhora das Mercês, que tem um núcleo de terapia espiritual e científica. Chegando lá, nos deparamos com uma sala vazia, sem secretária para nos dar informações. Alguns minutos depois decidimos subir os degraus da igreja para encontrar alguém, e então encontramos a parapsicóloga
Teresinha Martins Fernandes, de 60 anos, encarregada por todo o trabalho dessa área na paróquia. No começo ela teve receio em nos atender, mas, mesmo assim, reservou dez minutos de seu tempo para nos contar um pouco mais sobre a sua profissão e um certo “mal” que pode tamborilar nessa área. Em uma sala que se assimila muito a um consultório psiquiátrico, fomos atendidos por Teresinha. Ela fez questão de que nós dois ficássemos confortáveis para a conversa, puxando cadeiras e sofás. No alto de seus 60 anos, sendo 32 deles dedicados à psicologia e 10 à parapsicologia, a
profissional logo nos contrariou educadamente, fazendo com que mudássemos nossa primeira pergunta. “A parapsicologia é uma ciência que estuda os fenômenos paranormais,
“Todos nós somos paranormais e temos um sexto sentido, sendo uma intuição ou um sonho que pode ser comparado a um fenômeno extrasensorial”
Durante boa parte da entrevista, Teresinha insistiu em dizer que é importante as pessoas separarem o imaginário do real, e a religião da ciência. Mesmo com um discurso cético, a parapsicóloga nos contou que o paranormal é, sim, estudado e considerado relevante na profissão. “Todos nós somos paranormais e temos um sexto sentido, sendo uma intuição ou um sonho que pode ser comparado a um fenômeno extra-sensorial”. Apesar de ter uma visão muito tênue sobre o exorcismo, ela afirma: “Pessoas que movem objetos e têm capacidade de fazer coisas estranhas nós consideramos fato verídico, e a parapsicologia comprova isso por estudos dos distúrbios e momentos desequilibrados dos pacientes que nos procuram”. Com a desaprovação de parte da psicologia com o exorcismo, Teresinha entende que “cai por terra” dizer que qualquer demônio ou entidade mística provoca tais fenômenos. “Lidamos com o lado científico, os padres e sacerdotes apenas nos liberam o espaço para nossa profissão, mas a parapsicologia, atualmente, não tem mais tanta relação com o espiritismo como antigamente”, completa.
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CONFLITO NA SÍRIA
O refúgio de quem assistiu à barbárie de perto Em busca de paz, Omar Soufi e sua família estão entre as 4 milhões de pessoas que deixaram a Síria desde 2011, quando a Guerra Civil teve início Guilherme Coimbra e Gabriel Zilli
Sem muito tempo para pensar, a família de Omar foi até o porão do prédio onde moravam, junto de quatro famílias vizinhas, para tentarem se proteger de uma possível destruição. E não precisaram nem de bola de cristal para antever. Dito e feito, 15 minutos depois a explosão fez tremer toda a estrutura de sua casa. Era uma rocket-propelled grenade, mais conhecida como RPG, uma espécie de bazuca que lança granadas por foguete. Uma máquina de destruição, uma assassina em série capaz de matar dezenas de pessoas e de foder com tudo que estiver ao seu redor, o que faz dela o par perfeito dos terroristas para promover a carnificina e levar tudo que estiver próximo para o chão. Por poucos minutos, a família Soufi inteira não virou mais uma vítima do conflito e não entrou para a estatística em meio às mais de 250 mil mortes registradas na Guerra Civil da Síria pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Milhares de vítimas do medo: segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), a Guerra Civil na Síria é responsável por mais de 250 mil mortes. Crédito: Hassan T./Pixabay
Era uma madrugada – quase – comum de outubro de 2014, em Homs, cidade situada às margens do Rio Orontes, no oeste da Síria, a 160 km da capital Damasco, quando Omar Soufi conversava com o seu vizinho, Obaida Alken, sobre a vida e as peripécias de um garoto árabe de 14 anos. A conversa fiada que distraía os dois amigos percorria a madrugada, ora interrompida por extensas gargalhadas dos fatos e piadas, ora suspensa por barulhos de explosões distantes, que acompanhavam o silêncio de lamento, de lapsos de reflexão. Estes estouros, mesmo que remotos, atormentavam a calada da noite da até então tranquila cidade síria. Por serem sucintos e parecerem até aquele momento irreais, algo que se vê na televisão e que sempre acontece com os outros, nunca com a gente, brevemente eram ignorados,
numa tentativa de apaziguar a mente, esquecer de todos os conflitos e ameaças que o país estaria vivendo.
está tenso e hoje eles não estão de brincadeira. Hoje o papo é sério”, disse o homem a M.S.
Com o papo ultrapassando o seu auge, era então a hora de dormir. Se pudesse prever o que estaria por vir, o sono teria vindo antes, em tom de despedida, de preparo. Afinal, aquela era a última noite em que a “paz” se instalava na região, em que o terror ainda não havia tomado conta, em que dormir ainda não tinha virado sinônimo de pesadelo.
O alerta ocasionou uma mudança repentina: desde que a Guerra Civil se instalou na Síria, em meados de 2011, com o início dos conflitos entre a oposição – que luta para destituir o presidente Bashar al-Assad – e guerrilhas do governo, o povo sírio teve que aprender a se virar nos 30, buscar esconderijos, arrumar planos B, C, D, E e até Z, locais para fugirem da pancadaria promovida por rebeldes e militares, aderida por facções extremistas e que atingiu patamares sectários e religiosos, aguçando o tesão que xiitas e sunitas têm por se matarem, por derramarem sangue e promoverem a barbárie, a destruição e milhares de mortes.
As cinco ou seis horas de sono pareceram dez minutos. As batidas frenéticas e fortes na porta de casa eram o despertador do pesadelo, o alarme que todos temiam. Ao se levantar e atender a porta, M.S., pai de Omar, deparou-se com seu vizinho: “O clima
Sem outra escapatória a não ser esperar a tempestade de chumbo acabar, o porão se tornou o refúgio de toda a vizinhança por exatos sete dias. O conforto vinha apenas da união entre as famílias e a precaução de um povo acostumado com conflitos. Como presságio de que um dia poderiam sofrer um ataque, os sírios adotaram como costume o estoque de alimentos. E com eles não foi diferente. Essa precaução garantiu que a fome, pelo menos, estaria sanada durante um período em que a própria existência estava colocada em dúvida. Vivendo feito procurados, Omar e sua família aproveitaram este período para refletir até que ponto valia a pena continuar morando em um lugar onde o medo impera, onde cada dia é uma nova aventura e, no final das contas, manter-se vivo é lucro. É como se a morte formasse fila e chamasse por senha. Logo, logo eles sabiam que a hora chegaria. Assim foi, assim é, infelizmente assim permanecerá até o fim dos conflitos.
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CONFLITO NA SÍRIA Um abrigo – e uma salvação Aos poucos, a memória da família Soufi era tomada pelas boas lembranças do tempo em que moravam no Brasil. Foi aqui que Omar e seu irmão Mohamed nasceram, no período em que seu pais, M.S. e R.S., moraram em Foz do Iguaçu e Curitiba. Mesmo em um país turbulento em que a desigualdade e a violência assombram o dia a dia de seus moradores, o Brasil se tornava um paraíso perto do deserto de entulhos que se tornava a Síria, com tamanha destruição causada pela revolta armada. Sem hesitar, a hipótese do retorno ao Brasil se tornou cada vez mais real. Era a gota d’água, antes que viesse a gota de sangue. O martelo não demorou para ser batido: passados os sete dias de regime fechado dentro do porão do prédio, era hora de subir e ver o tamanho do estrago material causado pelo ataque. Por causa da explosão no terceiro andar da casa, o quarto de M.S. havia descido dois andares. A cama estava lá embaixo, assim como todos os móveis. No terceiro andar só havia uma nova janela, aberta pelo rombo na parede que o lançamento da bomba
abriu. Através dela, a vista, que antes era de casas e prédios, só mostrava destruição. As ruas estavam desertas, apenas com marcas de tanques de guerra e carros amassados. “Eles subiam em cima dos carros só para destruí-los de propósito”, conta Omar. O sentimento já não podia mais ser diferenciado. A tristeza por ver a avaria em sua casa deu lugar ao alívio por estarem todos vivos, sem nenhum arranhão. Só não teve lugar para o ódio, pois este já tinha de muito por lá e já havia esgotado a paciência de todos os familiares. Restou a eles, então, ligar para o consulado brasileiro e pedir ajuda. Era hora de construir uma vida nova em outro lugar, num país onde já haviam sido acolhidos uma vez e que agora teriam que voltar para, quem sabe, ficar até o fim de seus dias. Nem mesmo o investimento em imóveis em Homs, feito com fruto do suor do trabalho de M.S., restou para eles. Sem nenhum comprador para as casas e apartamentos, e com algumas delas destruídas pela guerra, a família Soufi teria que voltar com as mãos abanando, em busca de reconstrução.
Mohamed (esquerda), M.S. e Omar (direita), recentemente, no Brasil. Crédito: arquivo pessoal
Pela janela, a barbárie Hoje, dois anos depois do retorno ao Brasil, Omar lamenta a continuidade da Guerra Civil na Síria, e enxerga de longe os contornos que se deram a partir de uma simples reivindicação de mudança e democracia num país que convive com uma ‘ditadura indireta’, onde a escolha do presidente é feita através da dinastia. “Eu achava que a revolta seria um passo à frente que tinha que ser dado pelo povo sírio. Tudo tem que mudar um dia. Uma família há 50 anos no poder, porra, já deu, né? Mas sabe como que é, eles não querem sair. O povo foi para as ruas e levou chumbo, tentou seus direitos, levou chumbo.
Quando resolveu responder com chumbo, levou ainda mais”, diz Omar. A esperança de dias de paz na Síria se acabou. Omar sequer cogita a hipótese de que a Guerra Civil acabe logo. A única coisa que se sabe é que um dia acabará. Vai ter que acabar. O problema é o que vem depois: a reconstrução de toda a destruição causada pelo joguinho de videogame da vida real feito pelos rebeldes, militares e extremistas imbecis é algo que demanda tempo. E claro, muito dinheiro. Enquanto o pesadelo não acaba por lá, a população do país diminui gradativamente. Quando não são mortos, os cidadãos sírios deixam o país, em busca de vida nova em outros lugares, assim como a família Soufi. Já são mais de 4 milhões de pessoas que se refugiaram nos quatro cantos do planeta. Muitos deles em condições precárias em países da Europa, onde são marginalizados, tratados feito merda e, pior, quando não são expulsos e mandados de volta para o campo de extermínio de onde vieram. No Brasil, um dos lugares que abriu as portas e resolveu acolhê-los, já são mais de 2.300 imigrantes sírios, que vieram para cá através da facilitação na concessão de vistos permanentes para os refugiados. Os que optaram por ficar por lá hoje vivem numa terra de ninguém, rodeada pelo ódio e pela ganância do poder. A Síria se tornou o calvário de sonhos e de planos, onde as maiores
Foto 1: Omar (centro) com seus familiares em Damasco, capital da Síria. Crédito: arquivo pessoal Foto 2: Omar (centro) se divertindo com seus amigos em Homs. Crédito: arquivo pessoal
atrocidades e atentados contra os direitos humanos são cometidos. A visão das crianças do país foi tomada pela cegueira parcial, por uma miopia que não lhes permite enxergar o futuro. No ame-a ou deixe-a, ficou difícil escolher. Forçada a deixar a sua casa, até a paz saiu de lá para se refugiar em outro lugar. A esperança talvez ainda esteja por lá, escondida em algum porão, nos destroços causados pelas bombas ou, infelizmente, morta, estirada no chão feito os corpos daqueles que infelizmente não conseguiram escapar da guerra. Quem sabe um dia tudo isso acabe e o país possa ser reconstruído, como Omar um dia sonha acontecer. Quem sabe um dia a Síria volte a ser um bom lugar para se morar. “Quem sabe um dia”. Essa é a incerteza que toma conta daqueles que um dia já souberam o que era a paz por lá.
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SAÚDE
Identificando e convivendo com o esquecimento Cerca de 44 milhões de pessoas em todo o mundo já foram diagnosticadas com o Alzheimer André Luiz Moraes e Phaenna Assumpção
Quando chega 17 horas, Jani quer ir embora, subir o morro que a leva à sua casa. Ela quer ir, mesmo que sozinha, já que as pessoas não querem levá-la. É assim todos os dias. Maria Aparecida tem que ter muita paciência e amor para enfrentar os delírios da mãe – que vive, mas não se lembra. Jani não sai mais de casa, não vai mais ao supermercado, deixou de ser independente. Após um grave acidente de carro, ela ficou sem andar por três anos, mas se recuperou com a ajuda da fisioterapia. Mas, depois da tragédia, nunca mais foi a mesma. A televisão passou a ser a sua maior companhia. Jani estava com depressão. Começou a se esquecer das coisas, a família pensou que fosse por causa do acidente. Estavam errados: o que Jani tem é o mal de Alzheimer, que, de acordo com estudos realizados pela Alzheimer’s Disease International (ADI), é um tipo de demência que atinge 44 milhões de pessoas no mundo todo. São registrados cerca de 7,7 milhões de novos casos de Alzheimer no mundo a cada ano – o que significa um novo caso a cada quatro segundos. Hoje, Maria Aparecida é mãe de sua mãe: desde o acidente, ela cuida de Jani. Suas irmãs simplesmente se esqueceram da pessoa que cuidou delas a vida inteira. Apesar de Jani não ser mais a mesma, ela foi e sempre será a mãe de Maria. Foram tempos difíceis com a morte do pai, a descoberta da doença da mãe e o abandono das irmãs nesse momento complicado. Sempre que sai, Maria leva Jani para passear junto. “Por enquanto ela anda bem, está forte, aí vai comigo. Mas parece criança pequena, que você não pode deixar um minuto sozinha, que quando vira as costas e torna a olhar ela sumiu. Minha mãe é a mesma coisa, é como se fosse uma criança pequena”, diz Maria.
A tendência de piora aflige. Internar Jani, de 85 anos, seria a solução mais fácil. “Tem várias casas de idosos aqui em Curitiba que cuidam, tanto que minhas irmãs queriam colocar minha mãe em uma delas”, comenta Maria. “Enquanto eu conseguir cuidar dela, eu vou cuidar. Mas chegará um ponto em que não terei condições”. Entre as estatísticas Estima-se que no Brasil cerca de 1,2 milhão de pessoas sofrem com o mal, de acordo com o IBGE. As mulheres correspondem a dois terços do total, e somente metade dos afetados pela doença recebem tratamento adequado. Felizmente Jani faz parte da parcela dos que são tratados; seu ex-marido era militar, e hoje ela recebe, além de pensão, um plano de saúde para atendimento no Hospital Militar de Curitiba. Maria Aparecida conhece muito bem a doença: já teve um tio e uma avó, por parte de pai, que sofreram do mesmo problema. “Na época eu acabei machucando o pulso, pois precisava levantar minha avó para dar banho, trocar roupas e fraldas. O bom é que tinha uma cuidadora que passava o dia todo comigo, porque sozinha eu não daria conta, pois depende de força também”, comenta. Por muitas vezes a doença acaba abalando psicologicamente a família, e contar com a ajuda de outras pessoas é importante – tanto para os parentes quanto para o diagnosticado com a doença. Rosemeri Padilha é uma dessas pessoas: ela trabalha há dois anos com idosos que têm mal de Alzheimer. “São pessoas que perdem as referências, então nós somos suas sombras”, diz a cuidadora. Hoje quem ajuda Maria Aparecida é sua neta de 18 anos, Luize, que mora com elas. Com a neta em casa, Maria consegue tomar banho sem preocupações, pois assim tem alguém observando
Jani. Outra alternativa para quando Luize não está em casa é a diarista Janete Nersborski, que trabalha com a família há cerca de dez anos. Maria conta que a última viagem de férias teve ajuda da diarista. Janete ficou quatro dias cuidando de Jani para que ela pudesse arejar a cabeça em uma cidade de Santa Catarina com fontes termais. “Nos outros três dias, quem cuidou dela foi minha filha de São Paulo, que veio passar as férias aqui em Curitiba”, conta Maria, aliviada. É difícil aceitar a doença quando o ente querido não é mais aquela pessoa que costumava ser. A família, portanto, precisa confiar em alguém neutro para ajudar a tomar conta do paciente. “O cuidador precisa estar bem preparado psicologicamente, porque temos que cuidar de um paciente e ser um elo de ligação entre ele e a família”, diz Rosemeri. Histórico O primeiro caso de Alzheimer de que se tem conhecimento é o da alemã Auguste Deter, que em 1906 – aos 51 anos – apresentou perda progressiva de memória e dificuldades de se expressar. Auguste morreu aos 55 anos e seu médico, Alois Alzheimer, examinou o cérebro da paciente. As análises dele são usadas até hoje como referencial
Maria Aparecida (foto) passa a maior parte do tempo cuidando da mãe, que sofre de Alzheimer. Crédito: André Luiz Moraes
para o diagnóstico da doença. O Alzheimer não tem cura e, com o passar do tempo, se agrava. A grande maioria das vítimas são pessoas idosas. A demência ou perda da memória e fala é causada pela diminuição do número de células nervosas e das ligações entre elas, reduzindo, progressivamente, o volume cerebral. Apesar de ser incurável, é possível controlar a doença, principalmente quando é diagnosticada no início. Por sintomas da doença poderem ser confundidos com traços da velhice, o diagnóstico tardio é um problema que afeta os doentes.
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COMPORTAMENTO
Os dois lados de uma vida designada pelos familiares Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), quase 80 mil idosos vivem em asilos no país Sabrina Miranda e Thaiane França
O envelhecimento é uma realidade de muitas faces. Por vezes, o sentimento de abandono, invalidez e desprezo prevalecem, e a opção pela moradia em uma instituição de longa permanência acaba sendo a alternativa tomada por conta das necessidades do idoso. As instituições de longa permanência – os asilos – são locais de acolhimento, em regime integral, de proteção especial de alta complexidade, para atender idosos em situação de abandono ou negligência. Segundo pesquisa publicada em 2010 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), cerca de 79.459 brasileiros com mais de 60 anos vivem em 3.548 asilos ou casas de repouso em todo o país. O que muitos se perguntam quando uma pessoa conhecida vai para uma clínica de repouso é: qual seria o verdadeiro motivo destes familiares em deixar o pai ou mãe em uma casa de repouso? Decisões mal interpretadas Virgínia Quadros, de 69 anos, é residente da casa de repouso Recanto das Hortênsias, localizada em Campo Magro – Região Metropolitana de Curitiba. Ela diz que se sente melhor sozinha, e que vê a correria do dia a dia dos familiares como um certo incômodo no momento em que precisa descansar. A decisão de ir para um asilo partiu de Virgínia, que conta que não vê o fato de morar na casa de repouso como algo ruim, mas, sim, como um favor que a família faz. Já a a professora aposentada e também hospede da casa de repouso Lúcia Jesuino, de 71 anos, está há dois anos no local por necessidade de um cuidado mais intenso, devido ao AVC (Acidente Vascular Cerebral) que sofreu. Ela conta que, embora os familiares acreditassem que deixá-la em um recanto não era a alternativa mais “amável”, era uma boa forma de mantê-la sob cuidados de profissionais capacitados. A filha de Lúcia, a professora Sílvia Maria Jesuino, de 43 anos, diz que a decisão tomada pelos familiares é, muitas ve-
zes, mal interpretada pelas pessoas: “Fomos muito julgados pela escolha de deixar a mãe aqui. Nossos vizinhos não entenderam nossa necessidade e dificuldade de cuidar dela. Mas eu tenho artrite, e não consigo erguê-la. Fiquei afastada por um tempo do trabalho e, mesmo assim, não consegui cuidar dela”, comenta Sílvia. Lúcia conta que ficar no recanto não é exatamente como os outros pensam: embora sinta falta da família, ela recebe atenção e a semana é repleta de atividades. Não era sua vontade ficar ali, mas a necessidade do cuidado e de alguém qualificado para atendê-la foi o que mais A Clínica de Repouso Recanto das Hortênsias, localizada na Região Metropolitana de Curitiba, hoje abriga 33 idosos. Crédito: Thaiane França contou para a decisão ser tomada. Sílvia conta, porém, que foi difícil escolher filha, a secretária executiva Arlete Pfa- era impossível, ela ficava agressiva e uma casa de repouso que atendesse às ffenzeller. Ela nos conta que Adelaide me jogava as coisas, queria me bater”, necessidades da mãe. “Eles também nasceu em Guarapuava, caçula de qua- conta a filha. Arlete foi orientada pela são seres humanos, merecem ser bem tro irmãos – hoje, todos falecidos. Aos Associação Brasileira de Alzheimer tratados”, diz o marido de Sílvia. O Re- 21 anos de idade, tornou-se mãe soltei- (ABRAZ) a procurar um lar para idosos, canto das Hortênsias foi sugestão do ra depois de um relacionamento com e a clínica onde hoje vive foi sugerida filho caçula de Lúcia, que mora em São um homem que conheceu enquanto por um membro da associação cujo pai Paulo e vem visitá-la a cada 15 dias. trabalhava como camareira de um ho- também sofria da doença. “No início retel. Mudou-se para Curitiba, onde criou lutei muito, me sentia culpada por não Segundo a proprietária da clínica Carla sozinha sua filha, trabalhando como poder cuidar dela, uma pessoa que Medeiros, não existe nenhum critério, empregada doméstica e residindo em deu sua vida toda por mim”, diz Arlete. por parte do asilo, que permita ou im- um pequeno quarto alugado. Ao lon- “Eu chorava todos os dias e não sabia o peça o idoso de permanecer no local, go de treze anos, Adelaide reencon- que fazer”. O pai de Arlete, hoje, paga mas há acompanhamento do poder trou duas vezes o pai de Arlete – que, as despesas da hospedagem de Adepúblico regularmente: “O recanto tem no entanto, casou-se e teve duas filhas. laide. o dever de informar ao Conselho Municipal do Direito do Idoso sobre cada Há cinco anos, Adelaide começou a ter A filha conta que a decisão de levar a hospedagem. Se a família do idoso alucinações. Há dois anos, seu estado mãe à clínica foi mal recebida por pesnão o visitar, o conselho será acionado. piorou e ela começou a esquecer as soas próximas: “Ouvi muita besteira, fui Mas, em nove anos de existência, nun- coisas e a trocar objetos de lugar. A sa- julgada como uma filha ingrata. Mas é ca tivemos esse problema”, diz Carla. ída encontrada pela filha foi colocá-la, fácil julgar quando não se conhece a sidurante o dia, em uma creche para ido- tuação”, diz Arlete. “Hoje não ligo mais, Obstáculos no caminho sos. Mas Arlete, que chegava em casa pois sei que fiz uma ótima escolha para A moradora Adelaide Pereira, de 81 à noite, conta que se deparava com a ela”. A filha comenta sobre sua forte lianos, tem uma história rica em moti- mãe em condições desagradáveis, sem gação com a mãe – a quem visita nos vos que contrariam o sorriso que sai de banho, fralda suja, objetos de higiene finais de semana: “Não imagino a vida seu rosto à chegada de cada visitante usados misturados em meio a roupas sem ela, peço a Deus que cuide dela na clínica. Adelaide tem Alzheimer e, limpas do guarda-roupa. “Foi ficando até o fim para não sofrer. Do que cabe por isso, entramos em contato com sua cada vez mais difícil, para dar banho a mim, procuro fazer o melhor”.
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ESPORTE
Desculpe, velho futebol, mas eu prefiro o americano! Falta de patrocínio, lugares inapropriados para treino e alto custo dos equipamentos são obstáculos para quem pratica o esporte Álex Biega e Maiara Vanzela
As marcas de pancada no capacete e os dedos dos pés cheios de calo mostram que o corpo é colocado à prova todos os dias. Pela manhã, o foco é no estudo. À tarde, tempo para trabalhar. Só pela noite Homero Meyer consegue se desligar da sua rotina cansativa de designer gráfico em uma agência de Curitiba para botar a chuteira da Nike trazida dos Estados Unidos e seu protetor de ombro preto e dourado, que lhe encaixa perfeitamente nos ombros retos. “Meu pai sempre foi fã de baseball. Nós íamos às lojas de esportes e ficávamos vendo os assessórios de jogos americanos. A partir daí, comecei a amar o futebol americano”, conta o jogador. Além dos problemas dentro de campo, os atletas de futebol americano no Brasil precisam desafiar a falta de tempo, os recursos limitados e espaços de treinamentos improvisados, coisas que passam longe de quem pratica o esporte nos Estados Unidos. Cadê a grana? Em 2015, Homero tirou do papel a sua ideia. O Moon Howlers, time de futebol americano, foi todo projetado pelo jogador. Os uniformes, as táticas, os demais jogadores: tudo saiu da cabeça do designer. “Nós temos dois problemas: o primeiro é que os equipamentos no Brasil são muito caros (chegam a custar entre R$ 800 e 2000). O outro é que ninguém quer investir na gente aqui no país. Falta confiança das empresas. Sinceramente eu não sei o porquê. Eles [empresas] veem que estamos crescendo, mas não querem ajudar”, conta Homero, com um de seus capacetes pretos com o emblema do Moon Howlers na mão.
A paixão pelo futebol americano fez Homero Meyer criar o próprio time: o Moon Howlers. Crédito: divulgação
O Brasil, hoje, conta com a Confederação Brasileira de Futebol Americano. Mesmo assim, todas as despesas, sejam elas referentes a viagens, torneios ou outros gastos, são desembolsadas pelos atletas e pelas comissões técnicas dos times. “Desse jeito não dá, a Confederação só aparece quando é viável para ela”, comenta Meyer. Primero dia de treino do Howlers Sábado, 9 horas da manhã, Parque São José dos Pinhais. O dia do primeiro treino oficial do time de
Meyer já havia sido marcado com semanas de antecedência em uma rede de bate-papo virtual. “A expectativa é grande. É bom ver os amigos e ainda jogar o football”, diz Gabriel Lehmann, jogador e estudante que leva dentro de uma bolsa suas chuteiras laranja, seu protetor de ombros e seu capacete cheio de marcas de batidas. Em uma parte escondida do parque, cerca de dez rapazes, de idades que variam de 18 a 43 anos, se reúnem em um gramado batido e com lama. Nada que atrapalhe o aquecimento e os primeiros lança-
mentos com a bola oval. Dez minutos se passam e o primeiro problema aparece: nem todos têm os equipamentos necessários para o treino. Mas o problema é logo resolvido com coletes de cores diferentes. “Primeiro treino é assim, nem todos estão preparados. Mesmo assim, a gente sempre dá um jeito”, sorri Meyer, depois de descansar por dez minutos encostado em uma árvore. Os jogadores passam três horas jogando e se ajudando. Rotas, tackles (jogada em que a bola é tirada do
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ESPORTE adversário), bloqueios, chutes: um festival de selvageria para quem não conhece o esporte e tempo de diversão para quem gosta. Fim de treino. Roupas cheias de lama, machucados na pele e pés doendo. Lehmann se senta em um canto e se esforça para tirar o par de chuteiras encharcadas. “A pior coisa é precisar esperar uma semana para jogar de novo”, diz. Um brasileirinho de 1,73 cm faz história na NFL Criado em Limeira, no interior de São Paulo, Cairo Santos decidiu passar um ano no ensino médio americano em 2007, na cidade de St. Augustine, na Flórida. Foi aí que o brasileiro, até então decido a praticar o futebol tradicional, resolveu tentar uns chutes como kicker (chutador) no time da escola e não parou mais. Santos foi, então, selecionado para uma bolsa de estudos na Universidade de Tulane, onde engrenou sua carreira como jogador universitário e ganhou o Lou Groza Award como melhor kicker da temporada. Com os estudos terminados, Cairo resolveu então que se dedicaria ao futebol americano por completo. Em 2014, o jogador foi escolhido pelo Kansas City Chiefs para disputar a vaga de kicker com Ryan Sucoop, atleta mais velho e experiente que o brasileiro. Durante a pré-temporada, Cairo foi selecionado pelos Chiefs, já que sua pontaria e seu baixo salário de calouro pesaram na decisão contra Sucoop. Depois de 6 jogos em 2014, Cairo provou ter sangue frio e se estabeleceu no time no jogo 7 da temporada regular, quando o kicker marcou o field goal (uma das formas de pontuação no futebol americano) da vitória, faltando 34 segundos para o fim do jogo – onde os Chiefs perdiam
para o San Diego Chargers em plena Califórnia. Desde então, Cairo Santos vem se destacando e mantendo a boa regularidade no time de Kansas City Chiefs. Dos 83 chutes que tentou em duas temporadas, o brasileiro acertou 74, uma média de 83.3% – que é considerada altíssima pelos especialistas americanos. Horário nobre na TV fechada brasileira Dez horas da noite. Horário daquela tradicional novela ou do jogo do campeonato brasileiro. Mas não para a ESPN. Desde 2005, o canal americano com franquia em São Paulo vem mostrando os principais jogos da temporada regular do futebol americano, além de todos os jogos playoffs (partidas pós-temporada que selecionam os melhores times) e o SuperBowl, evento esportivo mais assistido anualmente em todo o mundo. As transmissões sempre acontecem nas quintas-feiras, domingos e segundasfeiras, de setembro a fevereiro. Criado em 2015, o Moon Howlers reúne admiradores do futebol americano em torno do sonho de competir profissionalmente. Crédito: divulgação
“Isso é muito violento! Eles não se machucam? Não tô entendendo nada desse jogo” É comum os viciados em futebol americano ouvirem frases como essas. O contato físico, presente na maioria dos esportes, também é comum no futebol americano. Só que, ao contrário do que se pensa, o jogo não tem enfoque na violência, mas sim em estratégias dos dois times para ganhar e defender território.
Como funciona o jogo: Dois times, 11 para cada lado; O mesmo time tem jogadores de ataque e defesa, e eles não ficam juntos no campo ao mesmo tempo; A pontuação pode ser dividida em Touchdown (6 pontos), Field Goal (3 pontos), Safety (2 pontos), Conversão de Touchdown (2 pontos) e Extra Points (1 ponto); O objetivo de cada time é ganhar território do outro até chegar na EndZone (parte final do campo) para marcar o Touchdown.
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ESPORTE
Encanto, cultura, esporte e descaso: as faces da realização dos Jogos Rio 2016 As Olimpíadas foram um sucesso; o Rio, agora, volta à realidade e espera que os pontos positivos do evento permaneçam por lá Guilherme Coimbra
A magia olímpica contagiou as terras tupiniquins e, sem dúvidas, deixará saudades e boas lembranças na memória de todos que de certa forma privilegiaram o evento, sejam eles atletas, organizadores, voluntários, profissionais da imprensa ou torcedores. Mas e agora? Qual legado ficou? O que mudou na cidade que encantou o mundo por 17 dias, mas que sofre constantemente com a violência, o descaso e a má administração? As três faces dos Jogos Olímpicos Rio 2016 são apresentadas na visão de um torcedor, um jornalista que cobriu o evento e de um morador da Cidade Maravilhosa. Mais do que um evento esportivo, os Jogos Olímpicos são um misto de Favelas do Rio de Janeiro sendo representadas na Cerimônia de Abertura dos Jogos Olímpicos. Crédito: Saulo Cruz/Divulgação/COB/Rio2016 culturas. Por duas semanas, o planeta respira esporte e atletas Participar de um evento como esse –, que deixou dois mortos, reclamados quatro cantos do mundo com- é algo único e especial, seja para os ções de delegações por falhas nas petem em busca da tão sonhada atletas, para os espectadores, para obras da Vila Olímpica e problemas medalha de ouro. O espírito olímpi- os voluntários, profissionais da im- como acessibilidade e segurança, a co contagia, conquista e apaixona os prensa ou até mesmo para os mora- Rio 2016 superou as expectativas e amantes das modalidades. Mais do dores das cidades-sedes que sempre foi um relativo sucesso. Até mesmo que construir uma rotina que prende acabam impactados pela realização os próprios moradores da cidade os olhos de multidões em todos os do evento no quintal de sua casa e admitem que o receio foi, aos poulugares do globo nas competições, têm a oportunidade de acompanhar cos, ficando para trás ao decorrer as Olimpíadas trazem sempre consi- de pertinho ídolos mundiais. Mas, das Olimpíadas, como o carioca Alan go novas histórias de superação, de quando se fala de “legado olímpico”, Mangin, morador de Copacabana igualdade, de culturas e constroem a conversa sempre ganha um tom de que divide muito do tempo na Tijuheróis. Não existe distinção de raça, seriedade. Ainda mais se tratando do ca – duas regiões que participaram gênero, etnia, religião. Homens e mu- Rio de Janeiro, que vive contrastes ativamente dos Jogos. “Semanas e lheres, negros e brancos, cristãos e distintos em sua sociedade. meses antes estávamos muito com o muçulmanos, ocidentais e orientais pé atrás, pois o clima não estava muicaminham junto, lado a lado, em paz, Faço da minha casa a sua to legal nas condições de transporte, pelo esporte. A chama acendida pela No Rio, a realização dos Jogos Olím- de segurança e de saúde”, diz Manpira na abertura permanece acesa picos enfrentou muita desconfiança gin. “Mas quando foi chegando mais até mesmo depois que ela se apaga. e bastantes críticas iniciais até o su- perto, na semana das Olimpíadas, no O espírito permanece em cada um cesso final do evento. Apesar de atra- dia da abertura e durante o evento o deles, que acabam afetados direta sos nas obras, o acidente na ciclovia clima mudou completamente. Só se ou indiretamente pela realização dos Tim Maia – na Avenida Niemeyer, falava em esporte em tudo que era é Jogos. em São Conrado, zona sul da cidade canto, foi bastante positivo”, comple-
ta o carioca. Como residente de Copacabana, o contato com os turistas foi contínuo. Pessoas de todos os cantos do mundo fizeram do Rio de Janeiro e principalmente da região, que é uma das mais movimentadas da cidade, um lugar multicultural. “Como eu falo inglês, foi um pouco mais fácil para mim. Aqui no Rio os serviços de atendimento não são tão bons e o povo não fala inglês. Nessa parte de contato, a gente ajudou muito a galera [estrangeiros] a se localizar, dando informação sobre metrô, onde pega ônibus – pois aqui em Copacabana tinha mais aquela área da arena do vôlei de praia, então era mais fácil”, diz Mangin. “À noite, quando eles queriam sair, tínhamos dicas para a night, ou churrascarias, rodízios, a gente ia indicando, foi muito legal”, conclui.
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ESPORTE Diversidade cultural é manchete O jornalista paulista Danilo Georgete, do portal Conexão News, participou da cobertura olímpica no Rio de Janeiro e define a experiência como se estivesse fazendo um intercâmbio: “Você vive ali ambientes diferentes, vê culturas diferentes, é como se conhecesse vários lugares do mundo ao mesmo tempo”, afirma o jornalista. “Através do contato com pessoas de diversas etnias e conhecimentos diferentes, você acaba adquirindo um ganho cultural que vai muito além do que acompanhar as competições. É muito mais do que uma experiência profissional, é uma experiência de vida”, diz Georgete. Quanto ao clima e a energia do povo carioca, o jornalista acredita que a receptividade foi a melhor resposta possível para as dúvidas quanto ao Jogos. “O Rio de Janeiro virou a capital do mundo durante aqueles 17 dias de Jogos Olímpicos. Eu me senti em casa; o povo carioca é extremamente receptivo. Em qualquer lugar que você parasse para pedir uma informação as pessoas te davam. Quando te viam com a credencial, vinham conversar para saber de onde você era”, comenta Georgete. “Foram dias em que o Rio respirou esporte e que com certeza mostrou que continua lindo, não só pelas belezas naturais que tem, mas pela receptividade e pelo calor do povo”, conclui. O jornalista curitibano Felipe Harmata, que foi para o Rio de Janeiro acompanhar os Jogos Olímpicos como torcedor, define a experiência como positiva. Para ele, o mais legal de tudo era ver que a cidade estava em torno do clima do evento. “O Parque Olímpico chamou bastante a atenção. Quando você entrava lá, tinha pessoas de todos os lugares do mundo. O clima festivo era diferente”, opina Harmata, que presenciou, inclusive, um clima amistoso entre torcidas notadamente rivais. “O dia que mais me marcou foi quando teve Brasil e Argentina no basquete. Eu estava no momento em que o jogo acabou, e eu vi argentinos gritando e os brasileiros estavam junto. A coisa acontecia sem nenhum grande pro-
O jornalista Danilo Georgete, do portal Conexão News, nos Jogos Olímpicos Rio 2016. Crédito: Reprodução/Facebook
blema”, conta o jornalista. Legado, uma palavra complicada de dizer Após o término dos Jogos Olímpicos, muito se falou na questão do legado que as Olimpíadas poderiam deixar para o Rio de Janeiro e para o Brasil. Há quem diga que a Rio 2016 traria benefícios para a cidade como um todo e, principalmente, para o esporte brasileiro. Para os mais pessimistas, os gastos – que não foram poucos – com a realização do evento poderiam ter sido em vão. Assim como tudo que envolve competições esportivas de grande porte no país, como, por exemplo, a Copa do Mundo de 2014, os Jogos também dividiram opiniões. “A gente sabe que dificilmente o dinheiro que foi investido teria sido investido em cultura, em saúde, etc., mas não acho que investir em Jogos Olímpicos seja errôneo”, opina Georgete. “Quantas crianças do país, hoje, podem querer praticar canoa-
gem, judô, salto com vara, inspiradas nos atletas que conquistaram o ouro olímpico? O esporte é mais do que uma Olimpíada, é essencial para a vida. Muitas crianças poderiam estar no tráfico e estão praticando uma atividade esportiva”, pondera. Já Felipe Harmata considera que ainda é cedo para falar em legado de estrutura, mas que, sem dúvidas, o legado humano foi um sucesso da realização do evento, apesar de alguns problemas eventuais que tenham acontecido. “Das questões administrativas, provavelmente o metrô será um bom legado. Mas ainda não dá para ter certeza. Temos que esperar alguns anos para poder falar”, conclui. Na visão do carioca Alan Mangin, o maior legado que fica é o cultural e o esportivo. Segundo ele, o povo se engajou e o espírito da cidade girou em torno da cultura esportiva, com a
torcida acompanhando e conhecendo modalidades que não são tão populares no Brasil. “O problema é que foi investido dinheiro em lugares que não necessitavam de investimento, como a Barra, Copacabana e a região do Maracanã. Assim, é um contraste muito grande. Você anda 2 km saindo da Cidade de Deus, que está ‘largada’, para o Parque Olímpico da Barra, com condomínio em volta, tudo de classe alta”, observa. Mangin faz críticas ao transporte público e à segurança depois do evento: “Duas semanas antes não tinha nada na rua. Durante os Jogos Olímpicos, o exército veio para a rua e deu uma melhorada, mas você sabia que os militares com fuzis na mão eram só para turista ver. E agora que acabaram as Olimpíadas, não tem mais nada. A polícia segue com o mesmo efetivo e ainda enfrenta problemas com o estado por falta de pagamento”, diz o carioca.
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COLUNISTAS
Closer e a realidade escancarada do amor
E
xistem muitos filmes (milhares, na verdade) que abordam a questão do amor, de forma idealizada, focando num final feliz. Mas é possível contar nos dedos aquelas obras que tratam os relacionamentos amorosos de maneira real, preocupando-se muito mais em mostrar ao público todos os dissabores do que convencionamos chamar de “amor”, ao invés de descambarem para uma visão fictícia do sentimento. Mike Nichols já havia abordado em outros filmes, como “Quem Tem Medo de Virginia Woolf”, o lado mais obscuro e cruel dos relacionamentos, mas foi com Closer - Perto Demais, adaptação da peça teatral de
mesmo nome, escrita por Patrick Marber (que, inclusive, assina o roteiro do filme), que Nichols atingiu o ponto mais alto na abordagem desse sentimento tão controverso. A obra conta a história de quatro desconhecidos, Anna, Dan, Alice e Larry, interpretados por Julia Roberts, Jude Law, Natalie Portman e Clive Owen, que se envolvem em um quatrilho amoroso, regado a mentiras, infidelidade, sofrimento e ilusão. Conforme o envolvimento dos quatro se aprofunda, todas as mágoas e ressentimentos começam a vir à tona, mostrando a face oculta de cada personagem (ou a
CINE RESENHA Gabriel Santos
O humanismo dos irmãos Dardenne
S
empre acompanhados dum realismo expressivo, os irmãos Dardenne conquistam cada vez mais fãs de cinema ao redor do mundo. Suas histórias não levam a um lugar mágico, cheio de aventuras, mas sim a uma visão que corresponde a nossa vivência humana e ao ambiente hostil que nos cerca. Temas que não deixam de ser tratados pela dupla não são diferentes neste último filme.
‘’Dois Dias, Uma Noite’’ conta a história de Sandra Bya (Marion Cotillard), casada e com dois filhos. Após ser afastada do trabalho por problema grave de depressão e prestes a voltar ao emprego, recebe a notícia de que seus colegas de trabalho decidiram demiti-la para ficarem com um bônus de mil euros. Porém, este emprego é muito importante para a renda de sua família, e com ajuda do marido ela
FILMOTECA
Henrique Romanine
face que eles se empenharam em esconder dos parceiros). Nichols dirige o elenco com precisão cirúrgica, e com a ajuda dos atores e do roteiro bem-amarrado de Marber, reforça o que Closer possui de mais precioso: os diálogos. São eles, em conjunto com a sensibilidade de Nichols, que possibilitam atuações marcantes de quase todo o elenco. Natalie Portman e Clive Owen são os grandes destaques, conseguindo mostrar todas as nuances de seus personagens, inclusive as mudanças
de temperamento, com muita propriedade. Julia Roberts entrega uma de suas melhores atuações como a frágil Anna, e Jude Law alterna bons e maus momentos como Dan, mas não compromete.
tentará convencer seus colegas a desistirem do abono para manter seu emprego.
atuação da atriz Marion Cotillard, que encarna a personagem principal de maneira única. Consegue nos transmitir a angústia de tudo que Sandra Bya passa durante o fim de semana para manter seu emprego.
O trato dos irmãos Dardenne ao contar tal história é duma maneira sutil, pois o pouco uso de cortes junto ao trabalho de marcação deixa tudo tão simples, atrelando a si uma carga de naturalidade. A composição que os irmãos empregam nas imagens contribui para o entendimento dos personagens, pois sempre se cria uma barreira pela qual Sandra tem de passar. Um obstáculo muitas vezes interno, a batalha contra o orgulho. A ausência duma trilha sonora, durante boa parte do filme, traz a atenção à interpretação dos personagens. Aliás, a música apenas entra em momentos de união muito representativos. O destaque fica na
No final das contas, Closer, além de excelente obra, retrata o amor como ele realmente é: indecifrável e cheio de facetas com as quais não sabemos (ou preferimos não saber) lidar. Cruel, mas nem por isso, deixa de ser tocante.
Outro destaque fica na interpretação de Fabrizio Rongione, que no filme é Manu, o marido de Sandra. Fabrizio traz uma interpretação que dá base à atuação de Marion. A forma como os irmãos Dardenne roteirizam este drama realista faz com que o filme tenha um final um tanto quanto instigante: reflete sobre a questão da enorme competividade nesse mundo globalizado, a atitude do ser humano de sempre tirar algo do outro. Assim, os irmãos seguem fazendo cinema de cunho humanista.
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CONTO
VISÕES DA REALIDADE Ana França Teixeira
Dia 1 - Café da manhã: café preto e uma torrada com manteiga; Almoço: salada com tomate e alface, suco de maçã e cubos de frango; Jantar: macarrão com molho a bolonhesa e Coca-Cola. Aquela última refeição foi demais... Ela sentiu-se culpada e chorou. Dia 2 - Café da manhã: Chá verde; Almoço: uma barra de cereais e água; Jantar: pulou.
O padrão
O
s livros estavam na prateleira organizados como sempre. Suas roupas estavam dobradas no armário e seu olhar estava perdido na tela do computador. Mais cedo naquele dia ela se olhara no espelho e ficou triste com o que viu. Ouviu os comentários de Maria e Isabella pelos corredores do colégio: “olha ela, se acha magra...”, “aposto que não tem espelho em casa...” Sua tristeza devido aos comentários se transformou em lágrimas assim que colocou os pés em casa. Não tinha ninguém para vê-la chorando e ela agradeceu por isso. Correu até o seu quarto e se trancou lá. Chorou, chorou... Chorou até que as lágrimas não conseguissem mais cair. Ela parou de chorar, levantou-se e foi ao banheiro lavar o rosto.
chorou a noite toda. No dia seguinte, mais um dia de ir para o colégio. Ela esperava não ouvir mais comentários de Maria e Isabella, mas ouviu e ficou mais chateada ainda. Quando voltou para casa grudou-se no computador e logo digitou: “formas de emagrecer rápidas”. Ah, pobre menina fora do padrão... As dietas de nutricionistas não eram tão rápidas assim quanto ela queria. Ela procurou, procurou, procurou... E é como dizem, quem procura sempre acha. Ana e Mia. O que era aquilo? Alguma dieta? Não. Aquilo era o começo do fim. Anorexia e Bulimia.
Raiva, desgosto, ódio. Pobre menina fora do padrão. Não era a primeira vez que ouvira sobre comentários maldosos sobre a sua aparência, e nem era a primeira vez que aquilo a atingia em cheio. Há algum tempo ela ouvia esses malditos comentários, mas estava farta. Ela despiu-se e subiu na balança. 62 quilos acusou. “Maldita hora que fui comer chocolate no lanche...”, pensou a garota. Seus olhos correram para o espelho que lhe deu o seu reflexo. Aquilo não era o que ela queria ver, ela não queria mais aquilo. “Não vou mais comer!” decretou a garota em pensamento. Mas não era tão fácil assim, naquele mesmo dia, quando seus pais chegaram ela jantou com eles, comeu pizza e tomou Coca-Cola. Depois sentiu-se culpada e
As dietas radicais chocaram a garota no começo, mas até o fim da tarde ela se convenceu de que precisava daquilo caso quisesse ficar magra. Passo 1: Primeiro diminua a quantidade de comida. Passo 2: Beba muita água. Passo 3: Tente passar o maior tempo que conseguir sem comer. Passo 4: Pule o jantar sempre que der. Passo 5: Se comer se sentirá culpada. Se sentirse culpada, coloque tudo para fora. Pobre garota fora do padrão. Ela decidiu então que não precisava ser tão radical, mas que tentaria algumas coisas daquelas. Algumas dietas seriam possíveis de se seguir. Colocaria tudo em prática no dia seguinte. E faria um diário! (no tal do blog que ela achou dizia que um diário a ajudaria com o foco). No diário ela colocaria as datas, os alimentos consumidos, as calorias e
E assim as coisas começaram a funcionar. Os primeiros dias foram meio caóticos. Ela chorava. Ela sentia fome. Ela se desesperava e no fim acaba comendo o que a dieta proibia. Mas com o passar de uma semana ou duas as coisas realmente começaram a serem seguidas como mandava o manual. Passo 1: Diminua a comida. Ela começou a comer muito pouco, quando sentia uma fome insuportável comia uma fruta. Passo 2: Beba muita água. A água ajudava a evitar a fome, quando se estava com fome e queria disfarçar, ela tomava água. Passou a tomar água todo dia e o dia todo. Passo 3: Tente passar o maior tempo que conseguir sem comer. Ela tomava café da manhã só e mal comia nessa refeição. O negócio era ficar sem comer mesmo. Primeiro foram 15 horas sem comer, depois 20 horas e então fechou as suas primeiras 24 horas sem consumir nenhuma caloria. Depois das primeiras 24 horas ela sentia-se capaz de tudo. E lá se foram mais várias 24 horas. Passo 4: Pule o jantar sempre que der; Seus pais depois de um tempo desistiram de chamá-la para comer no jantar. Eram várias as desculpas... “Estou sem fome”, “Estou enjoada”, “Vou tomar banho”, “Depois eu como”, “Já comi”... E a cada dia uma nova desculpa. 5: Se comer se sentirá culpada. Se sentir-se culpada coloque tudo para fora; As coisas iam bem, suas horas sem comer iam sensacionalmente bem e seu foco no seu objetivo final era alto, mas certo dia ela não aguentou. O estôma-
go clamava por comida. Roncava e implorava por algo, o mínimo que fosse. No desespero ela comeu duas barras de chocolate. Depois olhou-se no espelho e chorou, mas daquela vez seria diferente. Um dedo na goela e ela se sentiria um pouco mais bonita. Em um mês, dos 62 quilos foi para os 58. Suas roupas começaram a ficar largas e ela ficou feliz. Mas aquele número não era o que ela queria. Ela queria menos. Maria e Isabella eram menos e ela seria ainda menos que as duas. Objetivo final: 50 quilos. Mais um mês se passou e com muito esforço, muitas 24 horas, muitos minutos trancados no banheiro à beira da privada e muitos jantares pulados, ela chegou aos 55 quilos. Mas era muito ainda. Outro mês veio e quando subiu na balança assustou-se. 59 quilos. Chorou, chorou e chorou. A sua vontade já era pegar uma faca e arrancar a própria pele. Ela só queria emagrecer e aquilo tudo se tornou um vício incontrolável. Ela não comia mais e suas notas despencaram. Ela não comia mais e sua disposição para qualquer coisa já era zero. Ela não comia e seus pais estavam ocupados demais nos seus trabalhos para notarem. A tristeza veio junto com tudo. No blog dizia já no começo: “A Ana e a Mia me prometeram a felicidade, mas tudo o que tenho são vícios e tristezas desde que as conheci. “ Fotos de modelos eram inspiradoras. E acreditar que lagartas gordas viram lindas borboletas também era incrível. O tempo passou e a meta mudou. De 50 passou para 48, de 48 para 45 e ela chegou aos 39. Magra, doente e infeliz. Sua mente tinha sido corroída e estava transtornada. Sua mente acabou por se viciar em emagrecer e quando mesmo aos 39 quilos se enxergava gorda, sua mente tornou-se suicida. E no fim, como disse o poeta: “Causa mortis: Anorexia. Parou de se alimentar com amor próprio para caber num amor n° 36” (Zack Magiezi).
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as pesagens. E assim ela começou:
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CRÔNICA
Ana Paula Severino
Ninguém me perguntou “O mundo está chato”, “agora tudo é preconceito”, “enquanto isso a pia está cheia de louça para lavar”. Prazer, meu nome é Opinião. Você já deve ter ouvido as frases acima. Sou eu, quando saio da boca de pessoas que não sabem direito o que fazer comigo. Às vezes acontece pior, quando eu me disfarço para poder ser preconceituosa. “Não existe racismo no Brasil” e “nada contra os gays, só não gosto de ver dois homens se beijando” são exemplos de sentenças dessa minha forma perversa. Eu aprendi que posso ser usada para encobrir qualquer barbaridade, desde que meu criador afirme ter o direito de me ter, já que vivemos, teoricamente, em uma democracia. Nesses últimos dias eu causei bastante polêmica nas redes sociais. Muitas pessoas decidiram me usar para debater sobre a decisão, em um caso específico, da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) de não considerar o aborto crime até o terceiro mês de gestação. O ministro Luís Roberto Barroso fez um uso bem bonito de mim, quando disse que “a mulher não é útero a serviço da sociedade.” Fiquei emocionada. Depois da decisão, milhares de brasileiros decidiram se armar comigo para montar “textões”
sobre o caso. Mas veja só, aí que entra o problema de não ter controle sobre a minha própria existência. Eu sou usada por qualquer pessoa, sempre que a mesma acha que deve se pronunciar sobre algum assunto, mesmo não tendo conhecimento suficiente. Aqueles que conhecem os dados da Pesquisa Nacional do Aborto 2016, desenvolvida pela Anis - Instituto de Bioética da Universidade de Brasília, me usaram com maior propriedade, pois estavam cientes de que, no Brasil, uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já fez pelo menos um aborto, e que só em 2015 foram mais de 500 mil procedimentos re a l i z a d o s.
precisa passar para reivindicar seus direitos. O mesmo deveria acontecer quando um negro fala sobre racismo. Ou quando um homossexual fala sobre homofobia, percebe?
Teve também quem, durante a discussão, esqueceu de usar a minha colega, a Empatia, e simplesmente me usou de uma forma irresponsável, chamando mulheres de assassinas em defesa de um feto. Essas pessoas são aquelas que costumam entrar em contradição quando dizem defender a vida, mas não perdem a oportunidade de estufar o peito para dizer que “bandido bom é bandido morto”.
Entenda, não é que eu não queira fazer parte do repertório de discussão de um homem branco e heterossexual, eu apenas acho que, em assuntos como esses, ele não tem o conhecimento necessário para me soltar, e olha que ele costuma fazer isso como se eu fosse a coisa mais importante do mundo a ser dita, não aceitando de forma alguma se eu for contrariada.
Sim ué, eu também tenho opinião. O quê? Só porque eu sou a Opinião eu não posso me ter? Ninguém nunca me perguntou o que eu acho sobre esses assuntos que me obrigam a me envolver. Apenas gostaria que as pessoas entendessem que eu tenho diferentes pesos. Quando uma mulher me usa para falar sobre aborto, machismo e feminismo, por exemplo, eu deveria valer mais, pois quem está falando é alguém que tem conhecimento sobre a dor, o sofrimento e a luta diária pela qual
Eu converso bastante com outra colega minha, a Hipocrisia. Nós andamos juntas, algumas vezes. Nesse caso do aborto, nós fomos usadas quando as pessoas esqueceram que é uma questão de saúde pública e que vivemos em um estado laico. As mulheres vão continuar abortando – e morrendo – e você sabe disso. Será que seu Deus aprova isso? A minha amiga Empatia não participou muito da discussão, não. Sua falta foi sentida principalmente quando se foi mostrado o tanto que as mulheres sofrem com os abortos clandestinos, feitos em locais sem condições básicas de higiene, ou até mesmo perfurando o próprio útero com uma agulha de tricô. Apesar de ser usada em tudo e para tudo, eu não sou nenhuma rainha da verdade. Eu tenho diversas verdades, todas dependentes de quem me formula. Por favor, pense bem antes de sair por aí me largando como se eu fosse qualquer coisa. Me desenvolva após muita leitura e muita conversa, lembre-se que eu não sou cristalizada, posso sempre mudar, evoluir. Pare de me generalizar e de me usar como instrumento de ódio. Já passou da hora de deixar o Moralismo de lado em discussões que envolvem direitos humanos. Aliás, ele nunca foi muito gentil comigo, sabia?
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CRÔNICAS NÃO ANACRÔNICAS
Provavelmente, também leram a reportagem especial da Agência Pública - a cada dois dias uma mulher morre vítima de aborto inseguro no país.
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CRÔNICA
NEM TODO CONTO É DE FADAS Bianca Ogliari
O livro era ela
Quando calava, parava seus olhos nos meus, como que tentando adivinhar alguma resposta da minha cabeça, apenas insinuando um sorriso. Mas ainda falta uma personagem feminina forte na sua história, pensei. Ela parecia ler meu pensamento. – E se a personagem fosse você? – sugeri, arrependido, esperando que ela nunca mais desviasse seus olhos. Ela sacudiu a cabeça. – Você não sabe nada sobre mim, como espera escrever sobre alguém que você nem conhece? Maldita, era tão viva. Eu a conheci em uma dessas festas de um amigo de um amigo que por acaso dividia o apartamento com ela, coisa que eu só descobri depois. Estava na sacada, os cabelos escuros e bagunçados ainda longos, fumando e rindo e olhando nos olhos dos outros e tudo que eu sabia era que ela era chilena. – Você é a chilena com mais cara de chilena que eu conheço – eu disse. Ela não entendeu. Quando ela sumiu, a festa acabou. Eu continuei ali por mais algumas horas, dançando e conversando e tomando e pensando nela. Meses depois, estamos em um clube de tango em Almagro, um galpão imune ao tempo, com paredes em tijolo à
vista tapadas por quadros de gente dançando, o ar cerrado pela fumaça imaginária dos cigarros de outro passado, minimamente iluminado por um circuito de lâmpadas vermelhas e amarelas que dão a volta no salão. Dispostas em uma meia-lua ao redor da pista de dança, as mesas que nunca repetem o tamanho ou o desenho, acomodam quem não está na pista, como nós dois. – Olha pra essa gente! – digo-lhe, apontando com a cabeça para os casais que se arriscam no salão, não têm a menor ideia do que estão fazendo, e mesmo assim nada lhes impede de tentar. – Se você for minha personagem, será como o par que pisa no pé da parceira a noite inteira. A história que eu lhe contei era a seguinte: um rapaz aluga um quarto em um casarão em Buenos Aires. O rapaz tem seus vinte e poucos anos, um brasileiro tentando a sorte, trabalhando sem documentos, sem dinheiro para alugar um apartamento melhor. O rapaz era eu, obviamente. O rapaz seria o narrador, mas quem importava nessa história era o dono do casarão, um homem taciturno, magro como um vegetariano, de cabelos compridos e grisalhos e o rosto enrugado marcado por um nariz torto e grande que diminuía o tamanho dos seus olhos. O homem alugava cada quarto do casarão individualmente para quem se interessasse, não cobrava muito, não pedia documentos, não conversava mais que o necessário. Um dia, o homem sai do seu quarto
envolto em sombras, os olhos ariscos e a respiração ruidosa. – Se alguém tocar a campainha, não atenda, faz de conta que você não escutou, faz de conta que você é surdo. Entendeu? Não atenda que eu já volto. Entendi, eu penso. Surpreso pelo recorde de palavras que o homem me havia dedicado, apenas aceno com a cabeça em resposta. Enquanto ele desce as escadarias, os ruídos dos seus passos se misturam com os ecos da sua voz em minha mente, não atenda, não escute, não atenda, não escute, cada vez mais longe, desaparecendo entre todas as perguntas que a raridade da situação despertava em mim. A este ponto, o homem já havia se convertido em algo curioso, O que teria para esconder? Por que sempre trancava seu quarto como se fosse um cofre? Por que estava tão agitado? Por que eu não deveria abrir a porta? E então a campainha toca. Trinta e dois degraus depois, eu abro a porta. Ela tinha os lábios manchados de vermelho, os olhos grandes e negros, os cabelos escuros e bagunçados cortados na altura do ombro e um rosto familiar. Sim, eu a conhecia de algum lugar, mas não me lembrava de onde, talvez de alguma milonga, ou talvez de alguma festa de um amigo de um amigo. Pela sua falta de reação, ela também deveria estar tentando me reconhecer. – Eu sei que ele não está – ela diz finalmente, emendando todas as palavras como fazem os chilenos. – Eu vi ele saindo, mas você tem que me deixar entrar, ele tem uma coisa que me pertence.
E atravessou a porta enquanto eu permanecia sem reação, pensando que a sua voz também era familiar. – Mas isso não faz nenhum sentido! – ela diz enquanto a garçonete entrega risoto vegetariano com laranja, tabule e água sem gás. – Por que esse velho asqueroso teria algo meu em sua casa? – Não sei – eu respondo. – O que foi que você deixou na casa dele? Ela cruza a mesa com um olhar de desprezo, que por um momento faz com que a história não tenha nenhum valor, e então começa a dançar pelo salão com seus grandes olhos negros, enquanto conta o resto da história. – Eu deixei um livro. Um livro com o começo perfeito. O velho disse pra você não atender a campainha e fazer de conta que era surdo porque ele sabia que eu tinha a chave do seu quarto. Mas ele não sabia que a gente se conhecia. Era isso, agora o livro é meu outra vez. – A personagem é você? – A personagem sou eu. – Mas você não pode escrever sobre uma história sua como se fosse o outro. – O outro não pode escrever uma história minha, essa história só eu sei escrever. Com um movimento rápido, ela leva a mão ao colo e deposita um pequeno volume de capa verde e páginas amareladas ao lado do tabule. Em silêncio, eu aprecio aquele livro sem nenhuma importância aparente, enquanto ela acompanha os casais que se dedicam a aprender o tango, insinuando um sorriso como quem sabe falar sobre si.
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S
e isso fosse o começo de um livro, seria perfeito, disse. Tinha os lábios manchados de vermelho e os cabelos escuros e bagunçados cortados na altura do ombro. Enquanto falava, seus olhos grandes e negros dançavam pelo salão, acompanhando os casais que aprendiam os primeiros passos do tango.
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POESIA
COLUNA POR UM TRIZ Vitória Beatriz
Problema inferno Você já teve
Pra se deixar de ter
Um problema inferno?
Euforia
Daqueles que te derruba no chão
Em problematizar todos os pequenos
E só te traz transtorno?
Presentes divinos.
Onde o céu é um colo de paz
Quando ele vem te faz ter vontade
No meio do Pacífico de
De correr pra barra da
Todas as tuas
Saia da mãe
Impaciências
Pedir socorro ao silêncio
Que te faz retornar em órbita
E calar todos aqueles
Ao te tirar desse espaço
Exorbitantes parasitas
Onde só tem confusão e
Persistentes a
Descompasso
Sugar suas forças
Onde tudo não passa de ilusão
A fim de te
E perturbações que insistem em
Aprisionar no submundo pra sempre
Te fazer de palhaço
Onde a única saída
Te tornar estilhaço
Mais coerente é aceitar a condição de
Te partir em mil pedaços
Mero mortal.
E na mais cruel alegria Te vencer pelo cansaço.
Você já teve um problema inferno.
Perda de tempo pouca é bobagem. Você já teve
E todos nós estamos
Um problema inferno?
Propagando palavras disléxicas
Daqueles que te aterroriza dos pés a
Aos sete ventos
cabeça
Tentando amenizar nossas culpas nos
Te faz perder a consciência
Sete pecados capitais
E querer achar o paraíso ou voltar pro
Pra que só assim possamos deitar
Éden a qualquer preço?
As cabeças no refúgio Altíssimo
Quanto que se paga pra se ter auforia
E dormir em paz.