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Paraná é o terceiro estado com mais estupros no país
Dados referentes à violência contra a mulher no Brasil são alarmantes e mostram que é preciso agir para combater o problema
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COLUNISTAS
EDITORIAL “É ilógico e cruel tirar a vida de alguém. Diariamente centenas de pessoas são mortas ao redor do mundo em função da cor de pele p. 2 ou sua sexualidade.”
Foto: Divulgação
POLÍTICA CIDADÃ
Agência MYX revoluciona ao aceitar modelos fora dos padrões convencionais de beleza Devido a insatisfação com o preconceito existente no ramo, o idealizador do p. 2 projeto, Rodrigo Brandão, criou a própria agência
“A intolerância na política vem sendo propagada a cada dia.” p. 6
VEGETARIANISMO 8% da população brasileira já adotou à alumentação, revela IBGE p. 3
Ágatha Santos “A presidente, ou presidenta (whatever), caiu e aqui estamos nós, ainda, com a corrupção sistêmica instalada em nosso país- o que mostra que esses protestos nunca foram, na verdade, sobre corrupção.” p. 6 Ana Justi “As mentiras mais bonitas saiam daquele sorriso e eram todas verdades. Naquele momento ela já sabia que o quarto de hóspedes continuaria vazio.” p. 7
Crédito: Samantha Villagran - FreeImages
Ano XVI > Edição 990 > Curitiba, 29 de setembro de 2016
LONA > Edição 990 > Curitiba, 29 de setembro de 2016
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EDITORIAL
#AllLivesMatter
DIVERSIDADE
Agência curitibana aceita modelos em padrões alternativos Marina Ortiz, Raul Daniel, Patricia Sankari e Julia Bianchini
E o país de primeiro mundo choca novamente. Na noite do dia 20 de setembro, Keith Lamont Scott, um homem negro, foi morto a tiros na cidade de Charlotte, na Carolina do Norte, por policiais. Foi morto com a justificativa de que portava uma arma e que não se rendeu quando a polícia ordenou, mas a versão de parentes garante que o que Keith tinha em mãos era um livro. No último domingo um vídeo foi divulgado pela polícia com a intenção de afirmar o que tinham dito à imprensa mundial, mas o que se pode ver no vídeo de um pouco mais de 2 minutos é simplesmente nada. Não é possível ver nem se Keith tinha uma arma, nem se ele tinha um livro, tudo que se vê aqui são os tiros que foram disparados e depois o homem caindo no chão e sendo algemado na sequência. Ainda no início do vídeo ainda é possível escutar a mulher de Keith Scott dizendo “não atirem, ele não tem uma arma, não tem, não atirem”.
A agência curitibana MYX Models foi inaugurada, em março deste ano, com grandes ambições: ser a primeira agência de modelos no país a trabalhar com todos os biotipos e estilos. Com o objetivo de quebrar padrões de beleza e de gênero, constam no casting da agência também modelos transexuais e travestis. Lea Deon e Rodrigo Brandão, sócios-proprietários da MYX, contam que a ideia principal é desconstruir o ideal de beleza, investindo em um mercado inovador que dá visibilidade a modelos “fora dos padrões”. Os agenciados podem ser loiros, morenos, negros, ruivos, asiáticos, altos, baixos, com ou sem tatuagens e
piercings. Os sócios acreditam que qualquer pessoa pode ser modelo – pois a moda é feita para todos. Além de ser um dos proprietários e idealizadores do projeto, Brandão também é modelo. Começou a carreira com apenas dez anos de idade e hoje, aos vinte, já conhece bem o mercado e identifica os erros das empresas em que trabalhou. O modelo conta que sua insatisfação com o preconceito existente nesse ramo o motivou a criar a própria agência: “Estou há dez anos no mundo da moda e vi diversas vezes pessoas que estavam fora do padrão estabelecido pelas agências serem julgadas e até humilhadas. É isso que que-
Os problemas aqui são claros. O abuso de poder da polícia, com pessoas negras mortas sem nenhuma justificativa plausível. E cada vez mais vidas se perdendo por besteiras. É ilógico e cruel tirar a vida de alguém. Diariamente centenas de pessoas são mortas ao redor do mundo em função da cor de pele ou sua sexualidade.
Lea conta que as empresas que procuram a agência têm se mostrado muito receptivas e interessadas em contratar modelos que representem essa quebra de padrões, seguindo a ideia de grandes marcas como a Dove – de produtos de beleza – e a Abercrombie & Fitch – empresa norte-americana de roupas. Ela admite que isso pode ser considerado uma jogada de marketing, mas acredita que também é a prova de que a sociedade está começando a se abrir para essas inovações. O estilista curitibano Victor Sálvaro, que ficou conhecido por seu trabalho para a marca “Victoria’s Secret”, não concorda com essa mudança. Ele afirma que modelos precisam, sim, seguir um padrão que represente a beleza para que não se perca todo o sentido da profissão. Sálvaro acredita que, apesar da moda ser feita para todos usarem, nem todos podem representá-la. A agência trabalha principalmente com modelos transexuais e travestis, que se candidataram em peso. A MYX Models está localizada na rua Jacarezinho, próxima à Torre Panorâmica de Curitiba, e as inscrições para modelagem podem ser feitas pessoalmente ou pelo site da agência: www.myxmodels.com.
O problema aqui é a crescente desvalorização da vida, o aumento do ódio, a falta de humanidade e o preconceito enraizado em muitas partes da sociedade. Não importa se você é negro, branco, mulher, homem, homossexual ou hétero, a sua vida importa e só quando isso for compreendido é que viveremos em paz. A modelo Izabela Freitas, agenciada pela MYX - Crédito: Divulgação
EXPEDIENTE
Toda a equipe do LONA se mostra favorável aos protestos que surgiram em homenagem a Keith Scott, e também é contra qualquer demonstração de ódio. Por um mundo com mais amor!
remos mudar com o nosso trabalho”, comenta.
Reitor José Pio Martins Vice-Reitor e Pró-Reitor de Administração Arno Gnoatto Diretor da Escola de Comunicação e Negócios Rogério Mainardes
Pró-Reitora Acadêmica Carlos Longo Coordenadora do Curso de Jornalismo Maria Zaclis Veiga Ferreira Professora-orientadora Katia Brembatti
Projeto Gráfico Gabrielle Hartmann Grimm Diagramação Fernanda Umlauf Edição Ana Clara Faria
Curitiba, 29 de setembro de 2016 > Edição 990 > LONA
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VEGETARIANISMO
Segundo pesquisa, mais de 15 milhões de brasileiros são vegetarianos Adrian Wosniak e Jamille Maltaca
Pesquisa revela que 8% da população do país adere à esta opção de alimentação O vegetarianismo, em todos os seus tipos, vem conquistando uma parcela significativa dos brasileiros nos últimos anos. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE) em 2012 revela que 15,2 milhões de brasileiros são vegetarianos, o que
corresponde a aproximadamente 8% da população total do país. A cidade com maior concentração de vegetarianos é Fortaleza, com 14% de adeptos, seguida de Curitiba – com 11% da população do local. Já quanto ao número absoluto de vegetarianos, São Paulo aparece no topo da lista – 792 mil habitantes –, sucedido pelo Rio de Janeiro com 630 mil adeptos.
Tipos de vegetarianismo Ser vegetariano não significa, necessariamente, não comer carne; o vegetarianismo é dividido em 4 principais grupos conforme os alimentos consumidos. Os ovolactovegetarianos não consomem nenhum tipo de carne, mas não excluem ovos e laticínios do cardápio. Os lactovegetarianos, diferente do primeiro grupo, não incluem ovos na sua alimentação. Já os vegetarianos estritos são um pouco mais “radicais”, não consumindo nenhum tipo de carne, ovos e laticínios.
Crédito Infográfico - Ana Clara Faria
Os veganos, por sua vez, não consomem nada de
Ismael Rocha é um dos fundadores da ONG “Vegetarianos por Amor”, cujo objetivo é disseminar a cultura vegetariana e vegana - Crédito: Arquivo pessoal
origem animal – não somente na alimentação: eles não participam, por exemplo, de espetáculos envolvendo animais, principalmente se eles são submetidos a algum tipo de sofrimento. Os veganos também não vestem roupas e cosméticos que envolvam animais no processo de produção.
Adaptação O estudante Ismael Cunha Rocha, de 21 anos, cresceu em uma família ovolactovegetariana e sempre optou por esse tipo de alimentação. Ele explica que permanece adepto por três fatores: “O primeiro é a fatura ambiental, o segundo é pelos animais e o terceiro é pela minha saúde”. Segundo Rocha, o momento mais difícil do vegetarianismo é no início, quando é necessário algum tempo para se acostumar com a nova alimentação. “A dificuldade maior está na transição da pessoa para se tornar vegetariano. Quem está começando no vegetarianismo precisa do auxílio de um nutricionista, porque ela ainda não está acostumada”, comenta o estudante. Rocha já aderiu ao ve-
ganismo, mas voltou para o ovolactovegerianismo depois de um ano e meio. “Para a saúde é muito benéfico, mas precisa ter um preparo para se alimentar, é difícil encontrar comidas rápidas”, explica. A estudante Bruna Borelli Canuto, de 18 anos, tinha uma alimentação comum e há seis meses optou por excluir a carne das refeições. Para ela, o excesso desse alimento não faz bem à saúde, e a vida dos animais também é algo que a faz continuar no vegetarianismo: “Faz mal pelo fato do corpo demorar bastante para digerir a carne. Por demorar, ela pode ficar liberando ainda no nosso organismo coisas que não são muito boas para a saúde. Também tem a questão de não querer a morte de nenhum animalzinho”, comenta Bruna. Ela conta que não sente vontade nenhuma de voltar a comer carne, e que sua família sempre lidou muito bem com isso. “Nunca fui criticada. Pelo contrário: minha família sempre me apoiou muito com a ideia de ser vegetariana, e até procura por novas receitas sem carne para mim”, diz Bruna.
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VIOLÊNCIA
Paraná é o terceiro estado com mais casos de estupros: quase 4 mil casos Heloise Simões
Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam para um crescimento do número de registros no estado O número de casos de estupro registrados no Estado do Paraná aumentou cerca de 21% entre os anos de 2011 e 2014. Segundo estatísticas do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o Paraná é o terceiro estado com maior número absoluto de estupros, com 3.913 ocorrências totais registradas. No ranking das capitais do país , Curitiba ocupa o quinto lugar: são 773 casos no total. Para dar assistência, o Ministério Público do Paraná (MP-PR) criou, há dois anos, o Núcleo de Apoio à Vítima de Estupro (Naves), cujo objetivo é oferecer suporte psicológico e orientação jurídica para mulheres e homens, maiores de idade, que foram vítimas de estupro. O Naves atua em todos os inquéritos policiais que apuram o crime em Curitiba, desde a fase inicial até a fase recursal, para acelerar os processos. O propósito do serviço é minimizar os efeitos do trauma nas vítimas e conscientizar a sociedade sobre a necessidade de denunciar casos de estupro. Geralmente, quem entra em contato com as vítimas é o próprio núcleo, que passa a acompanhá-las em atendimento gratuito e sigiloso.
Traumas A violência deixa marcas emocionais duradouras na vítima, que vão desde o sentimento de culpa até a dificuldade no relacionamento com outras pessoas. Por isso, a pessoa que sofreu abuso precisa receber o tratamento psicológico adequado para a situação que ele se encontra depois do acontecimento.
A psicóloga clínica Solange Moro explica que a Terapia Cognitivo-Comportamental – que trabalha tanto pensamento, como emoções e comportamento – tem a função de amenizar os traumas, direcionando o pensamento da pessoa para outras questões e, em consequência, mudando o sentimento e a maneira que ela se comporta. “Sem o tratamento é difícil conseguir se recuperar das marcas”, relata Solange. Um abuso sexual não deixa cicatrizes apenas na vítima. A psicóloga explica que a família também deve procurar por auxílio, já que é profundamente afetada pelo acontecimento, tanto para saber lidar com a situação quanto para encarar e superar essa experiência traumática.
Agressores “Geralmente, as pessoas são abusadas por pessoas próximas a ela, como pai, padrasto, vizinho... Isso faz com que as vítimas tenham mais dificuldades para relatar as agressões, justamente por serem pessoas conhecidas que podem fazer ameaças”, comenta Solange. Os agressores apresentam perfis diferentes. Segundo dados do Ministério da Saúde, por uma diferença percentual pequena, os pais biológicos são mais acusados por estupro do que os padrastos das vítimas: os pais aparecem em 7,02% das ocorrências, enquanto padrastos aparecem em 6,89%. Por outro lado, no número total de ocorrências, o autor do crime é alguém desconhecido da família (34% dos casos), enquanto 22% são pessoas conhecidas da vítima.
Rede Teia/Universidade Positivo - Crédito: Ana Justi
Curitiba, 29 de setembro de 2016 > Edição 990 > LONA
Segundo pesquisa, a cada 11 minutos, uma mulher é estuprada no Brasil Jéssica Mariani
Outros dados assustadores mostram que a cada 6 horas uma mulher é assassinada no país por um agressor conhecido Os casos de violência contra a mulher no Brasil geram estatísticas alarmantes. Segundo dados coletados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma mulher é estuprada a cada 11 minutos no Brasil. Além disso, um relatório feito pelo mesmo Fórum, divulgado no último dia 21 de setembro, revela que 37% da população brasileira concorda com a frase “mulheres que se dão ao respeito não são estupradas” e 30% acredita que a “mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar se for estuprada”. Ainda, de acordo com um relatório publicado pela Convenção de Genebra, a cada 6 horas uma mulher é assassinada por um agressor conhecido. Outros dados divulgados pelo Mapa da Violência 2015 mostram que a taxa de homicídio de mulheres – “feminicídio” – no Brasil é de 4,8 mortes para cada 100 mil mulheres, fazendo com que o país ocupe a quinta posição em um ranking divulgado pela Organização Mundial de Saúde sobre feminicídio. Cor e idade também são fatores importantes na análise dos dados, já que a quantidade de homicídios é maior entre negras e mais jovens – com idade entre 18 e 30 anos. Na maioria das vezes, os crimes ocorrem em vias públicas ou na própria casa da vítima. A estudante de arquitetura Bruna Vieira, de 20 anos, conta sobre um episódio de assédio sexual pelo qual passou: “Não gosto de pensar que os homens acham que têm algum domínio sobre nosso corpo. Certa vez, eu estava na balada e um cara bêbado chegou me agarrando. Como não quis nada com ele, ele acabou me jogando um copo de bebida. Meus amigos se revoltaram e por pouco não rolou uma briga”, conta Bruna.
Lei Maria da Penha
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XIX, essa situação começou a mudar quando o governo imperial passou a ver a educação da população feminina como uma necessidade. Já no século XX, elas se inseriram na sociedade industrial, apesar de ainda serem muito ligadas ao ambiente doméstico.
Grupos Feministas
O movimento feminista no Brasil surgiu em 1910, com a fundação do Partido Republicano Feminino pela professora Deolinda Daltro, com o intuito de debater o voto feminino. Na década de 1930, cresceram as manifestações que exigiam maior igualdade entre os gêneros. Com isso, as mulheres passaram a ter direito ao voto e independência da autorização marital para trabalhar. Na década de 1960, o feminismo ganhou grande força no Brasil: mesmo com a ditadura, as mulheres questionavam seu papel na sociedade e lutavam para que pudessem ocupar os mesmos lugares e ter os mesmos comportamentos que os homens.
Durante muito tempo, a mulher foi vista como dependente dos homens da família, e sua rotina girava em torno dos afazeres domésticos. No século
Atualmente, o feminismo ainda busca a reflexão a respeito das necessidades de igualdade entre os gêneros. Até hoje, por exemplo, as mulheres rece-
Há dez anos, foi sancionada no Brasil a Lei 11.340/2006, também conhecida como Lei Maria da Penha. O principal objetivo da legislação é punir aqueles que cometem algum tipo de violência contra a mulher. Ainda quanto a esse tipo de violação, em março de 2015 foi sancionada a Lei 13.104/2015, conhecida como Lei do Feminicídio, que classifica o crime como hediondo e inclui agravantes quando as vítimas são consideradas vulneráveis – como grávidas e menores de idade.
bem menos que os homens em cargos iguais. Além disso, grupos feministas pedem pelo fim do feminicídio, estupros, abusos sexuais ou qualquer tipo de violência contra a mulher. Também há o feminismo negro, que busca desconstruir padrões de beleza e evitar a hiper-sexualização da mulher negra. No Paraná, alguns coletivos – criados, principalmente, por estudantes universitárias – se destacam na luta feminista. Dentre os de maior destaque estão os coletivos Aurora, Iara, Anália, Rosas e Daisy. O Coletivo Daisy foi criado por professoras e alunas do setor de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do Paraná (UFPR). O nome é em homenagem a Daisy Benvenutti, primeira mulher a se formar em Economia pela UFPR em 1956. “É um coletivo muito novo, e até agora realizamos algumas atividades restritas ao campus. Pretendemos ampliar nossa militância de modo a atingir mais mulheres”, comentou a estudante Gabrieli Muchalak, uma das participantes do coletivo.
Dados do Mapa da Violência 2015 mostram que o feminicídio atinge uma taxa de 4,8 para cada 100 mil mulheres - Crédito: Ulrike Mai - Pixabay
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Maquiavelizando Ágatha Santos
Impeachment: não era sobre corrupção Nos últimos meses, as manifestações populares pró-impeachment utilizavam o argumento da corrupção para derrubar Dilma Rousseff do governo. Conseguiram. A presidente, ou presidenta (whatever), caiu e aqui estamos nós, ainda, com a corrupção sistêmica instalada em nosso país – o que mostra que esses protestos nunca foram, na verdade, sobre corrupção. Explico. Se fosse a corrupção o problema, estaríamos reclamando agora mesmo, gritando aos sete ventos que não aceitamos sete ministros investigados na Lava Jato. Se fossem as pedaladas fiscais de Dilma o problema, teríamos saído às ruas manifestar também pelo impedimento de Lula, FHC, Beto Richa e Geraldo Alckmin, entre tantos
outros que utilizaram, digamos assim, o “recurso”. Se o pedido de impeachment de Dilma não é golpe, se é, mesmo, um recurso permitido pela Constituição, então, pela lógica, Michel Temer jamais poderia assumir o cargo de Presidente da República, já que ele próprio também assinou algumas “pedaladas”. Enfim, se Dilma tivesse caído pelo que fez de errado, talvez pudéssemos ter alguma esperança. Se fosse sobre corrupção, teríamos chances. Mas não é isso o que acontece no Brasil. É notável a onda de conservadorismo que assola o país e os movimentos populares pró-impeachment são, sim, em parte, responsáveis pelo afastamento da presidenta. Foram esses movimentos que permitiram
que os nossos deputados fossem lá e catarrassem em nossas caras o seu desprezo às minorias; às políticas públicas que necessitaram de anos de luta para que pudéssemos conquistá-los em algum momento no qual a democracia era mais próxima à realidade das classes que mais necessitam do aparato do Estado. Em menos de vinte e quatro horas, um novo presidente conseguiu trocar todos os ministros do governo, por uma corja de homens brancos, velhos e ricos que estão interessados em tudo, menos em tornar o Brasil em um país melhor para todas as pessoas. Em pouquíssimas horas, um Temer consegue acabar com ministérios voltados à cultura, às mulheres e à igualdade racial, para nomear um Alexandre Moraes, ou um advogado do PCC, como ministro da Justiça e da Cidadania. Como alguém que tira completamente as mulheres dos cargos ministeriais ousa falar em “cidadania”? Como alguém que escala Moraes ousa falar em Justiça? Como um presidente ousa chamar a Constituição de “livrinho”? Como tantas pessoas utilizaram a “corrupção” instalada há centenas de anos no Brasil para tirar o direito de tantas outras pessoas que foram até às urnas
e votaram? É cedo demais para tentar explicar a tempestade pela qual passa o país. Porém, não é cedo para perceber que o Brasil está derrotado, como um todo. É tarde demais. Porque, em algum momento, as pessoas passaram a se preocupar mais em brigar do que realmente debater sobre política. Porque, em algum momento, utilizaram o argumento de ser contra a corrupção para tornar o país, ainda mais (para quem não acreditava ser possível) corrupto e distante da igualdade social. Era sobre acabar com um “projeto de governo”. Era sobre derrubar a presidenta “vaca” e “gorda” que estava a frente do país. Era sobre acabar com os “alunos bagunceiros” que “invadem” as escolas de São Paulo. Era sobre acabar com os “professores marxistas” e que ousam querer ter direitos no Paraná. Era sobre diminuir, ainda mais, os direitos das “vadias”, dos “macacos”, das “bichas”, das “sapatonas”, das “aberrações transexuais”, dos estrangeiros “pretos” porque “europeu pode”. Era sobre tudo, mas convenhamos: o impeachment não era sobre corrupção.
A Instabilidade e a Pluralidade de Opiniões O Brasil vem passando por um momento delicado de sua história. Em 31 de agosto, após quase nove meses da abertura do processo de impeachment, Dilma Rousseff perdeu o cargo de Presidente da República. O presidente até então interino, Michel Temer, foi efetivado no cargo e isso tem gerado muitos protestos Brasil afora. No ano de 2014, Dilma Rousseff (PT) foi eleita com quase 52% dos votos para um segundo mandato na Presidência da República, derrotando o então candidato tucano Aécio Neves (PSDB) com o percentual apertado de 48% dos votos. Durante a candidatura, Dilma teve novamente Michel Temer (PMDB) como o vice-presidente em sua chapa. A partir do fim das eleições presidenciais, foi nítido que o Brasil estava dividido e um povo rachado jamais poderia contornar a realidade que vive o país. Em dezembro de 2015, o então Presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha, aceitou uma denúncia de Cri-
me de Responsabilidade contra Dilma, o que acarretou o afastamento do cargo em definitivo. Diante de gritos de “Fora Temer”, “Golpista”, o governo peemedebista inicia-se de maneira tão instável quanto a gestão de sua antecessora, a diversidade de pensamentos e ideais tem gerado violentos embates nas ruas do Brasil. A intolerância na política vem sendo propagada a cada dia. Milhões de brasileiros têm se confrontado violentamente por conta de opiniões divergentes. A crise econômica brasileira vem sendo combatida e a inflação diminuindo, em julho de 2016, de acordo com o site Global-Rates, o IPC (Índice de Preços ao Consumidor) fechou em 8,36%. Após um longo processo de incertezas durante o processo de impeachment, o agora presidente Michel Temer tem algumas missões polêmicas e complicadas a cumprir, como implantar medidas para a reformulação da previdência social e a reforma trabalhista.
Política Cidadã Rodrigo Silva
Projetos como esses irão requerer muitas discussões com parlamentares e coragem do atual presidente, pois além de toda a contrariedade que lhe atinge, ele terá que adotar outras medidas impopulares para restabelecer o equilíbrio fiscal do país. Michel Temer disse durante entrevista ao Fantástico em maio de 2016: “posso ser até, digamos assim, impopular, mas desde que isso produza benefícios para o País. Isso para mim seria suficiente. ” O fato de não se importar com sua popularidade cria a expectativa de que o presidente não cederá a quaisquer pressões do povo brasileiro. Ele ainda deverá ser alvo de protestos por todo
o país, pelo menos enquanto a economia não for estabilizada. Afinal, inegavelmente estamos diante de uma crise e, querendo ou não, Michel Temer é o Presidente da República. Devido ao momento que o Brasil enfrenta, o povo brasileiro precisa compreender que agora é a hora de todos se despirem de suas ideologias ou opiniões divergentes e fiscalizar o novo governo, participar da política, pressionar parlamentares, unir-se por um bem maior para o país e exigir a garantia da independência de operações como a Lava Jato, lutando para que o Brasil, acima de tudo, volte a crescer e não retroceda no combate à corrupção.
Curitiba, 29 de setembro de 2016 > Edição 990 > LONA
Livrário Ana Justi
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CONTO
Anastrofia Os olhos abriram-se, a claridade da manhã já penetrava no quarto. Ao passar pelas pálidas cortinas, a luz conferia um tom amarelado à cena. O tecido puído, bem como o grande espelho, localizado na parede de trás da cama, já vinham com o apartamento. Um série de móveis e itens de decoração desprovidos de personalidade. Cecília ainda lembrava da rouca voz do locatário tentando justificar a idade de todos aqueles objetos – tão impassíveis quanto as feições da moça durante a visita ao imóvel. Quando assinou o contrato, já sabia que o fazia meramente por derrota: tomada pelo cansaço inesgotável de existir. Aos poucos, sentou-se à beira da cama. O corpo, nu, parcialmente coberto pelo lençol branco maculado na noite anterior. Podia sentir o cheiro do suor e das secreções que sujavam o asseado branco. Procurou pelo relógio de pulso, os ponteiros acusavam que ainda era muito cedo para um sábado. Dos números, os olhos correram para o espelho: fitou os dois círculos mais escuros que borravam os arredores do olhos ressacados. O abatimento não era um mera impressão, corroborada pelo borrão da maquiagem, era um estado que podia sentir nos músculos. Chovera na noite anterior, podia sentir na pele nua a queda na temperatura, mesmo ali do interior do quarto. Mas era a tempestade que se passava ali, na sua própria cama, que enevoava sua mente. Voltou-se para o corpo ao seu lado, as costas magras e desnudas arqueavam com a respiração leve. Podia ver os pelos arrepiando-se com o frio que se acomodava entre as quatro paredes do cômodo: aquela sensibilidade excessiva das coisas. Talvez esse fosse o
caso, aquela capacidade de ler Cecília, linha a linha, entrelinhas e entreolhares. Voltou-se novamente para as janelas, os prédios lá fora erguiam-se em formas distorcidas. Lembravam suas catástrofes amorosas, conjuntos de vivências cada vez maiores e frequentes. A chuva noturna levara Cecília a ofertar um leito quente e seco a um amigo. Mas o convite aplicava-se apenas ao quarto de hóspedes com seu ar estéril, jamais aquecido pelo calor da ressonância humana. O convite não implicava no sentimento de posse que – justamente – apossava-se dela. Será? Talvez estivesse estampado em alguma entrelinha, naquele sorriso doce que se abriu logo que adentraram o elevador.
se apertaram e a frase se repetiu. Cecília queria evitar os perigos contidos na ausência de uma resposta. Fugindo, beijou-lhe a bochecha como quem retribui uma carícia infantil. Ele percebeu, segurou-lhe o queixo e apertou seus lábios contra os dela, afagou-lhe os cabelos. Ela já podia sentir o silêncio tomando forma, ficando maior do que si própria: Gentileza da sua parte, grunhiu ao desviar os olhos para os próprios dedos. Ele sorriu, exultante. Isso quer dizer que eu estou te conquistando? Como era possível conquistar algo que sempre fora seu?
Ela podia sentir suas vísceras se retorcendo, a onda de mal estar que reverberava do centro para as bordas. Gentilmente, ele lhe tomou as mãos, encontrou seus olhos. Era a ruína, estava tudo desmoronando. Cecília estava ao avesso, totalmente exposta. Era o fim, inversão visceral. Na confusão de devaneios e medos, ficou sem ação. Podia vê-lo partir, pé ante pé, em direção a um dia de sol. Dentro do quarto, no entanto, sentia que uma tormenta estava a caminho.
As mentiras mais bonitas saiam daquele sorriso e eram todas verdades. Naquele momento ela já sabia que o quarto de hóspedes continuaria vazio. Cecília cerra os olhos, mas o toque da pele dele contra a sua, mesmo no braço que repousa sobre a cama, encerrou com os seus devaneios. Institivamente, voltou-se para ele: fitava-a com riso de menino, satisfeito. Em seguida veio o puxão. Quando percebeu, o lenço que envolvia seu torso já havia sido substituído pelos braços dele. De volta ao olho do furacão, seus lábios correram de encontro ao ouvido de Cecília, e então ela soube: ele não a deixaria escapar, não naquela manhã fatídica. Sentiu o sorriso tomando forma enquanto ele se preparava para soprar aquelas três palavras. Eu te amo. Um inesperada artimanha de sábado. A fadiga já se alastrara para além dos músculos, doía-lhe a cabeça. Diante do silêncio inerte que se seguiu, os braços
Crédito: Leslie Troisi - Pixabay