Livro LOVE - Marianna Roman - Prévia

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LOVE – MARIANNA ROMAN Copyright © 2018 by Marianna Lopes Corrêa e Quimera Produções Literárias Todos os direitos reservados

1ª edição – Quimera Produções Literárias Rio de Janeiro – Junho 2018

Editor responsável: Marianna Roman Capa e diagramação: Marianna Roman Revisão: Bruna Nunes


1. Castelo de areia LOMA – COLORADO Verão de 1989

— AQUELA ALI PARECE um coelho... — fiz uma careta, contrariando — Hummm... Não, um cachorro! Sim, definitivamente é um cachorro. — afirmei para mim mesma como se conversasse com alguma parte de mim que tivesse vida num lugar muito próximo do meu inconsciente, onde tudo em que quase não pensava mais fazia barulho e me lembrava da necessidade de estar perto de outras pessoas e poder, de fato, ter com quem falar. Nas últimas semanas, isso era bem frequente. Na maior parte do tempo, ficava bem, sozinha. Não me preocupava que as outras crianças não se lembrassem de mim de mim no fim do dia quando as aulas acabavam e era hora de brincar na rua ou no rio. O ônibus deixava, pelo menos, umas quatro da escola nas casas próximas à minha. As demais moravam um pouco lá para o final do caminho, mas meus vizinhos iam de bicicleta encontrá-las para irem até a pedreira e apostar quem se machucava menos ao cair de costas na água. Depois o nerd do grupo, que sacava tudo de Ciências e sempre ganhava o prêmio do primeiro lugar da Feira Anual, Jack Hill, acendia a fogueira. Assavam as salsichas roubadas do açougue do pai da Lisa Watkins e faziam campeonato de arroto. Mas acho que o Bart Ripperton, que morava na casa ao lado, ganhava fácil


demais para alguém tentar desafiá-lo. Ouvia seus arrotos todos os dias de manhã, no almoço e no jantar. Aliás, a qualquer hora. Se não era seu esporte favorito, seus pais deveriam procurar um médico com urgência. Sabe-se lá o que mais poderia sair dele. Era um ritual sobre o qual gostavam bastante de falar quando iam estudar na casa do Bart. Sentavam-se na varanda, debaixo da janela do meu quarto, e contavam as últimas em voz alta e gargalhando para quem quisesse ouvir. Claro que sabia a história inteira, inclusive de trás para frente, mas eu não me via no meio deles. De alguma maneira, nunca me senti parte de nenhum grupo da escola. Todos pareciam bem entrosados e eu não queria ter de me esforçar para ser amiga de ninguém. Embora fosse bastante independente, naquele verão, em especial, comecei a pensar se não deveria ter ao menos dito “oi” umas duas ou três vezes para a Melanie Gomez, sempre muito simpática, guardando seus livros no armário do corredor, ou para Gabe Sprouce, monitor da biblioteca. Daríamos um bom trio e poderíamos jogar xadrez no quintal, bebendo limonada, durante as férias. Sim, porque eles eram estudiosos demais para as brincadeiras depois das aulas. Gostava de ver meus pais dançando a mesma música do Billy Joel na cozinha, enquanto eu arrumava a mesa para o jantar na sala ao lado. Era divertido respondermos às perguntas do show da noite antes de dormir e apostarmos uma daquelas barras grandes de chocolate. Minha mãe, Sylvie, tinha cabelos encaracolados, cheios e longos até o meio das costas. Grandes olhos castanhos debaixo de cílios curtos. A pele negra acetinada cheirava a bolo. Além de cozinhar divinamente bem, tocava piano e cantava Aretha ou Etta James. Eu me sentava ao seu lado, tentando aprender alguma coisa,


mas só herdei suas mãos, de dedos finos e compridos, sem ao menos saber as teclas de “Parabéns para você”. Meu pai, Kabir, era alto, muito alto – o que era perfeito quando andava empoleirada em seus ombros. Tinha braços e pernas longos, os músculos que herdara do trabalho da fábrica em São Francisco e olhos cor de mel – que a genética fizera a bondade de me dar de presente. Gostava de comer peixe com fritas no quintal no fim do dia, depois do trabalho e tinha um péssimo gosto para gravatas. Mas, por sorte, mamãe sempre conseguia salvar a compra dos ternos e outras roupas. Ele me ensinou a consertar carros e outros reparos que uma casa poderia precisar. Mamãe me ensinou a parte doméstica, mas fazia questão de deixar claro que aquela era uma questão de sobrevivência. Eu nunca deveria me submeter ou aceitar que me fizessem menos ou menor por ser mulher e “ter obrigações domésticas de mulher”. Todo ser humano que se preze sabe ao menos pregar um botão. Jamais me casaria com seu pai, se ele não fritasse um ovo ou se tivesse que costurar peças de roupa quando poderia estar fazendo coisas realmente importantes, ela dizia. Papai viera da Índia, querendo conhecer o mundo, para trabalhar nos Estados Unidos, mas se deparou com as centenas de dificuldades que a vida lhe daria antes de realizar seus sonhos, e conhecera minha mãe quando a atropelou com sua bicicleta, descendo uma ladeira, desgovernado. Um joelho ralado e algumas conversas depois, começaram a sair e namorar. Mamãe ainda terminava o Ensino Médio e papai trabalhava, levando uma vida simples com o pouco dinheiro que seu avô lhe dera antes de sair da Índia. Ele era de família tradicional de uma importante comunidade mercantil, mas foi deserdado pelos pais – que eram contra sua partida.


Claro que os problemas não pararam por aí, já que meus avós maternos também decidiram não apoiar o romance. Mas os vinte e cinco anos de casados contavam o final da história. O casamento às vezes passava por turbulências, mas nada que Billy Joel não pudessem resolver. Eu tinha medo de que, um dia, aquele disco quebrasse. *** Mais tarde – e nos próximos dias – choveu. E eu não podia brincar na lama, pulando nas poças. Naquele verão, estava na casa de tia Sara, que era seca como um cadáver e amarga feito limão siciliano ainda fora do tempo de colheita. A casa era antiga, as janelas eram gigantescas e tudo fazia barulho demais. Principalmente o vento cantando pelos corredores, me contando histórias que eu não queria ouvir; sobre minha mãe no hospital e o quanto eu estava só e cada vez mais sozinha ficaria. Havia caixas de papelão para todo lado e o mofo era o segundo visitante. Mas mais parecia um morador inconveniente. Não era permitido entrar com sapatos em casa nem andar mais rápido. Dirá fazer menção de correr. Não se dormia tarde nem comia bolo de chocolate. Ou qualquer coisa que pudesse conter mais de duas pedras de açúcar. Aliás, “não” era algo que se ouvia bastante por aqui. Tia Sara odiava a ideia de uma criança comendo doce e tendo mais energia. Acordava às cinco para fazer o café e me colocava para fora da cama às seis. Tinha de ajudar nas tarefas e o toque de recolher – quando toda as luzes deveriam estar apagadas – era às sete da noite. Às vezes, queria fechar a porta do quarto e fazer daquelas quatro paredes, o meu mundo. Mas tia Sara ordenava que estivesse sempre aberta. Então dormia com as duas janelas à minha frente


me vigiando como dois olhos macabros. Pareciam, na verdade, vigiar cada movimento meu. *** Meu pai não ligou naquela semana. Nem na semana seguinte e na outra e na outra... Eu sabia o que aquele silêncio significava, mas só consegui dizer em voz alta quando li “Amada mãe e esposa” na lápide do cemitério em Los Angeles, para onde nos mudamos em meados da minha infância, quando voltei para casa, para o início das aulas. Segurei a mão do meu pai e voltei para a rotina de corredores cheios e pessoas desinteressantes. Nunca mais casa de tia Sara nem ceias de Natal com a casa cheia de amigos da fábrica. No fim das aulas, quando era verão de novo, nossa antiga casa foi finalmente vendida. Depois dos objetos pequenos e dos móveis, para alguns vizinhos. Então recolhemos o que sobrou, além do pouco dinheiro e partimos. Éramos apenas eu, papai, um Chevrolet Cheyenne azul e as longas estradas. Os anos se arrastaram... Dia após dia, semana após semana... Mudança após mudança. Encarando as cidades, os estados e os rostos distraídos do outro lado do vidro – onde a chuva escorria, borrando as cores. E a última coisa que ouvi foi o som daquela buzina.


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