amare[linha] da Fronteira

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amare[linha]

da Fronteira Lorena Maia e Marco Leoni


cartografia poética Compreender um território de fronteira internacional não é tarefa fácil. Lugar onde se lida constantemente com dualismos. Vivencia-se ao mesmo tempo a hospitalidade e hostilidade, a liberdade e o controle, a organização e o caos, o nativo e o estrangeiro, o eu e o outro.

Pesquisar com a cartografia é encontrar-se com reentrâncias fugidias de dimensões mínimas que abrem problemáticas ilimitadas [...].

(COSTA, ANGELI, FONSECA, 2012,p.45)

A cartografia poética é um método que contribui para a observação e análise das relações urbanas na contemporaneidade. Adentra as frestas e estimula a subjetividade na construção de novos indícios e pistas da realidade. A amare[linha] da fronteira, ao beber dos saberes de Deleuze e Guatarri, e, agenciar com o jogo lúdico da amarelinha, apresenta um novo olhar para essas cidades-gêmeas.

Fonte: Eduardo Rocha, 2016

O interesse pela fronteira não é um tema novo, pelo contrário, a bibliografia oferece inúmeros artigos, ensaios, entrevistas contando sobre esse universo instigante. No entanto, a novidade que este trabalho cartográfico se propõe é de experimentar o inusitado, trazer heterogêneos que desestabilizem os padrões em um escrita rizomática. A experiência de uma caminhada errante pelas cidades-gêmeas Chuí (BR) e Chuy (UY) possibilitou observar na diferença as potencialidades da ebulição fronteiriça.



Fonte:Gustavo Reginato, 2016

Dois países, duas cidades, duas línguas e um canteiro central que demarca o início ou o fim de cada uma. Um marco morfologicamente plano que exibe a infinitude ao direcionar o olhar para as extremidades. O mesmo pampa dividido por duas nacionalidades. As avenidas principais que constituem a linha de fronteira se presenteam ao trocar os nomes. A avenida Brasil no Uruguay e a Avenida Uruguay no Brasil. Entretanto, o nome é somente um indício da interligação constante. A própria língua se modifica, o espanhol e português flutuam, colidem, se trocam e retomam com outro formato, o portunhol. Assim como os habitantes

Chuí


Chuy

que não se consideram brasileiros ou uruguaios, mas sim fronteiriços. As terras que no passado foram “neutras”, terras de ninguém e de todos ao mesmo tempo, hoje é símbolo de integração e mutualismo. Seria esse relacionamento espontâneo uma arma da máquina de guerra apresentada por Deleuze? Ou seria somente utensílios do aparelho do Estado com interesses políticos e economicos? Talvez seja ambos, difícil discernir. Há resistência no contato afetivo, no contrabando, no atravessar os limites. Mas há também controle nas aduanas, a vistoria de documentos e as leis que barram circulações de alguns veículos e pessoas.


amare


Sem respeito as proporções, quadrados consecutivos são delimitados e numerados de 1 a 10. Aponta-se para um lado e denomina de céu, na ponta oposta, o inferno. Pedra na mão, inicia-se o jogo. Traçar os limites do jogo foi uma tarefa fácil. O asfalto sentiu o risco do giz e deixou-se marcar, aos poucos o pó delineava seu rastro. O desenho era um molde, ao menos era o único que conhecia, cinco quadrados amontoados verticalmente até chegar o sexto e o sétimo de mãos dadas, - a pausa - depois seguia até o décimo onde desembocava na nuvem – o céu.

[linha]

O jogo da amarelinha remonta os tempos do Império Romano, a princípio foi baseado em treinamentos militares. Em uma faixa de cem metros os soldados percorriam os quadrados para melhorar suas habilidades físicas. Assim, as crianças ao observarem esse movimento, criaram em pequena proporção o jogo da amarelinha, conhecido mundialmente por diversos nomes e modos de se brincar. A história se assemelha na constituição das froteiras internacionais, pois tanto a fronteira como o jogo registram suas origens marcadas pela disciplina militar e, com o passar do tempo, ambas transformam esse cenário. Algumas fronteiras, como Chuy-Chuí convertem o ambiente de disputa territorial e guerras para um lugar fluído, lúdico e composto por diversidade, como no ato de pular amarelinha. No entanto, há outras fronteiras (como exemplo EUA x México) que não tiveram a mesma sorte, seguem com a rigorisidade militar apoiada por muros e batalhas. O simples pisar na linha do jogo da amarelinha pode significar punições severas no triste jogo da realidade.


Nas mãos, a pedra que definirá o progresso do jogo. Mas não é uma pedra qualquer, está carregada do desejo, próximo do conceito de Nietzsche de “vontade de potência”, ou ainda, de Deleuze, “desejo é produção”. Lança-se o desejo dentro dos quadrantes, evitando sair dos limites e cair no “mundo das ideias” de Platão. A expectativa é deixar a pedra pousar nas dez casas para assim poder chegar ao céu, lugar momentâneo do pensamento que reflete alegria, orgulho e vivacidade. Como em uma fuga, a trajetória é o ápice da adrenalina, pois jogar amarelinha é saber lidar com desafios. Na ida a regra é não pisar na linha e saltar a casa onde encontra a pedra-desejo. Na volta, a regra é a mesma, porém resgata-se o desejo para lançá-lo novamente à sorte. E, ao chegar na décima casa obedecendo as regras a recompensa é oferecida, transbordando todas as linhas deixadas para trás. A criança que hoje delimita as linhas do jogo da amare[linha], amanhã poderá ser a responsável por demarcar onde começa ou termina um território. Mas é necessário que esteja viva a lembrança da infância, a vontade do prazer, a alteridade latente para que a espetacularização da sociedade não a corrompa. O jogo da amare[linha] revela verdades de um cenário de fronteira, ainda que metaforizado é um bom exemplo para reflexão. Demarcar os limites, definir um céu, lançar a pedra-desejo, vencer os obstáculos, são desafios de um jogo infantil, mas também é a realidade enfrentada no planejamento urbano das cidades fronteiriças.



Fonte: Google maps, 2018. Edição dos autores

Brasil

Uruguay



Fonte: Eduardo Rocha, 2016

A ebulição se encontra na linha, literalmente uma linha que concide com a rua. Interessante observar que o limite inicia com o curso do rio em um desenho sinuoso, mas em certo momento é puxada uma linha rígida que define o território de cada

a linha

Ao olhar a fotografia aérea a impressão é de uma cidade única. As ruas coletoras e locais de um país se encaixam com o outro em perfeita sintonia. O traçado xadrez é similar e as quadras também não se destoam. Mas é somente no processo da caminhada errante que é possível diferencia-las em suas particularidades.


ahnil a

país. A sinuosidade do rio também pode ser percebida na diversidade encontrada. Ao chegar na linha, o barulho e tumulto. Muitas pessoas circulando, lojas amontoadas de produtos, free-shops, vendedores ambulantes e variedade de carros estacionados. Muitos foram os olhares: dos clientes, dos lojistas, dos turistas, dos moradores e dos manequis. Multidão de manequis, diversos deles, adultos, crianças, sem cabeça, só com as pernas ou só com o tronco. Disputavam a calçada com os pedestres e possuiam um tom de ironia. Nessa linha o real e peso circulavam com intensidade. A linha comércio, a linha turistíca, a linha da agitação capital.



Fonte: Lorena Maia, 2016

Chuy (uy) O errante não tem medo do acaso ou de se perder, e sim de aproveitar os erros e fugir da razão, da mesmice, em busca do inesperado. Saindo da zona turística como proposto pelos projetos de Careri é necessário adentrar as duas cidades. A primeira atração é pelo distinto, logo Chuy (UY) direcionou os primeiros passos. Uma cidade tipicamente do interior, Igreja Matriz seguida da praça principal. Era uma manhã de dia ensolarado, movimento pacato dos moradores, alguns comprando os legumes na feira, outros passeando com os animais de estimação, outros chegando de viagem e outros partindo no corredor de ônibus estacionado na praça. Mais adentro o caráter residencial, casas simples e muito bem cuidadas. Curioso observar que a maioria delas era térrea e com pé direito mais baixo que o normal, além do predomínio do famoso estilo “casa do cachorro sentado”. Ruas largas, limpas e calçadas bem arborizadas.


Na parte da tarde a caminhada se deu em solo brasileiro. As primeiras ruas, mais próximas da linha de fronteira, ainda possuiam um caráter mais comercial. Prédios de dois a três andares de uso misto se espalhavam pelas quadras. Porém, ao avançar para seu interior o cenário alterava, um aspecto de abandono e descuido. Construções abandonadas, prédios sem manutenção e o silêncio. Um vazio absoluto, mas que não transmitia sensação de tranquilidade, e sim de medo. Pouco arborizadas e com lixo nas ruas a cidade refletia seu lado sombrio e obscuro. Ao tentar descobrir onde ficava a praça da cidade as informações foram contraditórias, alguns indicavam um terreno baldio sem nenhuma infraestrutura. Enquanto outros mostravam a praça do trevo como sendo a principal, com um movimento intenso de carros e poucas pessoas. O lugar parecia isolado, a não ser por um casal de jovens que sentaram na grama em um descanso pós-compras.

Fonte: Eduardo Rocha, 2016

Chuí (br)



Chuy (Uy)


Chuí (Br)


o jogo humano e o jogo ideal É preciso diferenciar o jogo humano do jogo ideal para compreender qual jogo está sendo jogado. Deleuze nos apresenta tanto na obra “Lógica do sentido” como na “ Diferença e repetição” essas peculiaridades. O jogo humano pressupõe regras em valor categórico, regras essas que determinam hipóteses que dividem o acaso da vitória ou da derrota. Procede de distrubuição SEDENTÁRIA, ou seja, há uma divisão fixa da distribuição das jogadas segundo uma proporção estabelecida pelas regras. A esse modo de jogar humano se depreende a moralidade do bem e do mal ou da causa e efeito. De forma oposta, o jogo ideal não possui regras preexistentes, cada lance inventa sua própria regra, assim, o acaso está em todo o conjunto e não somente em algumas rodadas. Dessa maneira, as jogadas não são numericamente distintas, e sim qualitativamente, cada lance é ele próprio uma série, uma distribuição de singularidades. Procede de uma distribuição NÔMADE em que os resultados móveis se repartem no espaço aberto, e não fechado dos resultados fixos das hipóteses. É o jogo dos problemas-perguntas não mais categórico. “O jogo da diferença e da repetição substitui o jogo do Mesmo e da representação” (DELEUZE, XXXX).


O jogo humano está próximo do jogo de xadrez - anunciado no tratado de nomadologia de Deleuze e Guatarri - que em um espaço fechado [ESTRIADO] cada peça tem uma função definida e se deslocam de um ponto a outro. O jogo de natureza interior - Aparelho do Estado. Ao passo que o jogo chinês Go está próximo do jogo ideal, em que as peças constituem unidades simples com funções anônimas em um espaço aberto [LISO], podendo surgir de qualquer ponto em movimento perétuo. Jogo de natureza exterior - Máquina de guerra. A amare[linha] da fronteira se propõe como um jogo ideal, como realidade do próprio pensamento. Lançar a pedra antes de preexistir qualquer regra. Chegar em um “espaço do pensamento sem imagem” que é o espaço da diferença. E se libertar do “espaço da imagem do pensamento”, que é a representação, ou seja, a subordinação da diferença a identidade. É preciso ater a diferença, buscar por ela em seu eterno retorno, pois insuportável seria a ideia de tudo se repetir da mesma maneira, de forma idêntica, exaltando a identidade. Assim, a pedra da amare[linha] é como uma arma da máquina de guerra, que se lança ao acaso e extrapola os limites do poder. A pedra que atravessa e carrega o jogador, o questionador da realidade. Lembrando Foucault, onde existe poder existe resistência, a fronteira entre Chuí-Chuy é controlada pelo poder, mas resiste. A fronteira que acolhe imigrantes e refugiados, que contrabandeia, que burla as leis. Mas também é a fronteira vigiada, da punição em jurisdição com o Aparelho do Estado.


A linha que asfixia e a sinuosidade do rio que liberta. Parece mais fácil atravessar uma linha do que um rio sinuoso, no entanto a linha foi imposta e o rio se originou espontaneamente. Por mais que as cidades-gêmeas sejam “pacíficas” sempre haverá essa zona de indeterminação. Hoje podemos atravessá-las sem impedimento, amanhã já não se sabe. Em alguns jogos, como na amarelinha, a presença da divindade é representada. O céu é o lugar sagrado, enquanto o inferno é profano. O erro gera o caos e o acerto o cosmo. A fronteira entre o sagrado e o profano é o lugar onde esses dois mundos se fundem e se afastam, o contrassenso. O homem religioso é o centro do mundo o vencedor, ao passo que o a-religioso é periférico perdedor. Por mais que adentre em um mundo profano nunca será em sua totalidade, pois há sempre indícios e origens religiosas. E, ao contrário, o sagrado sempre se purifica, pois vive em um mundo rodeado de atos profanos. O Movimento Moderno em seu processo arrasador de “tábula rasa” colocou em questão vários pensamentos sobre o modo de planejar e construir as cidades. A Revolução Industrial propiciou avanços tecnológicos, mas igualmente domesticou o tempo e espaço. Assim, um dos primeiros movimentos contrários a essa situação nasceu dos situacionistas que enunciavam a necessidade de retomar aos espaços públicos o caráter lúdico. Propunham a técnica da deriva como um jogo, que realizaria em algum lugar em um período de tempo necessário para dar partida a um processo de subjetivação. Um jogo que poderia ser jogado


inúmeras vezes e cada uma com características próprias. Se caminhar nas cidades não é mais um atrativo, talvez seja o indício de que algo se perdeu. A deriva se apresenta como uma proposta de apreensão do lugar, da coexistência entre racionalidade e brincadeira, da vida cotidiana baseada no lazer e não somente nas obrigações laborais. Da mesma forma, Collin Rowe propõe novos meios de pensar as cidades. A collage pode se apresentar também como um jogo, observar as cidades de outro ângulo, cortar, recortar, colar, testar possibilidades. Uma visão planificada se torna perigosa, na medida em que não atribui a diversidade e a mutação dos processos cotidianos.

Fonte: Ítalo Franco, 2016

Na contemporaneidade novas estratégias de percepção do lugar são enunciadas, como a cartografia urbana e a corpografia. Comparáveis aos momentos de estar “no céu”, a cartografia possibilita capturar fragmentos da cidade que estavam escondidos, ou não eram percebidos pela cegueira mundana. O cenário das cidades de fronteira para o turista é o local de compras nos free-shops; para os observadores atentos é uma região complexa que cria uma nova dinâmica nos modos de saber e poder; para os moradores é a passagem cotidiana e para as crianças é a aventura, a possibilidade de escolher a praça de qual lado irá brincar. Ao largar a pedra-desejo retomo para a morada, mas com o pensamento inquieto e tansformado de quando iniciara o jogo.


Refe


COSTA, Luis Artur; ANGELI Andréa A. C. e FONSECA, Tania Mara. Cartografar In: FONSECA, T. M. G.; NASCIMENTO, M. L.; MARASCHIN, C. (Org.). Pesquisar na diferença: um abecedário. Porto Alegre: Sulina, 2012, p. 43-46. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1988. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006. GUATTARI, Felix e DELEUZE, Gilles. Tratado de nomadologia. A Maquina de Guerra. IN: Mil platôs : capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995-1997. GUATTARI, Felix e DELEUZE, Gilles. Introdução: Rizoma. In: Mil Platôs (Capitalismo e Esquizofrenia). Vol. 1. SP: editora 34, 1995 [1980]. Pp. 10-36. ROWE, Colin; KOETTER, Fred. Collage City. Cambridge: MIT Press, 1978

erências bibliográficas


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