Mapaberto

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Carolina Ritter Lorena Maia

mapaberto explor-açþes


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A disciplina Explor-ações Urbanas: Errar no limiar, ofertada pela professora Dra. Emanuela Di Felice, do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFPel, propõe-se a investigar a cidade e seus territórios através da imersão. Interação direta e prática no cotidano das frestas e descontinuidades da cidade. Este trabalho relata algumas dessas experiências através de cartografias, ensaios, collagens aliando a teorias do urbanismo e filosofia.


mapaberto

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Pelotas

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LEGENDA canal São Gonçalo trajetos percorridos

PONTO DE SAÍDA 18 outubro - FAUrb 25 outubro - Estação Férrea 01 novembro - Shopping 29 novembro - Catedral

PONTOs abertos Catangas

O Sr. da Pressão

Dona Maria

Castelinho

Shopping cego

Parque Uno

Castelo Simões Lopes

Crianças Barão de Mauá

Esconderijo

Fronteira

Dobra

Ponte

Prosa

Pescadores

Árvore sagrada


causalidade Primeiramente, vale ressaltar que fomos um grupo que caminhava. Isto já não é usual na cidade, nada de diferente podíamos ter, mas quem nos via, nos olhava realmente. Às vezes, queriam saber o que estávamos fazendo: “O que vocês estão fazendo deste lado, que não estão no outro, no Parque Una?” – Um grupo de pessoas reunidos em um sombra no bairro Navegantes, na borda do canal que separa os dois locais, nos pergunta quando por ali passamos. Tentamos, ao escrever este mapa, entender um pouco do que nos aconteceu durante as caminhadas, e nessa hora de se escolher um dos pontos a serem abordados aqui, percebemos que fomos caminhantes bastante críticos. Saímos, com algumas certas intenções de locais, onde pudéssemos justamente ver aquilo que sabíamos que estava errado na cidade. Sabíamos muito da existência do errado, e encontramos esse errado. Tudo certo até aqui, já esperávamos ver lixo, pobreza, abandono, segregação, etc. Nada novo. Carregados como estávamos desse repertório, talvez ainda mais por isso, qualquer acontecimento positivo, de interação com as pessoas, se tornou algo interessante e até animador.

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E ainda, constatamos um dos motivos para que determinados momentos tenham um caráter mais estimulante em relação ao nosso entendimento da cidade de Pelotas, foi a imprevisibilidade desses momentos. Então, era sorte o que nos acontecia? Mero destino encontrar coisas boas pelo nosso caminho crítico? Então, nos surgiu o que poderia ser uma palavra para isso: casualidades! E nos deparamos com um impasse: seriam causalidades, já previsíveis, os pontos negativos do nosso trajeto e; seriam casualidades, sorte, as boas experiências que tivemos contato? “Que sorte a Dona Maria ter ido na padaria, e na volta nos encontrar no pátio de seu prédio! E então ter nos convidado para sua casa conhecer...” Em um breve momento de decisão em grupo, de entrarmos ou não em seu prédio, finalizamos dentro de um dos apartamentos trocando histórias e tirando uma fotografia de recordação. Careri (2017), ao falar que durante as derivas devemos estar dispostos a perder tempo, e assim ganhar espaço, diz em um trecho: “haja então desvios, mudanças de rumos, paradas para falar com o dono da casa que naquele momento, já curioso, convidou-o para entrar e tomar um café e quer saber mais coisas sobre nós” (p. 107). Mas não, não foi sorte. Se tudo de bom que encontramos em nosso caminho foram meras casualidades,


F05 estamos totalmente desconsiderando nosso papel de grupo que causou algo na cidade. Uma das definições de casualidade nos diz, na verdade, que nenhum acontecimento é uma casualidade, a não ser que ainda sejamos ignorantes em relação a sua causa (CAMPOS, 2012), e isso nos ajudou a entender que tudo – bom ou ruim - só aconteceu pela nossa presença, modéstia parte. Nós fomos o denominador comum na cidade que tirou da rotina funcionários do Shopping Pelotas e a mãe da dona Maria. Ao mesmo tempo que descobrimos, por ali estarmos também, o quanto de atividades o Catangas faz em sua comunidade, nos deixando entusiasmados com a iniciativa. Uma frase no lixo do Catangas assim dizia: “O mundo

ainda tem jeito”. Até esse momento de reconhecimento, não tínhamos ideia da pegada que geramos ao caminhar, e do nosso papel de protagonistas do nosso próprio caminho – isso é raro acontecer. Deduzimos que fomos uma causa de diversos acontecimentos, produzimos e testemunhamos causalidades imprevisíveis e previsíveis na cidade. Queremos demonstrar que, de maneira geral, tivemos dois tipos de eventos em nossos percursos: as causalidades previsíveis, como os pontos negativos de nosso trajeto e as causalidades imprevisíveis, como os positivos – não sabíamos o que poderia acontecer, mas ali estávamos para ser a causa de determinado efeito.


Percebemos também que estamos acostumados a ver pontos negativos em nossas cidades. O quanto isso é uma causalidade bastante previsível. E que o mínimo peso das causalidades imprevisíveis já fazia relevante diferença para nós. Isso, que apenas andamos pela cidade. Já como arquitetos, urbanistas, artistas, engenheiros, somos a causa de muitos acontecimentos na cidade. Somos agentes causadores em nossas cidades, às vezes, sem perceber dos acontecimentos que podemos gerar. Causa e efeito em escalas mais concretas. Complementa-se, o quanto nos eram visíveis os pontos negativos em nossa trilha e o quanto podem ter sido invisíveis para nós alguns pontos positivos. O quanto deles estavam a um passo de nosso descobrimento, mas nos passou ao termos tomado outro caminho, ou por olharmos para outro foco – por estarmos focados no previsível. Entre outras, podemos citar algumas causalidades imprevisíveis de nossos caminhos: (a) Recepção Catangas; (b) Recepção da Dona Maria; (c) Recepção do Senhor Pressão; (d) Conversa com moradores do Navegantes; (e) História da figueira no Engenho; (f) Pescadores articulados; (g) Visita a um dos guardiões do Passo dos Negros, em sua casa de tetra pak; (h) Pessoas no castelo Simões Lopes; (i) Crianças jogando taco no Loteamento Barão de Mauá. F06


Fomos conhecer um novo loteamento de Pelotas – o Parque Una. Demorou pra chegar (depois que saímos do Shopping Pelotas), e demoramos pra sair. Foi um dos dias de caminhada que menos “ganhamos” território, podemos dizer que andávamos em círculos, mas por retas extensas e monótonas. Ficamos sem saída, e tivemos de voltar, pois não havia um muro pra pular ou um caminho perigoso a se tomar. Havia água em nosso caminho, não havia mais ponte.

fio do caminho

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Íamos andando, chegando ao fim, torcendo pra que não fosse esse o fim, porque sabíamos que um fim ali nos levaria de volta de onde viemos, e não era um caminho rápido, nem muito interessante, já havíamos passado por grande parte dele! E mesmo com a torcida do grupo, tivemos que voltar, e só pudemos chegar ao ponto que queríamos, do outro lado, em outro dia de deriva, quando nos pareceu ter passado muito tempo desde que estávamos do outro lado. Tão perto, mas tão longe. Pelotas e o Parque Una nos obrigou a quebrar uma regra das derivas: voltamos atrás. Depois que voltamos, o


dia de deriva acabou, ninguém estava empolgado o suficiente para em grupo tomarmos outro caminho, nosso tempo foi tomado pela infinita volta. “Jamais voltar atrás. Se entramos por um furo da cerca e percorremos alguns quilômetros, voltar atrás seria realmente deprimente [e foi]. O fato de procurar uma saída é a melhor maneira de se explorar o território [mas estávamos encurralados], isso leva-o a seguir por atalhos que levam a outros furos [o furo era o que preenchia nosso caminho, nos deparamos com uma ausência de caminho, a não ser aquele atrás de nós]” (CARERI, 2017). Por outro lado, podemos dizer que simplesmente nos deixamos errar o caminho. Se não tivéssemos o errado, nunca saberíamos que ali havia um fim que causou uma volta causa e efeito novamente -, e este relato aqui não estaria, e foi um relato que gostei de fazer.

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dobra O grupo de caminhantes é uma resistênica na cidade. Se caminha pelas frestas, nos entre-lugares, sempre disposto a atravessar os muros, as fronteiras, conhecer a borda, atentar para o que visível e invisível - locais fora do guia turístico. Inspirado nos estudos do italiano Careri, o caminho nos fornece as diretrizes do percurso, não existem metas pré-estabelecidas e sim o deixar ser capturado pelos afectos e perceptos.

Algo dobra e se desdobra em meu íntimo produzindo um sentindo fora das relações de saber e poder. Nessa dobradura do desconhecido constitui o NOVO. Seja um novo olhar para a cidade ou um novo questionamento. A collage é uma criação de novo percepto, aquilo que antes não se via e que agora torna visível a partir de um novo modo de sentir que é o afecto.

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collage

Atravessamos os lugares com nossos corpos individuais e também sociais, simultaneamente somos atravessados por sensações. Em alguns locais essas sensações não conseguem formar uma palavra que a traduza, nesse momento de intensidades se constitui um processo de subjetivação, a dobra - lembrando Deleuze.


Os caminhantes com sua bagagem de saber percorrem o território. Durante a trajetória há momentos em que forças de fora (externas) fogem do entendimento de saber e poder. É nesse ponto que se forma uma DOBRA, uma inflexão na indeterminação, uma emoção que não consegue ser dizível. O processo de subjetivação é aguçado e permite a criação de um novo pensamento. O lugar que afecta é também afectado com a presença. Sensação de medo, insegurança e repúdio. Mas, com o coletivo adquire-se coragem para atravessar e sentir o lugar.

Entre grandes muros de condomínios fechados, uma rua de saibro. A princípio um cenário de abandono. No ato da travessia os rastros de outros caminhantes – o lixo e o resíduo como testemunho. E, mais adiante, a surpresa ao encontrar outro Ser, capturado ou não pelo Poder, que investe uma aproximação ao perguntar: Que horas são? Seria interesse pelo tempo, ou início de um diálogo? Talvez fosse o dono do beco (in)visível sentindo-se afectado por visititantes inusitados. Sem mais diálogo retoma-se a caminhada e criam-se novas DOBRAS.


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Ao olhar para o mapaberto da última deriva, percorremos dois caminhos extensos, praticamente em linha reta e ambos em rua de saibro - Dobra e Ponte. Porém, estranho foi notar o quanto os dois percursos semelhantes morfologicamente refletiram diferentes sensações. Enquanto a Dobra, ainda menor que o trajeto da Ponte , reverberou medo, angústia e questionamentos, a Ponte, pelo contrário, transmitiu um lugar de aconchego, tranquilidade e engajamento. Esse último caminho - a Ponte, conhecido na cidade como Estrada do Engenho, com sua natureza peculiar, com a história mítica de uma árvore, com a recepção calorosa dos moradores e a ocupação dos pescadores - foi um dos caminhos mais “sinuosos” que passamos, tinha-se muita coisa para ver. Os dois


sinuosas trajetos vistos de longe, em uma mapa cartesiano, pouco nos dizia. E, somente no ato da caminhada, de sentir, de conversar com os moradores que construímos um outro percepto. Embora ambos denunciem a segregação seja ela econômica, social ou cultural, é o trajeto da Ponte que grita, se faz presente pela união e força dos moradores que reivindicam seus direitos. Oposto da Dobra, que se interioriza em seu abandono e parece ter desistido de resistir aos muros sufucantes. Talvez esses lugares sejam A Zona do filme de Tarkóvski “um sistema muito complexo de armadilhas” quando não há pessoas não sabemos o que acontece, mas ao chegar alguém tudo se mexe.

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Legenda Ilustrações

F01 - Caminhantes em direção ao Parque Una. Fonte: Maurício Ploenals, 2017. F02 - Mapaberto. Fonte: das autoras, 2017. F03 - Dia de chuva, caminhantes com capa plástica em direção ao Castelinho. Fonte: Emanuela Di Felice, 2017. F04 - Caminhantes no apartamento da Dona Maria. Fonte: acervo da disciplina Explor-ações urbanas, 2017. F05 - Visita ao Catangas. Fonte: Emanuela Di Felice, 2017. F06 - Laura Backes com ramo de chá no prédio da Dona Maria. Fonte: Emanuela Di Felice, 2017. F07 e F08 - Collage fio do caminho no Parque Una. Fonte: das autoras, 2017. F09 - Tartaruga encontrada no asfalto do Parque Una. Fonte: Maurício Ploenals, 2017. F10 - Collage Dobra. Fonte: das autoras, 2017. F11, F12 e F13 - Registro dos trechos da rua entre os condomínios fechados. Fonte: acervo da disciplina Explor-ações urbanas, 2017. F14, F15 e F16 - Registro dos trechos da Estrada do Engenho. Fonte: acervo da disciplina Explor-ações urbanas, 2017.


Referências CAMPOS, F. S. Lei de Causalidade x Lei de Casualidade. 2012. Disponível em: <http://www.novae.inf.br/site/modules.php?name=Conteudo&pid=1895>. Acesso em: 01 fev. 2018. CARERI, F. Caminhar e parar. Tradução Aurora Fornoni Bernardini. São Paulo: Gustavo Gili, 2017. DELEUZE, G. A Dobra, Leibniz e o Barroco. Tradução Luiz B. L. Orlandi. Campinas, São Paulo: Papirus, 1991.


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