A Narrativa Contracultural do Jornalismo Gonzo

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Lucas Buzatti Lopes de Faria

A NARRATIVA CONTRACULTURAL DO JORNALISMO GONZO Uma análise dos elementos jornalísticos e literários no livro Medo e Delírio em Las Vegas (1971), de Hunter S. Thompson

Belo Horizonte Centro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH) 2008


Lucas Buzatti Lopes de Faria

A NARRATIVA CONTRACULTURAL DO JORNALISMO GONZO Uma análise dos elementos jornalísticos e literários no livro Medo e Delírio em Las Vegas (1971), de Hunter S. Thompson

Monografia apresentada ao curso de Jornalismo do Centro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH) como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Jornalismo. Orientador: Maurício Guilherme Silva Júnior

Belo Horizonte Centro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH) 2008


Aos meus familiares e amigos, pela extrema paciência; ao grande mestre Maurício Guilherme, pela orientação sábia e atenciosa em todas as etapas deste trabalho; e, obviamente, ao sensacional Hunter S. Thompson, por toda sua ousadia e criatividade, extremamente inspiradoras para um jornalista iniciante.


RESUMO

A intenção do presente trabalho é traçar um panorama sobre como, em seu processo narrativo, o jornalista Hunter S. Thompson, no livro Medo e Delírio em Las Vegas (1970), combina a utilização de elementos jornalísticos e literários para traçar um dos relatos mais instigantes sobre o fim do movimento hippie. A idéia é demonstrar, por meio de recortes teóricos e análise detalhada de conteúdo, como Thompson subverte a lógica convencional do jornalismo moderno, ao utilizar elementos da ficção e da literatura, em uma narrativa ácida, criativa e engraçada, originada de um processo jornalístico de captação e produção inusitado e transgressor. O trabalho é sustentado por três recortes que balizam o estudo teórico e a análise empírica: os elementos literários de Medo e Delírio, a subversão do jornalismo convencional e a contribuição histórica da obra enquanto produto contracultural de uma época. Com base nisto, buscou-se mostrar que o livro de Thompson pode ser considerado tanto literatura quanto jornalismo. Além disso, através de tal combinação, Thompson realiza um amplo relato – sociológico, antropológico, psicológico e político – do sentimento de uma geração.

Palavras-chave: Jornalismo Gonzo, Literatura, Contracultura.


SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 00 2 O FAZER JORNALÍSTICO ............................................................................................ 00 2.1 Jornalismo e sociedade: conceitos e relações ................................................................... 00 2.1.2 Compromisso com a verdade e objetividade jornalística ............................................... 00 2.2 Elementos da produção jornalística .................................................................................. 00 2.2.1 A notícia ......................................................................................................................... 00 2.2.2 Pauta e apuração ............................................................................................................. 00 2.2.3 Lead e “pirâmide invertida” .......................................................................................... 00 2.2.4 A edição e os filtros ....................................................................................................... 00 3 JORNALISMO E LITERATURA ................................................................................... 00 3.1 Um pouco de história ......................................................................................................... 00 3.2 A figura do jornalista-escritor ........................................................................................... 00 3.3 O Novo Jornalismo ........................................................................................................... 00 3.4 O jornalismo como gênero literário .................................................................................. 00 3.5 O livro-reportagem: a expansão do jornalismo convencional .......................................... 00 4 CONTRACULTURA E NOVO JORNALISMO ........................................................... 00 4.1 Visões de uma era: a contracultura nos anos 60-70........................................................... 00 4.1.1 A contracultura ............................................................................................................... 00 4.1.2 O movimento hippie ...................................................................................................... 00 4.1.3 Os hippies ...................................................................................................................... 00 4.1.4 O declínio ...................................................................................................................... 00 4.2 Novo Jornalismo e contracultura ...................................................................................... 00 4.3 Hunter Thompson e o Jornalismo Gonzo ......................................................................... 00 4.3.1 As características do Jornalismo Gonzo..........................................................................00 5 ANÁLISE E METODOLOGIA ........................................................................................ 00 5.1 Metodologia ...................................................................................................................... 00 5.2 Resumo da obra ................................................................................................................ 00 5.3 Análise .............................................................................................................................. 00 5.3.1 A subversão do fazer jornalístico ................................................................................... 00


5.3.2 A linguagem de Medo e Delírio...................................................................................... 00 5.2.3 Relato contracultural do fim de uma geração ................................................................ 00 6 CONCLUSÃO..................................................................................................................... 00 REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 00


1 INTRODUÇÃO “Provavelmente, os anos 60 foram a década mais importante do Século XX. Por quê? Porque trouxeram o questionamento à autoridade”, comenta o guitarrista mexicano Carlos Santana, no vídeo-documentário Miles Electric: A Different Kind of Blue (2005), que recolhe depoimentos sobre o show de Miles Davis no Isle of Wight Festival, em 1970, nos EUA. A apresentação marca a transição musical de Miles para o jazz elétrico, ao buscar incrementar elementos do rock’n’roll em sua música, fusão que causou reações extremamente negativas do estabilishment do jazz. Durante o festival, que reuniu as maiores bandas de rock’n’roll da época e um público de 600 mil pessoas, Miles e sua banda apresentaram, durante 38 minutos – de pura improvisação –, um som instigante e fabuloso. Ao ser perguntado sobre o nome da música, o jazzmen respondeu: “Call it Anything” (chame como quiser). A apresentação tornou-se um marco musical dos anos 1970, e deixou fascinados tanto aqueles que duvidavam da idéia de um show de jazz em festival de rock, quanto os que relutavam à fusão entre a eletricidade e o jazz. Tal história de Miles Davis – assim como a do jornalista Hunter S. Thompson – é um grande exemplo da força contracultural que atingiu, de forma estonteante, o período compreendido entre a década de 1960 e o final dos anos 1970, época de “estouro” da contracultura hippie, que viria a se tornar o apogeu da contracultura moderna.

Os anos 1960, bem definidos por Santana, deram origem a manifestos e movimentos contraculturais expressos por meio da arte, da literatura, da música, do cinema, do comportamento ou da psicologia. A época é marcada pelo furor revolucionário que tomou conta dos jovens norte-americanos, que criavam, ali, um movimento contracultural cujos elementos principais eram o intenso uso de drogas psicodélicas, os ideais de amor livre, a ideologia política de esquerda, a oposição à Guerra do Vietnã e a mudança estética do visual dos jovens.

O período é marcado por gurus e ícones, nos campos da ciência e das artes, como Timothy Leary, Ken Kesey, Albert Hoffman, Allen Ginsberg e os beatniks, Bob Dylan, Beatles e Greateful Dead, entre muitos outros nomes, que garantem certo tom “alucinado” à “geração das drogas”. Através de substâncias alucinógenas como o LSD (ácido lisérgico) e a psilocibina (cogumelos alucinógenos), acreditava-se que a consciência poderia ser expandida,


ampliando-se, assim, as possibilidades de percepção, através de “viagens” psicológicas causadas pelas drogas.

Em meados dos anos 1960, o jornalismo também passa por sua experiência contracultural. Primeiramente, o ofício jornalístico é atingido por uma espécie de corrente chamada “Novo Jornalismo”, ou jornalismo literário, que, por meio de representantes como Tom Wolfe e Gay Talese, propunha o uso de elementos literários no texto jornalístico – caprichado e criativo –, com uso de longos diálogos, descrições minuciosas, metáforas, onomatopéias, ironia e sarcasmo. O Novo Jornalismo também estimulava maior liberdade temática e diversidade de fontes e depoimentos, em produtos como grandes reportagens, perfis e biografias.

O estilo provocou a discussão acerca dos limites e interlocuções entre jornalismo e literatura: de um lado, representantes do jornalismo convencional criticavam a inclusão de elementos literários nas reportagens, temendo que a funcionalidade do jornalismo pudesse ser corrompida por fatores ficcionais; de outro, literatos defendiam que um livro, que tinha na não-ficção sua fonte inspiradora e fazia uso de métodos jornalísticos em sua produção, não poderia alcançar, jamais, o status literário.

Neste período, um excêntrico repórter freelancer da Califórnia, que escrevia para revistas como Playboy e Rolling Stone, começa a chamar atenção na imprensa norte-americana, com reportagens não-convencionais, que atropelavam conceitos do jornalismo convencional. Criador do chamado Jornalismo Gonzo, Hunter S. Thompson, fazia constante uso da ficção. Além disso, o repórter participa da matéria (na maioria das vezes, como personagem principal); o texto incorpora diversos elementos literários – descrições cena-a-cena, onomatopéias, metáforas, analogias e diálogos introspectivos –; elementos como sarcasmo, ironia, humor ácido temperam a narrativa; os meios de captação e produção da reportagem revelam-se totalmente alternativos e contam, na maioria das vezes, com a influência do uso de drogas. Em 1966, é publicado Hell's Angels – A Strange And Terrible Saga of the Outlaw Motorcycle Gangs (THOMPSON, 1966), livro que fez com que Thompson, na visão de Tom Wolfe (2005, p.57), merecesse “nesse ano, a Medalha de Honra de melhor de todos os escritores freelancers”. A reportagem conta a experiência de Thompson durante 18 meses em peregrinação com a gangue de motoqueiros americanos, extremistas e selvagens, Hell’s


Angels. Thompson participa intensamente dos hábitos, costumes e ritos culturais dos Angels, descrevendo-os em relato extremamente rico, construído através de uma visão participativa da realidade da gangue. Ao final de sua “estadia”, o repórter chega a ser espancado pelos motoqueiros, como descreve no último capítulo do livro. Contudo, Hell’s Angels.... ainda não é considerada com uma produção do Jornalismo Gonzo, mas do Novo Jornalismo.

Somente em 1971 é publicado o best-seller do Jornalismo Gonzo: Fear and Loathing in Las Vegas: A Savage Journey to the Heart of the American Dream, traduzido, em 2007, para o português, sob o título de Medo e Delírio em Las Vegas: uma jornada selvagem ao coração do Sonho Americano. O livro, que, inicialmente, seria uma reportagem convencional custeada pela revista Sports Illustrated, sobre a corrida de motos Mint 400, conta a experiência alucinada de Hunter Thompson e de seu advogado mexicano Oscar Zeta Acosta – sob os nomes falsos de Raoul Duke e Dr. Gonzo, respectivamente –, que usam o dinheiro da revista para alugar um conversível vermelho e montar um arsenal de drogas pesadas, entre as quais LSD, mescalina e éter, que seriam consumidas em experiências ousadas, divertidas e perigosas, em uma das cidades mais animadas dos EUA: Las Vegas.

O livro conta as experiências selvagens dos dois amigos, que vão desde intimidações aterrorizantes a um caroneiro durante a viagem no conversível, à destruição completa e brutal – devido ao consumo desenfreado de alucinógenos –, de um quarto de hotel onde acontecia uma convenção de policiais sobre entorpecentes e drogas perigosas. As tensas e perigosas “viagens”, dos dois amigos inconseqüentes em Vegas, tornam-se o foco principal do livro. O relato traça os costumes de uma época e explicita o sentimento de frustração do fim do movimento hippie e da “geração das drogas”.

É na amplitude histórica, conceitual e formal de Medo e Delírio, bem como nos entraves teóricos que o Jornalismo Gonzo coloca em discussão, que se debruça o trabalho aqui apresentado. A idéia é analisar o livro de Thompson com base em três recortes: os elementos literários utilizados por Thompson; a subversão do fazer jornalístico e a obra enquanto produto contracultural, capaz de traçar relatos ricos do fim do movimento hippie.

Durante o primeiro capítulo, serão dispostas e conceituadas especificidades do fazer jornalístico, tais como: as funções sociais; a objetividade e o compromisso com a verdade; as técnicas textuais (lead, pirâmide invertida) e as etapas do processo de produção (pauta,


apuração, redação, edição). Para ilustrar essa discussão, foram utilizados conceitos estabelecidos por jornalistas como Vera Veiga França, Adelmo Genro Filho, Mário L. Erbolato, Clóvis Rossi e Ricardo Noblat.

O segundo capítulo se propõe a fazer breve apresentação histórica da relação entre jornalismo e literatura, bem como apresentar a discussão acerca do jornalismo enquanto gênero literário. O capítulo também apresenta ao leitor o Novo Jornalismo, de Tom Wolfe, e explica as características de seu principal produto: o livro-reportagem. Manuel Angel Vasquez Medel, Nanami Sato, Daniel Piza e Cristiane Costa são alguns dos autores que contribuíram, com conceitos, definições e opiniões, para o desenvolvimento do capítulo em questão.

No terceiro capítulo teórico, foram apresentados conceitos sobre contracultura, estabelecidos por Tim Leary, Ken Goffman e Dan Joy. O capítulo faz, também, um retrospecto sobre a história do movimento, do seu surgimento à sua ruína. No capítulo, é demonstrado o poder contracultural do Novo Jornalismo e apresentado, ao leitor, o jornalista Hunter S.Thompson e sua breve biografia.

Os módulos analíticos têm por objetivo relacionar esses conceitos coletados na parte teórica com trechos de Medo e Delírio em Las Vegas, apresentando o modus operandi do jornalismo Gonzo e suas diferenças em relação ao jornalismo convencional; a linguagem literária utilizada por Tompson, ao criar uma narrativa inusitada e criativa e o papel do livro enquanto produto contracultural que marcou o fim de uma geração.


2 O FAZER JORNALÍSTICO

2.1 Jornalismo e sociedade: conceitos e relações

Desde que passou a assumir o papel de orientador dos fatos e acontecimentos de cada geração, o jornalismo suscita discussões acerca de sua real função na sociedade. Entre os diversos conceitos e definições atribuídos ao ofício jornalístico e seu desempenho na sociedade, Vera Veiga França, em Jornalismo e vida social - A história amena de um jornal mineiro (1998), defende que “o jornalismo nasce da pulsão de falar o mundo, falar o outro, falar ao outro; da atração pela diferença, pela novidade, pelo distante; do enraizamento no mesmo, no próximo e em si que marcam a palavra humana desde sempre” (FRANÇA, 1998, p.26).

Veiga França pontua, portanto, que o jornalismo busca cumprir a função de participar e modular o dizer social. Também ao abordar a funcionalidade do fazer jornalístico, Manuel Carlos Chaparro (1994) define tal ofício como "o elo que, nos processos sociais, cria e mantém as mediações viabilizadoras do direito à informação" (CHAPARRO, 1994, p.23).

Neste sentido, a palavra social do jornalismo é tida como legítima e distinta, da mesma forma que acontece em instituições como a Igreja ou a Universidade. As pessoas realizam uma espécie de acordo social em que a informação produzida e divulgada por tais instituições é considerada verdadeira e distinta. Contudo, o que difere o discurso jornalístico da produção de informação destas instituições é que nelas a posse e a utilização da informação exprimem-se através de relações de poder e dominação. No jornalismo, por sua vez, “o poder não se encontra na guarda da informação, mas na sua divulgação. Em oposição à monopolização do saber, o jornalismo se realiza através da socialização da informação” (FRANÇA, 1998, p.28).

Sendo assim, através das distinções estabelecidas por Vera Veiga França como sendo especificidades de seu discurso social, o jornalismo acaba por criar uma maneira singular de comunicar e transmitir informações à sociedade:

A palavra jornalística torna-se uma palavra de mediação, e a ação comunicativa, desembaraçada de sujeitos individuais, torna-se mais que nunca a palavra da sociedade dirigida a si própria, a propósito dela mesma. O jornalismo se separa da palavra personalizada e cria um tipo de ligação aberta e particular entre os interlocutores e com o


seu tempo. Não se trata mais de sujeitos que falam, mas, antes, de sujeitos que observam (FRANÇA, 1998, p.29).

Entretanto, tal relação entre jornalismo e sociedade divide opiniões e suscita diversas análises e discussões. Como explica Veiga França (1998), sob uma perspectiva funcional, busca-se apontar as funções e/ou papéis exercidos pelo jornalismo, enquanto, sob uma visão crítica, a natureza ideológica do jornalismo é comprometida pelo fato de ele submeter-se à lógica do poder e da dominação.

Veiga França acentua que a análise funcional é importante e necessária, uma vez que o jornalismo atende à necessidade básica de informar a sociedade e desempenha, também, múltiplas funções na cena social, tais como a expressão e a formação de opiniões, a integração social, a mobilização e as funções recreativas e psicoterápicas. No entanto, para Veiga França, as funções podem variar de acordo com o contexto e a sociedade aos quais dizem respeito.

É importante ressaltar que, também diferentemente de outras instituições produtoras de informação, a recepção da palavra jornalística, na era moderna, é comercializada. E seu produto é fruto de empresas comerciais, reguladas pelo mercado. Como explica Vera Veiga França (1998), “a informação jornalística não é uma informação qualquer, mas aquela que, submetida a um tratamento especial, adquire as características necessárias para ser ‘trocada’” (FRANÇA, 1998, p.27). Mário L. Erbolato, em Técnicas de codificação em jornalismo – redação, captação e edição no jornal diário (1991), acentua que comercializar e trabalhar a notícia é a função básica dos jornais: Eles compram e vendem informações. A aquisição é feita por agências telegráficas (por atacado) ou contratada com os próprios funcionários da empresa (redatores, repórteres, correspondentes, enviados especiais, fotógrafos e outros que, mediante remuneração, devem procurar o que seja interessante para ser publicado). Depois de passar por uma elaboração técnica, a notícia é vendida a varejo, ao público, ao leitor, ao receptor (ERBOLATO, 1991, p.50).

Uma vez estabelecido o caráter comercial da notícia e do fazer jornalístico, os teóricos da Escola de Frankfurt, Adorno e Horkheimer, em A dialética do iluminismo, de 1947, questionaram a visão funcionalista, ao desenvolver um olhar crítico sobre a comunicação social e criar o conceito de indústria cultural. Tal indústria constitui um sistema em que os produtos culturais são adaptados ao consumo das massas, a fim de agir como instrumentos de


manipulação. Os indivíduos, portanto, deixariam de ser capazes de decidir autonomamente, ao aderir acriticamente aos valores dominantes, impostos e difundidos pelos meios de comunicação.

Portanto, o jornalismo deixaria de cumprir sua função social para tornar-se uma ferramenta capitalista de manipulação e dominação. Em O Segredo da pirâmide (1989), Adelmo Genro Filho afirma que a categoria central desta crítica da cultura burguesa, encabeçada pela Escola de Frankfurt, é a idéia da manipulação: “No capitalismo desenvolvido, todas as manifestações culturais, orquestradas pela batuta mercantil, tornar-se-iam plenamente funcionais ao sistema de dominação” (GENRO FILHO, 1989, p.61).

A padronização dos modelos de estruturação da notícia, por exemplo, seria um dos modos encontrados, pela indústria cultural, para manipular a informação veiculada nos grandes jornais. Para Genro Filho (1989, p.109), “os capitalistas inventaram, conforme seu arbítrio, o modelo de jornalismo e as necessidades que ele satisfaz [...] e fizeram delas uma fonte de lucros”. O autor comenta que, segundo o filósofo Jürgen Habermas, a forma moderna de jornalismo, cujo estilo e natureza foram moldados pela estrutura empresarial, está indissoluvelmente ligada ao aspecto publicitário-comercial ou ideológico manipulatório, não ao papel crítico do fazer jornalístico. Este jornalismo crítico, para Habermas, teria sua função preservada através das produções do jornalismo “literário”, ou de “opinião”.

2.1.1 Compromisso com a verdade e objetividade jornalística

Independentemente das discussões sobre a real função do jornalismo na era moderna, sua prática age, através da palavra social, como ferramenta primordial na orientação da contemporaneidade, levando à sociedade, de forma democrática, relatos verídicos de acontecimentos relevantes, nos diferentes âmbitos sociais.

Portanto, para cumprir sua função social, o jornalismo deve ser concebido com base na busca pela verdade. Em O que é jornalismo (ROSSI, 1994), Clóvis Rossi pontua que a prática jornalística deve responder a uma série de perguntas que forneçam aos receptores, em meio à diversidade de assuntos que implicam diretamente em suas rotinas, relatos fidedignos da realidade. Tal compromisso é atestado pelo jornalista Ricardo Noblat (2004), que pontua que


“por mais ingênuo, pueril e até mesmo fora da moda, afirmo que o dever número um dos jornalistas é com a verdade - mesmo que ela não seja algo claramente identificável” (NOBLAT, 2004, p.22).

Esta incessante busca pela verdade está atrelada ao faro jornalístico, à contestação das versões e fontes oficiais, ao saber identificar e utilizar instrumentos de obtenção da realidade dos fatos, ao compromisso em fornecer, com honestidade, um relato sobre o que se viu e ouviu. Contudo, o compromisso com a verdade é, muitas vezes, confundido com um dos mais discutidos conceitos do jornalismo: a objetividade. No artigo As notícias, o jornalista Nelson Traquina (1988) ressalta que nenhuma profissão é tão rodeada por mitos como o jornalismo. Tais mitos, segundo o autor, surgem em resposta à tentativa ilusória dos jornalistas de se manter neutros ao acontecimento, ao incorporar em seu ofício a obrigatoriedade dos princípios de objetividade.

Importada do jornalismo norte-americano, a idéia de objetividade jornalística tinha por princípio separar a opinião da notícia. Dessa forma, a imprensa deveria colocar-se em posição categoricamente neutra em relação aos fatos contados, para que os leitores tirassem suas próprias conclusões. Assim nascem também os conceitos de distanciamento do jornalista em relação a seu objeto de trabalho e de imparcialidade – o direito de resposta; “os dois lados da notícia” –, que, somados à idéia de objetividade, fariam com que a notícia se aproximasse, cada vez mais, de um registro fidedigno dos fatos.

Porém, dado o fato de que o jornalismo é feito por pessoas comuns, que carregam bagagem biográfica, valores morais, sentimentos e visões particulares, a objetividade jornalística acabou, ao longo dos anos, criticada e posta em xeque por muitos teóricos. Traquina (1988) cita Robert Karl Manoff (1986), para quem a escolha da narrativa feita pelo jornalista nunca é inteiramente livre, pois que “orientada pela aparência que a realidade assume para ele, pelas convicções que moldam a sua percepção e fornecem o repertório formal para a apresentação dos acontecimentos, pelas instituições e rotinas” (MANOFF apud TRAQUINA, 1988). Sobre o que também considera como sendo o “mito da objetividade jornalística”, Clóvis Rossi (1994) pontua:

É realmente inviável exigir dos jornalistas que deixem em casa todos os seus condicionamentos e se comportem, diante da notícia, como profissionais assépticos, ou como a objetiva de uma máquina fotográfica, registrando o que acontece sem imprimir, ao


fazer o seu relato, as emoções e impressões puramente pessoais que o fato neles provocou (ROSSI, 1994, p.10).

Rossi acentua, ainda, que é possível alcançar a objetividade em fatos que afetam pequenos grupos de pessoas, sem maior incidência política ou pessoal. Contudo, nas demais notícias, ela é somente um mito. Todavia, o autor afirma que a objetividade permanece como um dos principais parâmetros da linha editorial dos jornais de todo o mundo.

Segundo Edvaldo Pereira Lima (1995), os grandes vilões do jornalismo diário são a preocupação excessiva com o factual, com a atualidade dos fatos e a utópica objetividade da notícia. Pereira Lima afirma que os veículos de comunicação tornam-se reféns de um noticiário pobre e raso, que peca por não se afastar do “reducionismo míope da atualidade e do aspecto vesgamente mecanicista dos acontecimentos” (LIMA, 1995, p.15).

Para Felipe Pena (2008), o que existe é uma confusão acerca do conceito de objetividade jornalística. Segundo ele, “a objetividade é definida em oposição à subjetividade, o que é um grande erro, pois ela surge não para negá-la, mas sim por reconhecer sua inevitabilidade” (PENA, 2008, p.50). Pena acentua que o método é quem deve ser objetivo, e não o jornalista. Para ele, a necessidade de se estabelecer objetividade no método jornalístico, para que se assegure algum rigor científico em seu relato, deu-se, exatamente, pelo fato de que não é possível deixar de lado valores subjetivos do profissional. A objetividade, portanto,

surge porque há uma percepção de que os fatos são subjetivos, ou seja, construídos a partir da mediação de um indivíduo, que tem preconceitos, ideologias, carências, interesses pessoais ou organizacionais e outras idiossincrasias. E como estas não deixarão de existir, vamos tratar de amenizar sua influência no relato dos acontecimentos. Vamos criar uma metodologia de trabalho (PENA, 2008, p.50).

Dessa forma, Pena (2008) estabelece que a metodologia da produção jornalística é que deve ser a mais objetiva possível, e não o relato jornalístico em si. Afinal, o que separa o real da ficção, como afirma Adriano Duarte Rodrigues, é “a existência de um acordo de cavalheiros entre jornalistas e leitores pelo respeito dessa fronteira que torna possível a leitura das notícias enquanto índice do real” (RODRIGUES, 1988). A apuração objetiva dos fatos é o que garante tal acordo. O que legitima o discurso jornalístico é, portanto, sua metodologia, que garante ao leitor um relato orientado pela busca da verdade.


2.2 Elementos da produção jornalística

2.2.1 A notícia

O ofício jornalístico tem como matéria-prima a informação contida nos inúmeros fatos e acontecimentos que compõem o cotidiano da sociedade. Tal informação, posteriormente, transforma-se em notícia, fato atual de interesse público, “pinçado” em meio à infinidade de acontecimentos do dia-a-dia. Para Ricardo Noblat, “a notícia está no curioso, não no comum; no que estimula conflitos, não no que inspira normalidade; no que é capaz de abalar pessoas, estruturas, situações, não no que apascenta ou conforma; no drama e na tragédia e não na comédia e no divertimento” (NOBLAT, 2004, p.31). Na visão de Mário Erbolato, as notícias “são comunicações sobre fatos novos que surgem na luta pela existência do indivíduo e da própria sociedade” (ERBOLATO, 1991, p.52). Portanto, nota-se que o papel da notícia é de extrema importância no que diz respeito à construção social da realidade. Entretanto, uma vez que a notícia está diretamente ligada às necessidades do público, ao que seja de interesse coletivo, sua definição nem sempre é tão simples, como acentua Erbolato: “Se é difícil ou impossível definir a notícia, maiores são as dificuldades para se dizer, em termos jornalísticos, o que seja interesse” (ERBOLATO, 1991, p.54).

Contudo, o autor comenta valores tidos como essenciais para que um acontecimento seja noticiável, chamados de “valores-notícia” ou “critérios de noticiabilidade”. Para Erbolato (1991, p.55), a notícia deve ser “recente, inédita, verdadeira, objetiva e de interesse público”. O fato deve, primordialmente, ser inédito, o que faz com que sejam noticiáveis os fatos mais recentes, aqueles que as pessoas ainda não tomaram conhecimento. Erbolato (1991, p.55) afirma que “o público deseja fatos novos e, por isso, a técnica é redigir sobre o que aconteceu ontem ou recentemente”. Em relação à objetividade, o autor destaca o processo de produção textual, e não à polêmica neutralização do repórter em relação ao objeto: “A notícia deve ser publicada de forma sintética, sem rodeios, e de maneira a dar a noção correta do assunto” (ERBOLATO, 1991, p.56).

Em relação à definição do que é ou não de interesse público, Erbolato comenta que tal decisão é extremamente variável, e deve partir do faro jornalístico, do felling do jornalista em


perceber as demandas sociais: “Não existe um critério fixo para escolher e selecionar uma notícia que venha a ser aceita” (ERBOLATO, 1991, p.58). Segundo Erbolato (1991), os critérios variam de acordo com o tempo. Mesmo a atualidade e a novidade, considerados essenciais para a definição da notícia – a busca incessante pelo furo de reportagem, pela notícia mais “quente” –, podem se diferenciar de acordo com cada época. O que, hoje, é novo e importante, não necessariamente será amanhã. O autor afirma, ainda, que outra variação ocorre quanto aos interesses das empresas jornalísticas.

Decidir o que é importante ser noticiado também depende do segmento do veículo de comunicação, da posição política da empresa e do público para o qual tal notícia é direcionada. Depende, ainda, da amplitude geográfica do veículo (local, nacional, internacional) e do público ao qual sua produção é direcionada. Neste sentido, a divulgação de uma notícia pode tornar-se mais importante que a de outra, fazendo variar os “valoresnotícia”. Para Felipe Pena, “a notícia é negociada, o que faz com que todos os critérios sejam variáveis” (2008, p.72). O autor afirma que o repórter negocia a notícia com o editor, que negocia com o diretor de redação, e assim por diante, nas demais escalas hierárquicas de uma empresa jornalística. Outro fator que contribui para que os critérios sejam variáveis é a própria rotina de produção jornalística. Como afirma Pena, os critérios já inseridos no processo produtivo do jornalismo adquirem significado e desempenham funções que influenciam negativamente a construção das notícias, uma vez que se tornam “elementos dados como certos, o conhecido senso comum da redação” (PENA, 2008, p.74). Os fatos, portanto, encaixam-se nos critérios de noticiabilidade vinculados ao interesse público ou passam por tratamento até que se tornem produto jornalístico (matéria, reportagem, nota, entrevista, etc.). Dessa forma, quando chegam à redação, os fatos são, em etapas, para que se tornem notícia.

2.2.2 Pauta e apuração

Clóvis Rossi (1994) pontua que há, nas redações, um fio condutor a delimitar o que será ou não publicado: a pauta. Trata-se da orientação, para o repórter, sobre o assunto a ser coberto jornalisticamente. Ela contém informações sobre o tema, a abordagem que será dada, o


objetivo da matéria, o nome e os contatos dos entrevistados, locais e horários de marcação de entrevistas. Assim, direciona e orienta o trabalho do repórter na rua, além de informar, às chefias, diretores e proprietários do meio de comunicação, o que está sendo trabalhado pela empresa.

Contudo, Rossi (1994) acentua que de mero instrumento de orientação para os repórteres, a pauta tornou-se uma “espécie de Bíblia, ocasionando distorções e limitações ao trabalho jornalístico” (ROSSI, 1994, p.16). O autor afirma que a pauta reflete apenas parcialmente o que acontece ou quais são os assuntos de interesse público. Para Rossi, a pauta é, hoje, elaborada por um pequeno grupo de profissionais – “pauteiros” – e reflete somente as sugestões idealizadas por jornalistas que estão nas redações, e não pelos repórteres profissionais, em contato direto com os fatos.

A preocupação de Rossi diz respeito ao fato de a pauta ocasionar a reprodução mecanicista de informações oficiais, enviadas aos “pauteiros” por meio de releases, o que contribui para o distanciamento em relação à verdade dos fatos e à perda da característica crítica do fazer jornalístico. Além disso, o autor comenta que tal verticalização da notícia, ocasionada pelas limitações da pauta, faz com que repórteres acomodem-se a apenas obedecer ao que está previsto no “roteiro”, deixando de exercer “o faro jornalístico”, a busca in loco pela notícia, passando, assim, a contribuir para o amorfismo e apatia das redações dos veículos de comunicação de massa.

Contudo, salvo o fato de que a pauta é um instrumento produzido dentro da redação, ela não consegue alcançar a amplitude de uma busca in loco, o trabalho de produção das pautas pode ser feito de modo a ampliar a veracidade dos fatos e agilizar o processo de concepção da notícia. Para tanto, o produtor, ou mesmo o repórter, deve recorrer a uma etapa decisiva no fazer jornalístico: a apuração. Independentemente de como as informações chegam às redações, os fatos devem ser devidamente apurados antes de se tornar notícia. As informações precisam ser contestadas, contrastadas e conferidas, ao longo de um árduo processo de busca pela verdade. Noblat (2004) afirma que, antes de acreditar em algo, o jornalista deve duvidar, e só crer quando suas dúvidas estiverem esgotadas. Para o autor, o jornalista deve desconfiar de toda informação, principalmente daquelas que provém de fontes oficiais, como os governos. Para tanto, o repórter deve partir em busca da verdade, de modo a investigar as informações, identificar contradições e checar a veracidade dos fatos.


Ao citar o jornalista Elio Gáspari, Noblat afirma que o bom jornalista é o “repórter burro”, que não tem vergonha de perguntar, exaustivamente, até que suas dúvidas sejam esclarecidas (GASPARI apud NOBLAT, 2004, p.67). O jornalista ressalta, ainda, a importância dos detalhes no momento de escrever uma matéria e afirma que o trabalho de apuração não deve ser feito às pressas, uma vez que os receptores dão mais importância à notícia correta e verdadeira do que ao furo de reportagem.

2.2.3 Lead e “pirâmide invertida”

Segundo Felipe Pena (2008), até o começo do século XX, os jornais eram essencialmente opinativos. Apesar de existir a notícia, as reportagens não escondiam a posição política dos jornalistas e da própria empresa. As narrativas eram, portanto, mais retóricas do que informativas. Os textos continham grandes introduções para contextualizar o leitor quanto ao tema e à posição do jornal, antes de descrever a notícia em si, procedimento que, hoje, é chamado pelos jornalistas de “nariz de cera”. Contudo, a fim de sistematizar o texto jornalístico, e torná-lo o mais imparcial e objetivo possível, a imprensa americana passou a adotar um conceito que, até os dias de hoje, é tido como baliza-guia na produção textual jornalística: o lead.

O lead (ou lide) é um relato sintético, realizado no primeiro parágrafo do texto, que responde às seis perguntas básicas do leitor: o quê, quem, como, onde, quando e por quê. Pena (2008) afirma que uma importante singularidade do lead é seu tratamento estilístico, pelo fato de ser escrito sem qualquer convite à pausa, geralmente em um primeiro parágrafo, com apenas um ponto final. Dessa forma, o leitor é envolvido por essa espécie de “rede”, que o leva a ir até o final e, assim, informar-se sobre aspectos considerados os mais importantes da notícia. Pena sintetiza as funções do lead, no relato jornalístico, segundo as seguintes ações: Apontar a singularidade da história; Informar o que sabe de mais novo sobre um acontecimento; Apresentar lugares e pessoas de importância para entendimento dos fatos; Oferecer o contexto em que ocorreu o evento; Provocar no leitor o desejo de ler o restante da matéria; Articular de forma racional os diversos elementos constitutivos do acontecimento; Resumir a história, de forma mais compacta possível, sem perder a articulação (PENA, 2008, p.43).


Além do lead, outro marco considerado histórico no jornalismo é a criação do conceito de “pirâmide invertida”. Surgida em um jornal de Nova York, em 1861, a pirâmide consiste em estrutura narrativa que, ao invés de apresentar os fatos em seqüência cronológica, apresenta em ordem decrescente os elementos mais importantes da notícia: documentações e depoimentos mais chamativos estão no começo do texto.

Apesar da contribuição do lead ao fazer jornalístico, ao tornar a transmissão da notícia mais ágil e objetiva, o assunto suscita inúmeras discussões no meio jornalístico. A questão, muitas vezes em debate, é a sistematização textual que o uso indiscriminado do lead pode forçar, uma vez que o texto jornalístico é padronizado, o que faz com que todo o processo de redação seja simplificado em uma receita textual nada criativa. Ao discutir o uso do lead, Felipe Pena afirma: “Procurei passar esse conceito aos alunos sempre com desconfiança, pois acredito que ele pode significar uma prisão de estilo para muitos talentos em formação” (PENA, 2008, p.42).

Clóvis Rossi (1994) acentua que, do modo como o lead é tratado hoje, ele acabou por tornarse um resumo pobre de toda a matéria em um parágrafo, como se partisse do princípio de que o leitor não quer ler o texto todo, mas apenas o começo. Assim, tal padronização, na visão do jornalista, fez com que o repórter e o redator deixassem de ter como características principais o domínio do idioma, seus próprios estilos textuais e a maneira pessoal de captar o interesse do leitor para “transformarem-se em especialistas em uma técnica” (ROSSI, 1994, p.26).

2.2.4 A edição e os filtros

A edição é a etapa final da produção jornalística. Trata-se do momento em que os últimos ajustes são feitos, textual e contextualmente, antes de as matérias serem publicadas. Nas mídias impressas, o trabalho da edição é dividido em editorias (local, internacional, política, economia, educação, cultura, etc.) e realizado por diversos editores responsáveis. No processo de edição há, também, o trabalho de previsão e hierarquização nos fatos a serem cobertos. O editor responsável pelos diversos setores (editoriais) deve reunir-se com sua equipe, numa reunião de pauta, para estabelecer os assuntos a serem cobertos no dia em questão. As matérias consideradas “frias”, ou seja, atemporais, podem tanto ser desenvolvidas como deixadas na “gaveta”, a depender do volume e da qualidade das matérias daquela edição.


Depois que as matérias das diversas editorias foram devidamente formatadas, o editor-chefe, que coordena o trabalho da redação, decide o que será publicado, assim como a melhor disposição das notícias no jornal. O editor-chefe tem a função de esquematizar as notícias para dar ritmo à publicação. É ele quem decide em que ordem e tamanho as matérias aparecerão, escolhe fotos e títulos, além de identificar se as notícias realmente estão em sintonia com a política editorial do veículo. O editor-chefe é o elo entre a redação e as altas chefias de uma empresa jornalística. O que está sendo produzido é repassado a ele por meio dos editores de cada editoria e, posteriormente, encaminhado ao alto escalão da empresa. Portanto, o trabalho da edição possui caráter particular: é nessa etapa que o texto do repórter pode ser alterado, reduzido ou suprimido. Para tanto, a reportagem, na etapa da edição, passa por filtros que buscam adequá-la ao padrão jornalístico da empresa para a qual foi produzida.

Clóvis Rossi (1994), em O que é jornalismo, enumera tais filtros. Para o autor, o primeiro deles é o enfoque da notícia. O editor decide se a abordagem adotada é ou não correta. Caso não seja, a reportagem passará por adequação ao enfoque desejado. O segundo filtro é o tamanho da matéria. Cabe ao editor decidir se uma reportagem merece 60 ou 20 linhas de um jornal. Esta decisão obedece a critérios políticos e jornalísticos, mas também ao espaço de cada editoria. O terceiro filtro é o tamanho do título, que influencia decisivamente o modo como o receptor irá absorver as informações de determinada matéria. Este filtro pode ser político, jornalístico, meramente gráfico – ou tudo ao mesmo tempo. O quarto e último filtro estaria no processo de diagramação da reportagem na página. Assim como no caso do título, os critérios que interferem na disposição gráfica podem se relacionar de questões políticas/editoriais a caprichos estéticos.

Rossi (1994) afirma, ainda, que o editor-chefe tem a responsabilidade de decidir como será a “cara do jornal”, ou seja, a primeira página, que, geralmente, obedece a critérios políticos. Afinal, devem ser escolhidas, no conjunto das notícias mais importantes do jornal, aquelas que terão maior destaque e devem aparecer na primeira página, de modo a provocar impacto e receber atenção por parte dos receptores.


3 JORNALISMO E LITERATURA

3.1 Um pouco de história

A intensa paixão, de amores e conflitos, protagonizada entre estes dois gêneros de expressão verbal, suscita discussões e teorias desde meados do século XVIII, quando a narrativa jornalística começa a incorporar elementos do romance literário, transformando a forma de concepção dos jornais. Felipe Pena (2006) cita a classificação de Ciro Marcondes Filho quanto ao período de maior influência da literatura na imprensa. Segundo Marcondes Filho, é justamente na época em que as redações começam a determinar a linguagem e o conteúdo dos jornais, nos séculos XVIII e XIX, que, através dos folhetins, inicia-se a relação entre jornalismo e literatura.

Ao tratar do surgimento do folhetim, gênero narrativo que surgiu na França, durante o século XIX, e misturava prosa, ficção e romance, Pena (2006) anota que o termo francês feuilleton, quando apareceu pela primeira vez, no Jornal des Débats, não se referia aos romances publicados em periódicos. Na verdade, tratava-se de um suplemento dedicado à crítica literária e assuntos diversos. Contudo, nas décadas de 1830 e 1840, com a explosão do jornalismo popular, principalmente na França e na Grã Betanha, a imprensa assume caráter comercial, inserindo-se no sistema capitalista e incorporando sua lógica. Assim, como ressalta Pena (2006), por representar um grande negócio, as narrativas literárias começam a ser publicadas nos jornais, o que significava, para os donos de redações, aumento nas vendas e diminuição dos preços, e, para os escritores, pagamento em dia e visibilidade.

Além disso, a literatura passa a ser influenciada pela periodicidade jornalística, em função do plat, o ponto de virada do roteiro, a “deixa” da trama. Como os contos eram escritos em fascículos, a estratégia – hoje usada na produção de telenovelas e seriados –, consistia em, nas últimas linhas do texto, interromper um momento culminante da trama, como o flagrante do marido ou o momento do beijo apaixonado. Os escritores eram pagos por linhas e, portanto, obrigados a ser prolixos, para dar continuidade ao enredo. Assim, muitas vezes, estendiam a duração das histórias, o que resultava em repetição e inverossimilhança de certas mudanças na trama.


Entretanto, como afirma Pena, tais repetições não significavam baixa qualidade literária. Ícones da literatura mundial surgem nesse período folhetinesco, como Balzac e Victor Hugo, na França; Charles Dickens e Walter Scott, na Inglaterra; Dostoievski e Tolstoi, na Rússia; Machado de Assis e José de Alencar, no Brasil.

Com a Revolução Industrial, as novas tecnologias de impressão permitiram a ampliação da tiragem dos jornais, o que provocou a ascensão do jornalismo e da literatura. Os jornais começavam a tornar-se referência na tomada de decisões e na formação dos cidadãos. No século XIX, a grande maioria dos escritores trabalhava para jornais como articulistas, ensaístas, críticos ou colunistas, tendência que se consolida no século XX, período em que se estabelece a tradição do escritor-jornalista.

3.2 A figura do jornalista-escritor

Na qualidade de homens das letras, tais profissionais tinham aval para assinar textos de caráter opinativos. Utilizavam o espaço no jornal para alcançar mais visibilidade e tinham na imprensa o seu ganha-pão. Apesar disso, muitos consideram que o hábito do jornalismo pode atrapalhar a criação literária. Cristiane Costa (2005) cita Juremir Machado da Silva, que resume os prós e contras do trabalho na imprensa. Para Silva, o ofício jornalístico “ensina a síntese e a prática do texto constante. Corta a imaginação e favorece o realismo banal” (SILVA apud COSTA, 2005, p.202). Manuel Ángel Vázquez Medel (2005) conta que, segundo Renato Leduc, o poeta e ensaísta mexicano Salvador Novo dizia que “não se pode alterar o santo ministério da maternidade que é a literatura com o exercício da prostituição que é o jornalismo” (NOVO apud MEDEL, 2005, p.17).

Cristiane Costa (2005), ao citar a opinião de Antonio Fernando Borges, indica os fatores, originados do trabalho na imprensa, que se tornam prejudiciais ao desenvolvimento da criação literária:

A linguagem do jornalismo é, sem dúvida, muito mais pobre do que a gama de ricas possibilidades da literatura – em termos formais, temáticos e de vocabulário. Nesse sentido, o hábito do jornalismo pode ser limitante. Prova disso é que, quase sempre, a primeira incursão de jornalistas na literatura peca pela pobreza vocabular, frasal, temática. E isso não é de hoje: compare-se o Machado de Assis dos romances e contos com as crônicas diárias e semanais de seu ganha-pão. Há um abismo entre os dois. Claro que existem exceções, e é


possível alguém fazer grande literatura com vocabulário restrito e secura formal – mas para isso deve-se tomar a “providência” de ser um Graciliano Ramos, por exemplo [...] (BORGES apud COSTA, 2005, p.201).

Mesmo com os embates em relação à atuação de escritores na imprensa, tal tradição fez com que grandes nomes da literatura atuassem em jornais e importantes jornalistas fossem influenciados pelo romance. Aliás, ao tratar da relação entre jornalismo e literatura, o que não faltam são grandes nomes. A vasta lista passa pelos europeus George Orwell, Albert Camus e Leonardo Sciascia; pelos latino-americanos Jorge Luis Borges, Robert Arlt, Gabriel García Márquez e Mário Vargas Llosa; ou pelos norte-americanos Ernest Hemingway, John Reed, Truman Capote, Gay Talese, Jimmy Breslin e John Dos Passos. No Brasil, todos os grandes autores do século IX trabalharam regularmente na imprensa – José de Alencar, Machado de Assis, Raul Pompéia, Lima Barreto, Olavo Bilac, Euclides da Cunha –, tradição que se perpetuou no século XX, com nomes como João do Rio, Graciliano Ramos, Joel Silveira, Carlos Drummond de Andrade, Otto Lara Resende, João Cabral do Melo Neto, Rubem Braga e Antônio Callado. No século passado, contudo, diferentemente do século IX, em que os escritores “infiltravamse” na imprensa, foram os jornalistas quem começaram a se aventurar pelos férteis campos da literatura, incorporando em seus relatos diversos elementos literários, da liberdade temática ao texto caracterizado pelo cuidado estético e pela contextualização histórica do objeto ou acontecimento tratado. Tais características já eram incorporadas ao estilo do jornalista Joel Silveira, um dos precursores da grande-reportagem no Brasil, que exibiu um panorama social e político do país, nas décadas de 40 e 50 do século XX, através de textos ácidos e calcados no primor estético.

3.3 O Novo Jornalismo

Todavia, tais elementos seriam celebrados, com efeito, no jornalismo realizado pelos escritores-jornalistas norte-americanos Tom Wolfe, Truman Capote, Gay Talese e Jimmy Breslin, integrantes do “movimento” conhecido por Novo Jornalismo, ou jornalismo literário. Através de grandes-reportagens, perfis e biografias, essa corrente criativa revolucionou o modo como o fazer jornalístico era concebido nos anos 1960, ainda vinculado ao modelo


norte-americano, que tinha como pilares a objetividade, a concisão, a veracidade dos fatos e o distanciamento do repórter em relação ao objeto. O Novo Jornalismo – de onde Hunter S. Thompson iria incorporar diversas características para criar o Jornalismo Gonzo – permitia que o texto fosse mais solto, tanto em relação à forma quanto à possibilidade da inserção de recursos literários, como a construção fictícia, o uso do humor, de metáforas e onomatopéias, e a riqueza de detalhes. Também em relação ao conteúdo abordado, através do livro-reportagem, a escolha pode não se ater ao novo e ao factual, e romper as barreiras do limite temporal, a partir do uso de fatos do passado, pesquisas aprofundadas e diferentes visões sobre a mesma realidade. Além disso, o Novo Jornalismo incorporou uma diversidade de depoimentos e relatos capazes de conferir amplitude ao tema tratado.

Tom Wolfe (2005) conta que, nos anos 1960, uma curiosa idéia, nova e quente, começava a se instalar nas redações, através dos jornalistas que escreviam reportagens especiais: “Essa descoberta, de início modesta, na verdade, reverencial, poderíamos dizer, era que talvez fosse possível escrever jornalismo para ser... lido como um romance” (WOLFE, 2005, p.19). É no Novo Jornalismo que a indagação acerca dos limites entre realidade e ficção, entre jornalismo e literatura, começa a ser instaurada nos entraves teóricos e práticos destes dois gêneros discursivos.

Muitos consideram a produção gerada pelo advento do Novo Jornalismo distante da esfera estritamente jornalística, uma vez que a ficção seria corruptora da funcionalidade informativa do ofício. Por um lado, o jornalismo literário dá asas à criação jornalística, mas pode interferir em seus resultados. Por outro, a literatura não admite a incursão do jornalismo como gênero literário, uma vez que se acredita que a estruturação do discurso jornalístico pode, por vezes, não atingir o status de literatura.

3.4 O jornalismo como gênero literário

Passados séculos e infindáveis discussões, a pergunta central que permeia toda a questão acerca dos limites e entraves entre as produções jornalística e literária ainda provoca reflexões e se distancia de respostas únicas: afinal, jornalismo é literatura? Na busca por resposta


conclusiva, Sebastião Geraldo Breguêz (1996) apresenta as visões distintas de três pensadores quanto à classificação do jornalismo como gênero literário. Breguêz afirma que, para o jornalista e crítico Antônio Olinto, o jornalismo é, sim, um gênero literário, uma vez que se caracteriza como “uma penetração no dia-a-dia, em busca do que possa ter de significado, de permanente” (OLINTO apud BREGUÊZ, 1996, p.91). No entanto, para o escritor francês André Gide, o jornalismo nunca seria um gênero literário, pois é “o que amanhã interessará menos do que hoje” (GIDE apud BREGUÊZ, 1996, p.91). No meio-termo, o jornalista Barbosa Lima afirma que talvez o jornalismo seja literatura, considerando “como temerária a inclusão do jornalismo, apesar de suas altas afinidades com a literatura, entre os gêneros literários” (LIMA apud BREGUÊZ, 1996, p.91).

Dadas tais contribuições, Breguêz (1996, p.93) admite o jornalismo como literatura, ao pontuar que o gênero “é compreendido não como imposição de modelo de fora para dentro, mas como livre disciplina, de dentro para fora, determinada pela própria arte em sua função criadora”. Contudo, deixa claro que, se considerado o fazer literário como a arte da palavra, em seu sentido estritamente estético, o jornalismo deixa de ser literatura. Entre os gêneros literários, o jornalismo seria classificado como literatura de apreciação, seja de obras (críticas), de pessoas (biografia) ou de acontecimentos (jornalismo), conforme subdivisão realizada por Alceu Amoroso Lima (1958), citado por Breguêz.

Manuel Àngel Vázquez Medel (2005, p.16) afirma que tanto o jornalismo quanto a literatura “são práticas discursivas verbais que mantêm um falso contencioso baseado no prestígio de uma ou outra atividade que, apesar dos elementos comuns, mantêm técnicas diferenciadas”. Vázquez Medel afirma que, desde que o jornalismo restringiu-se por seu papel funcional e comercial, os escritores são tidos pelos jornalistas tecnocratas como intrusos, e a literatura como ameaça à objetividade jornalística; já na visão de escritores elitistas, devido ao modo como alguns gêneros jornalísticos são concebidos, o jornalismo jamais atingiria a práxis criativa da literatura.

Entretanto, existem também aqueles que defendem o jornalismo enquanto prática literária, uma vez que ambos trabalham com a palavra enquanto matéria-prima. Para o crítico literário e jornalista Manuel Rivas, jornalismo e literatura sempre foram o mesmo ofício. Ambos trabalham com a palavra, buscam comunicar uma história e o fazem com vontade de estilo. Quanto aos objetivos dos fazeres jornalístico e literário, Rivas pontua que


quando têm valor, o jornalismo e a literatura servem para o descobrimento de outra verdade, do lado oculto, a partir da investigação e acompanhamento de um acontecimento. Para o escritor jornalista ou jornalista escritor a imaginação e a vontade de estilo são asas que dão vôo a esse valor. Seja uma manchete que é um poema, uma reportagem que é um conto, ou uma coluna que é um fulgurante ensaio filosófico. Esse é o futuro (RIVAS apud MEDEL, 2005, p.19).

Ainda sobre o conteúdo e os objetivos do jornalismo e da literatura, Vázquez Medel (2005) cita o escritor Marcel Proust, ao afirmar que a literatura trata do importante, enquanto o jornalismo se atém ao urgente. Dessa forma, a atividade literária é entendida como aquela que, sem abandonar a dimensão lúdica e fruitiva, caminha em direção ao essencial humano; enquanto a atividade informativa, ao contrário, versa sobre o efêmero, o passageiro, o circunstancial. A discussão aponta, assim, para um quadro em que a urgência com que a atividade jornalística é praticada, bem como suas características restritivas e padronizadas, fazem com que se deixe de abordar aspectos essenciais, verdadeiramente importantes para a sociedade, para tratar das triviais questões mundanas.

Segundo Cristiane Costa (2005), apesar dos entraves quanto aos pretensos objetivos dos dois gêneros, o grande diferencial reside na linguagem. Na literatura, “a palavra não é vista como portadora de informação e sim de significação. Ela muda totalmente de estatuto. E a imaginação e a memória (pessoal e literária) atuam o tempo inteiro” (FERRAZ apud COSTA, 2005, p.202). Na imprensa, por sua vez, a linguagem pode ser empobrecida devido à falta de tempo útil para uma elaboração formal. Fatores como a padronização, o espaço predeterminado pela diagramação e a necessidade de comunicar a uma gama enorme de leitores podem levar o escritor a diminuir seu repertório ou, até mesmo, bloquear sua capacidade de expressão e imaginação.

Contudo, Nanami Sato (2005) acredita que o relato jornalístico, apesar de sua vocação para o “real”, da impessoalidade de seu discurso e da “objetividade” com que deve ser concebido, tem sempre contornos ficcionais. Para Sato, durante o processo de produção do texto jornalístico, “ao causar a impressão de que o acontecimento está se desenvolvendo no momento da leitura, valoriza-se o instante em que se vive, criando uma aparência do acontecer em curso, isto é, uma ficção” (SATO, 2005, p.31). Além disso, a autora ressalta que as fontes são o primeiro recurso para a captação de notícias, e que, frequentemente, tais fontes possuem posições esteriotipadas. Ao limitar-se somente à opinião de especialistas, o relato


jornalístico deixa de lado uma análise crítica do acontecimento, cedendo espaço, apenas, à linguagem como reforço, como redundância, por meio do relato das fontes.

Nanami Sato (2005) considera que o relato dos acontecimentos, por si só, representa a construção de um texto narrativo, atividade que Barthes (1973) já havia qualificado como simbólica e universal. Segundo Sato, a narrativa jornalística parece contígua ao fato, mas, ao se transformar em notícia, o acontecimento torna-se um texto submetido às categorias narrativas. As variações de jornal para jornal refletem a angulação de cada veículo, a edição, a relação repórter-realidade e variantes do universo da narração (SATO, 2005, p.32).

Vázquez Medel (2005) estabelece três critérios a ser levados em conta ao se discutir a relação entre jornalismo e literatura: 1) Funções internas da linguagem – No discurso jornalístico, prevalece a função referencial, uma vez que a funcionalidade informativa é articulada por meio da construção de discursos baseados em fatos reais, que correspondam a acontecimentos extradiscursivos. No discurso literário, por sua vez, existindo ou não a função referencial, deve dominar a função poética ou estética, que chama a atenção para o próprio texto e, por isso, tem maior liberdade referencial, porém maiores restrições expressivas; 2) Discursos factuais e ficcionais – No discurso jornalístico, o designatum (criação do significado) deve relacionar-se com o denotatum (a realidade que está fora do discurso). Já no discurso literário, o designatum cria seu próprio denotatum. Assim, os discursos factuais podem ser submetidos à prova da veracidade ou falsidade, o que não cabe aos discursos ficcionais, sendo que, nestes, o autor estabelece sua própria referência; 3) Coincidências entre as retóricas dos discursos jornalístico e literário – em função de a ficção usada na literatura basear-se em um pacto estético, e não em um pacto ético, de credibilidade, como acontece no jornalismo, podem ser criadas ficções fantásticas, puramente imaginativas; ou ficções realistas, baseadas em uma verossimilhança que se aproxima do discurso factual.

Sebastião Geraldo Breguêz (1996) cita a classificação de José Luís Martinez Albertos quanto aos três estilos do jornalismo e seus respectivos gêneros: 1) Informativo – informação, reportagem, crônica; 2) De solicitação de opinião – artigo, comentário, editorial; 3) Ameno – Gêneros literários não especificamente jornalísticos: novelas, contos, humor, ensaio, narração de costumes. Dentre os gêneros, com exceção da notícia (informação), todos podem incorporar elementos literários e ficcionais, principalmente a crônica, gênero de notória riqueza e complexidade. Nanami Sato (2005) considera a crônica como um gênero de estatuto


ambíguo, que se aproxima da opinião, da notícia e da narrativa ficcional. Para Sato, “a marca subjetiva lhe confere singularidade, opondo-se à aparente impessoalidade da notícia” (SATO, 2005, p.33).

Na visão de Daniel Piza (2005), no caso da produção jornalística brasileira, alguns gêneros que se aproximam da narrativa literária são esquecidos e mal praticados pelos jornais da atualidade. Perfis, resenhas, colunas generalistas, reportagens impressionistas e ensaios curtos são exemplos de gêneros que poderiam ser incorporados de forma mais satisfatória ao jornalismo. O autor deixa claro que, na atual idade, quando, devido ao advento tecnológico, as informações são cada vez mais fugazes e efêmeras, a diferenciação da escrita é que deverá manter a atenção do leitor. Para Piza (2005), a exigência da objetividade e da homogeneidade no texto jornalístico não pode justificar que as notícias sejam escritas de modo rudimentar e reducionista, excluindo da narrativa as características autorais.

Apesar de não se concluir categoricamente que o jornalismo seja um gênero literário, é fatídico que a atividade jornalística, se desenvolvida de forma criativa, incorporando elementos literários, torna-se mais atrativa ao leitor e se afasta do chamado “jornalismo bege”, que apenas enumera os fatos sem qualquer atrativo textual. Como conta Vázquez Medel (2005), o renomado escritor e jornalista Gabriel García Márquez, ao ser questionado sobre a relação entre o jornalismo e a literatura, afirmou: “O ideal seria que a poesia fosse cada vez mais informativa e o jornalismo cada vez mais poético. Um ideal que, como pode observar-se nos bons criadores do jornalismo moderno, parece haver-se cumprido” (MÁRQUEZ apud MEDEL, 2005, p.20). Também em relação à funcionalidade que a relação jornalismo X literatura pode representar, Daniel Piza (2005) conclui que a literatura deve perder o medo da realidade, enquanto o jornalismo “deve perder a submissão ao que considera ser a realidade, a submissão às fontes oficiais e ideológicas sobre os fatos, para conseguir ir além deles” (PIZA, 2005, p.137).

3.5 Livro-reportagem: a expansão do jornalismo convencional

Além dos gêneros jornalísticos já citados, que se aproximam do estilo opinativo e flertam com a narrativa ficcional, outro tipo de produção jornalística, em que a forma e o conteúdo podem ter mais liberdade em relação às amarras do gênero informativo, é o livro-reportagem.


Edvaldo Pereira Lima (1993), em O que é livro-reportagem, indica as principais características deste gênero de produção jornalística. Em sua visão, o livro-reportagem é um produto cultural interessante: um veículo de comunicação não-periódico que ultrapassa os limites do jornalismo tradicional e seu modus operandi.

Portanto, o livro-reportagem caracteriza-se como o meio de comunicação que, através da grande-reportagem, amplia a informação dos fatos abordados. O gênero tem, dessa forma, o papel de preencher lacunas deixadas pelo jornalismo cotidiano, permitindo que sejam conhecidas as particularidades temporais e contextuais do objeto ou do acontecimento tratado. Em Páginas Ampliadas – O livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura (1995), o mesmo Edvaldo Pereira Lima anota que o livro-reportagem representa um subsistema de jornalismo. Todavia, apesar de usufruir de ferramentas da produção jornalística convencional, o gênero possui especificidades que o diferenciam de qualquer outra publicação.

Pereira Lima (1995) ressalta que o livro-reportagem distingue-se de outras produções jornalísticas por três condições essenciais: conteúdo, forma e função. Em relação ao conteúdo, o objeto de que trata o livro-reportagem corresponde ao real, é inteiramente factual, não havendo qualquer influência da ficção. Quanto ao tratamento textual, no que se refere à linguagem, montagem e edição, o livro-reportagem é eminentemente literário. Apesar de conter particularidades da linguagem jornalística, oferece maior maleabilidade à forma do texto. Por fim, o livro-reportagem distingue-se no que se refere à função, uma vez que pode servir a distintas finalidades jornalísticas, que se desdobram do objetivo fundamental de informar, orientar e explicar.

Contudo, para atingir tal meta, o livro-reportagem pode trabalhar a narrativa de maneira extensiva, ao exercer abordagem multiangular da questão, praticando, assim, o jornalismo interpretativo; ou mesmo partindo de uma visão unilateral, ao defender um conjunto de idéias e princípios, o que se aproxima do jornalismo opinativo. Assim, Pereira Lima (1995) classifica como características primárias e secundárias do livro-reportagem a busca pelo aprofundamento da realidade e a direção tomada por este aprofundamento, respectivamente. O autor afirma que, enquanto gênero, o livro-reportagem não segue uniformidade rígida de suas características secundárias, embora se atenha às primárias. Assim, por meio da liberdade de escolha da pauta, consegue-se identificar a otimização qualitativa do livro-reportagem, a


partir do momento em que rompe com os dois principais carrascos do jornalismo diário: a atualidade e a periodicidade. Na visão de Pereira Lima (1995), o livro-reportagem é fruto da inquietude do jornalista – um produto que pode fornecer abordagem multiangular de determinado tema. Uma vez que o profissional não encontra, nos demais gêneros de produção jornalística, o espaço para opinar e discorrer sobre temas que o interessam, o livro-reportagem torna-se fruto do desejo de explorar todo o potencial oferecido pelos conhecimentos jornalísticos, enriquecendo-os e complementando-os com recursos literários e estéticos.

3.5.1 Os elementos da grande-reportagem

A grande-reportagem diferencia-se, como gênero de produção jornalística, pelos recursos estilísticos a que o jornalista pode usufruir para compor seu relato, e pelos instrumentos jornalísticos utilizados para tal, assim como pela extensão e aprofundamento necessários. Pereira Lima (1995) afirma que, para que a construção de uma reportagem seja completa, são necessários suportes como o contexto no qual o acontecimento se insere; os antecedentes do fato em questão; a projeção futura dos acontecimentos; e o perfil do tema ou do personagem tratado. O jornalismo interpretativo usa tais suportes para fornecer leitura ampla da contemporaneidade, não se contentando em reproduzir acontecimentos sem profundidade ou relevância.

Acerca do processo de produção da grande-reportagem, Pereira Lima (1993) afirma que ele se dá por meio das mesmas etapas da notícia: pauta, captação, redação e edição. Sobre a pauta, lembra que ela tem a função de “localizar, delimitar, identificar e tratar de um conflito básico ou um conjunto de conflitos relacionados que banham o interior de qualquer tema” (LIMA, 1995, p.34). A pauta da grande-reportagem, porém, é mais abrangente e apresenta vantagens em relação à pauta jornalística comum. Trata-se de liberdade temática, liberdade de fontes, liberdade temporal, liberdade do eixo da reportagem e liberdade de propósito. Tais “liberdades” possibilitam investigação mais aprofundada da questão e ampliação da escolha de abordagens e objetivos, além da quantidade e dos tipos de fontes que serão ouvidas.


O autor comenta, ainda, a função da entrevista investigativa, que busca, por meio de informações coletadas em on e off, fazer denúncias consistentes. Sobre a confrontaçãopolemização, explica que pode ser materializada em forma de debate, em que fontes de opiniões distintas são simultaneamente entrevistadas. Em relação ao perfil humanizado, Pereira Lima (1993) afirma ser uma proposta de compreensão mais ampla da fonte, sob diferentes aspectos, como histórias de vida, comportamento, valores e conceitos.

Quanto às histórias de vida e à observação participante, o autor ressalta que estes recursos das ciências sociais podem ser utilizados para aproximar o leitor da biografia apresentada no livro-reportagem, além de traçar um caráter mais profundo, psicológico e sociológico, do tema tratado. Mas não é apenas das ciências sociais que o livro-reportagem busca contribuições. Em relação à redação da grande-reportagem, a literatura também é uma primordial fonte inspiradora.


4 A CONTRACULTURA E O NOVO JORNALISMO

4.1 Visões de uma era: contracultura nos anos 60-70

Guru do ácido lisérgico nos anos 1960, o psicólogo Dr. Timothy Leary, um dos mais importantes ícones da contracultura no mundo, ressalta, no prefácio do livro Contracultura através dos tempos (2007), de Ken Goffman e Dan Joy:

A contracultura floresce sempre e onde quer que alguns membros de uma sociedade escolham estilos de vida, expressões artísticas e formas de pensamento e comportamento que sinceramente incorporam o antigo axioma segundo o qual a única verdadeira constante é a própria mudança. A marca da contracultura não é uma forma ou estrutura particular, mas a fluidez de formas e estruturas, a perturbadora velocidade e flexibilidade com que surge, sofre mutação, se transforma em outra e desaparece. A contracultura é a crista movente de uma onda, uma região de incerteza em que a cultura se torna quântica. (LEARY, 2007, p.9).

Dessa forma, Tim Leary ressalta que a contracultura é o conjunto de ações e expressões contrárias à ordem vigente, que contestam o que é visto como comum, correto e verdadeiro. Ken Goffman (2007) afirma que as contraculturas são movimentos de vanguarda transgressivos, em que “o apego contracultural à mudança e à experimentação inevitavelmente leva à ampliação dos limites estéticos e das visões aceitas” (GOFFMAN, 2007, p.54). Para Goffman, apesar de se caracterizar pelo individualismo, pela comunicação aberta e irrestrita e pelo anti-autoritarismo, as contraculturas são estabelecidas por meio do momento histórico no qual estão inseridas. O autor pontua, entretanto, características “quase universais” da contracultura, tais como: Rupturas e inovações em arte, ciência, espiritualidade, filosofia e estilo de vida; Diversidade; Comunicação verdadeira e aberta e profundo contato interpessoal, bem como generosidade e a partilha democrática dos instrumentos; Perseguição pela cultura hegemônica de subculturas contemporâneas; Exílio ou fuga (GOFFMAN, 2007, p.54).

Assim, as inovações revelam-se políticas, espirituais, filosóficas e artísticas, mas difíceis de ser classificadas. Dan Joy (2007) complementa o parecer de Goffman ao afirmar que somente a grande inovação não constitui, em si, uma contracultura, pois “a verdadeira contracultura é movida por um impulso muito mais profundo do que apenas o desejo de inovar ou derrubar convenções” (JOY, 2007, p.17).


Segundo Joy, a contracultura deve ser vivida, e não construída ou produzida. Se for concebida com base em seus potenciais frutos e contribuições, sejam eles artísticos, políticos ou espirituais, a contracultura perde sua razão de ser, ao afirmar que “os artifícios de uma determinada contracultura são subprodutos, não produtos finais de uma vida contracultural” (JOY, 2007, p.18). Quanto à origem do impulso contracultural, Tim Leary (2007) acentua que a contracultura pode surgir, muitas vezes, por meio de grupos políticos revolucionários e radicais. Contudo, o que a interessa é o poder das idéias, das imagens e da expressão artística, e não a obtenção de privilégios pessoais e políticos. Quanto ao nascimento da contracultura, Tim Leary ressalta o “fenômeno perene, provavelmente tão velho quanto a civilização e possivelmente tão velho quanto a própria cultura” (LEARY, 2007, p.10). Da Grécia Antiga aos dias de hoje, uma série de movimentos caracterizaram a tentativa de ruptura da ordem, a exemplo da contracultura socrática, do taoísmo, do zen-budismo, do Iluminismo, da atuação dos jovens em Paris, nos ano 1920, ou os beatniks norte-americanos nos anos 1940. A partir de tais exemplos, Goffman pontua que “o espírito contracultural fundamental se reinventa perpetuamente de formas imprevisíveis, estilos chocantes e novos modelos” (GOFFMAN, 2007, p.47). Todavia, apesar de ser caracterizada pelo rompimento, a contracultura também assume um papel enquanto tradição histórica. Segundo Dan Joy (2007), a contracultura é “ruptura” por definição, mas também é uma espécie de tradição. Tradição em romper com a tradição, ou de atravessar tradições do presente de modo a abrir uma janela para aquela dimensão mais profunda da possibilidade humana que é a fonte perene do verdadeiramente novo – e verdadeiramente grandioso – na expressão e no esforço humano. Dessa forma, a contracultura pode ser uma tradição que ataca e dá início a quase todas as outras tradições. (JOY, 2007, p.13).

Para Joy (2007), existem três tipos de ligação que organizam as contraculturas em uma tradição contínua: o contato direto, o contato indireto e a ressonância. No primeiro caso, os integrantes de uma determinada contracultura interagem diretamente com participantes de outra, arrecadando influências individuais diretas e amplificando o impulso contracultural. O contato indireto, por sua vez, traduz-se pela influência e inspiração transmitidas de uma a outra através de registros, lendas e obras de arte. A ressonância, entretanto, é um tipo de transmissão cuja fonte é um mistério. Caracteriza-se pela semelhança entre registros e idéias de diferentes contraculturas que não tiveram quaisquer indícios de contato direto ou indireto.


Sendo assim, por contato direto dos beatniks, ou ressonância dos iluministas franceses, os ideais defendidos nos anos 1960, durante o nascimento da cultura hippie, iriam atingir o apogeu da história da contracultura moderna. Durante toda aquela década, a repugnância, a descrença e o inconformismo quanto ao comportamento, à cultura e à política vigentes atingiram proporções jamais vistas, fundindo-se em uma busca incessante por identidade pessoal, em ampla contestação de valores e em abrupta mudança de costumes.

Principalmente nos Estados Unidos, a influência das drogas e a curiosidade pelos estados alterados de consciência chegavam a seu estado pleno; os ideais de amor livre quebravam tabus e chocavam os conservadores; os protestos anti-guerra começavam a incomodar e a explosão criativa atingia todos os campos culturais, filosóficos e políticos. O barulhento legado da década de 1960 iria transformar o modo de convivência entre pessoas de diferentes opiniões e hábitos.

4.1.1 O movimento hippie

Em 1960, nos Estados Unidos, o democrata Jonh F. Kennedy assumia a presidência, em substituição ao general republicano Dwight D. Eisenhower. Kennedy não era particularmente liberal, mas sua imagem jovial, sua relação com artistas boêmios e empresários da comunicação, bem como sua sintonia com a nova geração de jovens idealistas e a simpatia por movimentos pelos direitos civis, conferiam ao presidente um ar alternativo.

Segundo Goffman, em 1962, apesar do momento de esperança e renovação, dois acontecimentos “se mostrariam os pontos de lançamento de grandes movimentos que mais tarde iriam convergir para o divino caos que foi o final dos anos 60” (GOFFMAN, 2007, p.274). O primeiro marco remonta à Universidade de Harvard, que, por pressão da CIA, demitiu os professores Richard Alpert e Timothy Leary. O acontecimento fez com que fosse dada publicidade às drogas psicoativas e despertou um sentimento de rebeldia nos estudantes universitários de todo os EUA. Ainda naquele ano, um grupo de universitários, incluindo o jovem Tom Hayden, de 22 anos, reuniu-se e escreveu a declaração de Port Huron, que definiu a política da esquerda pós-comunista, baseada em elementos da “democracia participativa, conceitos de existencialistas de identidade individual formados por intermédio do ativismo e alienação jovem” (GOFFMAN, 2007, p.274).


Anos antes, Tim Leary e Richard Alpert haviam começado a estudar os efeitos psicoterapêuticos da psilocibina (cogumelos mágicos), apoiados nas idéias do escritor Aldous Huxley, suscitando o interesse do poeta beat Allen Ginsberg, e de seu antigo amante e também poeta Peter Orlovski, pelas experiências. Ginsberg já havia sentido os efeitos de drogas como mescalina e peiote e resolveu tornar-se “porquinho da Índia” do projeto dos professores de Harvard. Outros escritores beats, como Jack Kerouac, William Burroughs, Neal Cassady e Gary Snyder, também envolveram-se com os experimentos com psilocibina e, posteriormente, com o LSD, descoberto acidentalmente pelo cientista e ativista hippie Albert Hoffman em 1943. Leary e Ginsberg começaram a disseminar o uso do LSD, o que despertou a atenção da CIA, que interferiu na administração de Harvard e demitiu os dois professores. Naquele mesmo ano, os estudantes da SDS – Students for a Democratic Society –, escrevem a Declaração de Port Huron, que assumia posição contrária à Guerra Fria e ao preconceito racial disseminado no sul dos EUA, e determinava a visão política da Nova Esquerda.

4.1.2 Os hippies

A figura do hippie começava a ser construída, e havia um cenário que favorecia a manifestação contracultural. Em oposição à paranóia militarista gerada pela Guerra Fria, as heranças anti-autoritárias deixadas pelos beatniks resultaram em elementos absurdos e inovadores no campo da literatura e do comportamento. O cenário cultural compunha-se por filmes de Stanley Kubrick, como Dr. Fantástico (1964), que desrespeitou o establishment militar e político dos EUA com humor e sarcasmo; livros como O apanhador no campo de centeio (1951), de J.D. Sallinger, que vai influenciar a criação da cultura jovem; artistas pop como Andy Warhol, Roy Linchtenstein e Bridget Riley; a música de Bob Dylan, que iria se tornar o maior ícone do movimento hippie, ao lado da banda Grateful Dead, com sua tendência esquerdista e música folk; e dos Rolling Stones e dos Beatles, que começavam a flertar com o rock psicodélico e o movimento hippie. Os Beatles iriam se transformariam, posteriormente, em um dos pilares do movimento, com canções de John Lennon e George Harrison altamente influenciadas pelo LSD e fruto do contato com Timothy Leary.

Outra figura curiosa, o romancista Ken Kesey, e seus Merry Pranksters, chamava a atenção para o modo inusitado de divulgação e contato com as drogas psicodélicas. Ele havia sido cobaia em estudos sobre os efeitos psicológicos do LSD em um hospital e escreveu o livro


Um estranho no ninho (1962), adaptado para o cinema por Milos Forman em 1975, que conta a história de um ataque de loucura contra a instituição autoritária em um manicômio. Kesey e os Pranksters eram barulhentos e alucinados, e quebravam a alienação e a melancolia que marcavam a manifestação beatnik. Boêmios migravam do reduto beatnik de North Beach para o distrito de Haight-Ashbury, que começava a ser freqüentado por alguns hipsters, e que se tornaria o palco do caos da revolução psicodélica. Os novos hipsters falavam de amor, de comunhão, de êxtase. E catalisavam esse pavio transcendente com a experiência psicodélica do LSD, em uma época em que a figura excêntrica do químico Owlsey Stanley garantia, aos hippies de Haight-Ashbury, doses de uma droga extremamente forte e limpa. O som que marcou a época, apesar da influência do folk e de jazzmen, como Charlie Parker e Miles Davis, foi o rock’n’roll.. Kesey e os Pranksters iniciavam os “Testes de Ácido”, eventos em que acontecia o consumo público do LSD – os happenings. Eles saíam a bordo de um ônibus escolar customizado, com pinturas coloridas e psicodélicas, dirigido pelo poeta e ícone beat Neal Cassady. A viagem pelas cidades dos EUA tinha como objetivo a realização dos “testes”, sempre ambientados por luzes e projeções de cores pulsantes e imagens peculiares, além do rock/folk tocado pelos Warlocks, que, posteriormente, iria se chamar Grateful Dead – banda liderada pelo guitarrista Jerry Garcia. Tais experiências foram documentadas pelo jornalista Tom Wolfe em um dos grandes livros do Novo Jornalismo, O Teste do Ácido do Refresco Psicodélico (1968). Paralelamente às táticas de choque de Kesey, Timothy Leary continuava a oferecer ambientes serenos, que permitissem a calma introspecção para explorar estados alterados de consciência. A atenção de músicos e artistas pelos experimentos de Leary continuava. Participavam das experiências ícones como Andy Warhol (e atores, modelos e moradores da Pop Art Factory), e também, por meio do inglês Michael Hollingshead, a quem Tim Leary presenteou com cinco mil doses de LSD, ingleses como Eric Clapton, The Who, Stones e Beatles. Contudo, nos EUA, o cenário de Haight-Ashbury – selvagens lunáticos jogando-se em festas com luzes, barulho, nudez, sexo e muitas drogas – começava a incomodar e provocar investigações do FBI, além de matérias cada vez mais alarmantes na imprensa. Começavam a ser aprovadas leis que proibiam o LSD em vários estados americanos e, em 1966, quando foi votada a lei que proibia o consumo e a venda de LSD na Califórnia, milhares de “doidões” foram às ruas protestar e celebrar a expansão psicodélica. Entre eles, os Hell’s Angels, gangue de motoqueiros suja e violenta que se introduziu no movimento, mas representava perigo; e os


diggers, hippies radicais e anarquistas que não se encantavam com as filosofias learyanas ou kesesyanas, e acreditavam na auto-sustentação, independentemente dos meios para tal, fossem roubos ou esmolas.

Além de Leary e Kesey, os donos do jornal alternativo de Haight-Ashbury, The Oracle, também queriam mudar o mundo. Com o intuito de celebrar e difundir a cultura hippie, eles decidiram promover o festival “Human Be-In”, no Parque Golden Gate. Como afirma Goffman (2007), o festival foi divulgado como uma “Reunião de tribos” ou “Dança da paz a ser celebrada com os líderes de nossa geração”, e reuniu cerca de 15 mil hippies, que compareceram chapados e sorridentes para ouvir as idéias de Tim Leary, dos poetas Allen Ginsberg e Gary Snyder e de Jerry Garcia. Após cobertura exaustiva do Be-In, a mídia só falava dos tais hippies, que ficaram conhecidos em todo o país.

A ampla divulgação e espetacularização do Be-In e do movimento hippie fez com que fosse divulgado, no San Francisco Chronicle, que, segundo informações de um digger, durante o verão de 1967, cerca de 100 mil jovens hippies iriam sitiar São Francisco. O boato foi amplamente divulgado pelos veículos de comunicação, fazendo com que se tornasse verdadeiro e ocasionasse o famoso “Verão do Amor”, quando milhares de jovens alucinados de LSD migraram para Haight-Ashbury. Em uma cidade sem estrutura para suportar o fenômeno, o que se viu foram jovens perdidos e confusos, passando por dificuldades e participando, cada vez mais, de experiências com drogas psicoativas mais e mais pesadas. Contudo, com o evento, a filosofia “paz e amor” e a mudança comportamental foram difundidas mundialmente. Bandas de rock psicodélico, como The Jimi Hendrix Experience, Procol Harum e Jefferson Airplane, contribuíam para solidificar a cultura hippie.

No cenário político, o crescimento da Nova Esquerda prosseguia, com o Movimento pela Liberdade de Expressão e a oposição em relação à Guerra do Vietnã. No entanto, os revolucionários culturais eram afetados pela mudança do beatnik para o hippie. Radicais adotavam discurso mais agressivo, enquanto hippies debochavam do establishment. Quando Ken Kesey foi convidado a participar, em 1965, de um protesto em Oakland, ao contrariar os oradores anteriores, que gritaram os ideais de oposição, declarou à platéia: “vocês não vão interromper essa guerra (...) marchando. (...) Isso é o que eles fazem”. Ele sugeriu que eles “olhassem para a guerra, então dessem as costas e dissessem (...) Foda-se” (KESEY apud GOFFMAN, 2007, p.300).


Contudo, apesar de 1967 ser considerado o “ano do movimento hippie”, no início daquele período, apenas 10% da população opunha-se à Guerra do Vietnã, o que mostrava um quadro frustrante em relação ao próprio movimento. Como afirma Goffman, “isso essencialmente dizia respeito à descoberta de que eles não estavam apenas fora do establishment, eles verdadeiramente estavam pessoalmente desligados das próprias questões com as quais se preocupavam tanto” (GOFFMAN, 2007, p.303). Paralelamente, o estilo de vida anarquista dos hippies estava no auge e os novo-esquerdistas começavam a abandonar a luta política e a se entregar ao “foda-se” de Kesey. Os diggers proliferavam-se e determinavam uma contracultura cada vez mais selvagem, fazendo com que, em 1967, os novos-esquerdistas perdessem o seu momentum cultural.

4.1.3 O declínio

Com a entrada de Richard Nixon e de seu vice Spiro Agnew no comando da presidência norte-americana, em 1969, o declínio do movimento hippie passou a ser cada vez mais notório. Em 1968, nos EUA, Tim Leary, Ken Kesey e integrantes do Grateful Dead enfrentam várias acusações por porte de maconha. Na Inglaterra, Mick Jagger, Brian Jones, Marianne Faithfull, Eric Clapton, Keith Richards, John Lennon, Yoko Ono e George Harrison são presos por pequenas quantidades de maconha ou haxixe. Revelada após investigações do caso Watergate, a Cointelpro era uma lista de 250 mil novos-esquerdistas, além de líderes hippies, astros do rock e personalidades, que, com a entrada de Nixon, foram sujeitados à estrita vigilância do FBI. O presidente também tinha uma “lista de inimigos” particular, que reunia a maioria de seus críticos, a exemplo de Hunter Thompson.

Apesar da arrogância de hippies que tinham certeza de que sua ideologia seria o caminho a ser seguido no futuro, a severidade da reação, que contava com batidas policiais diárias em freaks cabeludos, fez com que o momento assumisse, para os esquerdistas, e mesmo para alguns hippies, caráter revolucionário. Como ressalta Goffman, “a nova palavra era revolução... por quaisquer meios que fossem necessários, e ela deixou de ser sussurrada para ser gritada” (GOFFMAN, 2007, p.312).


O ideal revolucionário do ano de 1968 tem seu apogeu de onde não se esperava. Em Paris, na França, jovens já tomados pela postura anarquista da esquerda, resolvem fazer protestos contra a Guerra do Vietnã e são impedidos pela polícia francesa. O que ocorreu, em seguida, foi, como afirma Goffman, “uma violenta batalha campal, durante a qual os estudantes lutaram tão firme e duramente quanto os tiras” (GOFFMAN, 2007, p.312). A batalha deixou centenas de feridos e fez com que a França explodisse em greves de trabalhadores, revolta e participação democrática das classes média e alta, ideais radicais e anarquistas e estudantes em oposição ao sistema. Contudo, o ocorrido fez com que um milhão de direitistas, entre neonazistas e fascistas, tomassem as ruas em uma contra-revolução. Nunca mais a França impediu protestos de estudantes. Enquanto isso, o SDS ocupava a administração da Universidade de Colúmbia, fazendo “soar as trombetas da intenção revolucionária” (GOFFMAN, 2007, p.314). Albert Hoffman e Jerry Rubin criavam a organização “Yippie!” e pregavam brincadeiras subversivas no âmbito político, por meio da imprensa. Os meios de comunicação começaram a dar atenção a eles, e Hoffman passa a acreditar na mídia como divulgadora espontânea de suas intervenções: “A mídia é de graça. Não pague anúncios. Crie notícias” (HOFFMAN apud GOFFMAN, 2007, p.316). O maior acontecimento yippie foi o “Festival da Vida”, que aconteceu durante a Convenção Nacional do Partido Democrata em Chicago. Os guetos explodiam como nunca, pois Martin Luther King tinha sido assassinado. O partido negro revolucionário Panteras Negras havia representado um ícone contracultural à sua medida, mas seus membros viviam uma realidade bem mais dura que a dos hippies. Os grandes líderes tornaram-se heróis populares nos guetos, freqüentemente em confronto com a polícia. Soldados no Vietnã começavam a adotar atitudes contraculturais, fumando maconha e tomando LSD na tentativa de encontrar sentido para a guerra, em meio ao caos da selva vietnamita.

Em 1969, dois acontecimentos marcariam o cenário contracultural. O primeiro é o show de encerramento da turnê “Gimme Shelter”, dos Rolling Stones, no Altamont Free Concert, em 6 de dezembro de 1969, na Califórnia, em que morreu o jovem negro de 18 anos, Meredith Hunther. Ao som de "Under My Thumb", após ter mostrado uma arma, ele foi espancado e esfaqueado em frente ao palco por um motoqueiro dos Hell's Angels, que foram escalados para fazer a segurança do evento.


O segundo, em contraste, é o festival de Woodstock, realizado em uma fazenda em Bethel, Nova Iorque, durante os dias 15, 16 e 17 de agosto de 1969. Embora o evento tenha sido projetado para 50.000 pessoas, 400 mil hippies compareceram, superlotando a cidade. O festival marca o ápice musical da era hippie, com nomes como Santana, Jimi Hendrix, Jefferson Airplane, Ravi Shankar, Janis Joplin, Grateful Dead, The Who, Creedence Clearwater Revival e Crossby, Stills, Nash & Young. O festival representava uma esperança e, ao mesmo tempo, celebrava o fim: Albert Hoffman sobe ao palco louco de ácido e toma uma guitarrada de Pete Towshed, do The Who.

Em 1970, o ato final se daria no momento em que Nixon amplia a guerra contra o Vietnã, ao enviar vinte mil soldados americanos para o Camboja. Todos os campi universitários do país explodiram em protestos. No dia 4 de maio, em Ohio, na Universidade Kent State, manifestantes pacifistas incendiaram e atacaram edifícios das forças armadas e foram surpreendidos com tiros, que mataram quatro pessoas. Mais uma vez, o furor revolucionário renascia. Vários outros prédios foram incendiados, dezenas de escolas secundárias entraram em greve e os ideais novo-esquerdistas voltaram à tona. Contudo, após o verão de 1970, como conta Goffman, “a revolução nunca voltou” (GOFFMAN, 2007, 332). A maioria dos ícones contraculturais, defensores da revolução, estavam presos. O que restava da esquerda freak hippie eram slogans de libertação: “Libertem Timothy Leary”; “Libertem Huey”; “Libertem John Sinclair”; entre outros. Na música, Jonh Lennon representava o que restou da força da consciência jovem. Porém, nem mesmo um exbeatle conseguiria trazer de volta os movimentos de protesto. Lennon, portanto, buscou inserir-se no sistema para tentar mudá-lo, nas eleições presidenciais de 1972. Como ele, Albert Hoffman, Rubin e Hunter Thompson apoiaram George McGovern, que acabou por tornar-se um candidato contracultural com a entrada de freaks no Partido Democrata. Contudo, McGovern perdeu para Nixon por uma diferença de 60% a 37%.

O período entre 1970 e 1972 marca o fim da contracultura hippie e o começo da contracultura hedonista e niilista dos anos 1970, marcada por glam rock X punk rock, drogas pesadas e degradantes e total descrença e alienação quanto ao establishment. O que aconteceu durante o início dos anos 1960, até o fim dos 1970, marcaria o ápice da manifestação contracultural e influenciaria vários outros movimentos. Como conclui Hunter Thompson, em Medo e Delírio em Las Vegas (2007):


San Francisco na metade dos anos 60 era um lugar muito especial para estar, em um tempo muito especial para viver. Talvez tenha significado algo. Talvez não, no fim das contas... mas nenhuma explicação, nenhuma combinação de palavras, músicas ou lembranças é comparável à sensação de saber que você esteve lá, que viveu naquela parte do mundo aquele momento. Seja lá o que isso tenha significado... (THOMPSON, 2007, p.72).

Para Goffman (2007, p.336), a visão central dos jovens dos anos 1960 era a de que “a ‘revolução’ em si iria inspirar evoluções pessoais e coletivas de forma massiva”. Essa visão, apesar de utópica, transformaria toda a história, ao mostrar a possibilidade de ir contra os limites e buscar estilos de vida alternativos. “Tanto os estilos quanto os conteúdos do período radical da contracultura moderna continuam conosco hoje”, comenta Goffman (2007, p.137), ao tratar da contribuição do movimento hippie para os cenários social, cultural e político. Apesar de confuso, o período atingiu um questionamento à autoridade jamais visto até então e, mesmo sendo lembrado pela visão romântica, marcou-se como referência de extremismo e intensidade nos movimentos contraculturais.

4.2 Novo Jornalismo e contracultura

Nos mesmos anos 1960, o jornalismo também passava por transformação. Como anteriormente comentado, o ano de 1962 notabilizou-se como o marco de uma época de intensas mudanças e transgressões. Coincidentemente, neste mesmo ano, o jornalista Tom Wolfe entrava para o New York Herald Tribune como “escritor de reportagens especiais”. Segundo Wolfe, a expressão “reportagem especial” era usada para definir “uma matéria que escapava à categoria da notícia pura e simples. Abrangia tudo, desde pequenos fatos ‘divertidos’, engraçados, geralmente do movimento policial...” (WOLFE, 2005, p.13).

Neste hall de jornalistas do Herald Tribune, também havia Charles Portis, Dick Schaap e Jimmy Breslin. Wolfe (2005) conta que o sonho em comum compartilhado por tais profissionais, era o de conseguir escrever um romance. Portanto, as reportagens especiais tinham caráter literário. Tratava-se de textos mais soltos que as matérias convencionais, com detalhes e descrições cena a cena de ambientes e diálogos. Aqueles jornalistas, segundo Wolfe, estavam envolvidos em uma competição mais acirrada do que a disputa motivada pelo furo jornalístico. No Times, havia Gay Talese e Robert Lipsyte, e no Daily News, Michael Mok.


Contudo, aos poucos, o romance perdeu seu lugar de destaque, sua posição tão desejada pelos escritores de reportagens especiais, enquanto surgia uma nova e curiosa idéia que, segundo Tom Wolfe, “roubaria do romance o lugar de principal acontecimento da literatura” (WOLFE, 2005, p.19). Tal idéia partia da premissa de que era possível fazer jornalismo para ser lido como literatura. Ao ler uma matéria de Gay Talese sobre o lutador Joe Louis, que começava com um diálogo aparentemente inútil entre ele e sua esposa, Wolfe diz ter percebido que havia a possibilidade de realizar um relato jornalístico que se aproximasse do conto de nãoficção.

Após várias matérias de Breslin, e do artigo The kandy-kolored tangerine-flake streamline baby, de Tom Wolfe – que marcou seu estilo ao utilizar onomatopéias, trechos de memórias, risos, conversas e detalhes –, ficou claro que seria possível, na não-ficção, no jornalismo, usar recursos literários, dos dialogismos tradicionais do ensaio ao fluxo de consciência, além de “muitos tipos diferentes ao mesmo tempo, ou dentro de um espaço relativamente curto para excitar tanto intelectual como emocionalmente o leitor” (WOLFE, 2005, p. 28). Nascia, assim, a excitação artística apelidada como “Novo Jornalismo”. Tom Wolfe diz que nunca gostou muito do termo, pois concede ao Novo Jornalismo um ar de movimento, sem nunca ter assumido tal caráter. “Não era nenhum ‘movimento’. Não havia manifestos, clubes, salões, nenhuma panelinha; nem nenhum bar onde se reunissem os fiéis, visto que não era nenhuma fé, nenhum credo”. (WOLFE, 2005, p.40). Segundo Felipe Pena (2006), o que proporcionou o advento do Novo Jornalismo, na década de 1960, foi “a insatisfação de muitos profissionais da imprensa com as regras de objetividade do texto jornalístico, expressas na famosa figura do lead” (PENA, 2006, p.53). A afirmação de Pena pode ser atestada, com ressalvas, pelo célebre parecer de Tom Wolfe sobre a produção jornalística realizada em sua época:

Os leitores choravam de tédio sem entender por quê. Quando chegavam de novo àquele tom de bege pálido, isso inconscientemente os alertava de que ali estava de novo aquele chato bem conhecido, ‘o jornalista’, a cabeça prosaica, o espírito fleumático, a personalidade apagada, e não havia como se livrar do pálido anãozinho a não ser parando de ler. Isso nada tinha a ver com objetividade e subjetividade, ou com assumir uma posição ou ‘compromisso’ – era uma questão de personalidade, de energia, de tendência, de bravura... numa palavra, de estilo... A voz-padrão do autor de não-ficção era como a voz-padrão do locutor...arrastada, monótona... (WOLFE, 2005, p.32).


Entretanto, fruto de um impulso contracultural, da vontade de transgredir os padrões, nascia o novo estilo literário que não partia da ficção, mas mantinha sua inspiração nos acontecimentos do cotidiano, matéria-prima do jornalismo. Tal estilo chamava a atenção por sua forma, marcada pelo exuberante uso de pontos, travessões, pontos de exclamação e interjeições, gritos, palavras sem sentido, onomatopéias, mímeses, pleonasmos, entre outros. Felipe Pena (2006) cita os elementos básicos enumerados por Tom Wolfe em seu artigo The New Journalism (1973) para definir os elementos que caracterizavam o estilo: “reconstruir a história cena a cena; registrar diálogos completos; apresentar as cenas pelos pontos de vista de diferentes personagens; registrar hábitos, roupas, gestos e outras características simbólicas do personagem” (WOLFE apud PENA, 2006, p.54).

Todavia, esta nova expressão artística, que tinha o jornalismo como principal ponto de partida, segundo Wolfe, apesar de ter surgido de forma despretenciosa, iria provocar, a inveja tanto de jornalistas como de “homens das letras” após a publicação de um livro que marcará esse momento do jornalismo nos anos 1960. Trata-se de A Sangue Frio (1966), de Truman Capote, romancista que retomava sua carreira ao explorar os instrumentos do Novo Jornalismo. Como afirma Tom Wolfe (2005, p.45), o livro representou “um baque terrível para todos aqueles que esperavam que o maldito Novo Jornalismo ou Parajornalismo se esgotasse como uma moda”. A Sangue Frio contava a história de dois vagabundos que mataram uma rica família rural em Kansas. Publicada inicialmente em capítulos no The New Yorker, em 1965, e editada em livro um ano depois, a história fez grande sucesso, e refletiu o bom momento vivido pelo jornalismo.

O gênero ainda nascia em um terreno extremamente fértil, durante os anos 1960. Como afirma Wolfe, trata-se de “uma das décadas mais excepcionais da história americana em termos de costumes e moral” (WOLFE, 2005, p.50). Tom Wolfe conta que não acreditou no cenário que viu ao chegar à Nova Iorque dos anos 60, que lembrava “um pandemônio com um grande sorriso” (WOLFE, 2005, p.51). Contudo, o autor não sabia o impacto que teria ao chegar à Califórnia. Com os hipsters à solta, e o início da contracultura hippie, Tim Leary, Ginsberg e Kesey ambientavam a cidade, dando início a uma grande revolução contracultural. Tom Wolfe afirma que a maior produção do Novo Jornalismo, no ano de 1966, viria de um


jornalista obscuro da Califórnia, o caipira Hunter S. Thompson, que trataria em livro1 outro ícone do movimento: a gangue de motoqueiros violentos Hell’s Angels.

4.3 Hunter Thompson e o Jornalismo Gonzo

Nascido em 18 de julho de 1937, em Louisville, no estado de Kentucky, o norte-americano Hunter Stockton Thompson, que, anos depois, atenderia também pela alcunha de Duque Gonzo, foi um dos mais ousados e transgressores jornalistas da história. Inquieto e insubordinável, tornou-se ícone ao transgredir as barreiras da produção jornalística convencional, criando o Gonzo Journalism, ou Jornalismo Gonzo. Seu estilo baseava-se no conceito de William Faulkner, segundo o qual a melhor ficção é infinitamente mais verdadeira que qualquer tipo de jornalismo, e também em processos herdados do Novo Jornalismo, apesar de se diferenciarem enquanto gêneros.

Filho de pais alcoólatras, Thompson teve a biografia marcada pelos constantes problemas com a lei e pelo intenso consumo de drogas. Extremamente ousado e dono de um texto fabuloso, o jornalista era entusiasta das armas e dos esportes, e um ativo opositor político. Escreveu para várias revistas norte-americanas como freelancer, a exemplo de Rolling Stone, Playbo e The Nation, e chegou a morar em Porto Rico, para escrever matérias sobre boliche para a revista El Sportivo. A experiência na América Latina iria inspirar o que, anos depois, seria seu único romance publicado, The rum diary (1998).

Cansado do marasmo de Porto Rico, Thompson volta aos EUA, em 1962, para trabalhar no National Observer, onde teria problemas de insubordinação ao tentar acrescentar opiniões políticas às suas matérias. Assim como Wolfe e outros escritores de reportagens especiais, Thompson era aspirante a romancista, e, em 1965, utiliza de técnicas inusitadas e recursos narrativos literários para escrever seu primeiro livro jornalístico, Hell's Angels: The Strange and Terrible Saga of the Outlaw Motorcycle Gangs (1966). 1

Outras produções expressivas surgem à época de modo a revelar que realmente crescia o interesse pelos instrumentos do Novo Jornalismo. John Sack alistou-se no exército e foi para o Vietnã com o intuito de escrever M; George Plimpton treinou com os atletas do time de futebol americano Detroit Lions e chegou a disputar uma partida da pré-temporada na confecção de Paper Lion; já Gay Talese adentra o universo do mafioso italiano Salvatore ‘Bill’ Bonanno para escrever Honor thy father. Tom Wolfe também marcaria seu nome entre as grandes produções dos anos 1060, ao lançar o já citado O teste do ácido do refresco psicodélico.


Como afirmado anteriormente, Hell’s Angels... utiliza da imersão participativa, característica do Novo Jornalismo, para traçar um panorama dos hábitos e costumes dos motoqueiros que aterrorizavam os EUA nos anos 1960. Contudo, seu modo de escrita é controlado e ele tenta não interferir na história, ao realizar um relato fiel da realidade dos motoqueiros, o que não caracteriza a obra como um produto do Jornalismo Gonzo, mas do Novo Jornalismo.

Como ressalta o jornalista André Felipe Pontes Czarbonai, em sua monografia de conclusão de curso, Gonzo – O filho bastardo do New Journalism (2003), “Thompson tinha uma preocupação em mostrar os dois lados desta mesma questão e deixar para o leitor a formação dos seus próprios conceitos, fugindo assim do sensacionalismo que imperava nas matérias sobre os motoqueiros” (CZARBONAI, 2003, p.30). Assim, ao citar Cecília Giannetti (2002), Czarbonai ressalta, ainda, que é exatamente nesta época que Thompson torna-se um usuário de drogas, característica que marcaria toda sua produção jornalística.

Foi no período passado junto aos Hell´s Angels que Thompson experimentou o LSD pela primeira vez. O jornalista Ken Kesey, que o visitou em um agrupamento de Angels, ofereceu a droga e todos usaram. Foi depois dessa primeira experiência que Thompson passou a usar drogas com freqüência. (2002, p.29)

Entretanto, apenas em 1970, é que Thompson publica seu primeiro artigo considerado Gonzo: The Kentucky Derby is Decadent and Depraved. O que seria, inicialmente, um artigo sobre famoso evento esportivo de Louisville, torna-se uma “ácida crítica ao modo de vida da população local, outra característica que se viu, a partir daí, em praticamente toda sua obra” (CZARBONAI, 2003, p.31). Ao ler o artigo, o jornalista, e amigo de Thompson, Bill Cardoso, classificou o texto como algo totalmente “gonzo”. Segundo Cardoso, a palavra vem da gíria franco-canadense gonzeaux, que se traduziria em algo como "caminho iluminado".

Também em 1970, Thompson aceita o convite da Sports Illustrated para cobrir a famosa corrida de motos Mint 400. Mais uma vez, o que seria somente uma matéria convencional sobre uma competição esportiva, torna-se um relato sociológico e contracultural fascinante sobre o sentimento dos órfãos do movimento hippie nos últimos anos da “geração do amor”, que resultou no livro Fear and Loathing in Las Vegas: A Savage Journey to the Heart of the American Dream (1971).


Medo e Delírio é o primeiro livro de Thompson a reunir os elementos do Gonzo, apesar de ser considerado, pelo autor, como experiência frustrada do gênero, uma vez que sua vontade era de anotar todas as experiências em um caderno e publicá-las: sem qualquer edição.

4.3.1 As características do Jornalismo Gonzo

O Gonzo tem por característica principal o rompimento com premissas básicas do jornalismo convencional, como o compromisso com a verdade, o distanciamento do repórter em relação ao fato e a objetividade textual. Segundo o estilo de Thompson, o jornalista participa da matéria, dando seu relato parcial de quem se envolveu com o fato em questão; ficção e realidade misturam-se em toda a narrativa; detalhes nem sempre inerentes ao que seria o núcleo temático tornam-se focos principais do relato; o processo de produção é incomum e o texto, em primeira pessoa, é criativo, ousado e sempre caprichado em demasia.

Conforme André Felipe Pontes Czarbonai (2003), as produções do jornalismo Gonzo e do Novo Jornalismo diferem-se em diversos aspectos. A conclusão de Czarbonai nos ajuda a entender as principais características do Jornalismo Gonzo:

São seis os aspectos fundamentais os responsáveis por esta diferença. [...] No tocante à redação do texto, podemos enumerar cinco aspectos. O primeiro dele é o uso do foco narrativo em primeira pessoa, que ocorre raras vezes no New Journalism. [...] O segundo é a permissividade quanto ao uso de ficção, que se traduz melhor na inexistência de um limite entre os eventos que de fato aconteceram e os que foram incluídos pelo repórter com o intuito de aumentar a carga de informações [...] O terceiro aspecto refere-se ao humor sarcástico presente no Gonzo Journalism em contraste com a seriedade celebrada pelo New Journalism. A predileção por focar o seu relato na descrição da experiência muito mais do que no fato em si, [...] é o quarto aspecto fundamental e o consumo de drogas é o quinto. [..] O consumo de drogas [...] é facultativo (CZARBONAI, 2003, p.82).

O processo de imersão por osmose, cunhado por Czarbonai, é explicado através da analogia com o fenômeno biológico em que dois fluidos misturam-se, por meio de uma membrana porosa: Fazendo uma comparação, o primeiro fluido é o Gonzo Jornalista e o segundo, o objeto de sua investigação. A membrana porosa é o ato da reportagem em si, pois é através dela que os dois mundos interferem um no outro. Dessa forma é correto dizer que o repórter gonzo altera o objeto de sua reportagem da mesma forma que o objeto altera o próprio repórter (CZARBONAI, 2003, p.49).


Assim, entendemos que, para realizar suas reportagens, o Gonzo Jornalista deve adentrar o universo de seu objeto, deixando-se levar pelas ocasionais mudanças de percurso quanto ao núcleo temático tratado. Para que isso seja feito, como no caso de Hell’s Angels..., é necessária extrema ousadia do repórter, o que pode ser traduzido na afirmação de Thompson de que o grande jornalista deve ter o olho de um fotógrafo e os “culhões” de um ator. A afirmação marca, inclusive, outra característica primordial do Gonzo: a riqueza de detalhes e as descrições – quase fotográficas – das cenas.

Czarbonai (2003) cita Christine Othitis (1994) ao enumerar sete características que, segundo a autora, estão presentes na obra de Thompson e norteiam todo o seu trabalho: Abordagem de assuntos relacionados ao sexo, violência, drogas, esportes e política; uso de citações de gente famosa e outros escritores - ou às vezes, dele mesmo - como epígrafe; referências a figuras públicas como jornalistas, atores, músicos e políticos; tendência de se distanciar do assunto principal - ou do assunto por onde o texto começou; uso de sarcasmo e/ou vulgaridade como forma de humor; tendência das palavras "fluírem" e um uso extremamente criativo do inglês; e descrição extrema das situações.

Com exceção do uso extremamente criativo do inglês, uma vez que a pesquisa foi realizada com base na versão de Medo e Delírio em Las Vegas em língua portuguesa, as demais características definidas por Othitis (1994), bem como os elementos identificados por Czarbonai, serão identificados e discutidos durante a análise do best-seller de Thompson, no próximo capítulo. A intenção é identificar como sua narrativa, marcada por tais elementos, implementa recursos da literatura e subverte as técnicas jornalísticas, fazendo com que seja produzido um relato extremamente rico e fiel ao sentimento de uma geração.


5. ANÁLISE E METODOLOGIA

5.1 Metodologia

Com base no enredo do livro Medo e Delírio em Las Vegas, na construção de seus personagens e em seu processo de produção e redação, esta pesquisa tende a observar, na obra de Thompson, quais são os elementos literários e jornalísticos adotados pelo autor, assim como sua contribuição para o cenário contracultural da década de 1960 e começo dos anos 1970. A análise da obra, através da seleção de trechos que dialogam com as referências teóricas, foi o principal instrumento adotado na estratificação dos referidos elementos.

A distinção e a interlocução entre os elementos jornalísticos, que levam à reflexão social, política ou cultural, e literários, puramente ficcionais e estéticos, são a base da pesquisa, ao lado da identificação da contribuição destas duas categorias de expressão verbal no contexto da obra e em seu papel enquanto produto contracultural do fim de uma geração. O que seria jornalismo? E literatura? Até que ponto tais áreas se misturam em uma só unidade? Como tal interlocução pode contribuir para um relato contracultural? A ficção compromete o relato? São várias as questões a ser levantadas sobre a narrativa de Thompson em Medo e Delírio em Las Vegas. Contudo, para alcançar um objetivo satisfatório, foram realizados três recortes que norteiam todo o referencial teórico. Tais recortes vão ao encontro dos três capítulos teóricos da pesquisa: a subversão do fazer jornalístico; a linguagem de Medo e Delírio e relato contracultural do fim de uma geração.

Para cada um destes capítulos foram retirados, do livro, trechos que apresentem características da narrativa de Thompson, de seu processo de produção jornalística, e de como, através de um impulso contracultural, a obra reflete o sentimento coletivo dos participantes do movimento hippie. Foram relacionados, portanto, trechos retirados de Medo e Delírio com conceitos teóricos dispostos nos capítulos teóricos, que tratam do modelo convencional de produção jornalística, da interface entre literatura e jornalismo e da contracultura.

Os três módulos analíticos foram divididos de acordo com a divisão dos capítulos teóricos. Durante o primeiro módulo, serão apresentados trechos que mostrem como Thompson subverte, no modus operandi do jornalismo Gonzo, especificidades do fazer jornalístico, tais como a pauta, o distanciamento do repórter, a ética jornalística e o compromisso com a


verdade. O segundo item trata da linguagem literária utilizada pelo autor ao traçar uma narrativa ácida, criativa e engraçada. Foram retirados trechos que exemplifiquem como Thompson utiliza o sarcasmo, as descrições cena a cena, as analogias e diálogos inusitados. O último módulo tem por objetivo mostrar como o livro de Thompson é totalmente contracultural, com base nos conceitos de Tim Leary, Ken Goffman e Dn Joy. O item analítico também busca mostrar como a obra de Thompson consegue traçar um relato, de extrema importância, sobre o “fim da geração” das drogas, que gerou, nos anos 1960, o movimento mais importante da contracultura moderna.

5.2 Resumo da obra

Medo e Delírio em Las Vegas começa no momento em que Hunter Thompson é convidado, pela revista Sports Illustrated – “uma revista metida a besta” (THOMPSON, 2007, p.29) –, a fazer a cobertura da famosa corrida de motos norte-americana Mint 400. O que deveria ser uma simples matéria de 250 palavras, acabou por tornar-se um relato alucinado das experiências do jornalista, em companhia de seu advogado “samoano” Oscar Zeta Acosta, durante a passagem por Las Vegas, munidos de exorbitantes quantidades de drogas diversas.

O jornalista e seu advogado utilizam os 300 dólares custeados pela revista para alugar um Chevy conversível vermelho, “o Tubarão Vermelho”, e comprar diversas drogas para se divertir durante experiências tensas e perigosas, mas divertidas e ultrajantes, na cidade mais animada dos EUA. Como conta Thompson, os dois tinham, no porta-malas do carro, “dois sacos de maconha, 75 bolinhas de mescalina, cinco folhas de ácido de alta concentração, um saleiro cheio até a metade com cocaína e mais uma galáxia inteira de pípulas multicoloridas, estimulantes, tranqüilizantes, berrantes, gargalhantes... além de um litro de tequila, outro de ruim, uma caixa de Budweiser, meio litro de éter puro e duas dúzias de amilas” (THOMPSON, 2007, p.11).

Durante a viagem, os dois amigos, alucinados de LSD, cocaína e mescalina, dão carona a um jovem, aparentemente inocente, em quem fazem um terror psicológico, dizendo que estão indo a Vegas matar um traficante de nome Henry Selvagem. O detalhe: o advogado leva uma arma descarregada consigo. O caroneiro, assustado, foge do carro durante uma parada forçada em que Gonzo simula um ataque cardíaco e pede a seu amigo que lhe desse o remédio, o que,


na verdade, tratava-se, nada mais, nada menos, do que uma fungada de cocaína. A viagem ainda é marcada por visões alucinantes de morcegos voadores e muita diversão.

Ao chegar em Vegas, os dois amigos, sob os falsos nomes de Raoul Duke (Thompson) e Dr, Gonzo (Acosta), registram-se no hotel Mint, em Vegas, e se credenciam como profissionais da imprensa. Durante o credenciamento, no cassino do hotel, Duke tem visões de lagartos e répteis gigantes, ocasionadas pelo consumo exagerado de LSD, que o deixa extremamente apavorado (ficção?). Eles deveriam se encontrar com um fotógrafo português chamado Lacerda, para que Duke fizesse a cobertura da corrida.

O livro é dividido em duas partes. Na primeira, Thompson não consegue realizar a cobertura da matéria, devido a seu estado psicológico afetado e à poeira levantada pelas motos (a Mint acontece no deserto). Após o fracasso, seguem-se experiências alucinadas por Las Vegas, como a visita ao Cassino Circus-Circus, sob o efeito do éter, e as inúmeras e tensas “viagens” no hotel. Sempre perseguidos pela paranóia em relação à polícia, devido aos crimes diversos (consumo de drogas, fraude, posse ilegal de arma), os dois amigos ficam cada vez mais afetados durante a viagem. No hotel, Dr. Gonzo protagoniza um dos momentos mais caóticos do livro. Ao mascar uma folha inteira de LSD, entra na banheira do quarto do hotel e pede a Duke que jogue o rádio (ligado na tomada) dentro da água durante a nota mais alta de “White Rabbit”, música da banda de rock psicodélico Jefferson Airplane. Duke nega o pedido e é ameaçado com uma faca. Com a insistência, ele finge que vai jogar o rádio na banheira e joga uma toranja na cara do advogado “doidão”, que fica completamente nervoso e transtornado.

Em meio a tais passagens literárias, há reflexões históricas sobre o movimento hippie e sua ruína – como veremos detalhadamente durante a análise –, uma vez que Thompson foi ativo participante da contracultura dos anos 1960. Duke, então, é abandonado por seu advogado, que vai embora para Los Angeles, deixando uma conta astronômica no hotel e uma paranóia irreparável no jornalista. Sem lugar, Raoul Duke consegue sair do hotel sem grandes problemas, mas é parado pela polícia na estrada, em um episódio surreal, em que o policial tenta beijá-lo, e o libera, sem quaisquer problemas. Contudo, a paranóia extrema de Duke faz com que ele ligue para Gonzo, desesperado. O advogado o informa que tudo já estava resolvido: ele tinha conseguido uma nova matéria para o jornalista, e seu nome já estava reservado em outro hotel, com outro carro à sua espera, um Cadillac Branco – a “Baleia Branca”.


Esta é a segunda parte do livro. A matéria arranjada por Gonzo dizia respeito à cobertura da Conferência dos Promotores Públicos sobre Entorpecentes e Drogas Perigosas. Em atitude de ousadia ultrajante – quase inimaginável! – Thompson hospeda-se no hotel em que estavam reunidos policiais neuróticos e conservadores de todo os EUA, com uma grande mala recheada de drogas. A paranóia, é claro, só aumenta. No entanto, como se não bastasse, ao chegar ao quarto do hotel, Raoul Duke depara-se com Dr. Gonzo, que já havia voltado e tinha companhia. O advogado junkie e inconseqüente havia conhecido, no avião, a jovem religiosa fanática Lucy, que pintava retratos de Barbra Streisand e estava indo a Vegas mostrar seus quadros para a cantora. Porém, Gonzo dá LSD para a garota – que nunca havia nem bebido! – , e a deixa totalmente transtornada.

Em função da paranóia de que a menina os denunciaria à polícia, os dois amigos a deixam em um hotel e conseguem mantê-la longe da confusão do quarto. Antes de comparecer à convenção, um capítulo inteiro do livro destina-se à confusão mental e à loucura criada pelo consumo exagerado de uma rara droga psicodélica, de potência assustadora, chamada Adrenocromo. Duke e Gonzo comparecem, completamente alucinados, à conferência, onde ouvem opiniões conservadoras e esteriotipadas de policiais que pensam entender sobre drogas e traçam equivocados perfis dos usuários. A situação chega a ser engraçada e deixa o advogado extremamente irritado. Ele sai no meio da convenção, dizendo a Duke: “Vou descer para o cassino [...] Conheço infinitas maneiras de desperdiçar meu tempo, e todas são melhores do que ouvir tanta bobagem” (THOMPSON, 2007, p.154).

Após o episódio, ainda acontecem diversas situações perigosas, como o passeio de Cadillac pela cidade de Las Vegas, em que Gonzo grita com as pessoas dos outros carros, oferecendo cocaína a elas, e chega a vomitar pela janela; a ameaça e o terror psicológico feitos a uma camareira que entra no quarto totalmente destruído do hotel, devido às alucinações dos dois amigos; o terror psicológico e a ameaça, de faca em punho, à balconista de uma lanchonete, após se irritar com Dr.Gonzo, que a havia chamado para transar; e a volta ao Circus-Circus, à procura de um macaco.

O livro termina quando Duke cheira amila antes de embarcar no avião. São realizadas, anteriormente, reflexões sobre o fim da geração hippie e a frustrada “tentativa” de encontrar o “sonho americano”. Isso se dá logo após Duke ser parado pelos seguranças do aeroporto, que


o interrogam sobre ele e seu “amigo latino”, mostrando uma foto dos dois. Ao que Duke responde: “Não sou eu. [...] É um cara chamado Thompson. Ele trabalha pra Rolling Stone... um sujeito realmente escroto, totalmente maluco. E esse cara ao lado dele é um matador de aluguel que trabalha na Máfia em Hollywood” (THOMPSON, 2007, p.202).

Medo e Delírio traça, a partir desta caótica e engraçada trama, uma crítica à sociedade conservadora norte-americana, assim como um panorama dos costumes e sentimentos dos hippies no final do movimento, transformando-se em um marco da contracultura. Publicado em capítulos originalmente pela Rolling Stone – “a única revista dos Estados Unidos na qual eu poderia ter publicado o livro”, como declarou Thompson –, o livro foi adaptado duas vezes para o cinema: a primeira em 1980, com o nome de “Uma espécie em extinção”, filme estrelado por Bill Murray, que acabou não tendo tanta repercussão; já em 1998, sai o aclamado “Medo e Delírio em Las Vegas”, do diretor Terry Gilliam, que conta com Johnny Depp no papel principal e Benício Del Toro como Dr. Gonzo.

5.3 Análise

5.3.1 A subversão do fazer jornalístico

Como pudemos observar no primeiro capítulo teórico deste trabalho, o ofício jornalístico dispõe de especificidades que o diferenciam enquanto atividade profissional e legitimam seu discurso perante a sociedade. Entre as premissas básicas, o compromisso com a verdade destaca-se como a baliza-guia da produção jornalística. E é exatamente a subversão desta característica o que norteia a concepção de Medo e Delírio em Las Vegas, uma vez que o relato utiliza-se de elementos ficcionais em sua narrativa e escancara os bastidores da produção da reportagem.

Tal compromisso com a verdade é posto em xeque pela narrativa de Thompson, que revela os bastidores da cobertura da Mint 400 e, muitas vezes, ironiza sua própria condição de jornalista profissional. Logo no começo do livro, Thompson conta que o objetivo de sua ida a Las Vegas era fazer a cobertura da corrida, e ironiza sua condição, ao afirmar que “afinal de contas, eu era um jornalista profissional; portanto, por bem ou por mal, tinha a obrigação de


cobrir a matéria” (THOMPSON, 2007, p.9). Tal afirmação se mostra irônica, pois, durante a construção do relato, a referida “obrigação” seria totalmente desprezada pelo autor.

Contudo, qual a razão para tal procedimento? Ao chegar à corrida, Thompson relata o que teria acontecido durante a cobertura, de modo a inviabilizar não só o seu trabalho, como o da maioria dos jornalistas que ali estavam. Primeiramente, ele relata que a corrida começaria às nove da manhã, mas o bar abria às sete, o que fez com que os jornalistas começassem a se embebedar desde bem cedo. Ao contar o episódio de um repórter da Life totalmente embriagado, que caía no chão e era levantado por uma mulher, Thompson ironiza, uma vez mais, o trabalho jornalístico: Uma mulher com os olhos de rã puxava com força o cinto dele. “Levanta!”, implorava. “Levanta, por favor. Você seria um homem tão mais bonito se ficasse em pé!”. Ele riu, parecendo estar longe dali. “Olha, madame”, cortou. “Já sou bonito até demais aqui de baixo. Chega a ser insuportável. Se eu levantasse, você ficaria doidinha!”. Mas a mulher insistia. Estava dependurada nele havia duas horas e agora enfim tomava a iniciativa. O cara da Life não queria nem saber; se agachou ainda mais. Desviei o olhar. Aquilo era horrível demais. Afinal de contas, éramos a nata da imprensa esportiva do país. E estávamos reunidos em Las Vegas para uma tarefa muito especial: cobrir a quarta edição anual da Mint 400... e com esse tipo de coisa não se brinca. (THOMPSON, 2007, p.43).

Em seguida, ao relatar a largada, Thompson conta que, pelo fato de a corrida acontecer no deserto, em poucos minutos, nada mais podia ser enxergado, uma vez que a poeira levantada pela passagem de mais de duzentas motos em alta velocidade impossibilitava qualquer visão da corrida:

A partir desse ponto, a incrível nuvem de poeira que pairaria naquela parte do deserto pelos dois dias seguintes já havia se tornado quase sólida. Naquele momento nenhum de nós imaginava que aquilo seria a última coisa que veríamos da “Fabulosa Mint 400...”. Ao meio-dia já era difícil enxergar os boxes a partir do bar/cassino, distante trinta metros debaixo de um sol escaldante. Sob qualquer ponto de vista convencional, a idéia de “cobrir a corrida” era absurda: seria como tentar acompanhar uma prova de natação numa piscina olímpica cheia de talco no lugar de água. [...] Senti que havia chegado o momento de fazer uma Reavaliação Dolorosa de toda aquela situação. Sem dúvida a corrida estava acontecendo. Eu havia testemunhado a largada: disso tinha certeza. Mas e agora, o que eu podia fazer? Alugar um helicóptero? Entrar de novo naquela caminhonete? Zanzar pelo maldito deserto assistindo àqueles idiotas passando a mil pelos pontos de controle, um a cada treze minutos...? (THOMPSON, 2007, p.44).

Dessa forma, ao descrever a real situação que impede a cobertura da corrida, Thompson propõe importante reflexão. O jornalista deve se guiar pelo compromisso com a verdade: mas que verdade é esta? A verdade, no caso, seria apresentar uma matéria convencional, recheada de dados coletados através da assessoria de imprensa, no dia seguinte, sendo que era


impossível realmente cobrir a corrida. Ou a verdade estaria em mostrar, ao receptor, o que realmente aconteceu ali, nos bastidores da notícia, de modo a inviabilizar a cobertura? Thompson revela, sem hipocrisia, seu fracasso enquanto repórter e apresenta as razões para tal. Assim, assume, com o leitor, o compromisso de lhe contar o que exatamente aconteceu, não só na corrida, mas durante o processo de cobertura jornalística.

A partir daí, Medo e Delírio segue rumo inusitado, e seu núcleo temático muda totalmente. O relato passa a se centrar, unicamente, nas experiências alucinadas de Thompson e de seu advogado junkie em Las Vegas. Além disso, o relato centra-se na relação entre tal comportamento e o fim da geração hippie, e na descrição sociológica dos norte-americanos, que buscam nos cassinos o “sonho americano”. Assim, outros três conceitos do jornalismo são confrontados: a obrigatoriedade de seguir a pauta, o distanciamento do repórter em relação ao objeto e o faro jornalístico do repórter. Desde o princípio, o livro dá indícios de qual é, realmente, o tema que dominará a narrativa. Thompson apresenta suas dúvidas em relação à pauta. E conta para o leitor como será seu processo de produção: “Mas qual era a pauta, exatamente? Ninguém se dignou a dizer. Teríamos que descobrir sozinhos. Livre iniciativa. O Sonho Americano. Horatio Alger destruído pelas drogas em LasVegas. Fazer tudo na hora: puro jornalismo gonzo” (THOMPSON, 2007, p.18).

Ao assustar um caroneiro durante a viagem no conversível, Thompson ironiza, mais uma vez, a pauta, ao apontar que o tema tratado no livro revelava-se muito mais importante do que a simples cobertura de uma corrida de motos: “Na verdade, nós dois somos doutores em jornalismo. Estamos a caminho de Las Vegas para cobrir a pauta mais importante da nossa geração” (THOMPSON, 2007, p.25). Após falhar na cobertura da corrida, o comentário do jornalista deixa clara a especificidade do processo de produção do Gonzo: “Não. Calma. Aprenda a gostar de perder. O importante é cobrir a matéria em seus próprios termos; deixe o resto para a Life ou para a Look” (THOMPSON, 2007, p.63). A pauta inicial, portanto, é abandonada. O que marca a “tendência de se distanciar do assunto principal - ou do assunto por onde o texto começou”, especificidade do Gonzo apontada por Christine Othitis (1994). Thompson rompe, portanto, com mais uma característica do fazer jornalístico. Todavia, esta mudança de foco também pode ser analisada por outro prisma: o do faro jornalístico do repórter. O que era mais importante, do ponto de vista jornalístico, naquele momento: uma matéria convencional sobre a Mint 400 ou um relato, extremamente


ácido, acerca do sentimento dos hippies, no fim do movimento que marcou o ápice da contracultura moderna? Como afirma Erbolato, “não existe um critério fixo para escolher e selecionar uma notícia que venha a ser aceita” (ERBOLATO, 1991, p.58). Portanto, enquanto ativo participante das mudanças de sua geração, Thompson buscou debruçar-se sobre o que acreditava ser mais significativo para aquele momento, através de personagens que ilustravam o sentimento de frustração e escapismo compartilhado pelos hippies com o fim do movimento. Estes personagens eram ele – Raoul Duke – e seu advogado – Dr. Gonzo.

O interessante é que a imersão por osmose, como conceitua Czarbonai (2004), uma característica de Thompson, ao infiltrar-se no universo que será relatado – como no caso de Hell’s Angels –, acontece de forma diferenciada em Medo e Delírio. Thompson se passa por um repórter, ou seja, por ele mesmo. Usa nome falso para infiltrar-se em hotéis e conseguir credenciar-se como jornalista na Mint400 e na convenção sobre as drogas. O que Thompson e seu advogado fazem é levar ao extremo sua condição de subversivos, anarquistas, usuários de drogas destrutivos e brutais. Tal comportamento hedonista, de escapismo por meio das drogas, alienação e descrença, seqüela deixada pelo fim do movimento hippie, seria a base para formação de movimentos que explodiram nos anos 1970.

Dessa forma, o processo de captação de Thompson, baseado na falsa identidade e no intenso uso de entorpecentes, desconstrói a necessidade da ética jornalística e do comportamento politicamente correto durante a produção da reportagem, o que pode ser condenado, sob o ponto de vista da funcionalidade jornalística e da transparência de seus métodos. Contudo, a seara “verdade X verdade” é novamente estabelecida. Thompson abandona a verdade, ao se passar por outra pessoa e descrever alucinações causadas por drogas. Porém, conta tudo isso ao leitor, com ousada sinceridade. O processo pode não ser ético, mas o jornalista assume, mais um vez, o compromisso de externar tudo ao receptor, como na passagem em que diz: “Agüentar toda a burocracia, guardar o carro na garagem do hotel, ter paciência com o recepcionista, lidar com o mensageiro, buscar as credenciais – tudo falso, totalmente ilegal, uma completa fraude, mas obviamente teria que ser feito” (THOMPSON, 2007, P.28). O jornalismo de Thompson pode ser observado através de muitas contextualizações – políticas, culturais, comportamentais, filosóficas – sobre a geração das drogas. Como veremos no terceiro módulo analítico deste trabalho, Thompson trabalha, de forma contracultural, um relato que ilustra o fim de um dos mais importantes movimentos contraculturais da história.


No livro, são citados muitos nomes – outra característica definida por Christine Othitis (1994) como “referências a figuras públicas como jornalistas, atores, músicos e políticos” –, e há apresentação de notícias e comentários sobre a imprensa norte-americana e sobre esportes. Thompson contextualiza acontecimentos de sua geração, como ao falar da luta do boxista americano Joe Frazier e traçar um pequeno retrospecto do final dos anos 1960: Assisti àquela luta em Seattle – horrivelmente alucinado, bem pertinho do governador. Uma experiência muito dolorosa em todos os sentidos, um final adequado para os anos 60: Tim Leary prisioneiro de Eldridge Village, os dois Kennedy assassinados por mutantes, Owsley dobrando guardanapos em Terminal Island e, por fim, Cassius/Ali derrubando seu pedestal por um hambúrguer humano, um homem moribundo. Como Nixon, Joe Frazier acabou saindo vitorioso por motivos que gente como eu se recusou a compreender – ao menos em público...Mas essa foi outra época, há muito encerrada, bem distante das realidades grosseiras deste asqueroso Ano de Nosso Senhor de 1971. Muitas coisas mudaram desde então. E naquele momento eu estava em Las Vegas como correspondente especial de uma revista metida a besta que tinha me enviado lá no Grande Tubarão Vermelho por algum motivo que ninguém admitia responder. (THOMPSON, 2007, p.29).

Mais à frente, quando Dr. Gonzo foge do hotel, deixando Duke paranóico, devido ao alto consumo de drogas e à exorbitante conta do quarto, Thompson dedica um capítulo à transcrição de notas do Las Vegas Sun, jornal que lia enquanto refletia sobre sua situação. As notas mostravam assuntos diversos, como a prisão de jovens que tentavam esconder o corpo de uma amiga, que teve overdose de heroína em uma geladeira; a morte de 160 soldados americanos em função do consumo de heroína; e o esquema de tortura de vietnamitas em interrogatórios militares, durante a guerra do Vietnã. Duke afirma, ironicamente paranóico, que fica contente em ler aquelas notícias. Afinal, perto delas, seus crimes eram banais. Ele termina o capítulo de forma crítica, ao citar outro fato extremamente absurdo e a pensar se seus crimes realmente eram tão inofensivos.

Lendo a seção de esportes, vi uma notinha sobre Muhammad Ali; seu caso tinha sido levado para última instância, a Suprema Corte. Ele tinha sido condenado a cinco anos de prisão por se recusar a matar “amarelos”. “Não tenho nada contra esses vietcongues”, declarou. Cinco anos. (THOMPSON, 2007, p.81).

Durante inúmeras passagens do livro, Thompson transcreve e comenta notícias. Em dado momento, o autor utiliza o noticiário para traçar um panorama crítico da população de Las Vegas e, também, da imprensa norte-americana: Pessoas como Sinatra e Dean Martin ainda são consideradas “muito loucas” em Vegas. O “jornal alternativo” daqui – o Free Press – é uma versão muito pacata do People’s World, ou talvez do National Guardian. Passar uma semana em Vegas é como tropeçar numa


Brecha Temporal. É como voltar ao final da década de 1950. Isso é perfeitamente compreensível quando você encontra o tipo de gente que vem pra cá. [...] Essa gente fica perplexa ao ver uma velha prostituta tirando a roupa e se exibindo pela rua [...] Eu estava atrás de um exemplar do Los Angeles Times para ter notícias do mundo lá fora, mas bastou uma olhada rápida nos jornais disponíveis para transformar minha intenção numa piada de mau gosto. Ninguém precisa do Los Angeles Times em North Vegas. Ficar sem notícias é a melhor das notícias. “Fodam-se os jornais”, disse meu advogado. “Agora precisamos é de café”. Concordei, mas acabei roubando um exemplar do Vegas Sun. [...] Eu ficava nervoso só de pensar em tomar café sem um jornal nas mãos. (THOMPSON, 2007, p.166-167).

Thompson escreve, depois, títulos de notas do noticiário de esportes, a fim de contextualizar os acontecimentos que marcavam o universo esportivo norte-americano, outra área de interesse do jornalista. A abordagem de assuntos relacionados ao sexo, violência, drogas, esportes e política é outra característica marcante da obra de Thompson, apontada por Othitis (1994). No caso de Medo e Delírio, apenas o sexo não é tão explorado. A narrativa concentrase nas drogas e na violência – principalmente a psicológica. As contextualizações e críticas políticas e sociais sobre a “era Nixon”, bem como comentários sobre beisebol e futebol americano, traçam o perfil jornalístico da obra de Thompson.

Contudo, o autor não deixa de expressar sua repulsa ao fazer jornalístico convencional, ao modus operandi como é concebido, o que deixa ainda mais explícito o seu objetivo ao subverter esta lógica. Durante a espera do avião no aeroporto, ao final da trama, Thompson desabafa, em uma analogia ácida, sua opinião sobre a imprensa e o fazer jornalístico:

A imprensa é uma gangue de covardes impiedosos. Jornalismo não é uma profissão, não é nem mesmo um ofício. É uma saída barata para vagabundos e desajustados – uma porta falsa que leva à parte dos fundos da vida, um buraquinho imundo e cheio de mijo, fechado com tábuas pelo inspetor de segurança, mas fundo o bastante para comportar um bêbado deitado que fica olhando para a calçada se masturbando como um chimpanzé numa jaula de zoológico. (THOMPSON, 2007, p.209).

Apesar de romper com premissas básicas do fazer jornalístico convencional, ao adotar seu próprio método de trabalho – processo de captação antiético e baseado no consumo de drogas, abandono da pauta, envolvimento do repórter durante o relato –, Thompson busca contribuir historicamente para a geração da qual fez parte. Mesmo que de forma abstrata e contracultural – nada melhor para descrever um momento de rupturas e mudanças –, a obra de Thompson cumpre a função do ofício jornalístico enquanto construtora de “palavras sociais”, uma vez que, como salienta Vera Veiga França, “o jornalismo nasce da pulsão de falar o mundo, falar o outro, falar ao outro; da atração pela diferença, pela novidade, pelo distante; do


enraizamento no mesmo, no próximo e em si que marcam a palavra humana desde sempre” (FRANÇA, 1998, p.26). Medo e Delírio em Las Vegas nasce, portanto, desta “pulsão de falar o mundo, falar o outro, falar ao outro, da atração pela diferença, pela novidade” (FRANÇA, 1998, p.26). Dessa forma, contribui para traçar um relato histórico da “geração das drogas”, como veremos a seguir, de forma abstrata e contracultural. Isso acontece ao somar contextualizações históricas da época, por meio do relato de fatos e acontecimentos marcantes – característica própria do jornalismo –, a uma linguagem radicalmente diferenciada, que usa e abusa de elementos literários para incrementar e diferenciar a narrativa.

5.3.2 A linguagem de Medo e Delírio em Las Vegas

O best-seller de Thompson apóia-se em elementos específicos do discurso literário, ao desenvolver narrativa que, como já vimos, busca a contribuição histórica/jornalística através de um processo de produção que aqui denominamos contracultural. Os dois principais elementos que ilustram a linguagem utilizada pelo autor são o uso do humor, do sarcasmo e da ironia; e as descrições detalhadas, cena-a-cena, quase fotográficas. As analogias, extremamente criativas e engraçadas, e os diálogos introspectivos – quando Thompson pensa, conversa consigo mesmo – também auxiliam o desenvolvimento deste humor ácido, usado em toda a narrativa. A linguagem também tem forte influência de elementos ficcionais – por vezes nonsense –, em sua maioria originados das experiências de Thompson com as drogas.

A abertura do livro é um ótimo exemplo da combinação de tais elementos: humor, ficção e drogas, diálogos introspectivos e detalhamento extremo. O trecho mostra como Thompson trabalha uma narrativa totalmente atípica no universo jornalístico, que se aproxima do discurso literário:

Estávamos em algum lugar de Barstow, à beira do deserto, quando as drogas começaram a fazer efeito. Lembro que falei algo como “estou meio tonto; acho melhor você dirigir...”. E de repente fomos cercados por um rugido terrível, o céu se encheu de algo que pareciam morcegos imensos, descendo, guinchando e mergulhando ao redor do carro, que avançava até Las Vegas a uns 160 por hora, com a capota abaixada. E uma voz gritava: “Jesus Santíssimo! Que diabo são esses bichos?”. Então o silêncio voltou. Meu advogado tinha tirado a camisa e estava derramando cerveja no peito para facilitar o processo de bronzeamento. “Por que você está gritando, porra?”, resmungou, olhando para o Sol com os


olhos fechados e protegidos por óculos escuros espanhóis que se ajustavam à cabeça. “Deixa pra lá”, respondi. “É sua vez de dirigir”. Pisei no freio e conduzi o Grande Tubarão Vermelho até o acostamento da rodovia. Melhor nem citar os morcegos, pensei. Não ia demorar para que o infeliz também os visse. (THOMPSON, 2007, p.9).

O modo como Thompson constrói a cena é extremamente literário e divertido, e foge aos padrões convencionais. Ele consegue, ao usar a ficção, descrever a forma como acontece a “viagem” dos morcegos e como ele e seu advogado reagem à situação. Mais à frente, durante o episódio do caroneiro, Thompson apresenta outro traço marcante da obra: as situações de humor negro e de violência psicológica. Durante o diálogo com o garoto que pegava carona com os dois amigos alucinados, o terror psicológico é apresentado, em meio à paranóia e ao humor negro de Thompson: “Pela madrugada!”, exclamou. “Nunca andei num conversível!”. “É mesmo?”, perguntei. “Bem, acho que agora é a sua chance, né?”. O garoto concordou com a cabeça, empolgado, e arrancamos cantando pneu. “Somos seus amigos”, falou meu advogado. “Somos diferentes dos outros”. Jesus, pensei, ele já saiu de órbita. “Chega desse papo”, cortei. “Senão boto sanguessugas em você”. Meu advogado riu, parecendo entender. Por sorte, eram tantos ruídos no carro – o vento, o rádio, o gravador – que, no banco de trás, o garoto não ouvia uma só palavra do que estávamos dizendo. Ou será que ouvia? Por quanto tempo conseguiríamos nos controlar?, eu me perguntava. Quanto tempo vai demorar até um de nós começar a tagarelar e encher o saco desse garoto? Este deserto solitário foi o último lar conhecido da família Manson. Será que o garoto vai fazer essa relação quando meu advogado começar a berrar sobre morcegos e jamantas imensas mergulhando dos céus na direção do carro? Se fizer...bem, nesse caso vamos ser obrigados a decepar sua cabeça e enterrar o cadáver em algum lugar. Porque nem preciso dizer que seria impossível deixar o garoto à solta. Ele nos denunciaria na hora para algum órgão de segurança pública tacanho e nazista. Viriam atrás da gente como cães de caça. (THOMPSON, 2007, p.11-12).

Duke e seu advogado também aterrorizam uma camareira, durante sua estadia no hotel Flamingo, onde ocorria a convenção sobre drogas perigosas; a garota fanática religiosa Lucy, levada por Dr. Gonzo até o quarto sob o efeito do LSD; uma atendente de lanchonete, que reage de forma agressiva à personalidade do advogado; e outra série de personagens. Observamos, pois, que o humor ácido e o sarcasmo são utilizados durante estas passagens de terror psicológico e, também, durante as experiências dos dois amigos com drogas perigosas. Czarbonai cita Raph Steadman (1998), cartunista de traço nervoso e caótico que acompanhou Thompson em várias matérias, para comentar as características de tal estilo: “Gonzo é a essência da ironia. Você não deve ousar levá-lo a sério. Você tem de rir” (CZARBONAI apud STEADMAN, 2003, p.81). Uma passagem engraçada revela-se, por exemplo, no momento em que Duke relata a experiência da ingestão de drogas durante a viagem até Vegas e o vacilo de seu advogado ao desperdiçar boa quantidade de cocaína:


Peguei o ácido e enfiei na boca. Meu advogado começou a mexer no saleiro com cocaína. Abriu. Derramou tudo. Aí gritou e ficou sacudindo as mãos no ar enquanto a fina poeira branca se espalhava pela rodovia do deserto. Um caríssimo redemoinho de pó escapou do Grande Tubarão Vermelho. “Ah, Jesus”, ele gemeu. “Viu só o que Deus acabou de fazer com a gente?”. “Deus não fez nada!”, gritei. “Foi você! Seu bosta, você é um investigador do departamento de narcóticos! Estou de olho em você desde o começo, seu porco!”. (THOMPSON, 2007, p.27)

Muitas passagens reúnem as características citadas anteriormente em analogias extremamente inusitadas. Como esta, sarcástica, que ironiza – como é feito em todo o livro – o “sonho americano”: Quando sentem que vão morrer, os elefantes velhos cambaleiam até as montanhas; os americanos velhos, por sua vez, vão para rodovias e rumam para a morte em carros imensos. Mas nossa viagem era diferente. Era uma afirmação clássica de tudo que é correto, verdadeiro e decente no caráter nacional. Era uma saudação grosseira às possibilidades fantásticas da vida neste país – disponíveis para quem realmente tem coragem. E isso nós tínhamos de sobra. (THOMPSON, 2007, p.24).

Outra analogia engraçada é feita quando Thompson revela a quantidade exagerada de drogas que ele e seu advogado levavam no porta-malas do “Tubarão Vermelho”: “Dos 300 dólares fornecidos pelos editores da revista, quase tudo já tinha sido gasto em drogas altamente perigosas. O porta-malas do carro parecia mais uma laboratório móvel do departamento de narcóticos” (THOMPSON, 2007, p.10). Mais um exemplo pode ser mostrado quando Thompson fala sobre o estado de seu quarto no hotel Flamingo, ao afirmar que “aquele quarto parecia o cenário de um experimento zoológico desastroso envolvendo uísque e gorilas” (THOMPSON, 2007, p.190).

A descrição detalhada, outra característica predominante, pode ser observada durante toda a narrativa. Além de descrever cenas, gestos, cores e climas dos lugares e situações pelas quais passa, Thompson utiliza também de analogias imaginativas para ilustrar o relato. Um bom exemplo se dá quando o autor descreve a aparência dos policiais que participariam da convenção sobre drogas, ao entrar no saguão do Hotel Flamingo: “Todos estavam vestidos exatamente da mesma forma, com uma espécie de uniforme informal para Las Vegas: camisas de golfe Arnie Palmer e bermudas xadrezes, exibindo pernas brancas e lisas que terminavam em ‘sandálias de praia’ emborrachadas” (THOMPSON, 2007, p.114). Da mesma forma, ao descrever sua aparência ao entrar no hotel, o autor também é extremamente detalhista: Minha aparência era terrível: calças Levi’s velhas, tênis All Star brancos modelo Chuck Taylor... e minha camisa de Acapulco comprada por 10 pesos, que o vento da estrada já havia descosturado no ombro. Estava com uma barba de três dias, parecendo um bêbado de


rua, e meus olhos estava ocultos por trás das lentes espelhadas dos óculos modelo Saigon da Sandy Bull. (THOMPSON, 2007, p.16).

A construção dos personagens é outra característica literária de Medo e Delírio. Todos os personagens são criados em cima da estética da paranóia, do medo e da loucura – sempre com contornos ficcionais. A própria imagem de Thompson, personificada em Raoul Duke, traduz o excêntrico sujeito que ele era: paranóico e afoito, mas ousado e inconseqüente. Tais características, aliás, contrastam com a figura do jornalista imparcial, ético e objetivo. Dr. Gonzo remete mais à loucura: advogado junkie, sem limites quando o assunto é consumo de drogas e radicalmente avesso ao cumprimento da lei. Mais uma vez, o contraste é observado na condição profissional do personagem: um advogado que, em todo momento, corrompe a lei e a ordem.

Tais características, somadas ao uso da primeira pessoa em todo o relato, através de linguagem simples e informal, mas extremamente criativa, conferem caráter literário ao livro. Contudo, Medo e Deliro consegue ser literatura e jornalismo ao mesmo tempo, uma vez que, como afirma Manuel Rivas: Quando têm valor, o jornalismo e a literatura servem para o descobrimento de outra verdade, do lado oculto, a partir da investigação e acompanhamento de um acontecimento. Para o escritor jornalista ou jornalista escritor a imaginação e a vontade de estilo são asas que dão vôo a esse valor. Seja uma manchete que é um poema, uma reportagem que é um conto, ou uma coluna que é um fulgurante ensaio filosófico. Esse é o futuro. (RIVAS apud MEDEL, 2005, p.19).

Apoiados, ainda, nas diferenciações estabelecidas por Medel, podemos concluir que Thompson consegue atingir um objetivo jornalístico através da função de linguagem literária, uma vez que, no discurso literário, haja ou não a função referencial, deve dominar a função poética ou estética, que chama a atenção para o próprio texto e, por isso, conta com maior liberdade referencial. Em Medo e Delírio, designatum (criação do significado) e denotatum (a realidade fora do discurso) relacionam-se de modo multiangular: ora jornalismo; ora literatura.

Assim, Thompson consegue fazer com que sua obra transite por entre os dois meios, sem necessidade instantânea de classificação. O autor busca um objetivo e se utiliza da palavra e de seus elementos para alcançá-lo, característica tanto da literatura quanto do jornalismo. Dessa forma, consegue o que, na visão de Gabriel García Marquez, seria o mais importante


nesta relação: “O ideal seria que a poesia fosse cada vez mais informativa e o jornalismo cada vez mais poético” (MÁRQUEZ apud MEDEL, 2005, p. 20).

5.3.3 Relato contracultural do fim de uma geração

Durante a construção do relato, Thompson realiza reflexões e contextualizações que traçam, perfeitamente, o sentimento dos hippies diante do fim do movimento. Elementos como o escapismo por meio das drogas, a frustração, a auto-flagelação, a alienação e a descrença marcavam este sentimento, revelado durante toda a narrativa. Tal cultura hedonista, da brutalização do ser como forma de escape, iria marcar movimentos dos anos 1970, como o punk rock. A mudança no consumo de drogas, das substâncias psicodélicas aos tranqüilizantes, também marcam tal transição.

Durante todo o relato, Thompson apresenta a sua relação com as drogas e o seu sentimento quanto ao fim do movimento hippie, do qual participou ativamente. Dessa forma, revela o ímpeto contracultural em transigir as regras sociais para atingir seu objetivo: compor uma crítica do “sonho americano”. Como podemos observar no seguinte trecho, Thompson revela seu comportamento em relação aos norte-americanos de Vegas:

Isso mesmo. Desafiar os filhos-da-puta em seu próprio território. Cantar pneu na faixa de pedestres e arrancar derrapando, segurando uma garrafa de rum e enfiando a outra mão na buzina para abafar a música... olhos vidrados, pupilas dilatadas escondidas por trás de óculos escuros minúsculos de armação folheada a ouro, berrando coisas sem nenhum sentido... um bêbado realmente perigoso, fedendo a éter e psicose terminal. Acelerando até o motor chiar, esperando o sinal abrir...Não é muito comum ter uma chance como essa. Uma oportunidade de deixar os filhos-da-puta incomodados até a medula. (THOMPSON, 2007, p.24).

O comportamento brutal de Duke e Dr. Gonzo durante a viagem em Las Vegas, originado do consumo exorbitante de drogas e dos rompimentos de leis e convenções sociais, mostra o papel do escapismo, como forma de fugir da cruel realidade de frustração vivida pelos hippies naquele momento. Sobre esta relação, violenta e perigosa, entre as drogas e os órfãos do movimento hippie, Thompson comenta: “Uma das coisas que você aprende após anos lidando com drogados é que tudo deve ser levado a sério. Você pode dar as costas a uma pessoa, mas nunca dê as costas a uma droga” (THOMPSON, 2007, p.62).


Durante “viagem” tensa, após se drogar com uma cartela inteira de ácido, o advogado entra na banheira do quarto do hotel e pede a Duke, ameaçando-o com uma faca, que lance o rádio dentro da banheira – o que faria com que viesse a morrer eletrocutado – durante a nota mais alta de “White Rabbit”, hit psicodélico do Jefferson Airplane. Duke finge que vai atender ao pedido, e joga uma toranja em Dr. Gonzo, que fica terrivelmente alucinado e nervoso. Após sair do banheiro e tentar dormir, Duke reflete

Ignore o pesadelo dentro do banheiro. É apenas mais um horrendo refugiado da Geração do Amor, um pobre-diabo que não conseguiu agüentar a pressão. Meu advogado nunca conseguiu aceitar a idéia – geralmente defendida por sujeitos que abusaram das drogas e depois largaram tudo e especialmente popular entre quem está em liberdade condicional – de que é possível ficar mais chapado sem drogas do que com elas. Eu também não, por sinal. (THOMPSON, 2007, p.69).

A epígrafe do livro – uma frase de Dr. Johnson – ilustra, perfeitamente, o papel drogas no fim do movimento, bem como a intenção de usá-las como mecanismo de alienação e escapismo: “Quem faz de si um animal selvagem fica livre da dor de ser um homem” (THOMPSON apud JOHNSON, 2007, p.6). Este sentimento, fruto da frustração gerada pelas falhas do movimento, marca o fim da ideologia de uma geração. O final trágico, como vimos anteriormente, tem seu ponto máximo no show dos Rolling Stones, no Altamont Festival, em 1970, quando um motoqueiro dos Hell’s Angels mata, a facadas, um jovem negro que havia mostrado uma arma. O fim da filosofia “paz e o amor” é celebrado naquele momento. Contudo, Thompson transmite sua opinião sobre o envolvimento dos Angels no movimento e as ruínas da Geração do Amor:

Sonny Barger nunca entendeu as coisas direito, mas também nunca percebeu como chegou perto de uma vitória infernal. Os Hell’s Angels arruinaram tudo em 1965, entre Oakland e Berkeley, ao seguir os instintos trogloditas de Barger e atacar a linha de frente de uma marcha antibélica. Foi um cisma histórico na então Crescente Maré do Movimento Jovem dos Anos 60. Foi o primeiro abismo a se abrir entre os dois grupos... sua importância fica clara da história da SDS, que acabou se destruindo no esforço inútil de buscar reconciliação entre os interesses dos motoqueiros/vagabundos de classe baixa/trabalhadora e os ativistas/universitários de classe alta/média. Na época, nenhum dos envolvidos no movimento conseguiria prever as implicações do fracasso de Ginsberg/Kesey em convencer os Angels a unir forças com a Esquerda Radical de Berkeley. A cisão final aconteceu em Altamont, quatro anos mais tarde. Mas as coisas estavam claras para todos havia muito tempo, exceto para uns maconheiros da indústria do rock e para a imprensa do país. A orgia de violência em Altamont apenas dramatizou o problema. As realidades já estava estabelecidas; a doença era nitidamente terminal e as energias do Movimento já tinham sido dissipadas na busca pela autopreservação. (THOMPSON, 2007, p.189-190).


Durante o relato, Thompson apresenta críticas, por vezes sarcásticas, do envolvimento de ícones no movimento e suas tentativas de reagir ao fim da manifestação contracultural de uma geração. Ao citar, através de Dr. Gonzo, a música de Lennon – que tentava reerguer o movimento –, Thompson é mesmo sarcástico: O rádio gritava: “Power to the people – Right On!”. A canção política de Lennon, dez anos atrasada. “Esse pobre infeliz não deveria ter saído de onde estava”, comentou meu advogado. “Esses vagabundos só atrapalham quando tentam falar sério” (THOMPSON, 2007, p.27).

A crítica quanto ao Doutor Timothy Leary e à sua tentativa frustrada de pregar a expansão da consciência, através do consumo de ácido lisérgico, também é realizada, de forma reflexiva, durante outra observação sobre as ruínas do movimento: Mas o que é sensato? Especialmente aqui, em “nosso país” – nesta desventurada Era Nixon. No momento, estamos todos buscando a sobrevivência. Nada restou da velocidade que abasteceu os anos 60. Os estimulantes estão saindo de moda. Esse foi o defeito fatal na viagem de Tim Leary. Ele cruzou os Estados Unidos vendendo a “expansão da consciência” sem parar para pensar nas realidades sinistras e dolorosas à espera das pessoas que o levaram a sério demais. Depois de West Point e do Sacerdócio, para ele o LSD deve ter parecido completamente lógico... Mas não fico exatamente satisfeito ao saber que ele se deu muito mal, porque acabou levando muitos outros consigo. Não que isso tenha sido injusto: sem dúvidas eles Tiveram o que Mereciam. Todos aqueles usuários de ácido pateticamente entusiasmados, achado que poderiam comprar Paz e Compreensão por 3 dólares a dose. Mas sua perda e fracasso também são nossos. Em sua derrocada, Leary levou consigo a ilusão central de todo um estilo de vida que ele mesmo ajudou a criar... uma geração de mutilados permanentes, perseguidores fracassados, que nunca compreenderam a falácia mística essencial da Cultura do Ácido: o pressuposto desesperado de que alguém – ou ao menos alguma força – está cultivando a Luz no fim do túnel. (THOMPSON, 2007, p.188-189).

Thompson realiza forte crítica ao modo como o consumo de drogas foi tratado após o fim do movimento. O interessante é que, apesar de tais críticas, todo o livro se marca por tal relação brutal, pelo instinto destrutivo em abusar intencionalmente do uso de drogas, sempre imaginando “a luz do fim do túnel”. Em outras palavras, o jornalista, mais uma vez, é irônico, mas com ele mesmo e com sua própria condição de fracassado. Tais críticas, somadas aos diversos elementos contraculturais do livro, apontam o modo como o autor é transgressor em seu relato. Uma vez que a contracultura é marcada pela ruptura de padrões, e pelo ímpeto de mudar, de transgredir, segundo a definição de Joy e Goffman (2007), Thompson realiza duas rupturas: a primeira em relação aos padrões jornalísticos; a segunda, quanto aos padrões sociais. Thompson embarca na contracultura para realizar um relato que descreve, em detalhes, o sentimento dos participantes do movimento.


Como definido por Tim Leary, “a contracultura é a crista movente de uma onda, uma região de incerteza em que a cultura se torna quântica” (LEARY, 2007, p.9). É nesta “onda” que Thompson surfa ao longo de sua obra, na tentativa de definir uma outra: a “onda” do furor revolucionário que atingiu os anos 1960, que teve seu fim de forma frustrante. Thompson consegue, na seguinte passagem – um dos momentos mais marcantes do livro –, transmitir o sentimento compartilhado por diversos hippies:

Lembranças estranhas nesta noite nervosa em Las Vegas. Cinco anos depois? Seis? Parece uma vida inteiro, ou no mínimo uma Grande Era – o tipo de auge que nunca mais volta. San Francisco na metade dos anos 60 era um lugar muito especial para estar, em um tempo muito especial para viver. Talvez tenha significado algo. Talvez não, no fim das contas... mas nenhuma explicação, nenhuma combinação de palavras, músicas ou lembranças é comparável à sensação de saber que você esteve lá, que viveu naquela parte do mundo durante aquele momento. Seja lá o que isso tenha significado... História é um assunto nebuloso, por todas as merdas que acabam incluídas mais tarde. Mas, mesmo sem podermos ter nenhuma certeza sobre a “história”, parece bastante sensato imaginar que, vez ou outra, a energia de uma geração inteira atinge seu ápice num instante magnífico e duradouro, por motivos que na época ninguém compreende pro inteiro – e que, em retrospecto, nunca explicam o que realmente aconteceu. [...] Havia loucura rolando por todos os lados, a qualquer hora. Se não estivesse rolando do outro lado da baía, estava rolando depois da Golden Gateou descendo a 101 até Los Altos ou La Honda... Era possível ficar louco em qualquer lugar. Todos compartilhavam uma sensação fantástica de que estávamos fazendo algo correto, mesmo sem saber o que era... sentíamos que estávamos vencendo... E acho que essa foi a armadilha – essa sensação de vitória inevitável sobre as forças do Antigo e do Maligno. Não num sentido cruel ou militar; não precisávamos disso. Nossa energia simplesmente prevaleceria. Lutar não fazia sentido – tanto no nosso lado como no deles. Aquela era a nossa hora; estávamos na crista de uma onda imensa e linda... E agora, menos de cinco anos mais tarde, basta subir um morro íngreme em Las Vegas e olhar para o Oeste com a predisposição adequada para enxergar a marca da maré – o lugar onde aquela onda enfim quebrou e se retraiu. (THOMPSON, 2007, p.74).

Através desta passagem, Thompson aponta que a causa do fim da cultura hippie está na mesma razão que a originou: o impulso contracultural, “a sensação de vitória inevitável sobre as forças do Antigo e do Maligno” (THOMPSON, 2007, p.74). Tal impulso também norteia toda a produção de Medo e Delírio em Las Vegas, ao fazer com que ele possa ser considerado um produto contracultural extremamente valioso, ao quebrar barreiras e, dessa forma, levar “à ampliação dos limites estéticos e das visões aceitas” (GOFFMAN, 2007, p.54). Portanto, Thompson utiliza-se de instrumentos contraculturais para relatar, ainda que de forma abstrata, um sentimento de frustração gerado pelo fim do movimento, que, como já vimos, marca o ponto alto da contracultura moderna.


6 CONCLUSÃO

Durante o trabalho aqui apresentado, buscamos identificar como Hunter Thompson, no livro Medo e Delírio em Las Vegas, consegue, ao combinar elementos jornalísticos e literários, criar uma narrativa contracultural, capaz de registrar o comportamento e os sentimentos compartilhados pelos hippies durante a ruína do movimento que sacudiu os Estados Unidos nos anos 1960.

No tocante ao fazer jornalístico, pudemos observar que Thompson subverte características tidas como premissas básicas para a produção do jornalismo convencional, estabelecendo, assim, o modus operandi único e distinto do jornalismo Gonzo. O autor não segue a pauta inicial; não mantém o distanciamento do repórter em relação ao objeto; é totalmente parcial e subjetivo; utiliza um método de captação de informações totalmente antiético; e o principal: usa recursos da ficção durante todo o relato, rompendo, assim, com o compromisso com a verdade.

No entanto, ao escancarar os bastidores da reportagem e apresentar os motivos pelos quais a cobertura da Mint 400 foi inviabilizada, Thompson assume com o leitor um pacto bem mais verdadeiro do que o adotado pela imprensa convencional, que, muitas vezes, em seu processo de produção, suprime e omite informações ao receptor. A verdade de Thompson é dura e chocante, sem rodeios, sem anestesia.

O jornalista escolhe tratar, em sua obra, de suas experiências alucinadas ao lado de seu advogado, ilustrando, assim, os hábitos, costumes e sentimentos dos hippies ao final do movimento. Ao fazer tal opção, Thompson revela uma das principais características do jornalista: o faro jornalístico. O que era mais importante naquele momento? Traçar um relato sobre o fim de um dos movimentos contraculturais mais marcantes da história, ou fazer uma matéria convencional sobre uma corrida de motos? Enquanto profissional da imprensa, Thompson observou o que melhor havia de notícia em um local, como quando um jornalista sai para cobrir uma matéria “fria” e se depara com um furo de reportagem. O autor consegue identificar o que mais contribuiria com sua geração, bem como qual seria o melhor meio para atingir seu objetivo. Este meio, aliás, tornou-se contracultural, ao subverter padrões jornalísticos e sociais, em linguagem extremamente criativa e inusitada.


Contudo, durante toda a trama de Medo e Delírio, são expostas e comentadas diversas notícias, técnica que ajuda a contextualizar historicamente os fatos e acontecimentos da época, e que, em certos momentos, culmina com críticas ferrenhas à imprensa norteamericana e ao ofício jornalístico. Assim, concluímos que Thompson não só subverte as regras do jornalismo cotidiano, como critica sua concepção e produção, ao agir de forma contracultural. Todavia, ao mesmo tempo, revela sua habilidade em identificar as melhores notícias – característica essencial ao jornalista – e é levado pelo impulso social do jornalismo, uma vez que nasce “da pulsão de falar o mundo, falar o outro, falar ao outro; da atração pela diferença, pela novidade, pelo distante; do enraizamento no mesmo, no próximo e em si que marcam a palavra humana desde sempre” (FRANÇA, 1998, p.26).

A segunda ruptura de Medo e Delírio diz respeito à linguagem. A narrativa de Thompson assemelha-se ao discurso literário, uma vez que são utilizados diversos elementos da literatura, ao criar uma prosa corrosiva e poética. Os elementos principais que compõem essa linguagem são: humor, sarcasmo e ironia; detalhamento extremo, descrições cena a cena, quase fotográficas e uso de analogias, diálogos e reflexões. Durante todo o relato, o autor mantém a estética da paranóia e da loucura, o que, ao mesmo tempo, choca e envolve o leitor. O humor ácido – por vezes, negro – auxilia Thompson a desenvolver tal conceito, também ilustrado através da construção dos personagens que surgem ao longo da narrativa.

O estilo de Thompson, como concluído por Czarbonai (2003), é mais ousado e transgressor que o Novo Jornalismo, por utilizar instrumentos da ficção e do humor, além de provocar, ainda mais, a discussão sobre os limites da relação entre literatura e jornalismo. Apesar de ter a não-ficção como ponto de partida, a narrativa é ilustrada por contornos e elementos ficcionais, decorrentes, muitas vezes, de alucinações geradas pelo exorbitante consumo de entorpecentes. Medo e Delírio é ficção demais para o jornalismo; e jornalismo demais para a literatura. A linguagem foge aos padrões textuais do jornalismo e, ao mesmo tempo – em função de sua construção informal e simples –, difere-se do rebuscado universo do romance literário.. A terceira – e principal – transgressão de Medo e Delírio em Las Vegas relaciona-se aos padrões sociais preestabelecidos. Thompson e seu advogado mostram, através do modo como se comportam em Las Vegas, hábitos e costumes dos “contraculturalistas” do movimento hippie. A frustração em relação às ruínas do movimento fez com que a alienação e a


descrença política e social impulsionassem um escapismo por meio das drogas e a brutalização do “ser”, o que deu origem a certa contracultura hedonista, que guiaria os movimentos surgidos nos anos 1970.

Contudo, Raoul Duke e Dr. Gonzo mostram que a Outra América ainda estava viva, em meio ao conservadorismo norte-americano e ao início da guerra contra as drogas, durante a absurda “era Nixon”. Trata-se do fim do movimento hippie, que deixava órfãos, decepcionados com a “expansão da consciência” e com a desobediência civil, que marcaram a contracultura encabeçada por gurus do LSD, como Tim Leary, Ken Kesey e Allen Gisberg. Como afirma a crítica do livro feita pela Rolling Stone, que aparece na contracapa da edição brasileira, “o medo e o delírio sobre os quais Thompson escreveu não eram apenas seus; ele também deu voz ao pensamento de uma geração que estabeleceu ideais elevados e que naquele momento se chocava contra os muros da realidade americana”. Com o recuo da onda revolucionária dos anos 1960, descrita com maestria pelo jornalista, muitos hippies partiram em retiro espiritual para países orientais, outros afundaram-se nas drogas. A grande maioria voltou a se adaptar aos convencionais padrões de vida norte-americanos.

Thompson, em contrapartida, apesar das seqüelas deixadas pelo furor dos anos 1960, também levou seu impulso contracultural às suas próprias produções nas décadas de 1980 e 1990. E resistiu, até o final da vida, em 2005, quando, aos 67 anos, matou-se com um tiro de Magnum 44, enquanto conversava pelo telefone com sua esposa. Óbvio que sua morte não poderia, jamais, ser comum. É claro que ele precisava fazer barulho. Deveria ser chocante, definitivo, e a seu modo: transgressor e contracultural. Personagem principal das pautas que cobria, Hunter S. Thompson também foi protagonista de sua última história.

O jornalista foi cremado, e suas cinzas, atiradas ao céu de Aspen, por uma espécie de canhão gigante com a estrutura em forma do símbolo do Gonzo – um punho fechado, com uma semente de peiote –, durante celebração bancada pelo amigo e ator Johnny Depp. A idéia da excêntrica cerimônia foi do próprio Thompson. Sua esposa, Anita, explicou: “Ele gostava de explosões”. E como gostava. Em Medo e Delírio, o Duque Gonzo explode o jornalismo convencional, as barreiras que separam o ofício jornalístico da literatura, e os padrões sociais do conservadorismo norte-americano. O livro é jornalismo e é literatura e, ao mesmo tempo, não é nenhum dos dois gêneros. É contracultura. É Gonzo. É Hunter Thompson.


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