Marcha da Maconha

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SÃO PAULO 2014

SÃO PAULO 2014

A MARCHA DA MACONHA SÃO PAULO. A história da proibição e a luta pela legalização

Raphael Maroto



A MARCHA DA MACONHA SÃO PAULO. A história da proibição e a luta pela legalização



SÃO PAULO 2014

SÃO PAULO 2014

A MARCHA DA MACONHA SÃO PAULO. A história da proibição e a luta pela legalização FIAM FAAM São Paulo 2015 Raphael Maroto


Livro reportagem apresentado com trabalho de conclusão de curso, uma exigência para a obtenção do título de bacharel em jornalismo, do curso de Comunicação Social da UniFiamFaam.

Diretora dos cursos de Comunicação Social Profa. Dra. Marcia Avanza Orientador Prof. Dr. Alex Criado Diagramador Lucas Perine Revisão Gislene Silva

Qualquer parte desta publicação somente poderá ser reproduzida se citada a fonte.




Sumário Introdução

pg. 9

PARTE 1: ACENDE A primeira vez a gente nunca esquece Falem mal, mas falem de mim Solta o preso! Marcha da Pamonha Polícia para quem precisa A marcha mais bonita da cidade Vem pra rua! Um por todos, todos por Fábio

pg. 13 pg. 15 pg. 21 pg. 27 pg. 31 pg. 35 pg. 43 pg. 49 pg. 53

PARTE 2: PUXA Baseado em fatos reais Maconha S.A Pito do Pango Temporada de caça Cidadão Marijuana É proibido fumar? A volta do uso medicinal A maconha que existe em você Fasos Consequências de uma guerra E agora?

pg. 57 pg. 59 pg. 63 pg. 69 pg. 73 pg. 79 pg. 83 pg. 89 pg. 93 pg. 99 pg. 103 pg. 109

PARTE 3: PRENDE O Profeta Rodrigo Vinagre

pg. 113 pg. 115 pg. 135

ÚLTIMA PARTE: PASSA Relatos de um maconheiro

pg.147 pg. 149



INTRODUÇÃO

Introdução O ano é 1970. Você está na cidade de São Paulo, Brasil. Poucos meses atrás, o então General Emílio Garrastazu Médici assumia a presidência. Para alguns, seu mandato foi marcado por um período conhecido como Milagre Econômico. Com grande auxílio de capital estrangeiro, principalmente dos Estados Unidos, o Brasil vivia um forte processo de industrialização. A indústria avançava, os consumidores ficavam felizes. As famílias mais ricas puderam desfrutar no conforto de seus lares, e à cores, a grande vitória da seleção brasileira de futebol perante a Itália pela linda televisão recém-comprada. Placar elástico e inquestionável de 4x1. O povo grita, vibra e chora de alegria. Bons tempos, diriam alguns. Porém, para muitos brasileiros, 1970 seria um dos piores anos da história do Brasil. Dois anos antes, o Ato Institucional número 5, conhecido como o golpe dentro do Golpe, deu ao regime militar ainda mais poder do que já tinha. Qualquer pessoa considerada inimiga da nação, na opinião cheia de bom senso dos então governantes, poderia, e muito provavelmente seria, presa para que suas ações – ou planejamentos de ações – fossem devidamente questionadas. Para ser preciso, no Artigo 5º, inciso III, consta a "proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política" , caso contrário, podem ser aplicadas as seguintes medidas de segurança: "liberdade vigiada; proibição de frequentar lugares e domicílio determinado". Em 1984, o deputado federal Dante de Oliveira propõe à Câmara a volta das eleições diretas. O povo, muito insatisfeito com os rumos de seu país, teve no movimento conhecido como Diretas Já, uma de suas mais importantes manifestações populares já feitas. Milhões de jovens foram às ruas munidos de cartazes, sonhos e esperanças de reivindicar um Brasil melhor. 9


A MARCHA DA MACONHA SÃO PAULO Vinte e poucos anos se passaram e somos uma jovem democracia, ainda em crescimento. Mesmo aprendendo que quando alcança seus objetivos, arregaçando de verdade as mangas – como no caso das Diretas Já e no movimento Caras Pintadas, poucos anos depois –, nossa população ainda não é conhecida por ser preocupada ou questionadora. Pelo contrário, tem uma autoimagem preguiçosa e malandra. Ainda assim, a quantidade de manifestações claramente cresceu. Manifestações trabalhistas, sociais e políticas ganhavam cada vez mais espaço nos noticiários e nas conversas cotidianas. Em 2013, a quantidade e a intensidade destes protestos foram muito grandes. Uma das reinvindicações mais constantes é a legalização da maconha, erva de origem africana e que possui princípios alucinógenos, mas que há muito tempo é usada para finalidades terapêuticas, medicinais, recreativas, religiosas, entre outras, como veremos mais à frente. E é sobre esses protestos, conhecidos como Marchas da Maconha, mais especificamente os que ocorreram na cidade de São Paulo, que este livro trata.

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PARTE 1

ACENDE


A PRIMEIRA VEZ A GENTE NUNCA ESQUECE

Flyer da Million Marijuana March

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PARTE 1: ACENDE

A primeira vez a gente nunca esquece

Com muitas cidades aderindo o movimento algumas vezes as manifestações acontecem no mesmo dia. Assim, também é comum o termo Global Marijuana March 1

O ano agora é 1998. A virada do século. A nova era! O bug do milênio? As primeiras moedas do Euro eram cunhadas. Sergey Brin e Larry Page fundavam o Google. Osama Bin Laden declarava por vídeo a guerra contra cruzados e judeus. O presidente estadunidense Bill Clinton fica marcado pelo seu relacionamento amoroso com a estagiária Mônica Lewinsky. E, diferente de outros tempos, o Brasil perdia de 3x0 para a França na final da Copa. Foi também nesse ano que a luta pela legalização da maconha começou a ganhar âmbito global. Na cidade de New York há uma ONG chamada Cure-Not-War, cujo principal representante era o ativista Dana Beal (enjaulado desde 2009 por porte de maconha que, segundo ele, era para fins medicinais). Juntamente com revistas famosas no meio como a Cannabis Culture Magazine e a High Times Magazine, foram formadas discussões em diversos 15


A PRIMEIRA VEZ A GENTE NUNCA ESQUECE eventos a fim de organizar um grande protesto pedindo a legalização da maconha. Assim, no primeiro dia de Maio de 1998, houve o primeiro grande protesto sobre a criminalização da maconha, batizado de Million Marijuana March1 . E a cada ano o evento acontecia em mais cidades com cada vez mais manifestantes. Em 2002 eram 165, e em 2010 o número chegou a 330 cidades. No Brasil, a primeira Marcha da Maconha ligada à Global Marijuana March ocorreu na cidade do Rio de Janeiro em 2002. A responsável pelo evento foi Susana Sousa, portuguesa que estava de passagem em nosso país. Ela notou que no posto 9 da praia de Ipanema uma turminha volta e meia jogava fumaça para o alto e tinha um sorriso frouxo. Decidiu organizar ela mesma a edição brasileira da GMM. Ela tirou do próprio bolso o dinheiro usado no material de divulgação do evento: panfletos informando data e local, que na realidade eram sedas2 . A Marcha foi da Praça de Nossa Senhora da Paz, zona sul da capital carioca, até o famoso posto 9, em Ipanema, que fica ali pertinho. Não houveram confusões nem participações agressivas da polícia. Na época, a recém-fundada ONG carioca Psicotrópicus, que tem como missão combater a fracassada guerra contra as drogas, passa a organizar o evento. A manifestação de 2003 contaria inclusive com Fernando Gabeira, então deputado federal pelo PT. Porém, por causa da desistência do mesmo, o evento não foi concretizado. No ano de 2004, o bastão seguiu para o Movimento Nacional pela Legalização das Drogas (MNLD) integrado por ex-militantes do PT que, em seguida, fundariam o 16

Gíria para o papel usado para enrolar o cigarro de maconha. 2


PARTE 1: ACENDE PSOL. Um dos membros desse movimento é Renato Athayde Silva, mais conhecido como Renato Cinco. Ele viria a participar de diversas marchas Brasil afora e hoje é uma das principais figuras públicas ligadas à causa da legalização. Atualmente, é vereador do Rio de Janeiro pelo PSOL. Em São Paulo, um protesto chamado Passeata Verde foi organizado em diversos fóruns da internet de forma descentralizada, cada pessoa dando seu pitaco. A primeira aconteceu dia 1º de novembro de 2003, às 14h, no vão livre do MASP. Há relatos de que só a PM chegou na hora, aproximadamente quarenta deles. Os manifestantes começaram a chegar pouco depois, em torno de 14h30, totalizando cerca de 30 pessoas, ou seja, havia mais gente fardada do que relaxada. Aos poucos, esse número se inverteu e antes da caminhada até o Parque do Ibirapuera começar já era possível somar quase duzentos maconheiros ou adeptos da causa. Os manifestantes tomaram uma faixa da Avenida Paulista por volta das 16h20. Na ocasião foram ouvidos "gritos de guerra" que ficariam comuns nas marchas seguintes como "polícia é pra ladrão, pra maconheiro não" e "ei! polícia! maconha é uma delícia!". Essas "palavras de ordem" variavam. Quando, por exemplo, passavam pelo restaurante McDonald’s mudavam o grito para "maconha é natural, Big Mac é que faz mal". Até aí tudo certo, tudo lindo, só alegria. Houve um princípio de confusão quando a Passeata se aproximou do Parque e encontrou dezenas de policiais da Guarda Civil Metropolitana, que impediram por um tempo a entrada dos manifestantes. Uma vez dentro do Ibirapuera, os manifestantes se sentaram formando uma grande roda e colocando os cartazes e faixas usados no centro. Embora tanto os panfletos de divulgação distribuídos quanto os fóruns na web frisassem para não fazer uso da erva, era mais do que óbvio que ali, sentados na grama, em contato com a natureza, formando uma roda, 17


no maior clima de good vibrations iriam rolar uns becks3 . A polícia não ficou de braços cruzados. Levaram duas (azaradas) pessoas para a delegacia localizada na Rua Tutóia, a mesma que abrigava o DOI-CODI – aquele órgão da ditadura militar formado só por gente fina que raptava, torturava e matava deliberadamente quem quisesse. Parte dos manifestantes foi até a delegacia pedir a soltura dos companheiros, o que de fato ocorreu, só que horas mais tarde.

3 Uma das várias gírias para o cigarro de maconha.

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FALEM MAL , MAS FALEM DE MIM

Primeira edição da revista Tarja Preta, com o Capitão Presença na capa. Raridade comprada por R$1,00 em uma feira de quadrinhos.

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PARTE 1: ACENDE

Falem mal, mas falem de mim

Voltando para o Rio de Janeiro, já em 2007, houve uma boa e uma má notícia. A má foi o fracasso da manifestação daquele ano. Cerca de quinze pessoas compareceram. Praticamente apenas o pessoal do MNLD e alguns chegados. A boa notícia, entretanto, foi realmente boa. Uma outra frente de organização estava se formando desde os primeiros protestos em 2002. Esse novo grupo era formado por integrantes do fórum da internet Growroom – dedicado a promover e ensinar o plantio da maconha –, juntamente com outras pessoas engajadas na causa, dentre elas, estavam Maira Guarabyra, primeira brasileira voluntária do Greenpeace, Raoni Mouchoque, da rádio Legalize, e Luiz Paulo Guanabara, da Psicotropicus. Juntos, realizaram encontros esfumaçados e descontraídos, ora na casa de William Lantelme Filho (do Growroom) ora na loja de artigos canábicos La Cucaracha, que tem como dono o jornalista Matias (Maxx) Maximiliano. Maxx atuou como editor, três anos antes, na primeira edição do fanzine Tarja Preta que continha artigos sobre legalização, plantio e 21


FALEM MAL , MAS FALEM DE MIM cultivo, mas, principalmente, era recheado de histórias em quadrinhos underground. Vale a pena ressaltar que o próprio Matias Maxx estampou a capa da primeira edição da Tarja Preta desenhado como seu alter ego, o Capitão Presença – herói cartunesco cujo único poder é sempre ter um baseado em mãos, salvando a rapazeada e sendo realmente um cara presença. Na ilustração, o Capitão está na Lua segurando uma sorridente alienígena que seria mais sexy não fossem suas duas cabeças e seus três seios. Arnaldo Branco, criador do hilário personagem, afirma que Matias possui na vida real os mesmos poderes que sua contraparte de tinta. Daqueles encontros, nasceu a marca da Marcha da Maconha. Para isso, foi montado um website (marchadamaconha.org) com fórum para debates, artigos e notícias publicadas periodicamente, contendo um projeto gráfico que daria a cara do movimento pró-legalização no Brasil. No site, é possível encontrar também uma espécie de guia do manifestante, que explica ao interessado como organizar o evento em sua cidade, e há diversas imagens do logotipo disponíveis para download, para incrementar o visual do protesto. Esse domínio visa não apenas unificar os diversos coletivos que já lutavam pela causa, mas também atrair novos indivíduos que não conheciam essa manifestação. Essa Marcha da Maconha, realizada ainda em 2007 no Rio, atraiu mais atenção do que todas as anteriores. A fórmula do sucesso, por sinal, é uma velha conhecida das bandas de rock e heavy metal americanas: a promoção negativa, ou o famoso "falem mal mas falem de mim". Quanto mais as senhoras religiosas falavam mal de grupos como Kiss e Iron Maiden, acusando-os de pactos com o demônio, incitação à desordem e aos maus costumes, mais os roqueiros ficavam conhecidos. Com a Marcha da Maconha foi a mesma coisa. Com maior organização, veio maior divulgação. Com 22


PARTE 1: ACENDE maior divulgação, vieram mais manifestantes. Com mais manifestantes, as Marchas houve mais baseados de cartolina, mais rostos pintados, mais cartazes engraçados, mais gritos de guerra provocativos, mais tudo. Com todo esse fuzuê, evidentemente, viria a cobertura ,repleta de “boa vontade” , da mídia conservadora. Para se ter uma ideia do burburinho causado, o Ministério Público recebeu uma denúncia feita por setores da Igreja que consideravam a Marcha apologia ao crime e citava as crianças como as possíveis vítimas por serem altamente influenciáveis. Essa fala seria a principal crítica à Marcha: apologia às drogas. No âmbito judicial, essa questão era pautada pelo artigo 287 do Código Penal (“Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime”) e pelo segundo parágrafo do artigo 33 da Lei 11.343/06 (“Induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido da droga”). É muito comum esse exemplo das crianças. Mal sabiam os críticos que alguns anos depois teriam que se conformar com uma Marcha formada principalmente por mães que levaram seus filhos, contrariando assim a moral, os bons costumes, o caramba e o escambau. Os críticos não conseguiam – ou não queriam – observar que ninguém ali na Marcha agia como uma Testemunha de Jeová, batendo na porta da casa de neguinho e perguntando "o senhor teria um minutinho para ouvir sobre a maconha?". Muito pelo contrário! O que propunham era um debate sobre a descriminalização de uma planta extremamente versátil, só que de forma descontraída. Forma essa que não é lá muito atraente para, por exemplo, aquele povo que considera 1970 bons tempos. Aliás, é importante frisar que a organização da Marcha (assim como nas versões anteriores) pediu aos manifestantes para não fazerem uso da erva. E, assim como nas versões anteriores, a galera fumava mesmo. É claro que 23


FALEM MAL , MAS FALEM DE MIM não chegaram ao ponto de juntar a rapazeada para fazer um baseado gigante. Fumavam “na muquia4” . Afinal, querendo ou não, é uma boa forma de desmistificar "o bagulho". Ainda em 2007, membros do Ministério Público, o grande vilão da Marcha, articulam uma Ação Cautelar inominada “a que o Código de Processo Civil não atribui nome, mas, sim, o proponente da medida”5 (a Marcha é organizada de forma horizontal, não possuindo líderes) e um Mandado de Segurança impedindo que ocorram manifestações relacionadas à legalização das drogas. Esse impedimento foi um ato de covardia, pois o processo foi realizado de forma que uma possível defesa não teria tempo hábil de se articular, confundindo até mesmo os manifestantes com a falta de informações – é importante lembrar que nessa época as redes sociais não tinham o alcance que têm hoje.

Gíria para fumar escondido.

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5 Segundo o Glossário Jurídico disponível no site do Supremo Tribunal Federal.

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SOLTA O PRESO!

Carolina Iskandarian – G1

PolĂ­cias Militares observam manifestantes no que seria a Marcha da Maconha de 2009, no Parque do Ibirapuera

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PARTE 1: ACENDE

Solta o preso!6

Expressão usada para quando uma pessoa fica muito tempo com o cigarro de maconha, impedindo quem está na roda de fumar. Para a mesma finalidade também é comum a expressão “passa a bola, Romário”. 6

Em 2008, um dia antes dos protestos marcados em São Paulo e no Rio de Janeiro a promotores espalhados pelo país proíbem os atos. Na capital paulista, o promotor Marcelo Barone alegou que a Marcha caracteriza apologia ao crime e que quem se manifestar a favor do uso da droga pode ser preso em flagrante. Alguns dias antes, Marchas de outras sete cidades também haviam sido proibidas (Curitiba, Cuiabá, João Pessoa, Salvador, Belo Horizonte, Fortaleza e Brasília). Como no ano anterior, a versão paulistana da Marcha tinha como ponto de encontro o Parque do Ibirapuera. Pouco mais de cem pessoas estiveram presentes. Para impedir que o protesto ocorresse, viaturas do Garra, da PM, algumas poucas do GOE além de diversas motos da Rocam estavam vigiando os manifestantes, permitindo apenas que os manifestantes se reunissem, mas sem poderem marchar. A quantidade de protestantes 27


SOLTA O PRESO! era pouco superior à de policiais. Estes, na maior parte do tempo ficavam de prontidão ao lado das viaturas, só de vez em quando alguns se juntavam pra dar um rolezinho entre os manifestantes, para se impor um pouco e dar umas risadas irônicas depois de ouvi-los conversando. Um dos policiais do GARRA passou andando pelos manifestantes, como quem não queria nada. Com a mão abaixada, dava umas borrifadinhas aqui e acolá de gás de pimenta. Só para lembrar a galera quem é que manda e o que eles podiam fazer. Os do GOE mais pareciam Robocops. Trajavam uma farda supertransada, cheia de compartimentos e penduricalhos, estilo S.W.A.T. Um deles portava uma arma que aparentemente dispara granadas – espera-se que só as do tipo não letais – e uma submetralhadora nas costas. Os manifestantes ficaram na deles. Formaram uma roda e passavam um baseado gigante de cartolina. Ao invés de tragá-lo, quem segurava o baseado tinha a vez da palavra na conversa, podendo falar sua opinião sobre a legalização, o uso consciente da erva ou o que viesse à cabeça. Depois, o baseado era passado para outra pessoa que fazia o mesmo procedimento e assim por diante. Com certeza, a presença dos policiais era muito mais intimidadora para as famílias ali presentes do que a dos manifestantes, ora, de um lado um monte de soldado armado e com a faca entre os dentes e de outro uma turma bonita e animada falando sobre respeito e liberdade – e sobre maconha também, é claro, mas não de forma a incentivar quem passava por lá. Mesmo o protesto de fato não ocorrendo, a PM deu um jeito de fazer uma das suas más atuações. A vítima foi Fábio Hideki Harano que segurava um cartaz com os dizeres “não fumo, não planto, não vendo, não condeno. Legalize já!”. Os policiais o cercaram argumentando para que abaixasse o cartaz, sendo proibido de exibir tamanho insulto à ética e ao povo de bem. Estava praticamente trocando a chupeta dos bebês por baseados. Alegou que que manteria erguido o 28


PARTE 1: ACENDE cartaz até que isso pudesse prejudicar sua integridade física. Não demorou para enfim abaixa-lo. Sujeito esperto. Esperto e bastante injustiçado. A história entre Fábio e a polícia estava só começando nesse dia. Por esta ser a primeira Marcha no formato unificado que aconteceu em São Paulo, não é raro ler ou ouvir que esta foi a primeira de todas. O ano de 2009 foi ainda pior para a Marcha. No aspecto judicial ocorreu o mesmo: proibição às vésperas do evento. Em outras cidades do país, como o Rio de Janeiro, mesmo proibida, a Marcha aconteceu. Em Brasília, Florianópolis e Recife, o ato nem mesmo foi impedido, rolou numa boa, sem nenhuma represália policial. Algumas (ou desinformadas ou engajadas ou corajosas) pessoas estiveram presentes no Parque do Ibirapuera e lá fizeram uma roda para debate, poucas pessoas participaram, umas cinquenta no máximo. A roda falou bastante sobre a questão judicial que impedia a Marcha de acontecer em São Paulo. O evento acontece no parque do Ibirapuera pois o órgão que cuida dele, a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente é mais flexível para atos desse tipo que a subprefeitura da Sé ou a CET, que são notificados previamente para que os protestos ocorram sem repressão policial. Com seguidas proibições, as Marchas, aos poucos, ganharam novo foco: liberdade de expressão. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, os atos de 2009 terminaram com a promessa de um novo encontro de maconheiros e simpatizantes, mas em prol da liberdade de expressão.

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MARCHA DA PAMONHA

Jabba the Hutt/ Fórum Growroom

Fábio Hideki Harano com seu clássico cartaz “não fumo, não planto, não compro, não vendo, não condeno!”.

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PARTE 1: ACENDE

Marcha da Pamonha

Em maio de 2010, a Marcha paulistana contou com a presença de Paulo Teixeira, deputado federal pelo PT. Renato Cinco também estava lá. Os manifestantes foram chegando de pouquinho em pouquinho e totalizaram mais de trezentas pessoas. Após uma conversa entre representantes do evento e a PM, a Marcha foi liberada. A condição estabelecida nessa conversa foi a de que não poderia haver referências à maconha. Se cartazes, camisetas ou qualquer coisa que mencionasse maconha fosse visto, a PM agiria. E ninguém ali duvidou disso. Um caso ocorrido dois anos antes, no Rio de Janeiro, ilustra bem esse receio. Com o protesto proibido um dia antes, o desavisado manifestante Gustavo Castro Alves foi preso pela PM ao chegar no ponto de encontro pois Sara, sua simpática labradora, usava uma placa no pescoço em que estava escrito "a estupidez é a essência do preconceito. Legalize cannabis". A placa foi considerada apologia à maconha e Gustavo e até mesmo Sara foram detidos e encarcerados, sendo soltos algumas horas mais tarde. 31


MARCHA DA PAMONHA Empolgados por finalmente poderem marchar, os protestantes abriram as gargantas para os já tradicionais gritos "maconha, maconha" e "sou maconheiro com muito orgulho e com muito amor". Os próprios representantes da Marcha pediram para que isso não acontecesse, devido ao que havia sido combinado com a PM. Os maconheiros, malandramente, passaram a gritar "pamonha, pamonha". Essa restrição gerou gritos de guerra muito irônicos, como: "onha, onha, onha eu quero debater" e "abaixa o cassetete, do sistema eu não sou marionete" e alguns mais sérios: "não sou anônimo, não tô armado, esse debate tem que ser legalizado" e "hipocrisia ou democracia?". A PM não estava gostando nada. Tinham uma autorização judicial para impedir aquele ato e pretendiam fazer uso dela. Sempre que viam um cartaz considerado fora do combinado erguido, alguns policiais iam até o manifestante e pediam para que ele fosse guardado. É importante ressaltar que, diferentemente de outros anos, a PM se comportou bem. Toda vez que pediam para alguém guardar algo, os policiais eram cercados por manifestantes que gritavam bem nos seus ouvidos "abaixo à repressão" e até "pau mandado, pau mandado" e mesmo assim eles mantiveram a classe e não agrediram ninguém. Um cartaz do Growroom, por exemplo, que além do nome e do endereço do site tinha um desenho da planta da maconha, foi proibido de ser exibido, no entanto, quando questionado se o cartaz poderia ser mostrado mas com a parte do desenho da planta escondido, o policial permitiu. Demorou para os policiais pararem de pedir e começarem a simplesmente confiscar os cartazes e o fizeram de forma limpa, sem violência. Enquanto a Marcha caminhava pelo parque, o comando da operação dialogava com o deputado Paulo Teixeira, que defendia a manifestação e argumentava a favor dos cartazes proibidos. Fábio Hideki Harano novamente se deu mal. Chegou 32


PARTE 1: ACENDE atrasado no local da Marcha e não tinha ciência do que podia e do que não podia. Levava seu famoso cartaz "não fumo, não planto, não compro, não condeno. Legalize já!" com a última parte dobrada para trás, ocultada. Mesmo com a insistente argumentação de Paulo Teixeira, que contestou o cunho apologético da mensagem, Fábio foi levado para a delegacia. O chefe da operação disse que a fase dos avisos já havia passado e que Fábio seria detido para que o delegado averiguasse sua situação. O que foi dito entre Fábio e o delegado só os dois sabem. O fato é que Fábio sofreria ainda mais repressão injusta no futuro. Será que ele ficou marcado desde 2008 ele ficou marcado?

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POLÍCIA PARA QUEM PRECISA

PM observando manifestantes no vão do MASP na Marcha da Maconha de 2011 Raphael Maroto

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PARTE 1: ACENDE

7 7 Polícia Polícia parapara quem quem precisa precisa

Trecho da música “Polícia” , da banda Titãs. Escrita por Tony Belloto e Sergio Britto. 7

Escrito em minúsculo, mesmo. 8

A Marcha de São Paulo de 2011 foi uma das mais significativas para o movimento. Mas às custas de muito suor (de tanto correr) e lágrimas (obrigado pelo gás lacrimogêneo e pelo spray de pimenta, obrigado mesmo). O protesto mais uma vez foi proibido aos quarenta e cinco do segundo tempo. O que não impediu o maior público da Marcha paulistana de ir ao vão livre do MASP, que ficou lotado com mais de mil manifestantes. Na concentração, além de várias rodas para debate, intervenções artísticas e até uma pessoa que, aos gritos, anunciava que iria distribuir drogas (sendo elas café, refrigerante, doces e tabaco), havia também muita gente que aproveitou para fumar unzinho. Vale ressaltar que o vão do MASP há tempos é uma das zonas neutras da cidade. Em uma zona neutra você pode chegar com seu baseado e fumar numa boa, sozinho ou em turma. No caso do MASP, os policiais da Base Móvel – também conhecida 35


POLÍCIA PARA QUEM PRECISA

Raphael Maroto

Galera contrária da legalização também esteve presente.

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PARTE 1: ACENDE como nave mãe – que fica exatamente do outro lado da rua geralmente não ligam muito. Os maconheiros fingem que não fumam e os policiais fingem que não veem. E assim vai, na maior hipocrisia. Havia também uma turma contrária à legalização. Posicionados ombro à ombro, um do lado do outro, em postura e expressão militar, pareciam um monte de policiais à paisana querendo ser encontrados. Esse grupo, formado pelas organizações Resistência Nacionalista, União Conservadora Cristã e Ultradefesa, seguravam cartazes citando leis que condenam a apologia e um endereço eletrônico, o ultradefesa.blogspot.com. Nesse site (que recebeu sua última atualização em 2012, criticando a Parada Gay daquele ano: "Vejam a sodoma e gomorra8 do Brasil"), fica evidente o flerte do grupo com o neonazismo. Três membros desse coletivo estiveram presentes no Ibirapuera na Marcha do ano anterior. Lá, um deles disse que apoiar a legalização "é cuspir na cara das milhares de famílias que são vítimas das drogas e do tráfico" , e completou, em tom conspiratório: "se você legalizar a maconha hoje, você vai estar entregando o poder para as FARC, que já estão se instalando no Brasil". Em 2011, registraram em vídeo todo o script moralista. Se fizeram de bons moços. O narrador comparou a postura do grupo com a dos "viciados" , que ofendiam quem tivesse opinião contrária. Os maconheiros de fato fizeram isso. Quem ajudou a formar uma corrente humana entre um grupo e outro, evitando maiores conflitos, foi Renato Cinco. O povo contrário à legalização ainda cantou o hino nacional e rezou um Pai Nosso, super bonitinhos, super do bem. Quase não se nota que quando a Marcha saiu "cedendo à pressão" por eles imposta (afinal, todos sabem que o conceito de marchar é ficar parado) a turminha do bem ficou berrando "choque, choque". Quem é que não aceita a opinião contrária mesmo? Como são pacíficos, não? Como são democráticos! Conforme o número de maconheiros crescia em 37


POLÍCIA PARA QUEM PRECISA

Rafael Henri

Júlio Delmanto, do coletivo Desentorpecendo a Razão, sendo detido pela PM. A palavra “maconha” de sua camiseta está tampada por uma fita adesiva preta.

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PARTE 1: ACENDE relação ao de policiais, eles foram se aquietando e não agrediram ninguém. Infelizmente, não se pode dizer o mesmo sobre o monstro que invocaram. Voltando ao que interessa, o combinado entre a PM e a Marcha foi o mesmo do ano anterior: manifestação em prol da liberdade de expressão e contra a proibição do canábico ato. Como no ano anterior, qualquer cartaz, camiseta ou afins que fizessem alusão à maconha seriam proibidos. Isso foi cumprido. Mas na hora em que os manifestantes se preparavam para sair, o comando da operação voltou atrás, falando que não iria rolar. Realmente ainda haviam muitas pessoas gritando “maconha” ou com material proibido. Um debate quente aconteceu entre a PM e Júlio Delmanto, do coletivo Desentorpecendo a Razão – ou DAR. Nesse momento em que a PM se aglomerou em volta de Júlio, que alegou mais tarde estar distribuindo um jornal feito pelo movimento, os participantes da manifestação aproveitaram e partiram em marcha, na direção da rua da Consolação e de lá para a Praça da República. Mal a aglomeração de pessoas alcançou a esquina da Paulista com a Peixoto Gomide (a segunda depois do MASP) a Tropa de Choque começou a atuar. O pelotão de frente fazia a proteção (ou intimidação) formando uma parede de escudos. Atrás deles ficavam o comando da operação e soldados com lança granadas de efeito moral(ista) e escopetas de bala de borracha. Enquanto caminhavam, batiam nos escudos e gritavam “choque”. Avançavam de pouquinho em pouquinho, parando diversas vezes e sempre que o faziam davam uma batida mais forte no escudo acompanhada de um urro, tática espartana de guerra. Em uma dessas paradas, o comandante pediu para um dos organizadores lá próximo para deslocar a Marcha para a calçada: “Você tem dez minutos”. O sujeito, que não tinha megafone nem nada, deu meia volta e, quase desesperado, 39


POLÍCIA PARA QUEM PRECISA gritou aos demais o que foi solicitado. Os manifestantes, aos poucos, deixaram duas mãos da pista livres para os carros. Mesmo assim, antes dos dez minutos passarem, na altura do número 2000 da Paulista, onde fica o Conjunto Nacional de um lado e um shopping center do outro (ou seja: muitas famílias) os policiais dispararam a primeira bomba. BUM! Ecoou bem alto. A multidão à frente evidentemente se assustou. Boa parte das pessoas que estavam no fundo da aglomeração correram para dentro do Metrô, para as esquinas, para frente. Para onde quer que fosse. Em registro amador é possível ver que até um policial estava passando mal por causa do gás. Bela operação! Os marchantes tiveram uma atuação exemplar. Inquestionável. Se nos protestos de 2013 a mídia caiu em cima dos black blocs, na Marcha de 2011 não teriam tal argumento. O protesto seguia rumo à Consolação pacificamente, aos gritos de “sem violência” , “abaixo a repressão” , “polícia é pra ladrão, pra maconheiro não” e “você aí fardado também é explorado”. O Choque disparava cada vez mais bombas. Foi assim na Paulista, foi assim na Consolação e foi assim na rua Augusta, caminho que parte considerável dos manifestantes andou para chegar na Delegacia que Júlio Delmanto estava detido. Queriam pedir sua soltura. É possível encontrar vários vídeos na internet que mostram a operação na Augusta. A GCM enviou viaturas que chegavam em alta velocidade, dando a impressão de que iriam atropelar quem estivesse na frente. Os guardas agrediram inclusive jornalistas. Um deles tomou uma violenta rasteira por trás e foi erguido logo em seguida pelo colarinho da camisa. Chamou a atenção dos manifestantes para si enquanto sofria outra bicuda. Ao tentar se soltar do primeiro soldado, um segundo chegou, com tudo, chutando-o na altura da cintura. Ele ergue a câmera fotográfica que segurava desde o começo e pede para alguém segurar. Ele só não esperava que esse alguém seria 40


PARTE 1: ACENDE o primeiro policial que o agrediu, que tomou o equipamento de forma bruta. Um manifestante se aproximou pedindo calma e tomou uma cassetada de uma terceira policial. O caos tomou a rua. Carros e até ônibus que desciam em direção à região central da cidade tiveram que tomar a pista na contramão. Seis manifestantes, incluindo Delmanto, foram presos, mas seriam soltos no mesmo dia. No fim do protesto, ao lado da praça da República, organizadores e manifestantes se dispuseram a voltar ao MASP na semana seguinte pedindo liberdade de expressão.

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A MARCHA MAIS BONITA DA CIDADE

Fabio Braga/Folhapress

Faixa de frente do ato da segunda Marcha da Liberdade de S達o Paulo em 2011.

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PARTE 1: ACENDE

A marcha Polícia mais para bonita quem daprecisa cidade7

Segundo reportagem do jornal Folha de São Paulo. 9

A conta saiu caro para a polícia. A agressão foi divulgada em vários jornais pelo mundo. Até Geraldo Alckmin, governador do estado, criticou a atuação policial. Após apuração da PM, foi constatado que realmente houve repressão policial, como se precisasse ser muito sagaz para chegar a essa conclusão. Sem que divulgassem muitos detalhes, dois policiais militares foram afastados. A Marcha da Liberdade, marcada para uma semana após a da maconha, ganhou diversas frentes que se juntaram em uma única voz aos gritos antes silenciados. Além do pessoal canábico, participaram também artistas de rua, movimentos raciais, LGBT, pessoas a favor do uso da bicicleta, contra o desmatamento florestal, contra a hidrelétrica de Belo Monte, entre vários outros. Ao todo, trinta e cinco entidades9 estiveram presentes, totalizando aproximadamente duas mil pessoas. 43


A MARCHA MAIS BONITA DA CIDADE Essa marcha foi muito bonita, muito colorida e mais lúdica que as anteriores. Na concentração, no vão do MASP, uma banda de rock tocava com a ajuda de geradores. Em seguida, quem assumiu foi a rapazeada do maracatu que batucou quase que incessantemente até o final do protesto. O batuque esteve presente não apenas nas Marchas dos anos seguintes mas em vários outros protestos. Havia também um cara com um saxofone, vestindo terno, gravata e chapéu, no melhor estilo jazzman. Com seu instrumento, tocou o clássico refrão de Bezerra da Silva "vou apertar, mas não vou acender agora". Quando os manifestantes atingiram a esquina da Paulista com a Consolação, viram várias bexigas coloridas caindo do alto de um prédio. Nessa hora, um dos manifestantes comentou com um policial sobre a beleza das bexigas no céu e ele respondeu secamente, com uma cara de pouquíssimos amigos, "bonito". Ele pode até ter achado mesmo, mas não queria de forma alguma admitir. É importantíssimo registrar aqui a mudança positiva na atuação dos policiais na Marcha da Liberdade e nas demais Marchas da Maconha que vieram nos anos seguintes. Não houve bomba, tiro ou spray. Se comportaram muito bem, assegurando o direito de livre manifestação e respeitando a ordem, mantendo o tráfego de veículos e a vida cotidiana da cidade enquanto o protesto acontecia, fazendo muito bem o seu trabalho. Quando jornais noticiam protestos em que se pratica o que chamam de tática black bloc (ou seja, manifestar sua insatisfação de forma não pacífica – embora o alvo da violência na grande maioria dos casos sejam coisas e não pessoas), focam muito no confronto. Pouco falam sobre a causa do protesto ou sobre o discurso dos organizadores. Quando a notícia foi a violência policial, eles viraram os vilões da vez. Claro, não só a mídia e a opinião pública estavam em cima, mas também, dessa vez, a Justiça permitiu o ato. A PM falhou em vários 44


PARTE 1: ACENDE momentos, mas não podemos esquecer que eles seguem ordens. E é aí que mora o real problema. Mas dessa vez, em 2011, deu tudo certo. A polícia se posicionou do lado dos manifestantes, formando um cordão. Houve apenas duas ocasiões isoladas que foram mais tensas. A primeira, ainda na Paulista, quando membros do Movimento Passe Livre – o mesmo que lideraria os protestos de julho de 2013 – estenderam uma grande faixa na varanda do Conjunto Nacional que foi rapidamente retirada pelos próprios seguranças do estabelecimento. A segunda ocorreu no final do protesto, bem em frente à Igreja da Consolação. Lá, dois skinheads desocupados que provavelmente não estavam desde o início do ato decidiram dar socos e chutes em um carro da rede Globo. Foram detidos pela PM. Fora isso, o ato rolou numa boa, na paz. Na praça da República, ponto de encerramento, havia uma máquina que projetava imagens gigantes usando os prédios como tela. Essas imagens eram dos próprios manifestantes que fizeram fila para estampar nos altos muros seus sorrisos e seus cartazes. Quase um mês depois, aconteceu uma segunda edição da Marcha da Liberdade. Dessa vez, cerca de quarenta cidades em todo o Brasil aderiram ao movimento. No dia 15 de junho de 2011, o STF determinou, em decisão unânime, que a Justiça brasileira não pode proibir atos reivindicatórios alegando que os mesmos fazem apologia às suas causas. Como disse o relator do caso, ministro Celso de Mello: "a polícia não tem o direito de intervir em manifestações pacíficas. Apenas vigiá-las para até mesmo garantir sua realização. Longe dos abusos que têm sido impetrados". Disse ainda que "ideias podem ser mais poderosas que a própria espada. E é por isso que as ideias são temidas pelos regimes de força ". Com a permissão, foi marcada uma nova Marcha da Maconha ainda em 2011 em São Paulo. Cerca de mil pessoas se reuniram novamente no vão do MASP. Dessa vez, o trajeto 45


A MARCHA MAIS BONITA DA CIDADE foi alterado. Pela primeira vez os maconheiros passariam pela rua Augusta, que tem tudo a ver com o protesto. A partir do ano 2000, de pouquinho em pouquinho, os puteiros deram lugar à bares e restaurantes descolados. Nas ruas que eram cheias de prostitutas passaram a serem vistos jovens de variadas idades, classes sociais e tribos. A rua Augusta é uma das mais plurais de São Paulo. A proximidade permitiu aos moradores e lojistas da rua interagir com os manifestantes. Pessoas faziam gestos da sacada dos prédios, cozinheiros bem humorados mostravam seu apoio à causa. A Marcha fez a curva na rua Dona Antônia de Queiroz, e chegou à Consolação. De lá, caminharam pacifica e esfumaçadamente até a praça Dom José Gaspar, que fica bem ao lado do Teatro Municipal.

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VEM PRA RUA!

Daia Oliver / R7

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PARTE 1: ACENDE

Polícia para Vem quem pra precisa rua! 7

Nos anos seguintes, a Marcha da Maconha só cresceu. Em 2012, a sempre diminuta estimativa da PM apontava dois mil manifestantes. A organização disse que havia cinco mil. Ao contrário do ano anterior, não foram registrados casos de agressão ou repressão policial. Em 2013, enquanto a PM contou mil gatos pingados, os maconheiros alegaram ter reunido dez mil pessoas no ato. Renato Cinco, sempre presente, disse que aquela foi a maior Marcha da Maconha que já presenciou no Brasil. Henrique Carneiro, professor de história da USP e um dos principais estudiosos sobre as drogas no Brasil, deu uma aula pública no começo do ato. Nesse ano, o protesto passou a ser formado em blocos. Cada bloco representa um ponto a ser debatido. Haviam os blocos do uso medicinal, religioso, feminista, antimanicomial, psicodélico e sobre autocultivo. Outra novidade: no final da manifestação houveram apresentações musicais no coreto da Praça da República. Tocaram os rappers Sandrão e Sombra, além da banda de reggae Soul Shakers, homenageando Bob Marley, um dos ícones da cultura canábica no mundo. 49


VEM PRA RUA! O ano de 2013 ficaria marcado pelos muitos protestos que aconteceram no Brasil inteiro. Assim como a Marcha da Liberdade, essas manifestações tinham caráter plural, reivindicavam várias causas. Em São Paulo, houve um direcionamento maior para a questão do aumento da passagem de ônibus. Esse ponto foi atendido e o valor voltou ao que era antes dos movimentos. Ao contrário das manifestações canábicas, os protestos de 2013 foram muito violentos. Na mídia convencional, a causa do protesto quase não era noticiada. O foco estava sempre no conflito da polícia com os black blocs. A Marcha da Maconha desse ano foi em junho, um mês antes da coisa pegar fogo. Felizmente (ou infelizmente) o conflito se deu só de um lado. Em uma ação completamente desnecessária, a PM deteve um jovem de 17 anos suspeito por porte de maconha. Evidentemente, esse não é o melhor critério. Maconheiro fuma em tudo que é lugar ou evento. Muitos desses lugares ou eventos a própria PM que faz a segurança. O próprio MASP, ponto de encontro das últimas Marchas, é, como dito anteriormente, uma das zonas neutras da cidade. Naquele mesmo no ato haviam centenas de pessoas que poderiam ser enquadradas nesse mesmo critério. Não só pelo porte mas pelo uso. A causa real desse procedimento de deter o menor foi a tensão dos policiais. Fizeram o procedimento de forma tola. Vários soldados cercaram um jovem e o conduziram por quase dois quarteirões da estreita rua Augusta. Essa tensão logo foi passada aos manifestantes, que responderam com algumas tentativas de argumentação, muito barulho e gritos contrários à repressão e até objetos arremessados. A PM, que não estava para brincadeira, devolveu cassetadas e spray de pimenta. Em 2014 não foi registrada nenhuma ocorrência. Mais uma vez os blocos temáticos estiveram presentes. Eram os blocos feminista, psicodélico, autocultivo, uso medicinal, religioso e a novidade, o bloco da esquerda canábica. O trajeto 50


PARTE 1: ACENDE foi praticamente o mesmo. Dessa vez foi encerrado um pouco antes da Praça da República. O local escolhido foi a Praça Roosevelt. O evento foi ainda maior que no ano anterior. Em imagens feitas nos prédios da Augusta fica evidente o aumento. Não só mais quarteirões estavam ocupados pela aglomeração, mas as duas vias da rua estavam ocupadas – até na calçada. A polícia fazia-se cordão do lado esquerdo da caminhada. No lado direito, os marchantes fumavam maconha tranquilamente, numa boa mesmo. Havia tanta maconha que estava caindo do céu. Na esquina da Augusta com a Dona Antônia de Queiroz, um cara numa sacada pacientemente bolou um baseado, cortou-o no meio e jogou para os manifestantes, que faziam uma roda ansiosa embaixo do sujeito. Se algum maconheiro no ato ainda estava inibido pela presença da polícia, depois dessa, não tinha mais desculpa. Na Roosevelt, enfim foi solto um gigante baseado de mentirinha, amarrado a várias bexigas verdes. Os maconheiros ficaram um bom tempo na Roosevelt. Foi um fim de tarde gostoso. Havia uma banda independente da Marcha que tocou um som instrumental virtuoso. A vitória da Marcha de 2014 foi ser maior que a anterior. Os maconheiros estavam à vontade reivindicando seus direitos. As pessoas ao redor também estavam tranquilas. No MASP, a turma que se reunia para trocar figurinhas do álbum da Copa não se intimidou. A cobertura do evento foi mais abrangente. Programas noticiosos e até humorísticos de grande audiência como o “CQC” e o “Pânico” estiveram lá. Para a mídia a Marcha tornou-se mais um evento sazonal reportado nos jornais como uma manifestação popular.

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UM POR TODOS, TODOS POR FÁBIO

Avener Prado/ Folhapress

Fábio detido após a manifestação contra a realização da Copa em São Paulo em 2014.

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PARTE 1: ACENDE

Um Polícia por todos, paratodos quem por precisa Fábio7

Em 2013, com a violenta atuação da polícia nos protestos do Movimento Passe Livre, os manifestantes passaram a se proteger do gás lacrimogênio com panos, umedecidos de vinagre, pressionados contra boca e nariz. Porém a eficácia desse método contra os efeitos dabenzalmalonitrila (substância do gás) é apenas um mito. O mais recomendável é sair correndo mesmo. E tente não respirar pela boca. Se o fizer a sensação de ardência piora muito. 10

Cerca de dois meses depois da Marcha, em um dos vários protestos contra a realização da Copa do Mundo de futebol em nosso país Fábio Hideki Harano sofreu seu mais recente e mais grave golpe da polícia militar. No dia 23 de junho uma manifestação contra a Copa aconteceu na avenida Paulista. Após a dispersão do protesto Fábio foi para o Metrô Consolação – quase no final da Paulista. Quando ia entrar na catraca ouviu um barulho de tiro. Voltou a vestir seu kit proteção: capacete de moto e luvas. Trazia ainda uma máscara, panos e vinagre10. Saiu da estação para fotografar a confusão que ouviu. Devia ter ido para casa. Ao subir as escadas Fábio foi cercado. Com gritos de “solta” ao redor ele foi detido por acusado de ser um blac bloc. Em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, Fábio conta que os policiais implantaram em sua mochila um explosivo caseiro. Segundo a mídia Fábio era um dos líderes dos 53


UM POR TODOS, TODOS POR FÁBIO blac blocs, um manifestante realmente perigoso. Após sua prisão começou a pipocar na internet várias notas de repúdio em relação a atitude da polícia militar. Fotos de um Fábio nerd surgiram. Leitor de quadrinhos, fã de desenhos japoneses, inclusive fazendo cosplay11 de Seiya12 em eventos de cultura pop. Muito diferente da imagem que se tem de um cara violento. Mas não é só isso. Coletivos como o Desentorpecendo a Razão publicaram em seus sites notas onde alegavam conhecer Fábio pessoalmente, e que violência não era do seu feitio. O padre Julio Lancellotti publicou em seu perfil pessoal no facebook que a prisão foi forjada. “Vi a prisão de um jovem nas escadas do Metro Consolação, muitos seguranças e policiais para segurá-lo e com muita humilhação revistá-lo”. “Mais de dez policiais do DEIC e o rapaz foi levado de maneira triunfante pelos caçadores para um camburão. Vi e acompanhei toda a ação cinematográfica da PM, Policia Civil, seguranças e metroviários”. O caso ganhou a mídia. A partir daí a verdade não demorou á surgir. Após 46 dias preso, o juiz Marcelo Matias Pereira solta Fábio. Segundo laudos policiais sobre o caso, ficou comprovado que ele não carregava nenhum tipo de explosivo. Fábio Hideki Harano talvez seja o principal exemplo do abuso de poder policial contra manifestantes. Mas tenho certeza que na Marcha de 2015 Fábio estará lá. E tomara que leve seu tradicional cartaz.

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Fantasias fiéis de personagens da cultura pop. 11

Personagem principal do desenho “Cavaleiros do Zodíaco” que fez sucesso no Brasil no início da década de 90 na extinta rede Manchete de televisão 12



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PARTE 2: PUXA

PARTE 2

PUXA

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BASEADO EM FATOS REAIS

Wikimedia Commons

Shen Nung, o Divino Agricultor, retratado em aquarela

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PARTE 2: PUXA

Polícia para quem precisa Baseado em fatos reais7

A tradução de Shen Nung é justamente Divino Agricultor, responsável por ensinar práticas de agricultura e medicinais, também é conhecido como Imperador dos cinco grãos. 1

O ano é 2737 a.C. Você é chinês. Após mais um dia na lavoura de arroz, começa a sentir uma incômoda dor de cabeça. Sabe que não é nada muito sério, mas mesmo assim vai até o ancião da vila se consultar. O velho, enquanto desliza a mão pela extensão de sua longa e branca barba, pondera sobre o que fazer. Súbito, levanta as sobrancelhas e arregala os olhos, lembrando de algo que iluminou seu questionamento. O velho se levanta, deixando-o apreensivo. Ele caminha lentamente até a prateleira. De lá, retira um grande livro, o Pen Ts'ao Ching. Até um humilde agricultor como você sabe que este livro fora escrito pelo formidável Shen Nung, o Divino Agricultor1 . O velho coça a barba enquanto procura o que leu sobre uma erva. Após checar a informação, ele vai ao jardim para retirar algumas folhas da mesma. Não demora e você toma um medicamento extraído da erva. O velho fala que 59


BASEADO EM FATOS REAIS você pode ir para casa e que ficará melhor. De fato, não só a dor de cabeça passou como você também está estranhamente alegre, bem humorado. Em casa, você brinca animadamente com as crianças. Mais tarde no jantar, os legumes estavam especialmente apetitosos. O sono chega e, ao se deitar, você nota que sua mulher nunca esteve tão linda. No dia seguinte a lavoura é boa e você não sente nenhuma dor. Você decide convidar aquele velho sábio para jantar em casa essa noite, como forma de demonstrar sua gratidão. Certo, provavelmente você não está na China, não é chinês e – com certeza – não tem quase cinco mil anos. Mas, há cinco mil anos, é bem provável que essa história tenha acontecido. Se olharmos ainda mais para trás, em 10.000 a.C, podemos dizer que a civilização surgiu graças à maconha. No período conhecido como Paleolítico, nós ainda capengávamos para sobreviver. Na realidade estávamos no processo de nos tornar o Homo Sapiens. No começo desse período, por volta de três milhões de anos atrás, éramos praticamente macacos. Naquela época, nossa principal descoberta foi o fogo. Em 8.000 a.C demos um passo à frente. Deixamos de ser nômades para estabelecer moradia fixa. Concluímos que funcionamos melhor juntos, vivendo como uma equipe. Os mais velhos ou mais fortes tornaram-se líderes. Cada pessoa tinha sua função. Concluímos também que os animais são muito mais fortes que nós, e que existe outra forma de alimentação. Além de caçadores, nos tornamos cultivadores. Em uma noite qualquer, com um céu estrelado e o rugido ameaçador de criaturas enormes ao fundo, você se senta próximo à grande fogueira, no meio da aldeia. Ali também está um agricultor. Ele mexe empolgado numa planta. Você sabe que planta é. Uma verdinha com folhas pontudas e cheiro doce. Mas o que ele está fazendo te deixa intrigado. Após muitos urros, gestos e caretas, ele consegue explicar que a partir daquela planta fará cordas e tecidos. Você não sabe muito bem o que é isso. Aliás, nem sabia que plantas 60


PARTE 2: PUXA

Como dito no programa “Um pé de quê?” , do canal Futura. Consultoria científica de Harri Lorenzi. 2

Segundo o artigo “Proibição da maconha no Brasil e suas raízes históricas escravocratas” , escrito por Marta Peres, Doutora em sociologia e André Barros, advogado criminalista e advogado da Marcha da Maconha de São Paulo. 3

serviam para outras coisas além da alimentação. Aquela erva verdinha, ou, como a conhecemos hoje, a maconha, foi a primeira planta cultivada sem fins alimentícios2. Foi assim que chegamos ao período Neolítico, inaugurado com o início da agricultura. Voltando para a China, você, humilde agricultor, sabe que aquela erva3 que se tornou um remédio também é usada para fazer cordas, tecidos e até papel. É muito provável que a edição que o velho curandeiro tinha do Pen Ts'ao Ching, a farmacopeia mais antiga da qual se tem registro, fosse de papel de maconha. Falando nisso, Johannes Gutenberg, inventor da imprensa, usava papel produzido a partir da fibra da erva . As primeiras Bíblias feitas com essa técnica eram de, adivinhem, maconha! Engraçado. A igreja católica condenou fortemente a erva. Alguns até chamam o baseado de cigarrinho do capeta. A Constituição estadunidense, aprovada em 1787, orgulhosamente exposta como um monumento à liberdade no prédio dos Arquivos Nacionais, foi feita de quê? Ma-co-nha. Fato no mínimo contraditório, já que os Estados Unidos foi o país que mais desperdiçou dinheiro para erradicar a erva. Não queriam simplesmente que ela não fosse fumada. Queriam que a cannabis fosse extinta da humanidade.

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MACONHA S.A

Paul Delaroche - Wikimedia commons

Napole達o Bonaparte: proibiu a maconha no Egito.

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PARTE 2: PUXA

Polícia paraMaconha quem precisa S.A7

Nome dado à comida preparada das folhas e flores femininas, geralmente adicionada ao leite ou coalhada. Curiosamente, “bang” é um dos vários apelidos que a maconha tem atualmente. 4

Se no século 20 os americanos queriam a destruição da planta no período antigo - e até contemporaneamente - além de ser usada em produtos têxtis e de forma medicinal, combatendo náuseas, dores de estômago e diarreias, várias religiões fizeram uso ritualístico da erva: xintoísmo, budismo, zoroastrismo, sufismo, rastafarianismo. No Brasil, os praticantes do candomblé davam seus pegas. Em 2000 a.C o livro Atharva Veda relata o uso espiritual e religioso da maconha. Na época, os maconheiros a consumiam para atingir o nirvana, o estado máximo de harmonia e paz – não a banda de rock. Segundo os hindus, o deus Shiva criou a maconha de seu próprio corpo para purificar o mar. Assim, quem consumir moderadamente o bhang4 está se purificando espiritualmente. A região indiana de Bengala tem esse nome por causa da erva. Bengala vem de bhang la, 63


MACONHA S.A ou "terra da maconha". Quem diria que o tigre de bengala só é um predador tão voraz por causa da eterna larica5. A maconha é uma planta religiosa muito respeitada em toda a Ásia. Para a tradição Mahayna – um dos principais seguimentos do budismo – sua principal entidade, Buda, durante seis longos anos se alimentou apenas com uma semente de maconha por dia. Porém, nos séculos seguintes a principal vertente da planta foi seu uso industrial, por exemplo: o óleo dela foi o segundo mais usado nas lâmpadas para iluminação pública, só perdendo para o óleo de baleia; boa parte das tintas também eram feitas a partir do óleo da maconha. Até a tela da pintura era do mesmo material. Tela, em inglês é canvas, uma palavra de origem holandesa para cânhamo. Muitas pessoas acham que cânhamo e maconha são plantas diferentes. Não são. Vale a pena fazer uma breve explicação científica. Existem três principais espécies de maconha. A mais citada neste livro é a cannabis sativa, denominação proposta por Lineu, em 1753. Trinta anos depois, Lamarck, naturalista francês, anuncia a cannabis indica. Essa variante possui menos delta-9-tetra-hidrocanabinol, o famoso THC. Esse princípio ativo, isolado pelos pesquisadores Raphael Mechoulam, Yechiel Gaoni e Habibi Edery em 1964, é o que dá brisa. É o que te deixa doidão. Essa substância tem aos montes na sativa. A indica, portanto, é mais indicada para o uso medicinal e industrial, não para chapar. Uma terceira variante identificada pelo soviético Janischewsky, em 1924, foi denominada cannabis ruderalis. Essa espécie também possui pouco THC. O pé da planta não fica alto como as outras6, mas 64

5 Larica é o apelido dado para o efeito da maconha que parece dar fome ao maconheiro. 6 Alguns podem chegar a 3 metros de altura.


PARTE 2: PUXA cresce rapidamente, mesmo em ambientes frios e inóspitos. Ao longo dos séculos, o uso da maconha religiosa, medicinal, recreativa e principalmente industrial, só cresceu pelo mundo. Originada na Ásia Central, na região que vai do Afeganistão até o pé do Himalaia, a maconha tomou o continente. Só foi chegar ao norte da África no século IX, com as invasões árabes. Nas Cruzadas – realizadas entre os séculos XI e XIII – o continente europeu conheceu não só as propriedades medicinais da cannabis, mas também fez da planta seu principal produto agrícola no período da Renascença (séculos XV ao XVI). O uso medicinal seria mal visto no continente europeu a partir de 1484, quando o papa Inocêncio 8º declarou que o uso da planta no tratamento de doenças era feito por curandeiros hereges. Afinal, se tem uma coisa que faz bem à saúde é não ir para a fogueira. No período das grandes navegações a maconha era o principal material para confecção de cordas, velas e outros equipamentos navais. A fibra extraída do caule da planta produzia um tecido de alta qualidade, resistente e flexível. Cordames feitos de outras fibras, em contato contínuo com a água do mar, começavam a se desfazer. Então quando os índios brasileiros viram Pedro Álvares Cabral chegar, viram também toneladas de maconha na forma de velas, cordas e redes. Cristóvão Colombo fez mais ainda: em 1492 levou sementes de maconha para as novas terras espanholas, na América Central. A maconha tinha muita importância industrial. Todo mundo precisava comprar e todo mundo queria vender. Para atender a demanda internacional, em 1783 Portugal mandou instalar no Brasil a Real Benfeitoria de Linho-Cânhamo. A erva foi plantada em fazendas no sul, e também nos estados do Pará, Amazonas, Maranhão, Bahia e no Rio de Janeiro, atrasados mais de um século em relação à cidadezinha estadunidense de Jamestown, na Virgínia, que em 1619 plantou maconha por toda a região, atendendo a pedidos da Coroa Inglesa. 65


MACONHA S.A Pouco tempo depois, em 1798 a maconha seria proibida no Egito. Napoleão Bonaparte, quando invadiu e dominou o país, vetou a plantação e o consumo, seja líquido, sólido ou gasoso, medicinal, industrial ou alimentício. Nesse período o maior comprador de maconha do Egito era a Inglaterra, principal rival da França de Napoleão. Curioso, não? Só em 1879, quando os ingleses invadiram a ilha que viria a ser a Jamaica e levaram escravos africanos para fazer do local uma imensa plantação de maconha, eles garantiram sua autossuficiência. Diferente da Ásia e da África, que faziam uso religioso e medicinal, a Europa durante vários séculos aproveitou a erva apenas de forma industrial. Alguns cientistas alegam que pelo método de plantio e extração a maconha europeia evoluiu com o tempo para uma variante com menos THC, o que justifica o tardio uso da maconha de forma recreativa no continente.

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PITO DO PANGO

Johan Mortiz Regendas – Wikimedia Commons

“Batuque em São Paulo” , de Johan Mortiz Regendas

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PARTE 2: PUXA

Polícia para quem precisa77 Pito do Pango

Gíria usada pelos escravos para o cigarro de maconha. 7

Novamente, segundo o artigo “Proibição da maconha no Brasil e suas raízes históricas escravocratas”. 8

A grande e pequena figura histórica de Napoleão Bonaparte também acabou forçando a equivocada proibição da erva no Brasil. Nosso país foi o primeiro no mundo a ter uma lei contra a erva. Ok, houve o lance do Egito. Mas essa ação foi feita para atrapalhar um inimigo externo. No caso do Brasil, a criminalização veio para atrapalhar um inimigo interno. Essa história começa em 1807. Não aguentando a napoleônica pressão, a Coroa Portuguesa se viu obrigada a pegar o seu banquinho e sair de mansinho da Europa, desembarcando no ano seguinte em nosso humilde país. Já instalado no Rio de Janeiro e incomodado com a imensa quantidade de escravos que lá estavam, o rei Dom João VI criou a Guarda Real de Polícia. É interessante ressaltar que essa polícia operava praticamente sem regras. A lei criminal em vigor no Brasil ainda era a do Livro V das Ordenações Filipinas8. E eram super de boa essas 69


PITO DO PANGO Ordenações. Pena para pequenos furtos? De 100 a 300 açoites. Muitas vezes se tornava uma pena de morte. Penas para outros crimes iam da humilhação pública ao confisco de bens, açoite brutal, mutilação e queimaduras. Não existia o conceito de prisão, na época. Existia um local protegido pela polícia onde o criminoso aguardava, sem poder fugir, sua pena. Desde esse tempo já se nota o caráter racista e elitista da proibição. Regente brasileiro após a volta do pai para Portugal em 1821, Dom Pedro I deu uma aliviada no sistema prisional brasileiro. Em 1824 ganhamos até uma Constituição, quem diria? As novas leis proibiram punições físicas aos criminosos, exceto para os escravos. Afinal quem liga para eles? O documento9 , em seu artigo 60, diz que “Se o réo fôr escravo, e incorrer em pena que não seja a capital ou de galés, será condemnado na de açoutes, e, depois de os soffrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará trazêl-o com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz o designar. O número de açoutes será fixado na sentença; e o escravo não poderá levar por dia mais de concoenta”. Ou seja, antes mesmo de possuirmos um código penal, nossa polícia já abusava do poder. Em 182810 o conceito de prisão já existia. Mas pelo jeito só o conceito. O artigo 56 da lei imperial de 1º de outubro daquele ano determina que as recém-criadas Câmaras Municipais nomeiem, a cada reunião realizada, pelo menos cinco cidadãos para visitar as prisões e listar os melhoramentos que elas precisam. O primeiro relatório da cidade de São Paulo de abril de 192911 apontava problemas na falta de espaço para os presos. No relatório de setembro os visitantes relataram assistência médica precária, pouca alimentação, falta de água e acúmulo de lixo. Em 1841 esse relatório descrevia 70

10 Também disponível em planalto.gov. br. 11 Também disponível em planalto.gov. br.


PARTE 2: PUXA

Exposta no artigo “Proibição da maconha no Brasil e suas raízes históricas escravocratas”. 12

a cadeia como "escola de imoralidade erecta pelas autoridades, paga pelos cofres públicos". Fica a pergunta: alguma coisa mudou? É claro que o código penal de 1830 também puniria os maconheiros, por que não? Podemos ler, na lei12 que regulamentava a venda de gêneros e remédios pelos boticários "É proibida a venda e o uso do pito do pango, bem como a conservação dele em casas públicas. Os contraventores serão multados, a saber: o vendedor em 20$000, e os escravos e mais pessoas, que dele usarem, em três dias de cadeia". "Os escravos" e mais pessoas. A suposta perseguição à maconha era, na realidade, só um pretexto para perseguir e moldar os hábitos e costumes da população negra. No ano seguinte foram criadas as Guardas Nacional e Municipal. Para ser um policial da época era necessário cumprir dois pré-requisitos: ter renda, mesmo que pouca e, claro, não ser um ex-escravo. O estabelecimento de uma forma republicana de governar moldada nos conhecimentos da época não trouxeram grandes avanços às classes sociais desfavorecidas do Brasil. Tendo como grande exemplo a Constituição dos Estados Unidos, a nossa excluía analfabetos, mulheres, soldados, integrantes de ordens religiosas e menores de idade. A ideologia etnocêntrica, fundamentada em supostas bases científicas aponta, basicamente, que os negros eram os culpados. A ocasião do crime não importa, o que importa é a cor da pele. Nessa linha de "pensamento" as características biológicas apontam se a pessoa é ou não criminosa. Então a cor da pele a até o tamanho da mandíbula determinavam o futuro do acusado.

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TEMPORADA DE CAÇA

Um dos cartazes da campanha para demonizar a maconha: “Pecado. Degradação. Vício. Insanidade. Deboche. A verdade sobre a maconha, o fumo do inferno!”.

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PARTE 2: PUXA

Polícia para quemde precisa Temporada caça7

Segundo o doutor em história social Henrique Carneiro em seu livro “Pequena Enciclopédia da História das Drogas e Bebidas”. 13

Os primeiros estudos científicos sobre a maconha foram publicados nesse século. Em 1840 W.B O'Shaughessy, médico britânico e professor de química, publica na renomada revista Lancet um estudo sobre a maconha combater o tétano e outras doenças convulsivas. Em 1856 Fitz Hugh Ludlow publicou anonimamente o “The Hashish Eater” , narrando a experiência do consumo de haxixe13. Em 1880 a Índia ainda era território do império britânico. Missionários anglicanos estavam incomodados com o uso constante do bhang e pediram sua proibição afirmando que aquela droga causava dependência e demência. O governo britânico na Índia criou a Comissão Indiana de Drogas da Cannabis. Após dois anos e mil entrevistas realizadas, os especialistas concluíram que 80% da população fazia uso corriqueiro e apenas 10% consumia demais a bebida. Segundo esses 73


TEMPORADA DE CAÇA especialistas, quantidades moderadas da droga não apresentavam problemas e, portanto, não deveria ser proibida. Dez anos depois o dr. Russel Reynolds, médico pessoal da rainha, afirma na revista Lancet que a maconha é “um dos mais valiosos remédios que possuímos”. A caça às minorias usando a maconha como pretexto pode ter sido uma criação nossa. Mas quem usou essa tática preconceituosa muito bem foram nossos vizinhos americanos do norte. Com a chegada dos imigrantes mexicanos aos Estados Unidos o uso recreativo da maconha cresceu imensamente. Na contramão dos alegres mexicanos, a ideologia estadunidense se voltava cada vez mais para o puritanismo e o proibicionismo. Em 1912 na Convenção Internacional Sobre o Ópio14 (essa droga sim, bastante utilizada pelos gringos), o país esteve presente e apoiou a recomendação de criminalizar o porte de ópio, morfina e cocaína. Claro que o Brasil também estava lá. A população branca do oeste americano estava cada vez menos contente com os novos vizinhos mexicanos. Problemas sociais como o desemprego agravavam esse ódio e faziam surgir boatos bizarros. Da mesma forma que a coroa portuguesa se ligou que não poderia proibir uma raça, mas poderia proibir seus costumes, os norte-americanos fizeram o mesmo com os mexicanos através da maconha. Ou marijuana, como a galera de poncho e sombreiro chamava a erva. Em 1914 um caso ficou famoso na cidade de El Paso, no Texas: certo dia, em um bar de pessoas brancas, um mexicano muito louco de maconha teria chego ao estabelecimento e descido a porrada em geral15 . Não demorou para a causadora 74

14 Cujas conclusões foram adotadas posteriormente pela Liga das Nações. 15 Diziam os americanos que a maconha dava superforça a quem fumava. Isso, segundo os mesmos, daria vantagens aos mexicanos na hora de serem empregados.


PARTE 2: PUXA daquele trágico evento, a maconha, ser proibida na cidade. Com a proibição seria muito mais fácil a polícia local revistar mexicanos. E por que fariam isso? Por que todo mexicano é suspeito. De quê? De ser um criminoso em potencial. Por quê? Por ser mexicano, oras. Até hoje o estado e a população texana é vista como uma das mais preconceituosas do país, que já é historicamente preconceituoso. No final daquela década entrou em vigor a Lei Seca, que proibia a população de tomar bebidas alcóolicas. A motivação da criação dessa lei é muito absurda. Como um Estado pode interferir tanto na vida de sua sociedade? Pior, como pode prejulgar que a mesma não tem condições psicológicas de ingerir substâncias chapantes sem que o braço forte da lei esteja lá, para carregar o bêbado? Ora, o problema não está na bebida. Está no bêbado. Difícil acreditar que o goró já foi proibido. Hoje é supercomum em nossas vidas. Está feliz? Vai beber para comemorar. Está triste? Vai beber para lamentar. Fim de semana? Beber todas. Churrasco? Beber todas. Na sociedade atual quem não vai ao bar é visto como alguém tímido, que não gosta de se misturar. Hoje é uma coisa estranha não beber, antes era proibido. A proibição da bebida alcóolica foi uma grande asneira. Não deu nem um pouco certo. Os políticos pensavam com sua inocência que as pessoas iam parar de beber assim que a lei fosse assinada. Talvez depois de ver as primeiras pessoas sendo presas neguinho ia se tocar e parar com aquilo. Ledo engano. O consumo pode até ter diminuído, mas as consequências disso foram muito ruins. Em primeiro lugar, a qualidade da bebida caiu muitíssimo. Os produtores ilegais não tinham a tecnologia e o refino para um bom goró. Cervejinha? Esquece! Se quiser um goró vai ser uma parada forte. Forte e química. Foram relatados caso de cegueira e até morte. Além do vício. Um sujeito viciado não teria tratamento médico, seria preso. Outro lance acarretado pela proibição foi o crescimento 75


TEMPORADA DE CAÇA do crime organizado. A máfia de Al Capone já existia desde a década de 10. Mas com a proibição passaram a ter uma zona de atuação muito maior que a “proteção”. Capone já era poderoso, mas com o dinheiro que a máfia ganhou com a bebida ficou muito mais. Outros países americanos também tinham leis sobre a cachaça. Nosso vizinho Uruguai, de 1914 até o começo da década de 60, produzia suas bebidas alcóolicas. Garapa, rum e cachaça estavam nos balcões das lojas estatais. Os preços podiam ser bem altos, mas pelo menos o bêbado sabia que parte considerável dos seus gastos alcóolicos seriam revertidos para a educação. Voltando a falar da erva e de sua proibição em escala global é impossível não mencionar Harry J. Anslinger, um grandessíssimo canalha. No começo da Lei Seca, Anslinger reprimia o tráfico de rum vindo das Bahamas. Fez pressão para ser promovido a chefe da Divisão de Controle Estrangeiro do Comitê de Proibição cuidando do contrabando de bebidas. Em 1925, na Segunda Conferência Internacional do Ópio, realizada em Genebra, Suíça, Anslinger viu um médico de um país tropical, provavelmente cheio de insetos e macacos, chamado Ulysses Pernambuco afirmar, para representantes de 45 países que "a maconha é mais perigosa que o ópio". O brasileiro Ulysses era adepto do pensamento referente à assepsia da sociedade. Aquela mesma linha de pensamento que acreditava que características físicas determinam um criminoso. Assim, é possível dizer que, baseados em questões raciais e preconceituosas, muitos países foram influenciados a criminalizar a erva16. 76

16 Como é apontado no artigo “Proibição da maconha no Brasil e suas raízes históricas escravocratas”.


PARTE 2: PUXA Graças a Ulysses, as próximas conferências sobre substâncias ilícitas também teriam a maconha em pauta. Imaginem como seria o encontro entre Ulysses e Anslinger. Com certeza se dariam bem. Teriam muitas ideias para trocar. Mas onde? No bar que não seria. Muito menos em um show de reggae.

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CIDADテグ MARIJUANA

Harry Jacob Anslinger, um dos principais responsテ。veis pela proibiテァテ」o da erva no mundo.

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PARTE 2: PUXA

Polícia para quem precisa7 Cidadão Marijuana

O livro “Maconha” , de Denis Russo Burgierman, conta bem a história de Anslinger. 17

Harry Anslinger era casado com a sobrinha de Andrew Mellon17, dono da petrolífera Gulf Oil e um dos principais investidores da Du Pont que, nos anos 20, desenvolvia a partir do petróleo plásticos, fibras e papel. O mesmo mercado dos produtos derivados da maconha. O jurista Wálter Maireovitch, especialista em tráfico, afirma que "a maconha foi proibida por interesses econômicos, especialmente para abrir o mercado das fibras naturais para o náilon". Ainda na década de 20, Anslinger ganhou um imenso aliado no combate à cannabis: William Randolpf Hearst, possuidor de uma imensa rede de jornais por todo o país. O ilustre Orson Welles se inspirou em Hearst para criar o célebre personagem Cidadão Kane. Hearst não gostava dos mexicanos e de nada relacionado ao México. A origem desse ódio provavelmente estava em questões financeiras. O multiempresário possuía terras para cultivo de 79


CIDADÃO MARIJUANA eucaliptos e posterior fabricação de papel. Essas terras foram tomadas pelos mexicanos na Revolução Mexicana. Assim, teve início uma campanha difamatória contra a maconha. Pobre cannabis. O ataque seria mortal. Em seus jornais ele noticiava que o uso da maconha fazia os mexicanos estuprarem mulheres brancas. E dizia coisas que estão até hoje no folclore proibicionista: que a maioria dos crimes eram cometidos sob uso da droga (60% dos crimes segundo o ‘dataHearst’) e que o fumo exterminava neurônios. Ele foi o responsável por popularizar o nome marijuana nos Estados Unidos. Queria relacioná-la aos mexicanos de qualquer jeito. Embora muitas matérias de jornal fossem publicadas com Anslinger prendendo traficantes, o orçamento do período da depressão não era nada grande. Assim, cada estado ficou responsável por cuidar do problema das drogas revertendo recursos estatais na guerra contra os entorpecentes. Apenas nove assinaram o acordo (Louisiana, Flórida, Carolina do Sul, Virgínia, Kentucky, Indiana, Nova Iorque e Nova Jersey – todos da parte leste, muito longe da Califórnia e dos estados que atualmente legalizaram). A maconha era trazida aos Estados Unidos pela Índia, e desembarcava nos portos de Nova Orleans, a capital de um dos estados que aderiram ao acordo de Anslinger (Louisiana), onde ficou famosa entre músicos de jazz por deixá-los mais criativos. De lá, os músicos a levaram para o Mississipi e as grandes cidades no norte. Com a maconha se popularizando, Anslinger percebeu que se a população branca conservadora visse o suposto perigo que a erva poderia trazer forçariam os políticos a assinar sua lei única de entorpecentes. Anslinger tinha inclusive um acordo com Hollywood que censurava menções à erva. O curioso é que a própria indústria hollywoodiana de cinema glamourizou o cigarro. Uma das mais famosas entre as várias propagandas contrárias à maconha ainda era da época do cinema mudo. Na tela, um jovem e bigodudo cowboy em um acesso de fúria matou um companheiro de fazenda. Ao ser questionado 80


PARTE 2: PUXA por um terceiro vaqueiro o motivo do assassinato, a câmera dá um zoom e mostra vários baseados no bolso do cowboy matador. Em 1937 Anslinger conseguiu o que queria, o Marihuana Tax Act. Ou seja a proibição da cannabis. No mesmo ano aconteceu a primeira prisão por venda de maconha nos EUA, em Denver. Samuel Caldwell foi preso por quatro anos. Após a proibição do uso recreativo, ainda era possível comprar a erva para outras finalidades, mas no impraticável preço de quase quatro dólares por grama. Caso um pé estivesse crescendo em propriedade privada, o dono teria que removê-lo para não ser preso. No ano em que foi proibida, a maconha era encontrada em quase trinta medicamentos. Para o historiador Henrique Carneiro, a proibição da maconha “preenche um pouco o vácuo de uma máquina repressiva que surgiu para combater os traficantes de álcool e também para a máquina policial que perde um dos principais objetos de sua ação que era a perseguição ao comércio clandestino de álcool. Isso se soma a outro elemento que é a perseguição às minorias étnicas. Houve uma espécie de mistura de vários elementos. Uma campanha para substituir matérias-primas, que deixam de ser da fonte do cânhamo e passam a ser matérias-primas sintéticas. A fibra vegetal é substituída pelo náilon e fibras petroquímicas. Por outro lado uma estigmatização de comunidades de trabalhadores migrantes e por último a indústria farmacêutica também busca patentear produtos, resultados de pesquisas, que servem para a mesmas finalidades para as quais antigamente se usavam os derivados de cannabis. Então são vários interesses que se somam para construir uma espécie de fantasma". De 1937 até 1947 o governo estadunidense desperdiçou 220 milhões de dólares na guerra contra as drogas.

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É PROIBIDO FUMAR?

Wikimedia Commons

: Dois rapazes conversando durante o lendário festival Woodstock. “Bora bolar mais um?”.

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PARTE 2: PUXA

PolíciaÉpara quem fumar? precisa7 proibido

A coisa só começou a afrouxar na década de 60. Em 1962 John F. Kennedy demite Anslinger depois de 32 anos no cargo. A maconha perdia a ficção de assassina. A contracultura surgia extremamente forte. Nessa mesma década, do outro lado do mundo, jovens americanos desbravavam corajosa e inutilmente as selvas vietnamitas. Como é brilhantemente retratado no filme “Platoon” de 1986, os soldados usavam e abusavam da maconha. Desde recrutas estreantes até patentes mais altas, eles fumavam nas tendas, em suas bases, ou em campo – antes de dormir no meio do mato e viajando nas estrelas. O astro desse filme, o ator Charlie Sheen ficaria conhecido como um grande fanfarrão usuário de vários tipos de drogas, legais e ilegais. Naquele mesmo ano, Sheen fez uma ponta em outro clássico do cinema, “Curtindo a vida adoidado”. No papel de um delinquente, com jaqueta de couro, cabelo bagunçado e olheiras, a cena se passa em uma delegacia e, ao ver a tímida Jeanie Buller (Jennifer Grey), manda sua primeira fala, que é "Drogas?". No início da década de 70, um ano após o glorioso festival 83


É PROIBIDO FUMAR? de Woodstock, que reuniu a nata da contracultura para uma grande festa de música, drogas, paz e amor, a maconha é descriminalizada em onze estados. Ainda em 70, a famosa revista Newsweek publica uma matéria questionando se não chegou a hora de legalizar a maconha. Naquele mesmo mês, havia uma triste reportagem: a separação dos Beatles. Muito graças à vibrante juventude da contracultura, a maconha aos poucos começou a ser fumada pela classe média. Não eram mais os negros e mexicanos. Era a garotada branca. Até os filhos do presidente Kennedy foram pegos dando seus pegas. A década de 60 para nós, brasileiros, também teve sua parcela importante de contracultura. Resposta à caretice e, principalmente, à ditadura militar imposta em 1964. Quatro anos após o início do período, com o decreto-lei 385 e a alteração do artigo 281, o usuário de maconha passou a sofrer a mesma pena que o traficante. Em 71 a coisa piorou: maconheiros poderiam ser denunciados sem qualquer substância, ou seja, sem provas. Só em 76 entra em vigor a lei 6368 que diferencia o usuário (artigo 16) do traficante (artigo 12). Essa lei só foi de fato alterada em 2006 com a lei 11.343 que endureceu a pena para o traficante mas praticamente descriminalizou o usuário, que passou a receber penas leves, como pagamento de cesta básica ou serviços à sociedade. Essa lei, porém, não é clara. Não existe critério definido para quem usa e para quem trafica. Salvo algumas exceções: uma pessoa detida com várias parangas18 caracteriza mais tráfico do que uma pessoa com um blocão. Claro que a falta de critério dá maiores poderes aos policiais. É conhecido o covarde método de 84

18 Uma das gírias para as porções pequenas vendidas pelos traficantes. Na maioria dos lugares custa cinco reais.


PARTE 2: PUXA

Drug Enforcement Administration, ou Agênca de Combate às Drogas, em tradução livre 19

Todas essas informações sobre os gastos do governo americano foram tiradas o documentário “Grass” , dirigido por Ron Mann. 20

implantar no acusado uma grande quantidade de drogas que não eram suas. É a palavra do acusado contra a do policial. A alegria dos estadunidenses também durou pouco. Quando Richard Nixon assumiu a presidência, criou a DEA que, além de criar políticas, também tem poderes de polícia. Isso foi muito conveniente para a direita norte-americana que, no período anterior à segunda guerra tinha os negros e os mexicanos como inimigos nacionais e no pós-guerra, os esquerdistas e os hippies, que eram muitas vezes taxados de comunistas. Nosso país absorve muito da cultura, da política e dos valores norte-americanos. A imagem que se tem dos maconheiros atualmente é essa: estudante de humanas, cabeludo e barbudo, esquerdista e comunista. A DEA19 ainda não possuía quase nenhum conhecimento sobre qual droga é mais prejudicial que as outras. Ou qual o limite do uso não perigoso. Não sabiam nada. Em 1972 Nixon decide descobrir. Aparece na televisão anunciando uma pesquisa sobre a maconha. Essa pesquisa nunca foi divulgada. Nixon não gostou do resultado dos cientistas: a maconha não deve sofrer ações criminais. De 1948 até 1963 cerca de U$ 1, 5 bilhões foram jogados no lixo na guerra contra as drogas travada pelos Estados Unidos. De 1964 até 1969 foram gastos U$ 9 bilhões20 . Na década de 60! Na contramão do mundo inteiro estava a Holanda. Em 1976 o país meio que legalizou a maconha. A partir de daquele ano, quem portasse até 30g não teria problemas com a polícia. Lojas também tiveram permissão para vender a erva. No começo era uma coisa bem trash, meio 85


É PROIBIDO FUMAR? improvisada. Muitos pôsteres na parede, sofás de segunda mão. Só na década de 80 elas se profissionalizaram e viraram os famosos koffeshops. Evidentemente para estar na legalidade um estabelecimento desses precisa estar cadastrado pelo governo. Cabe às cidades determinar a quantidade e as regras aplicadas.

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A VOLTA DO USO MEDICINAL

wikimedia commons

Um dos vários koffeshops de Amsterdan, na Holanda, onde a maconha é legalizada.

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PARTE 2: PUXA

para quem precisa7 APolícia volta do uso medicinal

Na maior parte dos casos as regras aplicadas são: não vender mais que 5g/dia por cliente; não ter mais que 500g em estoque; não fazer propaganda das drogas vendidas; permitir apenas a entrada de maiores de 18 anos. Caso a loja descumpra alguma regra pela terceira vez terá sua licença revogada. Com os koffeshops, lugares descolados e maneiros, o uso da maconha aumentou. Mas o de drogas mais pesadas como a heroína diminuiu. A Holanda não pode legalizar a maconha de uma vez porque assinou – junto com centenas de outros países incluindo os Estados Unidos e o nosso – o tratado da ONU de 1961 em que se compromete a combater o tráfico e reduzir o consumo. Como a maconha ainda é ilegal, o Estado holandês não pode arrecadar imposto com a venda dela. Mesmo assim, em 2002, 25% dos turistas que iam ao país o faziam por causa da maconha. Entre os anos de 1970 até 1979 os Estados Unidos atearam fogo em nada mais nada menos que US$ 76 bilhões de dólares. Desde a década de 1980 até 1998 gastariam a astronômica quantia de US$ 214,7 bilhões. A soma desses gastos desde 89


A VOLTA DO USO MEDICINAL a proibição da maconha, em 1937, até 1998 chega a aproximadamente US$ 300 bilhões. Com essa grana poderiam ter comprado dez porta aviões ingleses HMS Queen Elizabeth e distribuir 80 caças B-2 Spirit Stealth Bomber entre eles. Poderiam também usar esse dinheiro de uma forma humanitária. Em 2012 a ONU anunciou serem necessários “apenas” US$ 7,7 bilhões para fornecer ajuda humanitária para 51 milhões de pessoas. Esse valor poderia também custear durante um ano os gastos que a China tem com problemas de saúde causados pela poluição. Poderiam economizar mais um pouco e comprar a empresa Apple em 2011. Olhando mesmo que rapidamente para o outro lado da moeda, fica clara a derrota. A ONU estipulou em 2008 que o tráfico de drogas movimentava a-nu-al-men-te a mesma quantia de US$ 300 bilhões. Isso por baixo, ainda. Poderia subir um terço dessa quantia. O colombiano Pablo Escobar, tido como um dos maiores traficantes da história, chegou a acumular a riqueza de US$ 30 bilhões. Após o isolamento do THC na década de 60, muitos estudos científicos com a maconha foram realizados. Embora esses estudos mostrassem claramente o poder medicinal da erva, o estigma social formado em torno dela durante décadas retardou seu acesso a quem mais interessava: pessoas doentes. Munidos com esse arsenal científico, o estado da Califórnia foi o primeiro dos Estados Unidos a permitir o uso de maconha medicinal em 1996. Para consumir maconha medicinal, o paciente deve obter a receita com um médico, assim como ocorre com qualquer outro medicamento. Claro que a poderosa indústria farmacêutica não ficou contente em saber que seus valiosos clientes pudessem usufruir de um medicamento de fabricação caseira, o que deve ter influenciado na decisão de não permitir o cultivo. Muitas pessoas alegam que os malandros maconheiros conseguiam obter a receita mesmo não sendo doentes. Isso 90


PARTE 2: PUXA é verdade. O que prova mais uma vez o quão desonestas as pessoas envolvidas com a maconha acabam se tornando. Políticos e policiais é um caso velho, infelizmente. Mas médicos desonestos é muito preocupante. A própria polícia estadunidense demorou para ver com bons olhos aquela suposta clínica médica. Na cabeça deles, aquilo era tráfico mesmo. Seis anos após a legalização da maconha medicinal, policiais do DEA invadiram a clínica de Santa Cruz, no estado da Califórnia, com fuzil na mão, como se estivessem entrando em uma das várias crackhouses nova-iorquinas. O motivo da invasão foi que a clínica fornece maconha a seus pacientes. Suzanne Pheil conta em entrevista ao jornal USA Today que os policiais, ao vê-la, de forma agressiva, pediram para que levantasse. Ela teve que retirar a máscara de inalação que usava no momento para esclarecer ao soldado que ela é paralítica. Mas a maconha tem mesmo um poder curativo tão alto? O ato de fumá-la já não causaria câncer? Alguns estudos não apontam que ela serve de estopim para doenças como a depressão e a esquizofrenia? Todas essas perguntas têm respostas comprovadas cientificamente em muitos estudos realizados durante décadas a fio. No começo dessa parte do livro você leu uma breve explicação científica. Vamos a outra, falando agora da maconha que existe dentro de você, caro leitor ou cara leitora. Da maconha que existe dentro do seu amigo, da sua amiga, dos seus parentes. Dentro do seu cachorro, do seu gato, do seu passarinho, do seu peixe, do seu ornitorrinco, do seu elefante, do seu panda, do seu dragão-de-komodo. Enfim, da maconha que existe em todos os animais. Ok, pode não ser exatamente maconha, mas é quase a mesma coisa. É o sistema endocanabinoide.

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A MACONHA QUE EXISTE EM VOCÊ

Em cena do documentário “Ilegal” , dirigido por Raphael Erichsen, Kathiele Fischer segura sua filha Anny, de apenas cinco anos, que usa a maconha como medicamento.

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PARTE 2: PUXA

Polícia para quemem precisa A maconha que existe você7

Com o isolamento da partícula do THC, os cientistas começaram a busca por onde e como a substância age em nosso corpo. Na década de 1980 foram descobertos os chamados receptores canabinoides. Receberam esse nome pela similaridade molecular que apresentaram em relação ao THC. Ambos são compostos por substâncias muito parecidas. Mas será que nosso corpo tem o encaixe perfeito para uma substância que nós apenas absorvemos da cannabis? Na realidade não. Para os pesquisadores, ficou claro que são produzidas endogenamente, ou seja, no nosso organismo, substâncias muito similares ao THC, chamadas de endocanabinoides, ou nossa “maconha interna”. Portanto, o sistema endocanabinoide é o nome dado para o conjunto de substâncias e receptores que possuem estrutura molecular semelhante à da maconha. Esse lance de substâncias, receptores e tudo o mais acontece com outras drogas também. A endorfina, conhecida como a substância do prazer, liberada quando comemos, fazemos sexo, comemoramos um gol e em vários outros 93


A MACONHA QUE EXISTE EM VOCÊ momentos, é produzida pelo sistema opioide. Tem esse nome pois a planta ópio, quando consumida, afeta os mesmos neurônios do sistema que libera a endorfina. Mas o que o sistema endocanabinoide faz por nós? Muita coisa. É um dos responsáveis pela comunicação cerebral com o restante do corpo. Assim, envolve a maioria de nossas células e estruturas. Transmitindo mensagens de nossos cérebros, o sistema endocanabinoide controla, por exemplo, funções do sistema nervoso, circulatório, reprodutor e imunológico. Atua também nos neurônios que nos dão a sensação da fome e é daí que vem a larica. Ao consumir a maconha, injetamos em nosso organismo uma substância extremamente similar à liberada pelo sistema endocanabinoide, desencadeando a sensação da fome, mesmo já estando satisfeitos. Portanto, a maconha dialoga com várias partes de nosso corpo de forma positiva e natural. O sistema endocanabinoide mostra ao nosso corpo quais células têm potencial cancerígeno para serem eliminadas. Mais do que isso: as células cancerígenas se autoexterminam. Foi Christina Sanchez, bióloga molecular da Universidade Complutense de Madri, quem descobriu em seus estudos sobre a maconha, por acidente, que as substâncias canabinoides e o TCH eliminam as células cancerígenas. Decidiu testar em animais e comprovou que os compostos canabinoides são úteis para combater o câncer de mama. As células destruídas pela maconha desaparecem de uma forma que não prejudica o nosso organismo, pois elas “se matam”. E agir precisamente nas células cancerígenas é uma grande vantagem em relação a outros tratamentos, como a quimioterapia, que atinge praticamente todas as células do nosso corpo. O principal componente químico da maconha que atua de forma medicinal não é o THC, mas sim o CBD, o canabidiol. Essa substância existe em todos os tipos de cannabis, mas é especialmente presente na espécie indica da planta, o 94


PARTE 2: PUXA que a faz ser a variante mais utilizada para esta finalidade. Holanda, Espanha, Israel, Uruguai, Alemanha e 22 estados norte-americanos legalizaram o canabidiol. Essa substância só foi legalizada no Brasil em janeiro de 2015. Isso ocorreu porque a Anvisa se sensibilizou com um caso em particular. Anny Fischer (sim, ela é brasileira) desde bebê sofre com constantes convulsões epiléticas. São tão constantes que a menina mal pode ter uma vida normal. Assim como Anny, 600 mil pessoas no Brasil sofrem do mesmo mal, uma doença grave que deixa a pessoa numa situação de dependência de cuidadores e centenas de medicamentos. Pior: medicamentos ineficazes. É a epilepsia refratária, a que não responde a nenhum medicamento. Anny, pelo menos, tem a sorte de nascer com pais dedicados e com uma boa grana. A Anvisa liberou o uso do CBD, mas apenas se for comprado. É isso mesmo. O medicamento é praticamente gratuito se for plantado e colhido no quintal de casa, mas para utilizar a substância no Brasil só importando. Comprar o CBD isoladamente sai muito mais caro que o baseado mais top do mundo. O preço de três gramas de CBD custa em média US$100,00. Para uma criança de cinco anos, como Anny, três gramas duram um mês. Quantas das 600 mil famílias podem usufruir desse medicamento? Poucas, imagino, muito poucas. Com o crescimento das pesquisas sobre a maconha, não só o uso medicinal aumentou, mas o conceito do usuário ser uma pessoa normal, no máximo uma pessoa doente e não um criminoso vem crescendo no mundo. Não são poucos os países que possuem leis menos impiedosas em relação ao maconheiro. No Reino Unido, desde 2002, a maconha mudou de classificação. Antes era considerada uma droga de categoria B, a mesma das anfetaminas e dos barbitúricos. Agora é da classe C, tendo seu uso descriminalizado desde então. Portugal também descriminalizou o uso de todas as drogas. Ninguém pode ser preso por usar maconha, crack ou outras 95


A MACONHA QUE EXISTE EM VOCÊ substâncias sintéticas. Drogas pesadas eram até mesmo vendidas em lojas, não mais por traficantes. Em 2012, após seguidas mortes de clientes dessas lojas, elas foram proibidas de realizar este comércio. Um coisa é permitir o uso, outra é disponibilizar drogas, ainda mais as que matam. Mas maconha e cocaína são oferecidas abertamente para os transeuntes de Lisboa. Até mesmo nos Estados Unidos alguns estados, após muita luta política e popular, legalizaram o uso recreativo da maconha.

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FASOS

Associated Press

José “Pepe” Mujica, presidente do Uruguai de 2010 até 2015, período em que o país legalizou a maconha.

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PARTE 2: PUXA

Polícia para quem precisa Fasos217

Gíria para o cigarro de maconha no Uruguai e Argentina. 21

O projeto mais audacioso em relação à legalização veio do nosso vizinho, o pequeno Uruguai. Em agosto de 2014, o artigo único da lei da legalização diz que “O Estado assumirá o controle e a regulamentação das atividades de importação, produção, aquisição, armazenamento, comercialização e distribuição da maconha”. Foi aberta uma licitação pública para interessados na venda da maconha. Cinco empresas ganharam licenças para o plantio. Elas serão as responsáveis por plantar, colher, embalar e distribuir a erva nas farmácias. A área de cultivo fica em San José, a 90 quilômetros de Montevidéu. Seu entorno é protegido 24 horas por dia, todos os dias do ano, para prevenir que os antigos vendedores de maconha – os traficantes – colham aqueles frutos. Segundo a nova lei uruguaia, o maconheiro pode se encaixar em três perfis. O primeiro é o 99


FASOS cultivador caseiro, sendo permitido o cultivo de até seis plantas por maconheiro. É obrigatória uma nova licença para esse procedimento a cada três anos. O segundo é a participação em um clube de cultivo. Nesse formato, de 15 até 45 pessoas, mediante uma taxa de $U 5.000 para a inscrição mais $U 1.500 mensais, podem plantar e consumir a erva. A parte realmente audaciosa fica no terceiro perfil. Nos dois primeiros, as empresas licitadas não participam, mas são elas as responsáveis por abastecer o terceiro formato de venda: nas farmácias. Após se registrar, o maconheiro pode comprar até 40 gramas da erva por mês. Dez gramas por semana. Para atender essa demanda, as empresas precisam colher uma tonelada de maconha por ano. O ex-presidente uruguaio José Mujica implantou essa lei para combater o crescente narcotráfico de seu país. Ele está mais do que certo em legalizar. Além de todos os benefícios expostos nessa parte do livro, a proibição da maconha traz sérias e contínuas consequências à sociedade que já justificariam sua legalização. Aliás, a grande pergunta não é por que legalizar, mas, sim, por que proibir.

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CONSEQUÊNCIAS DE UMA GUERRA

Wikimedia Commons

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PARTE 2: PUXA

Polícia para Consequências dequem umaprecisa guerra7

O tráfico de drogas leva a polícia a atuar de forma realmente militar, trocando tiros. Uma das mais infelizes consequências das trocas de tiro são as balas perdidas. Em 2013, um relatório divulgado pelas Nações Unidas revela que nosso país é o terceiro que mais sofre com balas perdidas no mundo. Foram 22 mortos e 53 feridos entre 2009 e 2013, boa parte composta por crianças. Na Venezuela, a proporção da quantidade de balas disparadas erroneamente atingirem civis é muito alta. Dos 74 disparos errados, 67 mataram o alvo. Alguns sobreviveram. Outros, por sorte, não atingiram ninguém. Esse relatório mostra que 27% dos casos que envolvem essa atrocidade acontecem em ocorrências policiais, como perseguições e eventual troca de tiros. Um número muito próximo dos tiroteios entre gangues e facções rivais: 24%. Alguns casos envolvendo crianças ganharam a mídia. Gabriele Teles, de apenas um ano, foi atingida mortalmente na cidade de Cabo Frio, no Rio de Janeiro. Vítor Gomes levou um tiro na cabeça durante uma operação da UPP carioca, 103


CONSEQUÊNCIAS DE UMA GUERRA no Morro dos Macacos. Garoto forte, guerreiro, conseguiu sobreviver. No mesmo dia em que o acidente ocorreu, moradores da comunidade, em protesto, fecharam o túnel Noel Rosa, uma das principais vias que ligam os bairros Vila Isabel e Riachuelo, nos dois sentidos. A tendência é piorar. Só em janeiro de 2015, 24 pessoas foram atingidas por balas perdidas apenas na região metropolitana do Rio de Janeiro. Desses, três disparos foram fatais. Outro fator que é acarretado pela proibição é o aumento absurdo da população carcerária. O Departamento Penitenciário Nacional, ligado ao Ministério da Justiça, comparou o crescimento da população total do Brasil com a população carcerária entre 1990 até 2012. Entre esses anos, a população brasileira cresceu 30% e a quantidade de pessoas presas 511%. Em 2014, nosso país se tornou o terceiro no mundo com mais pessoas encarceradas. No dia 5 de junho desse ano, 715.655 pessoas estavam presas, sendo que nosso sistema carcerário suporta 357.219 presos. Nosso país tem mais pessoas presas que a maioria de suas cidades têm de pessoas livres. Se pegarmos como exemplo algumas cidades da grande São Paulo podemos ver isso. Em 2012, Osasco possuía 693.271 moradores. Santo André 707.613 e Diadema 409.613. Os estados com mais presos são os de São Paulo, com 204.946, Minas Gerais com 57.498 e Rio de Janeiro com 35.611. Nosso país só perde para a China com 1.701.344 pessoas presas e os Estados Unidos, com 2.228.424. Em 2014 cada pessoa enjaulada em prisões federias custa aos cofres públicos R$3.472,22 por mês. Nas prisões estaduais um preso custa R$1.350. É importante lembrar que o salário mínimo do mesmo período era de R$724. Nosso país tinha em 2005 cerca de 32 mil pessoas presas por tráfico. A lei 11.343, de 2006, que trouxe penas mais duras para o traficante, não esclarecia com precisão qual é o critério para definir se a pessoa é usuária ou traficante. Em 2012, o 104


PARTE 2: PUXA

Da frota G, operante na Linha Verde desde 2008. 22

número de presos por tráfico saltou para 138 mil. Na maioria dos casos, os presos foram pegos com pequenas quantidades e eram réus primários. Uma pesquisa divulgada em 2012 mostra que dentre os presos por tráfico, a maioria (60%) era composta por negros e pardos. Metade dos traficantes não completaram o Ensino Fundamental. Cerca de 6% são analfabetos. E menos de 1% chegaram até o Ensino Superior. Mais da metade (55%) dos traficantes tem de 18 até 29 anos. A lógica de oferta e demanda se aplica ao mundo das drogas. Se alguém quiser comprar, com certeza vai ter alguém querendo vender. Mesmo em países onde a pena para tráfico é a morte. Na China, por exemplo, o traficante recebe um tiro na nuca. O governo chinês achando que é pouco, ainda cobra da família do morto o preço pelo projétil disparado. Pouco sádicos, não? Pensam muito na família da pessoa. A China, mesmo com mais de um bilhão de habitantes, não é um dos principais consumidores. Mas, ainda assim, tem muito drogado em nosso mundo. Em 2012, o Relatório Anual sobre Drogas da ONU (o último divulgado) aponta que 243 milhões de pessoas, ou 5% da população mundial, entre 15 e 64 anos usaram drogas ilícitas naquele ano. Sendo que 27 milhões, ou uma a cada 200 pessoas, são usuários problemáticos. Segundo informações do Metrô de São Paulo cabem em um vagão22 , em pé e sentadas, o total de 338 pessoas (quem usa sabe que cabe muuuito mais que isso). Ou seja, estatisticamente, em um vagão lotado existe pelo menos uma pessoa chapadona. Os países com maior porcentagem de maconheiros entre seus habitantes são a Nigéria 105


CONSEQUÊNCIAS DE UMA GUERRA (14,3% da população), a Nova Zelândia (14,6%), os Estados Unidos (14,8%) e a improvável campeã, Islândia (18,3%). O Relatório Anual revela um fator positivo para nós: os usuários de maconha do nosso país estão entre os que mais demoram a ter o primeiro contato com a erva. Os 8,8% da população brasileira que fumaram maconha em 2011 têm idades entre 16 e 64 anos. Infelizmente esses dados podem não ser os mais precisos. Com certeza muita molecada mentiu sobre o uso. Na Colômbia e na Bolívia, por exemplo, os maconheiros variam de 65 até 12 anos. Mas esses países, famosos por serem grandes produtores de maconha e, principalmente, cocaína, também devem camuflar seu uso. A pesquisa mostrou que apenas 2,27% e 4,5% da população desses países latinos, respectivamente, consomem a planta.

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E AGORA?

Wikimedia Commons

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PARTE 2: PUXA

Polícia para quem E precisa agora?7

Após afastar a fumaça, desobstruindo nossa visão diante da complexidade do tema, fica evidente que a maconha não deveria ter sido criminalizada. Além de todas as vantagens descritas nessa parte do livro, também foram citadas as consequências negativas da proibição: preconceito, violência, desperdício de dinheiro público e muitas outras. Tem ainda um outro fator muito importante e muito simples que não foi comentado até agora: a liberdade individual. Ora, que a maconha faz mal é um fato. Que ela faz menos mal em relação a outras drogas legalizadas é outro fato. Quantas mortes por ano não são causadas pelo cigarro? E pelo abuso de álcool – incluindo mortes por acidentes de trânsito? Mas nem é essa a questão. A questão é: quem me dá o direito de ser, agir ou fumar o que eu quiser? A moral e os bons costumes? A igreja? O Estado? Não, senhores. Estamos falando de direitos pessoais. Se o ato de usar maconha afeta somente a mim, então por que incomoda tantas pessoas? Ah, por que você está financiando o tráfico, diriam os desinformados. Ótimo! Se o problema é esse, amigão, eu tenho a solução: legalizar! 109


E AGORA? A maior parte do dinheiro ganho para o narcotráfico iria para empresas privadas, gerando empregos e movimentando capital ou até o governo, podendo ser usado, por exemplo, em políticas de prevenção ao abuso de drogas e programas de redução de danos. Ou nenhum desses dois. Podem simplesmente legalizar o cultivo. Os mais desinformados podem insistir na tecla e dizer que isso não é argumento, dizendo que se formos pensar assim, então devemos legalizar o assassinato e o estupro Além disso, não se está discutindo a legalização do tráfico, mas sim da maconha, que só afeta diretamente a pessoa que decide fazer uso dela e se afeta indiretamente a sociedade como um todo, isso se deve justamente à criminalização. A diferença é que a quantidade e a frequência com que esses crimes acontecem variam conforme a época, o país e vários outros fatores. O tráfico não, sempre aumentou. E não só o tráfico, mas o número de usuários, a quantidade de dinheiro gasto, a quantidade de pessoas presas e o preconceito em torno da erva. Fumar maconha também tem seu lado negativo, principalmente quando a pessoa toma esse hábito desde cedo. Jovens maconheiros têm dificuldades na escola e podem maximizar as chances de perturbações psicológicas. Maconha recreativa não é a solução para nada. E muito menos é o problema de tudo. É apenas uma planta que pode e tem sido usada de diversas formas. Não existem razões para crer que a maconha, quando legalizada, se torne tão comum quanto o álcool. O principal inimigo da legalização é a falta de informação das pessoas sobre a erva. A maioria das pessoas a relaciona diretamente à marginalidade e vidas desgraçadas. Daí para baixo. Mas e agora que você já sabe a real? Qual será sua atitude?

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PARTE 3: PRENDE

PARTE 3

PRENDE Conversas com quem participa da organização da Marcha da Maconha em São Paulo

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O PROFETA

Zanone Fraissat

Contraste na Marcha da Maconha de S達o Paulo em 2011.

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PARTE 3: PRENDE

Polícia para quem precisa7 O Profeta

Dos pés à cabeça: coturno alto de couro, preto, ponta larga; calça alinhada, cinza, ótimo caimento; cinto preto de guarnição, contém lanterna, algema, revólver carregado; camisa bem ajustada, cinza, patente indicada no ombro; colete à prova de balas, cinza, desconfortável; boné cinza, usado mesmo quando não há sol. Mão direita: cassetete. Mão esquerda: punho cerrado. Da cabeça aos pés: touca amarela, vermelha, preta e verde, dreadlocks de lã na parte de trás; óculos escuros, preto, estilo "Matrix"; túnica verde, grande e larga; cinto marrom, simples; calçado simples. Nas mãos: carrinho com caixa de som verde, reggae e outras paradas. No vão do MASP, ponto de encontro da Marcha da Maconha paulista de 2011, houve um grande contraste. No fundão, com aquela bela paisagem da cidade, a galera fumava sem preocupação – curtindo o visual. Os engajados estavam no meio – preparavam faixas e cartazes, orientavam principiantes, distribuíam folhetos, concediam entrevistas. 115


O PROFETA Próximo da calçada a vida cotidiana seguia – pessoas apressadas, indiferentes, curiosas, andando de lá para cá. Na rua estavam os policiais – eretos, mal encarados, seguindo ordens. E, no meio de tudo isso, havia ele. Chamando atenção pela vestimenta, pela pulsante caixa de som que levava e pelo aspecto zen, estava ele. Ele, o Profeta. O Profeta Verde. O Profeta perambulou pela massa. Foi alvo de muitos comentários, sorrisos e fotografias. O Profeta pegou, fumou, prendeu e passou. O Profeta caminhou entre soldados, civis e maconheiros. E, antes de estar por lá, o Profeta trajava sapato, calça, camisa, terno e gravata no cartório em que trabalhava. O Profeta foi muito solícito para participar deste livro. Não é difícil encontrá-lo. Basta digitar "Profeta Verde" no Google para visualizar fotos, vídeos e redes sociais. Por uma delas fiz o contato pedindo a entrevista. "Fazemos reuniões da ACuCa1 . Você pode chegar lá pra nos apresentar teu projeto". Cliquei no link enviado só para confirmar o endereço. "Isso aí! No 11º andar do prédio Casa do Estudante". Ora, apresentar o projeto, 11º andar, Casa do Estudante, na avenida São João? Pensei estar indo a um tipo de escritório. Nada parecido com o que tinha em mente. Achei que o Profeta iria me receber numa espécie de jardim, fumando um imenso bong2 enquanto repousa num deslumbrante tapete. Talvez sendo abanado por lindas virgens. É onde os profetas ficam, certo? Mas aí já estou fantasiando demais. Cheguei dez minutos atrasado. No portão do prédio havia mais duas pessoas, que só entraram com a chegada de uma terceira pessoa, uma mulher que tirou a chave do portão da bolsa. Eu aproveitei a oportunidade e entrei no embalo. Nós 116

Associação Cultural Cannabica de São Paulo. 1

Espécie de cachimbo com água que vaporiza a erva. Lembra um pouco o narguilé árabe 2


PARTE 3: PRENDE

Elevado Costa e Silva é o nome oficial do Minhocão, um viaduto de rua que corta toda a região central de São Paulo e divide opiniões. Uns o consideram vital para a fluidez do trânsito na cidade, outros o veem como uma estrutura que representa a falta de planejamento urbano de São Paulo. 3

quatro nos esprememos num elevador minúsculo – provavelmente o menor em que já estive. Notei nos botões a ausência do 11º andar e perguntei à mulher. "Mas você vai falar com quem?". Respondi que ia ver o Profeta. Com um sorriso, ela responde: "mais um". Na hora tive a certeza de que não se tratava de um escritório. Será verdade o lance do jardim? Saímos do elevador e subimos um lance de escada. Muita sujeira no caminho. Pedaços de tinta e cimento da parede estavam nos degraus, junto com poeira e bitucas de cigarro. Já no corredor acima do elevador há uma pixação alertando "fora caguetas". Onde eu estava afinal? O 11º andar na realidade é o terraço do prédio, daqueles que oferecem uma visão de 360 graus. Medroso que sou, mesmo tendo grade, demorei um tempinho para me aproximar da beirada. Conheço o centro de São Paulo. Localizei rapidamente o Edifício Itália e o Copan. Senti a ausência do antigo Banespa, que tem um terraço aberto à visitação. Se olhasse para baixo veria o famoso Minhocão. Se o velho Costa e Silva3 soubesse o que faríamos lá em cima... No terraço há uma parte coberta. Nela ficam uma geladeira, um radinho, uma mesa, um sofá e algumas almofadas no chão. Numa delas estava o Profeta. Sentado com as pernas cruzadas, como um índio, usando sua tradicional túnica verde e com os pés descalços. Naquele momento ele concedia uma entrevista para o documentário de um grupo de alunos de jornalismo. De forma calma, respondia demoradamente cada uma das perguntas. Falavam das consequências, positivas e negativas, da legalização da maconha. Aproveitei para me enturmar. Além das pessoas que subiram comigo, do Profeta e dos três jovens que o entrevistavam, havia mais uma 117


O PROFETA garota e dois caras. A mina estava de camiseta regata, saia longa e sandálias. Um cara estava de bermuda larga e uma camiseta com cores fortes e motivos psicodélicos. O terceiro me chamou a atenção pelo carregado sotaque baiano. Seu nome é Fabiano e ele é um dos organizadores da Marcha de Salvador. Está em São Paulo para fazer um curso na USP. Além deles, mais pessoas eram esperadas. Rodrigo, um dos que subiu comigo no elevador, falou o que era a Casa do Estudante (um prédio residencial comum para estudantes da USP) e a ACuCa, explicando que aquela seria mais uma reunião semanal. Não demorou para rolar um baseado. Com o beck passando de mão em mão, Rodrigo, Fabiano (o baiano) e Sérgio (o outro que subiu comigo) começaram a falar de cultivo. Para mostrar o resultado de sua técnica Sérgio sacou do bolso dois tubinhos de plástico (para ser mais exato a embalagem dos mini M&M's) dos quais tirou o que logo reconheci como algumas flores femininas4 de cannabis sativa. Só tinha visto aquilo por foto ou vídeo. Diferente da maconha vendida na biqueira5 – prensada cheia de química e nojeiras – aquelas tinham realmente aspecto de plantas. Só não digo que eram recém-colhidas porque para ser fumada a erva precisa estar seca. "Essa ainda não está seca o suficiente, mas já dá pra fumar". Ô se dava. Havia negado o primeiro baseado. Queria estar totalmente atento para a reunião e a conversa com o Profeta. Mas aquele não podia negar. Não ia fazer essa desfeita. Quando o Profeta terminou a gravação fui me apresentar. Não sei qual a duração da entrevista que ele estava dando, mas soube da existência de uma reunião para logo menos. Sugeri então 118

4 A planta se reproduz de forma sexuada. A planta macho solta um pólen que é fecundado pela fêmea. A fêmea desenvolve as sementes. E o mais importante: é a flor da fêmea que dá a brisa. 5 Gíria para os pontos de venda.


PARTE 3: PRENDE conversarmos depois, quando ele se sentisse à vontade. Com um sorriso tímido ele concordou. Não conversamos muito ao longo de toda a reunião. Aliás, pouco falei. Queria estar ali com olhos e ouvidos, não com boca. Falavam muita coisa jurídica. Formação de estatuto, membro representante, cargos. Muita coisa burocrática. Nos vários intervalos feitos (para abrir o portão, comprar água no mercado mais próximo, fumar mais um) fui esclarecendo as dúvidas. O que a ACuCa quer é ser uma comunidade legalizada de cultivadores de maconha. "É uma merda o cara que é pobre e preto sendo preso, as penas são bizarras. Mas prender um jardineiro que deixou de alimentar esse processo do tráfico para plantar ele mesmo é bizarro demais. Isso tem que mudar pra ontem. Esse é o desejo da ACuCa, liberar o cultivo para uso pessoal. O argumento do tráfico cai por terra. E brota." , me diria o Profeta na futura entrevista. Um ponto foi bem ressaltado na reunião: a necessidade de angariar fundos. O dinheiro serviria para imprimir uma revista cuja original já havia circulado na mesma reunião. O Profeta se mostrava meio incomodado com essa necessidade. Quando Maria Antônia, que chegou depois, falou que precisavam de "grana, grana!". O Profeta não se conteve e riu. De fato, o dinheiro é muito importante. O cara da camiseta psicodélica, em tom de confidência, deu uma ideia bem bolada para a arrecadação. Envolve vantagens para membros da associação. Disse que é uma boa ideia, mas pediu que ela não fosse divulgada pois "não sei vocês, mas eu quero passar a velhice brincando com os netos no meu sítio". A ideia é realmente muito boa. Vou preservar o empreendedorismo do sujeito. Ele pareceu ser o mais interessado nas vantagens de arrecadar dinheiro e me pareceu ter um caminho já traçado do que fazer. Uma pena ele ter que sair rápido da reunião. Foi o primeiro. A reunião misturava momentos sérios com outros bem descontraídos. Mas todos ali tinham um conhecimento 119


O PROFETA grande sobre a política da legalização. Falam inclusive de questões legais. Em um momento, a Maria Antônia disse "pra isso nós temos o Profeta, aqui". Ouvindo aqui e ali soube que o Profeta é formado em Direito pela USP e é sempre consultado em questões judiciais. Quando responde ou sugere algo relacionado ao que estudou, o Profeta fala com total segurança. Descobri também que seu nome é Fernando. Mas foi trajado como Profeta que ele, juntamente com Rodrigo, da ACuCa, Renato Cinco, já vereador do Rio de Janeiro, e muitos outros participantes da Marcha da Maconha estiveram em Brasília para debater a legalização no Senado. Graças às vinte mil assinaturas colhidas, foi levado à Comissão de Direitos Humanos do Senado a sugestão de matéria legislativa nº 8 de 2014. A proposta assinada por André de Oliveira Kiepper tinha como título "Regular o uso recreativo, medicinal e industrial da maconha". Quando o senador Cristovam Buarque, relator do processo, deu a fala para o Profeta, ele se apresentou como religioso. “E além de religioso, sou formado em publicidade e estou terminando minha segunda graduação em Direito, na USP. E, além de publicitário, e, em breve, advogado, eu também sou maconheiro. Desses que foi citado ai. Desses que faz uso crônico. Desde os quinze anos de idade eu faço uso da maconha quase todos os dias". Continuou alegando só ter diminuído o uso com ajuda do líder rastafári Ras Geraldinho. Pediu para ler uma carta de seu líder religioso. O pedido foi negado pelo relator, que alegou que aquilo seria uma divulgação da igreja e que tomaria muito tempo da sessão. Após ouvir de outro político presente que "aquilo é apologia, é crime!" O Profeta Verde sintetizou a carta. Ela pedia que o uso religioso da maconha também fosse debatido. Cristovam falou que a sugestão nº 8 diz respeito aos usos recreativo, medicinal e industrial. Se fosse para falar do âmbito religioso precisariam de mais vinte mil assinaturas. O Profeta pediu para terminar 120


PARTE 3: PRENDE

Para a websérie “Vida Real” , dirigido por Fernando Pires. 6

sua fala com uma citação da Bíblia. Novamente, teve seu pedido negado. Ao mesmo tempo em que Cristovam Buarque passava a palavra para outra pessoa, o Profeta disse sua mensagem. Ora, quis ler a carta, não pôde. Quis dar uma mensagem, não pôde. Deve ter se sentido censurado num espaço que se propõe a fazer o contrário. Quis falar de qualquer forma, misturando sua voz com a do relator: "a maconha é a cura do corpo mas também é a cura do espírito". E terminou rapidamente com a saudação religiosa "Jah rastafári". Ras é o líder da primeira Igreja Niubingui Etiope Coptic de Sião do Brasil, que fica na cidade de Americana, interior do estado de São Paulo. Ras é, provavelmente, o rastafári mais conhecido em nosso país. Em entrevista concedida em 2011 ele afirma6 “com plena e tranquila consciência” que o seu sítio, provavelmente, “é o único local no Brasil onde o exercício do uso da cannabis não sofre repressão”. Mesmo tendo autorização judicial para sua igreja, assim como qualquer outra igreja precisa de autorização, Ras está preso desde agosto de 2012. Condenado por tráfico de drogas, lhe foi imposta uma pena de 14 anos na cadeia. A reunião da ACuCa terminou sem grandes avanços. Pelo horário e pela maratona de entrevista seguida de reunião, combinei com Fernando de nos reencontrarmos no dia seguinte. Marcamos no Sesc Pompeia, onde rolava uma exposição sobre cristais esotéricos que interessava ao Profeta. Lá, ele me disse que antes de usar a túnica verde, teve problemas pessoais que o levaram a se engajar na luta pela legalização. Certa vez, um vizinho “que não gostava muito” dele, suspeitando do consumo de maconha na casa, decidiu 121


O PROFETA

Geraldo Magela/ AgĂŞncia Senado

Fernando vestido de Profeta no Senado em outubro de 2014

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PARTE 3: PRENDE chamar a polícia acusando Fernando de ser traficante. De fato, havia muita maconha lá, mas para uso pessoal, não para vender. Levado pelos policiais, alegou ser usuário, não traficante. Os soldados averiguaram que a maconha era realmente para consumo próprio, mas que ainda poderia sofrer pena por ser usuário. “Eu lembro que quando fui pego tinham vinte, trinta, numa mesma sala pelo mesmo motivo que eu. Uma promotora deu uma palestra pra gente falando o quanto as drogas fazem mal. Eles falaram que iam ser ‘bonzinhos’ , que iam pedir pra nós fazermos um curso sobre drogas. Não precisaríamos responder o processo. E eu falei que não queria bondade não, quero responder o processo”.

Peitar o STF foi uma atitude corajosa, tomada graças ao curso de Direito que fazia na época. Na faculdade esteve presente em várias palestras e debates sobre proibicionismo. "Entre os pesquisadores do meio jurídico tem muita gente que acha que é abusiva essa proibição. Que é uma decisão moral influenciada por valores (religiosos e outros) que permitem que o Estado interfira numa escolha pessoal. Eu tenho o meu corpo, a minha saúde e eu escolho se eu quero fumar, se eu quero beber. O que o Estado tem que regular é se vou fazer mal para alguém. Se eu for dirigir e matar alguém. Ou se eu vou fumar tabaco num lugar fechado e prejudicar o pulmão de alguém. Se eu não prejudico outra pessoa, se o uso é restrito à minha individualidade e não afeta outras pessoas, entende-se para uma parcela significativa desses pesquisadores que é uma escolha sua. E eu aproveitei essa 123


O PROFETA ideia para responder ao processo que sofri alegando a inconstitucionalidade da proibição. A constituição federal permite a minha individualidade e eu acredito que eu tenha o direito de fumar. Sustentamos essa defesa. Perdemos na primeira instância, perdemos na segunda, mas esse processo foi pro Supremo Tribunal Federal e lá se espera um julgamento mais profundo, mais condizente com outros lugares do mundo. E até esperávamos uma decisão diferente". O STF, porém, não tinha meios nem interesse de julgar aquele caso. Seu veredito seria determinante para a legalização – ou para a proibição. "Lá está muito atarefado com outras questões políticas e o processo ficou parado e prescreveu. Ao prescrever já não diz mais se é condenado ou não. Não fala se é constitucional ou não. Não tem um veredito. Você não é culpado nem inocente. Você sai sem julgamento, sem ficha suja, sem antecedentes criminais. Mas também não terá o veredito de inocente " , diz ele. Fernando diz que a maior pena para maconheiro é o estigma. Alguns empregadores pedem, dentre demais documentos, uma ficha de antecedentes criminais. Normalmente esse documento é retirado com facilidade. Aqui em São Paulo em qualquer Poupatempo da vida já é possível. Mas não para alguém com passagem. Então, em uma entrevista de emprego, se perguntarem a esse maconheiro se ele usa drogas a pessoa terá que responder que sim. Já uma pessoa que bebe, se questionado da mesma forma, vai falar que não usa drogas, sendo que essa pessoa pode ser uma das que bebem todas no bar, chegam em casa e batem na mulher e nos filhos. Mas não usa drogas ilícitas. Para Fernando (e para o Profeta Verde) a luta pela legalização é não só válida, como também inquestionável. Em 2009, ele acompanhou por fotos a Marcha da Maconha de São Paulo. "Tinham quinze, vinte pessoas que amordaçaram a boca. Colocaram faixas na camiseta escondendo referências à maconha. Caso contrário você poderia ser preso". O poder 124


PARTE 3: PRENDE judiciário, como vimos, proibiu a Marcha de 2010, o que não impediu Fernando de comparecer pois "não concordava com a proibição da maconha e com a proibição do protesto". Sua lembrança foi de estar vivendo uma ficção. O uso da maconha é difundido no Brasil e no mundo. Sua legalização é apenas questão de tempo. Mesmo assim, um protesto sobre esta pauta é considerado apologia, e, portanto, crime. Embora aquilo não fizesse o menor sentido, Fernando sentiu que a legalização caminhava. E as Marchas dos anos seguintes só provariam aquilo. De fato, em 2011, ele já fazia parte da organização do evento. Não só isso, para ele a Marcha de 2011 "foi a mais emocionante da história". Foi também a ocasião em que o mundo viu pela primeira vez o Profeta Verde. A manifestação daquele ano "foi muito importante para mostrar a hipocrisia do que estava acontecendo, proibindo as pessoas de fazer um protesto. As pessoas queriam se manifestar. Pessoas que são inseridas socialmente, não são esses marginais que acham que os maconheiros são. E elas apanharam da polícia, tomaram bala de borracha, bomba de gás. Inclusive em jornalista e isso repercutiu levando o STF a se posicionar. Pois esse processo, assim como o meu, estava parado há anos. E eles não queriam se pronunciar, mas com a mídia falando que era um absurdo, o STF liberou as marchas". Diante dessas afirmações, pergunto a ele se a repressão policial ajudou, ao que ele responde: "Essa repressão ajuda a criar um clima para a mudança. Não que seja legal apanhar. Ninguém gosta de apanhar num protesto" , disse com um sorriso de 'você me entende'. "Mas nesse caso acabou tendo consequências muito grandes. Teve mais três marchas depois. Duas Marchas da Liberdade, uma em São Paulo (muito grande), outra com várias cidades no Brasil inteiro no mesmo dia. E depois o STF julgou e nós fizemos mais uma Marcha da Maconha em São Paulo. Foi um ano que a pauta ficou muito em voga. Nós conseguimos avançar no debate 125


O PROFETA sobre a legalização e garantir o direito à discussão". Esse foi o primeiro ano em que ele foi de Profeta e quando questiono sobre a origem dessa ideia, ele explica: "As pessoas tinham medo de ir na Marcha e aparecer numa foto de jornal e algum familiar ver. Nós da organização propusemos: põe óculos escuros, uma toca do Bob Marley. Na época eu trabalhava em um cartório, o pessoal bem careta. Arrumei essa roupa verde, coloquei uma corda, uma touca tipo peruca com dreads e fui. Mas eu fui no style com uma caixa de som colorida". O visual completamente diferente dos policiais e até dos manifestantes "chamou muito a atenção. Então teve muita foto. O pessoal postou muita foto no facebook. Nessa época o facebook estava se espalhando. Eu ainda não tinha, só orkut que não usava muito. E sabia que no facebook a galera divulgava a Marcha e eu precisava ter um. Mas não quis criar um perfil do Fernando. Então juntei as imagens e dei um nome. Pensei e a partir dessas fotos, dessa roupa, dessa imagem, com a necessidade de comunicação através da internet e um desejo de esconder o meu eu nesse mundo virtual eu criei o perfil". Assim nasceu o Profeta Verde, por "coincidência, acaso do destino". Fernando aprendeu a importância da comunicação na faculdade de Publicidade, onde teve contato com psicologia, teoria das cores e outros assuntos. Ele decidiu não seguir a profissão porque muita coisa vista em aula não se encaixava com o que ele queria para sua vida. "Trabalhar numa agência de publicidade para fazer um cartaz que é superbonito, maravilhoso, cheio de arte, pra convencer o cara a comprar um produto que é uma porcaria? Vou ficar oferecendo McDonald's pra criançada?” Esse lado consumista pesou muito na decisão de seguir ou não a carreira. Indo na contramão da maioria dos colegas de turma, Fernando ficava desconfortável quando ouvia falar em ampliar o público alvo, alcançar resultados e maximizar os lucros. Ele aprendeu bem, sabe se comunicar. Quando o 126


PARTE 3: PRENDE entrevistei, ele já estava para lá de calejado no procedimento. Se sentiu seguro e confortável para falar de sua vida para um completo estranho. Me dava ao final de cada resposta uma nova informação interessante, de certa forma forçando-me a perguntar sobre aquilo. Se eu não o fizesse ele retornava o assunto, levantando a bola e dando brecha para questioná-lo sobre isso ou aquilo. De maneira informal, falou que tinha uns doces de chocolate com maconha, os famosos brigaconhas ou brigonhas. Cada pessoa fala de um jeito. Ele diz que a maconha ingerida tem um efeito de barato maior do que a fumada. Entretanto, o efeito demora para bater. A primeira vez que Fernando consumiu maconha foi como se deve, em um dia de sol, na praia. Consumiu da forma mais comum: fumando. Mas não bateu. Isso é até bem comum. A brisa da maconha é muito diferente da do álcool. Os efeitos da bebida ficam claros para o bêbado. Alguns mal falar conseguem. Embora soltem o clássico "eu tô bem, não tô bêbado" , eles sabem que caretas não estão. Com a maconha é diferente. Alguns podem estar sob o efeito e nem sentir. Muitas pessoas que usam pela primeira vez costumam ficar caladas, introspectivas. Veem outros sentido nas coisas. Em um momento estão quietas e no outro começam a rir de forma cartunesca, muito alto e por nada. Muitas pessoas não consomem regularmente pois ficam mais caladas em festas e reuniões. Geralmente esse povo gosta de fumar para ocasiões mais íntimas, como ver um filme ou namorar. Na segunda vez em que Fernando fumou também não deu nada. Mas "dessa vez eu levei uma porção pra casa e fumei com um amigo e aí funcionou. Aí a gente ficou brisadão". Depois de duas tentativas que não deram certo, fico curioso quanto ao motivo da insistência. "Porque eu sabia que tinha sido pouco" , responde Fernando. "Tinha sido um pega. Eu sabia que não era aquilo a brisa da maconha. Eu já tinha visto pessoas que fumaram e sabia que o que eu tinha experimentado não a mesma coisa. Eu queria sentir. Já tinha 127


O PROFETA ouvido falar. Já bebia. Já tinha experimentado outras drogas e queria usar maconha". Quando pergunto se ele já tinha experimentado outras drogas antes da maconha, ele explica: "Outras drogas como álcool, basicamente. Cigarro, também. Outras drogas ilícitas... não, não. Foi a maconha mesmo até porque é a mais simples delas. É a menos perigosa, a mais popular, então a maconha foi a primeira ilícita. Foi a minha porta de entrada para a criminalidade". Essa ideia da maconha como porta de entrada para a criminalidade ou para outras drogas é polêmica, então questiono se ele concorda com esse ponto de vista. "Ela é uma porta de entrada para a sua própria personalidade. Para as suas coisas mais profundas. Assim como outras drogas como o vinho, a cerveja, o ayahuasca, o LSD, o MDNA, elas te abrem conexões com o que está dentro de você. O cara bebeu e ficou agressivo. Foi a bebida que deixou o cara agressivo? Não, ele já era assim antes. A bebida que liberta aquilo. O cara tomou um doce7 e começou a viajar a fazer uns desenhos muito loucos então doce deixa as pessoas loucas e torna elas boas pintoras? Não. O cara já tinha alguma coisa dentro dele que tava travado e o LSD ajudou a libertar. A maconha é uma porta de entrada pra mim mesmo. Agora, que ao usar maconha, hoje proibida, você se sente mais à vontade para usar outras drogas proibidas isso é fato. Porque quando eu experimentei a maconha eu falei 'poxa, tô usando uma coisa proibida e não aconteceu nada de mais. A polícia não me pegou, não tô preso, então se eu fizer a mesma coisa com a cocaína talvez não seja diferente. A polícia não vai me pegar, não vai acontecer nada de mais'. Eu 128

Gíria para LSD.

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PARTE 3: PRENDE acho que o fato dela ser proibida torna mais fácil a gente usar outras drogas proibidas. Por isso, acho que se a maconha for legalizada ela estaria muito mais distante da cocaína do que do álcool porque eu bebi vinho, tomei cerveja com meu pai e com a minha mãe muito antes de fumar maconha. Com sete, oito anos ele já me ofereceu uma taça de vinho no natal ou coisa assim. Então não dá pra falar que a maconha é a porta de entrada, a primeira droga que eu usei foi a minha mãe que me deu, café com leite quando eu era criança, sabe? E com muito açúcar que é outra droga ". Pergunto qual personalidade ele encontrou ao cruzar a porta, ao que ele responde: "No meu caso, a maconha me abriu a porta da sensibilidade às coisas do ambiente, às outras pessoas, aos outros animais, às flores, às plantas. Eu era bem fechadão, na minha. Um cara meio turrão. Não chorava muito, não ria muito, não me expressava muito, não falava muito. E continuo assim, mas após o uso da maconha eu quebrei um pouco essa muralha que tinha em torno das minhas sensações, das minhas percepções e comecei a ver de forma diferente uma planta, um animal, um pássaro, ouvir o canto dele, uma música, um filme. Ela mexe um pouco a forma como você enxerga as coisas. E ela me tornou mais sensível. Comecei a sentir mais o calor, mais o frio, mais a alegria, a tristeza, as cores" Aos quinze nos de idade, quando começou a fumar maconha, Fernando já não vivia mais na aba dos pais. Criado em Bragança, no interior paulista, teve uma infância comum de classe média. Seu pai é um imigrante português que trabalhava como comerciante e sua mãe trabalhou como funcionária de um supermercado e também foi dona de casa. Seus pais eram liberais. Não do jeito hiponga. Do jeito normal. Davam uma graninha para o jovem Fernando se divertir na cidade. "Bragança é uma cidade de cem, 150 mil habitantes, então na infância a brincadeira era ficar na rua jogando bola, brincar de polícia e ladrão, esconde-esconde. 129


O PROFETA Depois um pouco mais velho era ir no clube de campo, pegar a bicicleta. Fazer aula de futebol, de judô, de tênis. Isso mais com sete, oito, até uns doze. Aí começa mais a época de ir no cinema, paquerar as meninas, namoro. E com catorze pra quinze, quando fui pra Campinas, começa a história de drogas, baladas e tudo isso." Decidiu sair de Bragança pelos questionamentos que foram surgindo em sua vida e pela falta de possibilidades que uma cidade pequena proporciona. Ouvindo Raul Seixas e Bob Marley, passou a questionar seu próprio futuro. Soube desde aquele momento que não queria trabalhar de terno e gravata. Não queria ficar de frente para a televisão, "com a bunda no sofá" , vendo jornais sensacionalistas e novelas e pensando que a vida se resume àquilo. Ele queria mais, muito mais, e conseguiu. Mesmo absorvendo muita coisa do curso de Publicidade, não era aquilo o que ele queria. Estudante muito dedicado, conseguiu conciliar este curso com o de Direito, onde poderia debater política e, talvez, fazer alguma mudança significativa. Durante nossa conversa, quando falava mais do passado, Fernando ponderava sobre suas decisões. Em alguns poucos momentos mostrou até certa indecisão sobre um caminho ou outro que trilhou. Porém, sinto que hoje ele encontrou o que quer seguir. Com o diploma de Direito em mãos, quer agora defender os acusados envolvidos de alguma forma com drogas. Empolgado, me deu um panfleto "ainda não definitivo" sobre esse trabalho. Disse que existem advogados especializados nesse segmento. Alguns ficam presentes nas Marchas da Maconha. Sempre de prontidão no caso de algum abuso policial. Para Fernando e para o Profeta, a legalização da maconha é questão de tempo. Não só isso, ele acha que a maconha vai ser "a planta do século 21". Referindo-se ao Profeta na terceira pessoa como fez durante toda a entrevista, Fernando explica: " A gente viveu um século vinte que acelerou muito a nossa cabeça. Nas 130


PARTE 3: PRENDE grandes cidades, nos núcleos intelectuais de faculdade, as pessoas são muito aceleradas, tá muito corrido, a nossa cabeça pensa muito. A gente fica muito ansioso. Nós nunca temos tempo suficiente. Eu tô aqui contigo no Sesc e já tô pensando em encontrar minha esposa mais de noite. Tô preocupado que deveria estar trabalhando pra ganhar dinheiro e várias outras coisas. É muita pressão profissional. É muito estímulo. É televisão, outdoor, a placa ali que tá falando coleta seletiva de resíduos, é a moça que está deitada, as crianças passando, o helicóptero, é a antena de celular que está emitindo ondas na nossa cabeça, eu falando sem parar. É muita coisa e aí você usa a maconha e dá uma respirada, fica mais tranquilo. Por conta disso, eu parei e pensei que a maconha vai ser a planta do século 21. As pessoas vão usar cada vez mais. Vai ser legalizada. Muita gente vai ficar rica com maconha. Vai ter remédio, produtos. Vai ser a commodity do século 21 e o Profeta acredita nisso. A substância mais importante e essa é a mensagem que ele passa. Prepare-se porque em 2100 a maconha vai ter se disseminado pelo mundo, pra bem ou pro mal (e eu acho que vai ter muita coisa ruim com isso também). E nós estamos precisando. O nosso tempo está precisando de maconha para dar uma equilibrada nesse acelero todo. " Pergunto quais seriam os efeitos negativos que essa disseminação pode trazer. "As coisas ruins que são trazidas por esse acelero. Esse ‘acelero’ ele é fruto de um desenvolvimento econômico capitalista de maximização. A gente vive numa sociedade de maximizar. Você tem que ser o máximo: o ativista mais legal, o mais bacana, o mais inteligente. Na opinião dos outros, mas especialmente consigo mesmo. As empresas falam em maximização dos lucros e quando você maximiza, maximiza, maximiza, maximiza, a coisa degringola. E isso vai acontecer com a maconha. Ela virá com o seu poder intrínseco de desacelerar, acalmar, dar paz e ela vai estar no meio dessa sociedade acelerada e será usada para conseguir dinheiro, para matar essas inseguranças, 131


O PROFETA essa ansiedade, esses medos. E vai ter gente que vai ganhar dinheiro com isso, vendendo uma maconha muito potente. As pessoas vão ficar viciadas, vão passar mal, perder o controle. Pode chegar nas crianças muito cedo, como acontece com o álcool às vezes. O álcool é uma droga bacana também, mas por conta desse nosso sistema está sendo muito usada de uma maneira descabida. A cerveja, por exemplo, tem propaganda com jogador de futebol, com um monte de mulher bonita, tendo a vida que todo mundo queria ter. E que fala: tome cerveja x e tenha um vidão de patrão. E isso chega nos adolescentes. Você acha que não vão fazer o mesmo discurso com a maconha? Se você usar vai ficar mais descolado, vai virar artista, vai ter ideias geniais. Mas espero que não seja algo tão marginalizado como é atualmente. As pessoas vão ver que tem artistas, tem empresários, tem médicos, que tem psicólogos, muita gente que fuma maconha e são normais. E eu espero que quando minha filha, que tem cinco anos, e meu filho que tá na barriga ainda, daqui há dez, quinze anos tenham contato com a maconha não seja uma coisa tão dramática. Maconha não é problema. O problema são os nossos 'aceleros'. Nossa ansiedade nessa vida corrida de cão que a gente leva. E eu acho que vai ter problemas, posso não concordar com a forma que algumas pessoas vão fazer uso dela. Mas espero que as informações sobre as drogas sejam mais coerentes. Que não sejam informações baseadas no medo, mas sim no amor, na segurança e no conhecimento. Por isso que eu defendo a legalização da maconha. Eu quero que a planta viva num mundo mais tranquilo, não esse terror que foi feito no século 20". Será essa uma verdadeira profecia?

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PARTE 3: PRENDE

Polícia para quemVinagre precisa7 Rodrigo

A Marcha da Maconha é um movimento que não tem líderes. É organizada por diversos coletivos. Um desses coletivos, o Desentorpecendo a Razão (DAR) está “há muito tempo no rolê” da Marcha, como me disse em entrevista Rodrigo Vinagre, um dos fundadores do DAR. Conheci Rodrigo em uma reunião da Marcha realizada nos fundos da Faculdade de Direito da USP, aquela que não fica na cidade universitária, mas sim no Largo de São Francisco, bem perto da Praça da Sé, o coração de São Paulo. O porão, como é chamado o local, me parece uma espécie de salão de festas da faculdade. Mas não um salão formal. Tem bem mais a cara de um rock bar, com mesas, balcão de bebidas e até um pequeno palco no fundo. Nossa conversa foi breve, estávamos com dificuldade para entrar no local pois a realização da reunião não fora avisada previamente. Só conseguimos entrar quando o Profeta Verde chegou. Estudou por lá, conhecia as pessoas. Pensei comigo que isso que é um bom profeta, abre portas. Rodrigo teve o mesmo pensamento e falou antes de mim. Demos boas 135


RODRIGO VINAGRE risadas. Depois da reunião, pelo facebook, marcamos uma entrevista para este livro. Ele foi muito gente boa em me chamar para sua casa, em Santo Amaro. Mal nos conhecemos e ele demonstrou confiança. Isso sempre é legal. Rodrigo completa 30 anos no final de agosto de 2015. Durante toda sua vida morou em Santo Amaro. Também fez no mesmo local o ensino fundamental e médio. A escola, com seu método de ensino construtivista, ensinou-lhe com uma abordagem diferente do ensino tradicional. Sempre faziam muitos debates entre alunos e professores, inclusive sobre drogas. No ensino médio adorava as aulas que envolviam história e política. Teve professores anarquistas, que ajudaram a moldar sua ideologia quando adulto. Um deles, o Rafael, tinha até uma banda de punk chamada Flicts “que tocam aquela música cerveja, cerveja, cerveja” . Essa banda eu não manjo. Pesquisei a música no youtube e é divertida. “Cerveja, cerveja. Cerveja é bom demais. Sem ela eu não fico. Com ela sobrevivo. Cerveja, cerveja é bom demaaais” é o refrão da música. Cantada em coro, com bateria acelerada. É uma ótima letra punk. Atualmente, Rodrigo encontra seu antigo professor nos protestos aos quais vai. Não só ele como alguns outros também. A educação que recebeu em casa também foi muito boa. Sua família materna é mais conservadora, seu avô e sua mãe. A parte paterna é mais tranquila. Também pudera, essa parte da família veio de Santos. E o ritmo em cidades praianas é mais relaxado mesmo, mais zen. Rodrigo adorava ir para a baixada ficar com os parentes. Tanto que hoje é torcedor do Santos Futebol Clube. A primeira vez que ele fumou maconha foi inesquecível e um pouco nojento. Com 17 anos, cursando o terceiro ano do colegial, foi chamado em um fim de semana para uma festa no apartamento “de um brother, que mora ali na Vila Mascote” , cujos pais tinham viajado. Na época, vários amigos 136


PARTE 3: PRENDE seus já fumavam. Ele estava em outra. Gostava era de jogar futebol. “Tomava uma breja, claro. Mas nem cigarro fumava. E ainda não fumo”. A festa na Vila Mascote deve ter sido bem etílica. Ele me conta que tinha muita gente e todo mundo levou goró. Mais para o meio da madrugada, quando estava “muito bêbado, à beira de passar mal” , foi convidado a fumar um baseado na varanda. Ele já estava xarope, naquele ponto em que parece que o limite da bebedeira foi atingido. Desse ponto em diante não tem como ficar pior. Não foi bem assim que aconteceu. “Fumei, e ‘pá’ vomitei na hora. Como vomitei na sacada caiu lá em baixo, na quadra do prédio. Na manhã seguinte tive que ir no vizinho de baixo, limpar. O vômito escorreu pela parede e foi até o andar de baixo. Essa foi minha primeira experiência com maconha”. Só nas vezes seguintes ele se deu melhor com a erva, passando a fumar com mais frequência. Como não tinha os contatos que tem hoje, o jeito era ir à biqueira comprar com traficantes. Rodrigo teve experiências muito ruins. Ele me conta que na favela dos Palmares, onde comprava maconha, os traficantes eram muito bem armados, inclusive garotos com menos de dez anos. “Dá mó dor no peito”. Certo dia, foi até lá de carro e presenciou uma troca de tiros entre os traficantes da favela dos Palmares contra, provavelmente, “uma outra galera lá do morro do Espraiada”. Claro que ele não ficou para conferir, preferiu engatar a marcha e sair em disparada. Outra situação tensa foi na favela Alba. Em 2010, os traficantes de lá conseguiram uma arma “sinistra”. Era uma espécie de fuzil com mira telescópica laser acoplada. Quando alguém se aproximava do ponto de venda do tráfico via uma luz verde desenhada em seu peito. Ele sabia que não era só um laser pois os traficantes gostavam de exibir as armas. Seu poder de fogo era tanto que chamou a atenção da polícia. Rodrigo acompanhou pela televisão uma megaoperação naquela favela. Algumas semanas depois, quando lá voltou 137


RODRIGO VINAGRE para poder comprar sua erva, reparou que as armas eram bem menores. Só pistolas e revólveres. “Os traficantes devem ter quebrado algum acordo. Pararam de molhar a mão dos policiais. E eles cresceram o olho pras arma deles. Quanto mais caras as armas, mais dinheiro eles estavam ganhando. E os policiais querem a parte deles”. Mas ainda antes dessas situações extremas, Rodrigo já questionava a proibição. Para ele, sempre foi muito óbvio, muito claro que a proibição não tem o menor sentido. “Você liga a tv e tem aquele filme ‘Os intocáveis’ sobre o Al Capone, e não tem como não relacionar uma coisa com a outra. Como tá passando isso na Tela Quente, na Globo, e a maconha está proibida? Vocês não estão vendo que dá errado? Que dá merda? Só gera morte, prisão e o caralho?”.

Antes de se engajar no movimento pela legalização da maconha, ele se envolveu na militância estudantil na faculdade. Aos 20 anos começou a cursar comunicação na Faculdade Cásper Líbero, uma das principais da área em São Paulo. Lá, teve contato com amigos e professores que pensavam de forma parecida com a sua. Rodrigo não concorda que as decisões do governo sejam tomadas por meia dúzia de políticos. Em sua visão, os partidos trabalham com um conceito de quadros. São várias pessoas ao redor de um único indivíduo que será eleito. Esses partidos disputam o poder do Estado e o conceito de Estado é parte do problema, pois “lá atrás, na escola, quando eu vi a formação dos Estados nacionais, via que os Estados foram criados justamente para 138


PARTE 3: PRENDE atender aos interesses comerciais. A história dos estados nacionais está diretamente ligada ao capitalismo comercial. Não quero um Estado, quero uma nova forma de governar e de seu autogovernar. É um movimento que vai de fora para dentro, e não de dentro para fora”. As primeiras manifestações políticas que acompanhou foi pela televisão e pela internet. As lutas antiglobalização que aconteceram nas cidades de Seattle e Gênova tinham o seu apoio por lutar pela descentralização do poder. Para Rodrigo, os políticos não são a solução, mesmo os relacionados à causa da legalização como Renato Cinco e Jean Wyllys. Seus projetos podem até ser bons – Rodrigo prefere o de Jean – mas eles não conseguirão nada sozinhos pois precisam estar em sintonia com o partido e dependem de outros políticos da câmara. O projeto deles pode até ser bom, mas para ser aprovado, e se ele for, será editado várias vezes. O projeto final não terá nada a ver com o que os políticos haviam proposto originalmente. Depois de conferir de longe a Marcha da Maconha de 2009, Rodrigo decidiu fazer parte daquilo. Concordava com o pensamento da Marcha, até gostaria de ter ido naquele ano. Assim, por meio de um amigo da faculdade, conheceu Júlio Delmanto. Os dois, juntamente com outros brothers, como “o Pedrão, o Gordon e o Saião” fundaram o coletivo Desentorpecendo a Razão, em um dos vários encontros que realizavam na casa de Júlio, em Santa Cecília. O DAR foi fundado pois seus membros iniciais tinham afinidade de temas e afinidades pessoais também. Eram amigos que, juntos, queriam lutar por aquilo em que acreditam. O objetivo do coletivo é mudar a mentalidade das pessoas. Para ele, não adianta a lei mudar se as mães continuarem a não saber lidar com seus filhos dependentes. A lei deve ser uma consequência do pensamento coletivo. “A sociedade como um todo tem que ver que a política de drogas tá errada, que tem que ser de outra maneira. É um trabalho 139


RODRIGO VINAGRE de formiguinha, um trabalho devagar. Um trabalho de baixo pra cima”. A organização de um coletivo autônomo é muito diferente da de um partido político. Ao invés de todos estarem girando em torno de um único candidato, os coletivos são descentralizados, operam em conjunto. Não só o conjunto do coletivo mas os conjuntos de outros coletivos também. Para Rodrigo, a Marcha ideal seria um grande guarda-chuva que abriga todos os coletivos, e todos esses coletivos participariam de forma igual. Quando pergunto se ele considera que o DAR hoje é um dos principais coletivos na organização da Marcha, ele discorda. Ele me explica que “o DAR está há mais anos no rolê da organização da Marcha, desde 2010. Então tem tarefas que os coletivos novos chegam e a gente troca ideia, meio que instruindo eles. Se nos anos anteriores rolou tal coisa, já sabemos o que fazer. As vezes dá a entender na reunião que nós somos o principal coletivo. Mas não, só estamos passando as tarefas que nós sabemos quais são e como fazer para os outros”. Para ele, o grande aumento de manifestantes pró-maconha em São Paulo na Marcha de 2010 se deve ao crescimento desse debate na esfera pública. Outra coisa muito importante foi a consolidação do que ele chama de “internet 2.0” , em que mais pessoas têm acesso à internet banda larga, e, consequentemente, mais acesso à informação, inclusive informações do DAR, que tinha um “bloguezinho” praticamente desde o seu início. O fato é que enquanto a Marcha de 2009 tinha aproximadamente 50 pessoas, no ano seguinte, teve quase dez vezes mais. Em 2010, como nos anos anteriores, a Marcha fora proibida um dia antes de sua realização. Rodrigo acha que essa manobra é feita de maneira muito fácil. E isso o deixa irritado porque uma decisão importante como a legalização da maconha, ou, no caso, um debate sobre esse tema, 140


PARTE 3: PRENDE é impedido por um único cara, um juiz superconservador. Para ter ainda mais público, os organizadores da Marcha decidiram mudá-la para um local mais chamativo, a Avenida Paulista. Na opinião de Rodrigo, esse foi o principal motivo para a repressão policial daquele evento. Enquanto os maconheiros ficam no Parque do Ibirapuera, tudo bem, ninguém está vendo. Mas na Paulista é diferente, tem muito mais visibilidade. A forma truculenta da polícia agir acabou sendo um tiro no próprio coturno, pois outros coletivos, mesmo não participando da luta pela maconha, se solidarizaram contra aquela violência desnecessária. E bota desnecessária nisso. Em 2011, Rodrigo estava fazendo o fundo de ato, ou seja, estava bem próximo da Tropa de Choque, que seguia a Marcha como um predador segue a caça. Um dos tiros disparados ricocheteou no chão e atingiu a perna de Rodrigo, que sangrou, o que não o impediu de correr. Ele me conta que o historiador Henrique Carneiro, já citado anteriormente nesse livro, foi atingido na cabeça por uma daquelas bombas que soltam gás. Rodrigo viu um irritado Henrique que, com a cabeça sangrando, ameaçou jogar pedras nos predadores. Rodrigo foi um dos que o acalmou. Baixar os ânimos é um dos trabalhos dos organizadores. Ele me conta que se vir um manifestante provocando demais a polícia dá um toque na pessoa. Da mesma forma, se a polícia estiver provocando um manifestante os organizadores falam para não cair na deles. A maioria das pessoas entende, mas sempre tem gente que gosta de causar. Nesses casos Rodrigo usa apenas a lógica. “É só o nosso conselho. Você está pondo a vida de milhares de pessoa em risco por causa de uma atitude sua. Você vai assumir essa responsa depois? É só isso. E a galera respeita. Dá para trocar essa ideia, a galera não é ignorante. Ninguém ali é intransigente”. Mas o pior momento daquela Marcha foi após seu encerramento. Decidiram ir até a delegacia onde Júlio estava detido. “Por que ele foi preso mesmo?” me pergunta Rodrigo. “Ele 141


RODRIGO VINAGRE estava distribuindo um jornal do DAR, não?”. “Ah, é, eles foram detidos por que no jornal tinha a imagem da maconha, catso”. Quando os manifestantes subiram a Rua Augusta para chegar à delegacia “foi bem violento. Era GCM na cara das pessoas. PM na cara das pessoas. E eles atirando, a rua cheia de gente, velhinha, tiazinha, crianças e eles metendo bala”. Com a repressão, veio mais visibilidade. E Rodrigo considera que o DAR soube usar essa visibilidade. Muitos coletivos sensibilizados com o ocorrido mostraram apoio à realização de uma manifestação pró-liberdade de expressão. Muitos grupos que não conseguiam fazer suas vozes serem escutadas, juntamente ao DAR e outros coletivos da Marcha da Maconha, organizaram a Marcha da Liberdade. “Liberdade para fumar e liberdade para se expressar”. Com as Marchas da Maconha ficando cada vez maiores, o próximo passo natural foi a criação dos blocos. Esses blocos nasceram, na realidade, para satisfazer as muitas vozes e pontos de vista que a organização da Marcha ganhou. Uns consideram que o foco principal deve estar na luta pela legalização e a consequente redução de mortes e prisões. Outros acham que o foco deveria ser a maconha medicinal, pois os pacientes que precisam dela não podem esperar a legalização do uso recreativo. Um terceiro grupo prefere discutir o plantio próprio, que acabaria com o tráfico. Qual desses três grupos está certo? Provavelmente os três. A criação dos blocos foi a solução encontrada. O caminho está correto, a Marcha está crescendo e isso pode parecer maravilhoso, mas esse crescimento precisa ser controlado. Naquela reunião em que conheci Rodrigo, uma outra figura do DAR, Rafael, disse que a Marcha não pode virar uma nova Parada Gay. Rodrigo me explica que “um debate que temos dentro do coletivo é que a Marcha não pode virar um negócio vazio. Os gays ainda estão sofrendo preconceito pra caralho. Perdem emprego, apanham na rua. E o que adianta ter cinco, dez milhões na Parada na [avenida] 142


PARTE 3: PRENDE Paulista durante um dia sendo que existe tudo isso? Por isso trabalhamos com o processo de mudança de mentalidade. O processo de construção da Marcha e as atividades que fazemos um mês antes dela são tão importantes quanto o dia do evento. Não posso criticar por que não conheço profundamente, mas não vejo várias atividades da Parada no ano. Um debate na Praça Roosevelt que seja. Poderiam construir as atividades, um calendário de eventos da Parada. Eu só vejo a Parada. Isso que a Marcha não pode virar. Um oba-oba, uma marcha vazia, sem processo de construção.” Então qual é o próximo passo? Naquela mesma reunião, uma pessoa que prefere não ter sua identidade revelada fez uma sugestão. É um ideia muito ousada, que pode pôr em risco não só a imagem do evento, como de quem vai participar. Quando a ouvi na reunião, minha reação foi diferente do entusiasmo que a maioria dos presentes demonstrou. Só vou revelar qual é esse plano mirabolante porque esse livro será impresso após a realização da Marcha da Maconha de 2015. A cada ano que passa, mais manifestantes fumam durante a Marcha. Em 2014 a Augusta parecia uma grande planta de cannabis devido ao forte cheiro da erva. Pensando nisso, planejaram fazer um grande “fumaçasso”. Em certo momento, uma pessoa na frente do ato faria uma espécie de chamado. Algo do tipo “senhores, acendam suas velas”. Falar dessa forma é recomendável pois todos os maconheiros vão entender que “vela” é só uma das várias gírias para o cigarro de maconha. E ainda livraria a pessoa que falar isso. Ora, ele falou para acenderem velas e apenas isso. Para esse ato dar certo ele precisa permanecer em segredo. Todos os que estavam presentes na reunião concordaram em não colocar essa sugestão em redes sociais, nem sair falando publicamente. Se a polícia ficar sabendo, já era, não vai rolar. Esse “fumaçasso” serviria para duas coisas. A primeira é acabar com a hipocrisia, todo mundo sabe que a rapaziada da Marcha fuma durante a manifestação, só iriam 143


RODRIGO VINAGRE fazer isso como se deve. O segundo objetivo é mostrar para a mídia que os maconheiros não são os retardados que ela retrata, que eles têm consciência política, e mais: não saem quebrando tudo como os black blocs, assim, desassociaram a maconha da imagem da violência. Como disse, esse livro será publicado após essa Marcha. O que será que aconteceu?

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RELATO DE UM MACONHEIRO


ÚLTIMA PARTE

ÚLTIMA PARTE

PASSA Relato de um maconheiro

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RELATO DE UM MACONHEIRO


ÚLTIMA PARTE

Polícia precisa7 Relato depara um quem maconheiro

O ano é 2002. O mesmo da primeira Marcha da Maconha no Rio de Janeiro. O ano em que tive meu primeiro contato com a erva. Foi aos 12 anos. Na época, eu morava em um prédio no Lauzane, bairro da zona norte de São Paulo. Era um prédio grande, de 23 andares. Tinha pessoas de todas as idades, inclusive da minha. Eu, minha mãe, Luicel, e seu marido, Fernando, moramos por dois anos no 22º andar. A vista lá de cima era linda. Nos réveillons tínhamos uma visão privilegiada das centenas de fogos de artifício. O lance da maconha aconteceu dentro do prédio. Ele não era nenhum condomínio de luxo, mas era bem legal. Tinha quadra, piscina e um playground. Entre este playground e a churrasqueira ficava uma espécie de casinha. Era um quarto pequeno com teto baixo e um banco de cimento, daqueles grudados na parede, desenhando um “U”. Na parede sem banco tinha uma pequena lousa. Provavelmente foi feito para brincar de escolinha ou alguma coisa assim. Mas as crianças preferiam os brinquedos do lado de fora, lá na 149


RELATO DE UM MACONHEIRO casinha ficavam os (que se achavam) adolescentes. Uma noite eu e mais dois amigos decidimos ficar lá escondidos do porteiro, que queria cumprir a regra do condomínio de ninguém permanecer na área de lazer após as 23h. Um deles, Vinícius, tinha 15. O outro, Lucas, tinha 14. Eu era um dos mais novos do prédio. O motivo de nos escondermos era nobre: garotas mais velhas. Eram duas, e tinham cerca de 20 anos, menos, talvez. Não tenho certeza sobre o nome delas também. Mas lembro que chamávamos uma de “Ana peitão” , por motivos óbvios. Bebiam uma garrafa de vinho direto do gargalo. Não nos ofereceram e nem pedimos. Só estávamos lá para contar vantagem pros outros caras no dia seguinte. Quando a garrafa passou da metade, elas falaram que nós devíamos ir embora. O baseado que uma delas tirou da bolsa chocou meus amigos. Talvez eu estivesse tranquilo por que não sabia o quanto aquilo era tabu. Não demorou para subirem para seus apartamentos com a justificativa de que estava tarde. Eu fiquei. Imagina. Só eu e duas meninas mais velhas e desinibidas. Que mal poderia acontecer? O óbvio: o porteiro chegar. Ele chegou chegando. Acendeu a luz da casinha aos berros “que cheiro é esse? Vocês tão fumando droga!”. Claro que elas argumentaram, mas era inútil. Fomos até a frente do prédio, do lado da portaria, enquanto ele chamava o síndico. Após um momento de raiva, elas me pareceram muito calmas. “Fica tranquilo que ele é nosso amigo, não sei por que está agindo assim” , disse uma delas enquanto fumava um cigarro. Eu fiquei tranquilo também. A única coisa que fiz de errado foi me esconder do porteiro, o que já havia feito várias vezes. As meninas me disseram para não falar com a minha mãe sobre o ocorrido. Quando o síndico chegou, eu fui liberado. No dia seguinte, foi anunciada uma reunião sobre o acontecido. Nunca tinha ido a uma reunião do prédio. Estava bem acuado por ser uma das causas dela. Mais uma vez as meninas me tranquilizaram. “Que cara é essa? Senta aqui


ÚLTIMA PARTE entre a gente”. Sentei, claro. A reunião começou com o síndico explicando a situação. Eu e as meninas negamos. O porteiro foi chamado. Realmente, não sei por que ele tomou aquela atitude no dia anterior. “Não, eu não falei que era droga, eu falei ‘que droga, vocês não podem estar aqui, essa hora’”. Ele livrou a nossa cara e prejudicou a dele. “Você me falou outra coisa” , alegou o síndico balançando o dedo indicativo. O porteiro, eu e as meninas batemos o pé e ficou por isso mesmo. Depois desse caso não senti que os outros moradores mudaram seu tratamento comigo. Mas com certeza devem ter mudado com os demais envolvidos, embora o porteiro tenha continuado trabalhando lá. No mesmo dia eu contei a verdade para minha mãe. Ela não gostou de eu ter mentido, mas entendeu. Só perguntou novamente se eu não fumei mesmo. Eu falei que não e ela acreditou. Não costumo mentir para ela, mesmo. Temos uma excelente relação. Meu pai, Márcio, também ficou tranquilo sobre o assunto, embora nossa relação fosse diferente. Ele sempre foi muito bravo. Mas, se os dois ficaram tranquilos, talvez a maconha não fosse nada de mais. Depois daquilo fiquei um bom tempo sem ouvir falar de maconha. Três anos depois, o que para um garoto de 12 é uma eternidade, tínhamos mudado de casa. Estávamos agora em um prédio de três andares na Rua da Consolação. Dessa vez meu contato foi mais próximo, dentro de casa. Certo dia peguei minha mãe fumando na janela de seu quarto. Achei estranho. O Fernando fuma cigarro, minha mãe não. Será que está fumando escondido? Na semana seguinte a mesma coisa. Comentei com o Fernando sobre o porquê dela estar fumando escondido. Ele não respondeu. Não estava chateado por minha mãe fumar, mas por fumar escondido. Não havia necessidade. Alguns dias depois, quando conversamos sobre o assunto, ela me disse que aquilo não era cigarro, era maconha e que 151


RELATO DE UM MACONHEIRO o Fernando fumava também. Aí, sim, eu fiquei chocado. Como assim minha mãe fuma maconha em casa? Àquela altura já tinha tomado meu primeiro porre. Entendia um pouco melhor o que são as drogas e o que elas fazem. Fiquei indignado. Cheguei a ameaçá-la. Disse que se ela não parasse, eu iria ligar para a polícia. Achei estranho ela ter ficado tão tranquila. Ora, aquilo era um crime, certo? Calmamente, ela me explicou um pouco sobre a droga. Disse que era parecido com a bebida alcóolica, ou seja, não é tão perigosa, não é uma droga pesada. Me disse que quando era casada com meu pai ele também fumava, mas que tinha parado faz tempo. Não foi uma conversa longa. Eu não queria muito ouvi-la. Me senti traído. Sempre fui tão sincero e é assim que sou tratado em troca? Coisa de moleque mimado. Comecei a pensar. Se ela fuma desde que é casada com meu pai e eles se separaram quando eu tinha três anos, então ela fumou minha vida inteira, e como foi nossa relação até então? Ótima. Sempre preferi morar com ela. Meu pai me amava muito também, mas ficava nervoso com minhas bagunças. Todas elas, até as pequenininhas. Ponderei e concluí que tudo bem ter uma mãe maconheira. Contanto que fosse a minha, que eu amo. O fato de ela fumar não me incentivou nem um pouco. Eu ainda era bem careta. Na época, fazia o primeiro colegial no Mackenzie. Um colega de sala falou que fumava também. Nossos amigos ficaram chocados. Nem cigarros nossa turma fumava. Eu pensei que ele era novo demais para isso e que só o fazia para poder contar vantagem. Ao meu ver, maconha é uma coisa para gente adulta. Falei para ele que minha mãe fumava também e, se ele quisesse, poderia conversar com ela para lidar com esse problema. Ele não considerava um problema, preferiu não ter a conversa. Com o tempo notei que eu era muito inocente. Como não percebia que minha mãe e o Fernando fumavam? Quando o faziam, saíam do quarto felizes e sorridentes. Até davam


ÚLTIMA PARTE risada dos desenhos que eu via. Era notável a diferença. Nunca tinha percebido e não me importava. Sempre foi assim e eu tenho uma boa educação, pensava eu. O problema foi quando eu comecei a fumar. Em 2006, quando eu tinha 16 anos, fui morar com meu pai, novamente em um prédio de três andares, mas dessa vez em Guarulhos. Me mudei porque minha mãe estava com dificuldades financeiras. Meu pai estava em Guarulhos pelo mesmo motivo. Como trabalhava na cidade, decidiu morar lá também, economizando a grana do aluguel e do mercado – mais baratos que os de São Paulo – além da condução. Mesmo com dificuldades, minha família sempre me colocou em boas escolas. Em Guarulhos fiz meu primeiro colegial pela segunda vez no Eniac, localizado no centro da cidade. Perto do Eniac tem uma praça, a Antônio de Ré, que era o local onde eu e a turma da escola ficávamos depois da aula. Estudávamos no período da tarde, saindo por volta das 17h30. Os finais de tarde lá eram agradáveis. Do lado da Praça tem um mercado onde comprávamos cerveja – quando não pediam nosso RG – e roubávamos algumas caixas de Bis, coisa de moleque. Na minha sala tinha dois caras que fumavam, o Lucas e o Henrique, a quem chamávamos de Gordão. Eles frequentavam a Praça. Certo dia, nós três decidimos cabular. Sentado naquele banco de cimento, atento aos moradores e às viaturas que por lá poderiam passar, com meus 17 anos recém-completados, fumei meu primeiro baseado. Confesso que não senti nada. Me senti normal. Talvez não tenha tragado direito, nem cigarro eu fumava na época. Na segunda vez, alguns dias depois, foi diferente. Senti uma sensação engraçada, de leveza. As coisas se moviam mais devagar. Eram mais coloridas. Tinha a impressão de que uma leve névoa pairava sobre as coisas. O tempo demorava a passar. As conversas se tornaram mais engraçadas. Os pássaros voando, mais belos. É uma coisa muito gostosa. 153


RELATO DE UM MACONHEIRO O problema era quando chegava em casa. O tempo de sair da escola, fumar, curtir a brisa e voltar para casa era o suficiente para meu pai chegar do trabalho. Algumas vezes não, aí eu aproveitava. Tomava um banho, escovava os dentes e comia alguma coisa, disfarçando minha leseira. Mas outras vezes chegava dando bandeira, falando devagar e com olho vermelho. Ele desconfiava, mas não falava nada. Minha mãe sabia. Não gostou da notícia. Perguntou como eu comprava e com que frequência fumava. Falei que descolava com um amigo e que fumava de vez em quando. Não era mentira. Se ela tivesse perguntado uns dois meses depois, seria. Com o tempo passei a fumar quase que diariamente. Algumas vezes até antes de entrar na escola. Quando comecei a fumar mais, também tive que comprar. A primeira vez que fui a uma biqueira foi com meu amigo Gordão. Saíamos do Eniac, pegávamos uma van e descíamos meia hora depois. Andávamos algumas ruas para chegar à favela São Rafael. Seguindo o Gordão, cheguei em uma rua sem saída. No fundo, encostados em um carro, dois homens perguntaram o que queríamos, “Chá” , respondeu meu amigo. Depois da transação ele me apresentou, falando que eu iria sozinho das próximas vezes. Eles deram de ombros. O Gordão, como eu, era só mais uma das centenas ou até milhares de pessoas que passam por lá diariamente. Se o comprador não tiver uma atitude suspeita, eles vendem, conhecendo ou não a pessoa. O Gordão só queria mostrar que era malandro. Em 2007, embora fumasse com certa regularidade, ainda não me considerava maconheiro. Isso começou a mudar depois de uma noite de sexta-feira. Na ocasião, eu, o Lucas e o Gordão ficamos até mais tarde na Praça. Quando deu algo em torno de 20h, três meninas apareceram. Bonitas e roqueiras. Roqueiro eu também sou, desde os 11 anos, aliás. Nós seis fumamos, bebemos e beijamos. Elas falaram que toda sexta tinha uma galera roqueira que ia até aquela Praça, a Antônio de Ré, para beber e conversar. De fato, aos poucos,


ÚLTIMA PARTE foi chegando uma rapaziada. Já estava tarde, eu não tinha avisado que chegaria depois e fui para casa. Mas combinamos de nos encontrar na semana seguinte. O que de fato aconteceu. Foi bacana. Conhecemos alguns amigos delas. Eram umas figuras. Sujeitos muito loucos. Percebi que estava fumando mais do que devia, que estava me atrapalhando nos estudos. Em uma segunda-feira, antes de ir para a escola, prometi a mim mesmo que só fumaria na sexta, com as meninas. Acontece que eu fumei segunda, terça, quarta e quinta. Na sexta estava decidido a não fumar e não fumei mesmo, só fiz companhia para o Gordão. Mesmo assim me dei muito mal naquele dia. A Antônio de Ré é uma praça redonda, com gramado e bancos. Em seu entorno há praticamente só casas. Alguns moradores não gostavam de ter moleques maconheiros em seu quintal, e nesse dia um deles tomou uma atitude. Enquanto fumava, o Gordão reparou que um inspetor da escola estava vindo em nossa direção. Rapidamente ele apagou com os pés seu baseado já na ponta. O inspetor não deu papo. “Vem comigo os dois, vem”. Até hoje eu penso se ele tinha esse direito. A escola fica a algumas centenas de metros da Praça. O que fazemos a centenas de metros da escola não interessa a ela. Na hora não questionamos isso, só seguimos o inspetor com o rabo entre as pernas. Quando chegamos na escola ficamos em salas separadas. Meu pai não demorou a chegar. Explicaram a ele a situação e pediram para que eu assinasse um papel, a minha expulsão da escola. Meu pai já suspeitava, mas foi assim que ele ficou sabendo que eu usava maconha, da pior forma possível. Eu fiquei transtornado. Não queria assinar. Não tinha fumado! O inspetor trouxe a ponta como prova. Grande merda, várias pessoas fumam lá, por que isso seria meu? Não adiantou, até meu pai falou para eu assinar, que não teria jeito. Chorei de raiva. A conversa que meu pai teve comigo foi mais tranquila do que eu imaginava. Claro, ele estava bem bravo, mais por 155


RELATO DE UM MACONHEIRO eu ter mentido para ele, não tanto por eu fumar. Ele até me deixou – depois de certa insistência – ir para a Praça naquela noite, encontrar a menina com quem estava ficando. As noites de sexta-feira na Praça passaram a ser minha razão de viver. A semana inteira ansiava por aquelas conversas engraçadas e interessantes, por aquele bando de roqueiros loucos e aquelas meninas bonitas. Em plena era digital tenho um grande orgulho em dizer que fiz meus melhores amigos em um banco de Praça, virando a noite ouvindo violão, acendendo fogueira nos dias frios e fazendo um rateio para comprar bebida no mercado próximo. Ainda bem que o mercado era 24h, nos proporcionando uma noite inteira de vodca com refrigerante a um preço acessível. Tudo estava indo muito bem até o dia 26 de janeiro de 2008. Naquela noite, a Praça estava lotada. Até amigos que raramente colavam estavam presentes. Pouco depois da meia noite a Praça foi cercada por policiais da GCM. Eles chegaram em motos, de uma vez só, apontando pistolas e gritando ameaças. Não era raro a GCM enquadrar os frequentadores da Praça. Mas eu nunca tinha sofrido isso. Naquela noite eles enquadraram todo mundo. Separaram homens de mulheres. Com a cara para a parede, as mãos na cabeça e as pernas abertas, o policial perguntou se eu estava com alguma droga. Eu estava apavorado, não sabia o que poderia acontecer e falei que não. Com certeza não fui convincente. O policial achou a paranga que eu tinha no bolso. Vacilei, normalmente deixava minha erva escondida em uma árvore, só pegava para fumar. Algumas vezes esquecia de pegar a sobra no final da noite, o que me levou a sempre deixá-la comigo. Além de mim, outras pessoas enquadradas também portavam maconha. Mas por ter mentido e por estar com medo fui “o” cara que se ferrou. Sempre que tem um enquadro grande, como daquela vez, alguém tem que se ferrar para mostrar que a polícia fez seu trabalho. Daquela vez fui eu.


ÚLTIMA PARTE Todo mundo foi liberado – expulso – da Praça. Só ficaram eu e cerca de doze policiais. Após me darem alguns socos na barriga me perguntaram onde eu comprei a maconha. Embora estivesse muito assustado sabia que denunciar a boca de fumo poderia ser minha sentença de morte. Na minha cabeça os policiais me enfiariam na viatura e me fariam apontar o local. Se algum traficante me visse, já era. Morreria. Pensando assim falei que comprei em um barzinho de São Paulo. Eles não acreditaram. Um deles puxou uma arma de choque, daquelas que tem que encostar na pessoa para ela tomar a descarga. Ele acionou o dispositivo próximo do meu pescoço e falou para eu dizer a verdade. Eu bati o pé e repeti a história. Decidiram então me prender. O que parecia ser o chefe pediu para eu ficar de costas para me algemar. Para que me algemar? Que ameaça um moleque apavorado de 18 anos representa para doze policiais? “Está confortável?” , me perguntou um deles. Depois que respondi que sim ele tirou as algemas para recolocá-las, só que dessa vez bem apertado. Me sentei na parte de trás da viatura e ouvi que estava fodido, que o delegado iria me foder. O carro andava rápido, inclusive nas curvas, o que fazia eu me chacoalhar todo, já que não podia me segurar. Quando chegamos à delegacia, o 1º D.P de Guarulhos, fui levado para uma sala de espera. Ainda bem que não me enjaularam. Dessa sala eu via os policiais revirando minha mochila. Além da minha blusa e dos meus gibis dos X-men, eles encontraram meu dichavador . Quando o viram fizeram um gesto negativo para mim. Poxa, até o meu dichavador eu perdi. Em seguida me desalgemaram. Depois de algumas horas, o delegado me chamou. Parecia um xerife: barrigudo, careca e bigodudo. Só faltaram o chapéu e as esporas. Ele perguntou se eu era traficante. Respondi que não. Ele perguntou se eu era viciado e que drogas eu usava. Respondi que só era usuário de maconha. “Só usuário? Hum”. Ele pediu para eu assinar um documento 157


RELATO DE UM MACONHEIRO e avisou que na semana seguinte chegaria uma carta em minha casa informando a data em que eu deveria me apresentar no Fórum. Saí de lá um caco. Como já estava tarde fui direto para casa. No caminho pensei aliviado que o delegado acreditou muito facilmente em mim. Hoje, pensando sobre aquele dia, tenho certeza de que se eu fosse negro e morasse na favela, o tratamento seria diferente. Tive que explicar a situação para o meu pai. Aí sim ele ficou irado. Me deu a maior bronca que já tomei. Me disse que iria pagar um advogado mas que eu teria que devolver o dinheiro depois. Eu nem trabalhava e já tinha um saldo devedor de mil reais. O advogado não fez nada de mais. Só explicou o que aconteceria. Eu seria julgado com mais outros acusados em uma mesma sala. Fui sentenciado a prestar 64 horas de serviço social em uma instituição que cuida de pessoas com Aids. Eu não era o único cumprindo pena no local. Usuários de maconha eram a maioria. Alguns da minha idade, outros bem mais velhos. Em conversas com os outros caras descobri que a minha pena era uma das menores. Tinha um sujeito, com aproximadamente 40 anos, que teria que cumprir mais de 300 horas por possuir uma arma sem ter a licença oficial de porte. Ele disse que 64 horas não eram nada. Realmente. Se eu trabalhei 30 das minhas 64 horas foi muito. Fazia basicamente um serviço de limpeza. Corredores, escritórios, banheiros, janelas, portas e paredes. Nada de mais, nada que eu já não tenha feito antes. Como meu pai trabalhava muito, eu sempre fui o responsável por deixar a casa arrumada. Mas confesso que a sensação de limpar uma privada alheia não é legal, ainda mais quando o motivo é uma imposição judicial, e fica ainda pior quando a acusação é ser um usuário de maconha. Além do serviço de limpeza, também carregava, do caminhão até o depósito, os mantimentos que chegavam. Eu que determinava quais dias da semana e quantas


ÚLTIMA PARTE horas trabalharia no local. Percebi que se ficar um dia inteiro, as 8 horas de funcionamento da casa, conseguiria terminar as tarefas em quatro ou cinco horas. No tempo restante eu dava um migué. Não era difícil. Na época estava passando a Eurocopa. Vi quase todos os jogos daquele timaço da Espanha, campeã do torneio. Funcionários da casa e criminosos cumprido pena viram juntos a consolidação do estilo tic-tac de futebol. Aquele dia foi divertido. Eu sempre fui bem tratado lá, com educação. As pessoas que me passavam as tarefas não me tratavam como um criminoso. Só o chefe do local era bem linha dura. Lembro que volta e meia ele me chamava em seu escritório: “Vai na padaria aqui do lado e compra um cigarro Derby prata. Mas tem que ser do prata, hein” , repetia com tom ameaçador e sempre repetia. Poderia comprar dois maços no mesmo dia e a instrução seria a mesma. “Do prata, hein”. Será que ela achava que a memória do maconheiro era tão ruim assim? Durante todas as horas que lá cumpri não recebi sequer uma informação sobre drogas. Não exibiram um documentário sequer, não fizeram conversa em grupo ou individuais, nada. Ao invés de me instruir sobre como deveria lidar com as drogas, a legislação brasileira me mandou ficar de castigo limpando privadas. Não me ajudou em nada. Não que eu precisasse de ajuda. Como falei para o delegado no dia em que rodei, não sou viciado. Pelo contrário, naquela época de serviço social fiquei sem fumar. Usar a maconha me fazia lembrar daqueles dias horríveis na instituição. Além do fato de que se eu fosse pego novamente fumando poderia ser levado para clínicas de reabilitação por imposição do juiz. Voltei a fumar uns três meses depois. Não que eu tenha a necessidade de fumar, mas é tão gostoso. A leveza, as risadas. Cada momento parece durar para sempre. Uma coisa que a maconha tem, e as demais drogas não, é o caráter coletivo de seu uso. Por exemplo, a galera que usa cocaína tem uma vontade muito grande de falar. Falam muito, principalmente sobre si mesmos. Uma roda de cheiradores é um caos total. 159


RELATO DE UM MACONHEIRO Todo mundo querendo falar e ser ouvido. Mas as pessoas não se ouvem, apenas aguardam ansiosas por poder voltar a cuspir palavras. Dessa forma, elas acabam não dialogando, apenas ficam falando sobre si mesmas em turnos. Só falta aquela campainha usada para jogar xadrez. A cocaína você despeja em algum lugar, estica a carreira e cheira. A bebida, na maioria das vezes, é só abrir a garrafa e beber. Com a maconha é bem diferente. É quase um ritual até deixar pronto para o uso. Cada um dá um pouco de sua porção pessoal. Se for muito, mais de uma pessoa ajuda a triturar a erva. Após certa polêmica para decidir quem é o melhor bolador da roda, a pessoa enrola o cigarro. O processo todo leva alguns minutos. Sim, algumas pessoas ficam mais caladas, outras mais faladoras. Mas mesmo quando há um silêncio é um silêncio confortável. Sempre pensei que é muito fácil me sentir bem com uma pessoa quando estamos conversando. Porém, na maioria dos casos, o silêncio geralmente é meio constrangedor, parece que acabou o assunto. Com meus amigos da Praça Antônio de Ré, quase todos maconheiros, o silêncio era agradável. Lembro de um dia em que fumávamos na minha casa e conversávamos alegremente. Certa hora um amigo puxou um gibi da minha prateleira e começou a ler. Depois outro amigo e mais outro em seguida. Quando vi, estavam todos jogados no meu quarto lendo gibis. Mesmo cada um na sua brisa era uma coisa coletiva. Comentávamos uma parte legal da história com um amigo do lado que fazia o mesmo depois. Foi um momento muito gostoso. Voltei a reduzir o uso da maconha depois que meu pai morreu de infarto, em agosto de 2008, quando eu tinha 18 anos. A partir daí, amadureci bastante. Estava vendo como a vida é. Se você faz merda, pode ser preso. A pessoa que está sempre ali, que te ama mais do que a si mesma, pode morrer de um dia para o outro. A vida é uma parada muito séria. Fumar maconha é ótimo, mas tem que ser uma das coisas


ÚLTIMA PARTE que eu faço e nos tempos atuais parece que o tempo nunca é suficiente. Pressão na escola, no trabalho e em casa. Fumava de vez em quando para relaxar. Quando ia a algum show, ou antes de jogar videogame na casa de amigos. Meu ritmo é esse desde então, fumo quando algum amigo tem. Parei de ir buscar. Nunca gostei de ir até as bocas. Outros amigos meus que também não gostavam de comprar sua maconha com traficantes me chamaram, em 2010, para a Marcha da Maconha. Não concordava com a política de drogas. Desde os 15 anos, quando minha mãe falou que fumava, eu comecei a questionar a proibição. Mas naquele ano eu fui mais por farra, mesmo. Queria fazer barulho e fumar com um monte de gente nova. Ao chegar ao Parque Ibirapuera soubemos da proibição. Sob possível acusação de apologia, não poderíamos falar “maconha”. Foi divertido caminhar pelas mesmas ruas em que aprendi a andar de bicicleta quando moleque gritando, ironicamente, “pamonha, pamonha”. O ponto alto foi quando paramos de caminhar e nos sentamos para ouvir os organizadores. Ouvi figuras como Renato Cinco, falarem com um megafone sobre a legalização e a liberdade de expressão. De fato, me senti privado. Diferente do que pensei, não tinha ninguém fumando no ato. Se tinha, estava muito bem escondido. Só estávamos falando nossos gritos de guerra e de forma maquiada ainda. Fora a minha primeira manifestação. A segunda foi no ano seguinte, em 2011, naquela Marcha da Maconha “das bombas” ou “da treta” como as pessoas que lá estiveram se referem. Fui para fazer um trabalho de faculdade. Estava com a câmera que a própria instituição me forneceu. Tirei muitas fotos das pessoas na concentração, mas ganhei uma boa nota do professor pelas imagens da truculência com que a polícia atuou naquela tarde. Em algumas me posicionei de frente para a tropa de Choque. Essas não ficaram boas, além de me preocupar com ângulo, luz e outros detalhes, ainda tive que correr por minha vida. 161


RELATO DE UM MACONHEIRO Foram muitas bombas, muitos tiros. Pelo menos a polícia não queria nos ferir. Se quisessem mesmo, não seria problema, éramos alvos fáceis. O que queriam era nos dispersar e isso nós não fizemos. A vontade de falar é mais forte quando alguém tenta te impedir. Por tudo aquilo que vivi com a maconha, e pelo sentimento de censura que sofri no ano anterior, continuei marchando. Quando a Marcha chegou à Rua da Consolação aproveitei para deixar a câmera com um antigo vizinho meu. Se alguma coisa acontecesse com o equipamento, além de perder o trabalho, teria que desembolsar uma senhora grana. A repressão policial aumentou meu interesse pela legalização. Passei a estudar mais o tema, ler mais, conversar sobre isso. Mais do que isso, me engajei. Estive em todas as Marchas da Liberdade que vieram. Em todas as Marchas da Maconha dos anos seguintes. Em junho de 2013, nos protestos do Movimento Passe Livre eu também estava lá. Atuei do mesmo jeito que sempre fiz, de forma pacífica e, em troca, fugi de muita bomba. Conheci algumas pessoas na Praça Antônio de Ré e em outros lugares que se perderam nas drogas. Alguns amigos meus, de diferentes classes sociais, frequentaram clínicas de reabilitação para escapar do vício de cocaína. Em toda minha vida conheci apenas um sujeito que se internou pelo uso abusivo de maconha. Mas é um cara que já apresentava problemas anteriores, como a depressão. No meu caso, a maconha me ajudou a conhecer melhor as pessoas, as coisas ao meu redor e a mim mesmo. Toda vez que fumo sozinho faço uma retrospectiva de como foram os últimos dias. De vez em quando tenho conclusões ótimas sobre que rumo tomar. Algumas vezes, quando o efeito termina, acabo esquecendo qual foi aquela grande conclusão. Outras, vejo que não são tão grandes assim, mas na maioria dos casos me ajuda a refletir. Acredito que a maconha deva ser legalizada e estou disposto a lutar por isso.





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