Fronteira do múltiplo: perfomance, pedagogia, contemporaneidade

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Fronteira do múltiplo: perfomance, pedagogia, contemporaneidade* Lucio Agra

O meu propósito nesse texto é tentar discutir as possibilidades de uma pedagogia da performance no momento atual, tendo em vista alguns aspectos que tem me chamado a atenção. Não se trata de um levantamento exaustivo ou histórico da atividade performática como didática, nem tampouco um conjunto de prescrições para a sua execução. Antes de perguntarmos quais seriam as possibilidades estratégicas que a performance pode oferecer ao professor, gostaria de primeiro colocar algumas questões sobre o momento que vivemos no contemporâneo. Esta é uma tarefa muito difícil, porque geralmente temos poucos referenciais para meditar sobre algo que está se desenvolvendo à nossa volta, acima e abaixo de nós, de um lado e de outro enquanto nos esforçamos para pensar nisso. A primeira e mais segura tática para enfrentarmos tal empreitada talvez seja entender em que medida a performance contribuiu, desde o seu nascimento, para forjar o conjunto de sensações e conceitos que aqui pretendemos apontar para ajudar-nos a entender seu “lugar” e nosso “lugar” nesse torvelinho em que vivemos. Quer seja tratada como reação ao jogo pesado da crítica e das galerias nos Estados Unidos (Jorge Glusberg), quer como “ação centrada em corpos” (Lea Vergine) ou “forma artística centrada na representação em movimento” (Hoffmann e Jonas), ou ainda “um carrefour das artes” (Renato Cohen), a performance é hoje, passados mais de 30 anos desde o seu aparecimento no território das artes visuais, um das mais intrigantes e duradouras linguagens artísticas autônomas. Resiste a todas as definições e se põe permanentemente em contato com todas as linguagens existentes. Talvez, por subsistir nesse estado de fronteira é que venha se mantendo à tona mesmo tendo sua morte “anunciada” diversas vezes. É possível falar de video-performance, teatro-performance, dançaperformance, foto-performance. O próprio termo admite, aqui e no exterior, várias denominações, tais como live-art (arte ao vivo), body art (mais comum nos anos 70) e arte de acción (termo comum em língua hispânica). Como ressaltaram Joan Jonas (também performer, esteve na última Bienal de SP) e Jens Hoffman, é um termo muito usado, sobre cujo significado não pairam tantas dúvidas quanto sobre sua definição. Entretanto, essa é uma das características que tornam a performance – ou performance art – uma atividade artística tipicamente contemporânea. A partir de uma inquietação surgida no território das artes plásticas, tendo suas origens em práticas do início das vanguardas (GOLDBERG,1996; GLUSBERG,1987; COHEN,1989) ou mesmo muito antes (SCHECHNER,1982; PHELLAN,1993), foi se constituindo – e institucionalizando-se – um saber devotado à investigação de uma linguagem que ganha sua


autonomia (COHEN,1989) sobretudo a partir dos anos 70 e 80, confirmando tendências, nas artes plásticas, que apontavam para o corpo como suporte. Com os debates em torno da contemporaneidade/pós-moderno, a questão ganhou força conceitual e os termos performance e live art, com acepções mais atinentes à atuação teatral/cinematográfica (o primeiro) ou performática em sentido mais estrito (o segundo, sobretudo na Inglaterra), passaram a ser sinônimo de um certo tipo de prática artística híbrida. Nos anos 80, com o costume de se usar a expressão “multimídia”, várias atividades não necessariamente – ou não somente – teatrais, musicais ou coreográficas, foram muitas vezes chamadas de performance. E o termo, embora impreciso – algumas vezes, mais recentemente trocado por “ação” (HOFFMAN e JONAS,2005) – permaneceu, ainda assim e não obstante, sendo usado para designar tais “atos artísticos” que não cabiam em rubrica nenhuma. [1] É bem frequente que a performance seja questionada pelo seu grau de semelhança em relação a outras linguagens, sobretudo o teatro. Sem nenhuma dúvida, muitas das estratégias empregadas pela arte da performance têm sua origem em procedimentos teatrais. Não obstante, inúmeros outros elementos originam-se das artes visuais e outros ainda da música ou da dança. Isto deve dar, desde logo, a sensação de que a performance opera em um processo de captura de todas as técnicas, modos de produção, expedientes de outras linguagens o que, se por um lado, lhe confere uma simpatia imediata por parte daqueles que desejam um ambiente artístico de diálogo entre as linguagens, por outro produz a desagradável sensação, muitas vezes por parte desses mesmos entusiastas, de que talvez não seja, afinal, coisa nenhuma, se pode ser tantas coisas. Ora, antes de mais nada estamos aqui diante de um verbo complicado, criação tipicamente ocidental, ausente em várias civilizações orientais e indíginas. O verbo ser sempre nos obriga a construir outra característica do pensamento ocidental, a identidade. Quem é, é porque é. E todos vamos atrás da identidade de cada uma forma de existir. Sabemos que os existires podem ser múltiplos. Magnânimos, aceitamos até mesmo que estes existentes dialoguem uns com os outros. A arte é plural, já aprendemos, e não pega bem pensar que os artistas não possam dialogar entre si. O que se torna difícil sempre é quando eles começam a perder seus contornos. E se misturam uns com os outros, instaurando situações caóticas, diante das quais já não sabemos como nos comportar. Vejase, por exemplo, o caso de algumas companhias contemporâneas que, todas, caberiam bem na caracterização que desse teatro fazem nomes como Hans-Thies LEHMAN (LEHMAN, 2007) ou Josette Féral (FÉRAL, 2008). O primeiro decidiu-se pelo termo “teatro pós-dramático”, a segunda por “teatro performático”. Vejam que, na seqüência de dois anos, dois autores se esforçam por explicar o inexplicável, ou seja, porque o Teatro, o nosso velho conhecido, de tantos séculos, procura agora, desesperadamente, fora dele mesmo, algum alimento que o renove. A Societas Raffaello Sanzio, dirigida por Romeo Castelucci, artista italiano, pratica um tipo


de teatro que poderia por muitos ser considerado performático. Em entrevista recente, publicada em vídeo no site You Tube[2], o artista afirma: “Trabalho com atores profissionais, bailarinos, com gente que nunca pôs os pés em um palco, mas não há diferença, não é um problema de training, nunca fiz training. Confio muito na estrutura mental da obra. São construções mentais, edifícios da mente”. Se comparamos esta afirmação com outra, de um grupo que admite para si mesmo a denominação de performance, encontramos notável coincidência. Nos primeiros dias de julho de 2009, durante o evento chamado Verbo Conjugado, uma espécie de seminário organizado por um importante centro cultural de São Paulo, em paralelo à mostra Verbo, promovida pela prestigiosa Galeria Vermelho, da mesma cidade, a dupla espanhola Los Torreznos (Rafael Lamata e Jaime Vallaure) fez um comentário interessante em torno à clássica questão do treinamento na performance. A propósito de uma das suas mais conhecidas ações, na qual contam oralmente todos os segundos que compõem o tempo de 35 minutos, os artistas sustentaram que realizavam esse trabalho sem preparo algum, como qualquer pessoa. Que ao contrário de um suposto treinamento vocal que envolvesse técnicas de aquecimento etc. o que lhes ocorria com freqüência era ficarem afônicos. Obviamente a observação não era uma queixa, mas uma afirmação. Sua singeleza, aparentemente sem nenhuma pretensão, guarda uma preciosa dica para que possamos pensar no sentido do “ali estar” simplesmente – um estado tratado com muita deferência pela dupla – e que parece sublinhar o costumeiro “problema” que se diz ter a performance com relação ao “treinamento”. Ao mesmo tempo, corrobora uma tendência que se observa em diversos artistas do território que no Brasil costumamos chamar de “artes cênicas” (para complicar, em inglês, performing arts) no sentido de desvalorizar um conjunto específico de táticas de “treinamento”. Inverte-se o que é também um comentário comum: diante, por exemplo, da performance do artista catalão Marceli Antunes-Roca, na qual seu corpo é repuxado por ganchos atados em várias de suas partes e comandados por um computador que é acionado pela platéia – sem que o performer tenha controle sobre a frequência e o local em que esses “repuxões” vão acontecer – diante desta ação, muitos são levados a pensar “bom, talvez ele tenha um treinamento especial para isso” ou “sim, ele tem vasta experiência sobre essa prática, por isso consegue realizála”. A coroação deste raciocínio seria “crianças, não tentem isso em casa”. Tudo isso pode ser verdadeiro ou não, isto é, quase sempre os artistas têm buscado estados que desafiam o corpo tal como ele se apresenta no momento da ação. Podemos dizer, para começar, que esta é uma das premissas com que costumam trabalhar os performers. O próprio Romeo Castelucci também fornece um outro exemplo que ajuda a entender: a palavra grega Clitemnestra, nome de uma personagem importante da tragédia que estava encenando certa ocasião, quer dizer, literalmente “mulher grande”. E foi pensando “literalmente” que ele escolheu, para fazer este personagem, uma mulher de cento e cinquenta quilos. A escolha foi feita tendo em vista a presença singular desta


figura e não a sua suposta competência como atriz. Entretanto Castelucci não foi, naturalmente, o primeiro a mesclar atores e não-atores em seu trabalho, o mesmo podendo ser encontrado nos trabalhos de Robert Wilson no teatro ou do alemão Werner Herzog no cinema. Antes destes todos, Joseph Beuys, ainda na alvorada dos anos 70, ecoando proposições que herdavam idéias de Marcel Duchamp, proclamava o princípio básico de que todos são artistas. Esta premissa, entretanto, se mal compreendida, pode levar à idéia de que não é possível estudar arte, quando, na verdade, estudar nada tem a ver com um saber “anterior”. O aprendizado não deveria ser visto como um antídoto da ignorância. Voltaremos a isso mais adiante. Prosseguindo com os exemplos de grupos de teatro de prestígio, na atualidade, é possível encontrar, novamente, mais características performáticas no grupo argentino La Carnicería Teatro. Formado em 1964 por Rodrigo Garcia, o filho de um açougueiro, o grupo “combina dança, música e performance com os irreverentes textos de Garcia e cenografias inovadoras que são muito exigentes fisicamente para o ator. Em 2003, na Sicília, Rodrigo García apresentou uma sobrenatural adaptação de Agamemnon de Ésquilo, culminando numa cerimônia militar em honra de frangos cozidos, com mãos calçadas em luvas brancas inserida em pequenos ataúdes enfeitados com bandeiras americanas. Este teatro provocativo convida a platéia a participar em suas denúncias dos absurdos da sociedade contemporânea” [3] Pode-se observar a mesma prática artística nas performances do grupo La Pocha Nostra, liderado pelo performer mexicano – naturalizado americano – Guillermo Gómez-Peña que, em suas ações, oferece, por exemplo bandeirinhas de papel de vários países do globo, atadas a agulhas de acupuntura para que o público pratique um “tratamento geopolítico” em um corpo nu de uma de suas performers que, como os demais membros de seu grupo, tem sempre alguma característica mestiça (hispânica, oriental, etc). Ele mesmo, no início de sua carreira, fez-se crucificar em uma praia de Miami vestido de “mariachi”, para protestar contra a política de imigração do governo norte-americano. [4] Quererá isso dizer então que o argentino prefere chamar o que faz de Teatro enquanto o mexicano teria maior simpatia pelo termo performance? Em que pode nos ajudar entender as possíveis diferenças? De todo o modo, por ora, talvez convenha demonstrar o quanto a arte que faz uso do corpo, hoje em dia, explora os seus aspectos mais variados e, seguindo uma tradição consagrada na performance, busca seus “limites”, aquilo que o antropólogo Victor Turner chamou, analisando rituais indígenas, de “vivência de liminaridade” (TURNER, 1982). Nosso terceiro exemplo de “teatro pós-dramático” ou “teatro performático” vem de um grupo mais antigo, o Wooster Group. Quem hoje vê o ator norte-americano William Dafoe aparecendo em diversos filmes de Hollywood (com menor assiduidade do que em filmes independentes americanos e europeus) não deve imaginar que ele pertenceu a um grupo que levou


a ação teatral até seus limites mais extremos. No mesmo site que citamos anteirormente, quando falávamos da Carnicería, é possível ler que o grupo já encenou grandes autores do teatro como Tchekhov ou Eugene O'Neil (da mesma forma que o italiano Castelucci levou Ésquilo a seu palco, o americano Bob Wilson encenou Büchner e a Carniceria é influenciada por Brecht e Heiner Müller) mas também é possível ver que

“as produções de Élizabeth LeCompte frequentemente fazem aberta referência à cultura de massas, integrando dança, música e pintura. Opondo-se a uma abordagem psicolócica, os atores parodiam apresentadores de televisão ou falam de costas para a platéia enquanto monitores mostram close-ups de seus olhos e um técnico de som distorce suas vozes. O Wooster Group criou e apresentou todos os seus trabalhos teatrais na Performance Garage, no Soho, em New York , e suas produções perfizeram turnês ao redor do mundo.” [5]

No mesmo país, um performer chamado Mike Smith fez uma série de trabalhos que se chamavam o “Mundo Maravilhoso de Mike” do qual a performance “Uma noite com Mike” foi apresentada no Festival Videobrasil, em São Paulo, em 1998. A descrição do que o Wooster Group pratica, ao menos no trecho citado, coincide bastante com o que Mike apresentou em sua cena, realizada em um palco italiano tradicional. Entretanto, a espiral de ridículo que o performer traz para este espaço, produz uma generalizada desconfiança se porventura ele faz aquilo tudo a sério ou está brincando. Os comentários a uma dessas ações – na qual ele se veste como um bebê – postado abaixo de um dos vídeos que a documentam no You Tube diz: “Nada que alguém não tenha feito antes, com melhores recursos teatrais, e um figurino que não vinha de toalhas de hotel. Nada original. Merece “A” pelo esforço, ainda assim.” Um outro comentário sustentava que ele vinha fazendo essa performance do bebê desde 1978. Se tudo isso é verdade, me lembro, por outro lado, como a descoberta de sua obra foi fundamental para uma aluna do Projeto Final de Performance na PUC em 2006. Tomar contato com as performances de Smith resolveu o dilema criativo de seu trabalho – e, em grande parte, da relação de sua vida com a criação – através da absorção da estratégia criada por ele, desconstruindo sua própria presença em cena, reduzindo-se a um estranho corpo de criança “crescida”. Voltando às semelhanças e conexões que fazem com que a proximidade entre o teatro e a performance produzam “híbridos” como os que mencionamos, pode se ver mais reforçada ainda a tendência a ver as fronteiras entre essas linguagens se romperem. Esta imagem é, de fato, muito atraente, principalmente para uma arte tão antiga como o Teatro. Mas um detalhe chama a atenção em todos os casos citados: os grupos sempre apresentam autores teatrais, peças, textos que são


levados à cena. Muito embora recortados, retalhados e modificados, muitas vezes quase ausentes, os textos ainda são uma referência de algum modo colocada. Pode-se dizer, portanto que se o teatro pós-dramático, como o quer Lehman, ou performático, como sugere Féral, transita em direção a uma “teatralidade” a performance busca algo que pode ser resumido em uma característica semelhante, a “performatividade”. Esta última é solicitada, por Féral, a compor uma poética do “teatro performativo”, na passagem em que discute a “desconfiança recíproca” entre as duas artes (FÉRAL, 2008:197). É uma questão que não pretendo desenvolver aqui – Peña chama-a de “peligrosa frontera” (PEÑA, 2005:217) – interessa-me principalmente a questão, de todo modo também contemporânea, de que o cruzamento de fronteiras não se dá sem que haja conflitos e tensões. Interessa também para entendermos em que medida não se trata tão somente de sugerir o uso de algumas técnicas e jogos teatrais no ensino de arte, mas antes pensar em que medida a performance pode fornecer um diferencial de abordagem do corpo na arte e das artes do corpo. Para Hans Thies Lehman esta questão acaba por ser equacionada usando uma distinção, tomada como gradação entre “atuação” e “não-atuação”. Segundo ele: “A 'não-atuação' se refere a uma presença na qual o ator não faz nada para reforçar a informação transmitida por sua atividade (por exemplo, os auxiliares de cena do teatro japonês” (LEHMAN, 2007:224) Usando essa formulação de Michael Kirby, um historiador e teórico da performance, e ainda por cima em um tópico de seu livro dedicado especialmente a essa mesma denominação, Lehman torna claro que “o performer se move principalmente entre a 'atuação simples' e a 'não-atuação'” (LEHMAN, 2007:225). A atuação simples ocorre depois da “atuação admitida” cujo exemplo comum é o do figurante. Na “atuação simples”, são aplicados elementos “emotivos” mas somente se tem a “atuação em sentido pleno” na “atuação complexa”, quando entra em cena a “ficção”. Logo, é necessário que o estatuto da representação seja acionado em grau de complexidade, isto é, que o papel que se representa tenha densidade psicológica (o que não significa que seja verossímil) e se constitua em uma rede de elaboração que se sobrepõe à experiência do cotidiano, embora dele tire seus elementos. Por exemplo, interessa ao ator conhecer e reconstruir, trabalhar e retrabalhar a obra de um dramaturgo como Nelson Rodrigues, cujas ficções são intensamente baseadas no cotidiano suburbano de classe média carioca, do qual o autor fez uma crônica admirável. Em outra direção, uma peça de teatro infantil pode admitir um boi e um burro que falam e comentam a proximidade da chegada do nascimento de Jesus. No segundo caso, sentimos mais presente um certo grau de ficcionalização que deve buscar verossimilhança, não obstante, para animais que falam de um assunto tão importante. Em ambos os casos, ainda assim, o que está em jogo é conseguir atuar de modo a tornar presente uma complexidade ficcional, um conjunto simbólico que é em um outro aspecto que solicita o repertório do leitor.


A performance não é menos exigente, mas seu métier não é o da atuação, a ordem do espetáculo. A ela interessa, como fator de atração artística, o “mero” esforço corporal (como na dupla espanhola que recita mais de dois mil números, quase ao limite da ausência de voz). Dito de outra forma, nos termos propostos por Lehman/Kirby, o que está em jogo não é atuar mas, talvez, “lá estar” e, por isso, também usando uma terminologia que provém do teatro, mas aqui empregada em uma direção diferente, interessa a presença. As possibilidades que surgem dessa premissa são ricas para a atividade educativa. Em primeiro lugar, porque a proposta é inclusiva: abandona-se definitivamente uma noção de “talento” ou “valor em si”, essa espécie de “dote” que estamos acostumados a ver associado à atividade artística. Os corpos possíveis para a performance são todos os que ali estão, sem discriminação.[6] Em segundo lugar, a performance favorece a tomada de posse do cotidiano como matéria prima da criação artística. Dessa forma, inverte-se a prática que costuma colocar o objeto artístico como alguma coisa especial e elaborada em relação ao que cada aluno pode trazer de sua história, de sua casa, de sua percepção ou trajetória. Observe-se que não se trata de desmerecer o valor de impacto estético do repertório da arte. Nem tampouco de desligar-se dele, ao contrário, trata-se de fazer com que o estudante descubra que a arte nasce de seres humanos com questões humanas e que, portanto, em cada época, essas questões estão próximas da vida de cada um. Naturalmente o processo sugerido é muito mais difícil porque não admite a possibilidade de um professor que não disponha do repertório da criação artística, sobretudo Moderna, mas, além disso, exige que este professor esteja a par de certas discussões como por exemplo o tão conhecido declínio da “aura” da obra de arte, frente à sociedade industrial, preconizada pelo filósofo alemão Walter Benjamin (BENJAMIN, 1985:165 e ss.),. Se, ao que parece, a performance é uma arte que relativiza qualquer espécie de “preparo”, se nela os corpos ou são tão “despreparados”[7] como qualquer corpo “cotidiano” ou são frutos da experiência do fazer, então o problema de “ensinar” ou “aprender” performance é insolúvel. Qualquer um sendo capaz de fazer uma performance, o que restaria como pedagogia possível nesse campo artístico? O artista que foi professor e performer – o “híbrido” (CIOTTI, 1999) de ambos – Joseph Beuys (1921-1986), era também aquele que proclamava que todos os da espécie são artistas. Como é possível fazer o que o grande artista alemão fez, ensinar arte? Como “explicar arte contemporânea a uma lebre morta”(título de uma de suas performances)?. Beuys, que foi professor da Academia de Artes de Düsseldorf de onde foi demitido em 1972 (depois readmitido, em 78, quando se constatou a ilegalidade da medida), costumava ministrar aulas em ambientes totalmente inusitados e transformou uma boa parte de suas lousas em obras de arte. A precariedade dos quadros negros


escritos a giz compôs grandiosas instalações nas quais o processo de raciocínio e desenvolvimento temporal de uma aula estava registrado – não de forma a representar essa aula – antes como uma espécie de fratura física entre o tempo da performance quando realizada e o estado de lassidão em que o quadro, uma vez abandonado, parece transmitir. Sérgio Gallo, em seu interesantíssimo Deleuze e a educação comenta: “talvez aqueles que não explicitamente se debruçaram sobre a problemática educacional tenham mais a dizer aos educadores do que podemos imaginar” (GALLO, 2003:9) De fato, parece que uma das circunstâncias favoráveis ao desenvolvimento de um trabalho com a possível pedagogia da performance consiste em reverter precisamente aquele que é o movimento mais costumeiro na área de Educação: as soluções muito frequentemente nascem, nesse campo, a partir de um plano desvinculado dos reais performers do processo, quer dizer, não é muito comum que se pergunte ao professor o que ele pensa das decisões que se tomam e que o afetam ou afetam diretamente seu trabalho. Isto se nota principalmente na imposição do uso de ferramentas tecnológicas, mas também é comum em decisões pedagógicas mais amplas. Está claro, portanto que a tarefa também não é fácil no sentido de que trata-se de absorver alguns dos aspectos que estão presentes no contemporâneo e que, como já dissemos, nem sempre podem se tornar aceitáveis diante da matriz curricular disponível. Entretanto, curiosamente, seguindo o curso do “prestígio”– prefiro dizer, da singular permanência – que a performance desfruta hoje na arte em geral e mesmo diante do Teatro e da Dança (seus pares “complexos” como o circo e outras artes do corpo), é mais provável que o Educador de Arte seja solicitado a incluir entre seus conteúdos a teoria e prática da performance. Se por um lado isto pode ser animador, por outro lado é por vezes decepcionante o que se pratica em nome desta linguagem. Farei uso agora de uns tantos estereótipos, sempre evocados para tentar “explicar” esta linguagem e, na sequência, tentarei sugerir argumentos para ultrapassá-los. a) a performance é um tipo de atividade artística que lida com o improviso portanto qualquer coisa que se faça está valendo Se buscarmos estudos sobre uma possível pedagogia da performance, sera inevitável recorrer à monumental pesquisa de Valentin Torrens, professor espanhol, chamada Pedagogia da Performance (TORRENS, 2007). Nela, registra-se que “o ensino da performance se encontra num estágio de primeiras gerações”. A data apresentada para o início deste tipo de pesquisa remonta a 1970, com o livro (edição bilíngue Alemão/inglês) Teaching and learning as performing arts de Robert Filiou, membro do seminal Fluxus, de fundamental importância na história do happening/événement. Da mesma forma que, nesta obra pioneira, igualam-se a situação do “artista como estudante e deste como artista”, anos mais tarde Jacques Rancière, da mesma geração de


Deleuze e Guattari, defenderá a idéia do “mestre ignorante” que vem sendo mais recentemente acrescentada à noção de um “espectador emancipado” (RANCIÈRE, 2008). Um “público passivo” tornado tão atuante quanto o que pode atuar. A questão do espectador/massa/público/contemplador está posta em xeque, desde pelo menos os anos 50, quando os artistas da beat generation, desencantados do pós-guerra, propunham a reconfiguração do “sonho americano” através do drop-out – do “cair fora” - para buscar a experiência de um outro mundo possível[8]. Essa atitude encontra eco nos tempos de maio de 68 em que se propunham as “derivas” dos situacionistas, liderados por Guy Debord (1931-1994), nas quais a cidade se convertia em experiência artística sem rumo definido. Talvez o primeiro e mais profundo pressuposto dos situacionistas era ultrapassar a distância entre um “palco” e uma “platéia”, situação que pode ser observada em todos os territórios da cultura na época. Tratava-se de não mais assistir passivamente ao espetáculo “pronto” que era entregue ao consumidor mediano mas, inversamente, tornar-se também “protagonista” de ações na cidade. Tão antiga proposição (fins dos anos 60 e início dos 70) de deslocamento das formas pelas quais se observa, se percebe e se aprende, fez com que uma grande quantidade de iniciativas de pesquisadores-professores-artistas-instigadores etc se espalhasse pelo mundo afora, da Finlândia à Colômbia, da Polônia ao Chile. No livro de Valentin Torrens, contam-se 20 cursos em Universidades e 19 ateliês, representados por depoimentos minuciosos de seus coorenadores/professores. O que mais impressiona é que, recusando uma epistemologia em bases tradicionais – e, portanto, deixando de lado a noção de conteúdo em prol da de evento, acontecimento – comportando-se sistematicamente como forma de aprender na vertigem mesma de um “ignorar” produtivo, a performance e os estudos desta linguagem artística expandem-se e desenvolvem-se de forma exponencial no mundo todo. No fundo, a questão tem a ver com experimentar formas não convencionais de apreensão da informação estética (derivas, jogos, proposição de aulas em espaços alternativos) que não estão isentas de impasses e que não silenciarão permanentemente o argumento apresentado, mas tornarão o mesmo irrelevante diante do resultado emancipador que pode se produzir entre os alunos. Por outro lado, a arte do corpo performático não é mais fácil. Nem menos exigente. Me parece aliás que se dá precisamente o contrário. Penso nos altos custos – em vários sentidos – encarados por artistas como Mathew Barney, Laurie Anderson ou mesmo Marina Abramovic. A performance não é vacinada contra um processo de institucionalização pois é aceita e aclamada no Museu Guggenheim[9].


Joan Jonas disse em entrevista recente, próxima à época em que compareceu entre nós na última Bienal de São Paulo, que nunca se sentiu capaz de ser competente em uma coisa só. Esse é um espírito compartilhado por muitos performers, uma situação com que se identificam esses singulares artistas, todos geralmente nômades egressos de outras paragens – mesmo daquelas tidas e vistas como não-artísticas. Não é possível a tranquilidade e a certeza diante da performance. Nela, o corpo não decide de onde é, não aceita proveniência nem o pressuposto da identidade. Essa é a idéia com que trabalha Guillermo Gómez-Peña, mexicano naturalizado americano, que se comporta artisticamente como aquela criatura “inexistente” que vaga pela fronteira dos novos muros (El Paso, faixa de Gaza, complexo do Alemão) sem ter uma “identidade” (sem ser igual a si mesmo ou a qualquer idéia que possam fazer deste si e que um sujeito possa representar). Os corpos da performance não cabem nos territórios conhecidos. Estão em fuga permanente, como discos voadores. É evidente que, para lidar com valores como estes, o professor tem de se dispor a uma situação de aventura. b1) o termo performance já não mais se emprega e é ultrapassado ou b2) o termo performance é mal empregado no Brasil. Não existe “a performance” mas as “performing arts” (teatro, dança etc), logo tudo é performance e não faz sentido em falar de uma linguagem da performance. A tentação seguinte seria pensar que, com um único curso de graduação que conta entre suas “habilitações” a performance e com apenas outro, em vias de se concretizar, no qual a performance é matéria de dois semestres apenas, e apenas em São Paulo, o Brasil está tremendamente atrasado nesse campo. Minha percepção, embora possa ser polêmica, é, entretanto, diferente em vista desse fato. Penso que deveríamos operar essa nossa “minoridade” performática pelo mesmo viés que levou Oswald de Andrade a afirmar em seu Manifesto Antropofágico que já tínhamos a psicanálise antes de Freud. O Brasil é um país eminentemente performático e talvez por esse profundo conhecimento pragmático da ação artística não tenhamos desenvolvido tanto seu entendimento – por assim dizer – teórico. E mais, a questão do corpo, no Brasil e na América Latina é, hoje, obviamente, de viés muito diverso do modo como a Europa começa a percebê-la. Por fim, se a presença na escola e universidade é incipiente, o mesmo eu não diria da atividade da performance em geral, no Brasil. A sua chegada ao “mundo acadêmico” é um sintoma claro de sua expansão, a despeito do bacharelismo de nossa terra. Concomitantemente a todas as tranformações desestabilizadoras pelas quais passa o contemporâneo, pondo em destaque as culturas que antes não faziam parte do pensamento ocidental, há uma reproposição da própria noção de Instituição e também mudanças nas perspectivas da educação, como penso conseguir afirmar. De modo que se quantitativamente estamos “em atraso” em relação ao múltiplo desenvolvimento da pesquisa em performance e da


performance no mundo, por outro lado temos qualidades do lidar com o corpo que fazem uma profunda diferença. Isso pode também funcionar como explicação para uma coincidência que se observa na nossa experiência docente (obviamente no nível de uma graduação) na PUC de SP, onde trabalho. A reforma de nossa habilitação, feita recentemente, contempla alguns dos aspectos visados pelos mais diversos educadores-artistas citados por Torrens no seu livro, o qual desconhecíamos na época em que revisamos o curso. Na verdade, no mundo todo, a despeito das diferenças regionais, as atividades e o ensino de performance se depara com quase os mesmos dilemas. Os relatos de vários artistas-educadores no livro de Torrens dão conta de impasses muito comuns em uma área que, insisto, busca um campo de atuação fora das fórmulas tradicionais. A idéia pode ser resumida na feliz frase de Sérgio Gallo: “pensar a educação desalojando-nos de nossas falsas certezas” (GALLO, 2003:12). Os argumentos arrolados acima servem para ajudar a responder ao questionamento seguinte a performance cria problemas institucionais o que nos leva para o tópico seguinte. d)a performance é uma derivação da arte conceitual e portanto se converte num mero exercício formalista, produzindo nos alunos um estado de alienação dos seus problemas contemporâneos. A performance enfrenta, simultaneamente, uma dupla desconfiança: a do campo no qual se insere por produzir uma forma de abordagem científica que não exclui o seu oposto; e a da própria noção de formação, sempre entendida não como um fazer colaborativo mas como uma transmissão de quem sabe a quem ignora. Há sempre uma nuvem de desconfiança que paira sobre a nossa atividade, antes de mais nada como artistas. Como observam Nathan Stucky e Cynthia Wimmer, autores do essencial Teaching Performance Studies (STUCKY e WIMMER, 2002:5) a indeterminação no processo do ensino de performance “alimenta o sentido de experimentação, jogo e inventividade deste aspecto da pedagogia dos estudos da performance”. Os mesmos autores observam ainda, na introdução de seu volume:

“Em muitos dos ensaios deste livro, vemos demonstrações de pedagogias nascidas da interação em sala de aula e portanto parcialmente produzidas pelos estudantes no momento de sua ocorrência, ao invés de pedagogias desenvolvidas através de julgamentos de pesquisa, escritos em fórmulas para reprodução e depositados na dinâmica da sala de aula.” (STUCKY e WIMMER, 2002:3)


Na sua introdução à parte dedicada à presença da performance na Universidade, Valentin Torres cita o professor Charles Garoian da Escola de Artes Visuais da Universidade Estadual da Pensylvannia que, em seu livro Performing pedagogy: towards an art of politics (1999), no qual “concede especial interesse a seis táticas pedagógicas que levanta e que podem atuar combinadas”: a “performance etno-autobiográfica”, a “performance da linguagem”, a “performance de estratégia política”, a “performance comunitária” “a interação com aparatos mecânicos ou eletrônicos” e “a estratégia extática”. O mais comum, portanto, é que a performance seja uma estratégia que convida à participação e ao engajamento do aluno em suas atividades. Por não exluir os elementos do universo midiático imediato, recursos que são geralmente “expulsos” da escola – como games, dança de rua, rock, grafitagem, etc – estes se tornam matéria prima tanto quanto as discussões sobre os impasses da adolescência, os blogs, os avatares na rede e assim por diante. Como o foco se desloca para a existência, o elemento autobiográfico pode ser relevante e conectar o subjetivo e o político. Isto nos conduz a um outro estereótipo: e) a performance é sempre a expressão de um sujeito autobiográfico e, portanto, não funciona com uma história de vida ainda em construção Frequentemente se diz que o performer difere do ator por trabalhar principalmente com a autobiografia. A performance difere da atuação comum, cuja atividade consiste em, quando muito, incorporar a personalidade de uma criatura ficcional, com sua própria biografia ou, no caso de mais sofisticadas práticas de representação (ou presentificação), fazer soar os traços psicológicos do personagem através de elementos emocionais que o ator reconhece em sua própria experiência. É bom que se observe que a etimologia da palavra “persona” tem esse sentido. Per sonare = soar através. A máscara, na acepção clássica, seria algo que, encobrindo o rosto do ator, permite entretanto que sua representação possa “soar através” dela. Não seria outro o sentido que Renato Cohen apresenta, ao contrário do que se diz costumeiramente, no que respeita esta situação. Ao comentar a performance de Beuys Coyote: I like America and America likes me, Cohen assevera: “Na performance de Joseph Beuys quem está lá é o próprio artista e não alguma personagem. É importante distinguir, porém, que à medida que Beuys metaforicamente está representando (simbolizando) algo com suas ações, quem está lá é um 'Beuys ritual' e não o 'Beuys do dia-adia'”. E, mais adiante, ainda na mesma página: “O performer, enquanto atua, se polariza entre os papéis do ator e a 'máscara' da personagem. A questão é que o papel do ator também é uma máscara.” E conclui: “Não existe esse naturalismo na performance (aliás, o Naturalismo, enquanto movimento estético, é uma das tendências que sofre mais ataques por parte dos praticantes da performance”.(COHEN, 1989:58)[10]


f) a performance tem de acontecer no aqui-agora. Se eu assistir uma performance transmitida pela televisão ou pela Internet, já não haverá mais performance A urgência da enunciação performática, vista sob esse ponto de vista, chama a atenção para o instante, a duração, em suma, que tem sido muito comentado em outras áreas (como o cinema e o vídeo) como “tempo real”. Ainda Cohen: “Na performance há uma acentuação muito maior do instante presente, do momento da ação (o que acontece no tempo 'real'). Isso cria a característica de rito, com o público não sendo mais só espectador e sim, estando numa espécie de comunhão” (COHEN, 1989:97). O autor ainda observa que esse aspecto confere ao público um papel de testemunha de um evento, ou seja, de cumplicidade. Mas é esse mesmo autor que em seus últimos textos, introduzirá a possível idéia de uma “teleperformance” a fim de evitar que se pensasse na exclusão dos aparatos tecnológicos do ato artístico, como se a ele se opusessem, ou como se aquele fosse necessariamente ligado somente a uma certa “nostalgia do artesanal”. Um dos aspectos mais interessantes da performance contemporânea é aquele que liga elementos rituais antigos e ancestrais com o universo tecnológico mais avançado. Estudos como os de Margaret Wertheim (WERTHEIM, 2001) e Janet Murray (MURRAY, 2003) – em que pese a visão nostálgica da segunda, reivindicando o palco tradicional para os games e a abrangênica da primeira, buscando as analogias entre as concepções de espaço em várias épocas diversas – apontaram caminhos para que se desenvolvessem pesquisas em que a noção de presença ganha expansão. Ao mesmo tempo, como observa a obra clássica de Michael Rush, Novas mídias na arte contemporânea (RUSH, 2006), há um caminho de estreita colaboração entre os artistas que fazem uso da tecnologia eletrônica e a performance, desde os anos 50 ou antes. Dessa forma, a televisão, classicamente a máquina maldita com a qual a escola compete, passa a ser uma possível fonte de discussão e criação na sala de aulas de arte. g) a performance é uma arte que se torna problemática por insistir demasiadamente no nudismo Um dos clichês que normalmente são relacionados à performance, é a nudez. A presença do corpo nu, do “negativo” da roupa é uma situação que se torna marcante em várias instâncias atuais, na mídia em geral, das capas de revista aos desfiles de moda. Recentemente, uma jovem pesquisadora, Taís Graciotti, defendeu uma dissertação de Mestrado no Núcleo de Estudos da Subjetividade Contemporânea da PUC-SP investigando, em parte, esta questão. O trabalho levava em conta uma pesquisa de vídeo-performance da mesma autora, in-troca, no qual duas performers trocam entre si suas roupas. A imagem da nudez é mais do que uma mera ocorrência na performance. Ela remonta ao movimento de um corpo fragmentado como o “Nu descendo a escada” de Marcel Duchamp. A incidência dessa imagem – mesmo em performances mediadas tecnologicamente como foi recentemente o caso de Marceli A. Roca no FILE ou no caso de clássicos como Stelarc – torna sempre presente a singularidade do corpo geralmente “atirado” à dimensão do cotidiano (um corpo que se move ao meu lado, completamente nu mas totalmente desprovido de qualquer sentido “erótico” imediato). Evidentemente esta é uma questão difícil para ser abordada na escola de ensino fundamental mas a documentação do corpo nu fora de uma formulação espetacular – como pode ser aquele que aparece até mesmo em performances que fazem uso de elementos desse mesmo corpo espetacular, caso de um Mathew Barney – pode vir a suscitar em muitos alunos a reflexão sobre a obrigatoriedade de entendimento do nu sempre nos termos de uma “pornografia midiatizada”.


Nesse sentido, a amplificação da noção estética do nu – que não fica apenas na figura de bronze idealizada ou mitologizada – pode contribuir para que o aluno se aproprie da atividade artística na escola como coisa que lhe diz respeito e não como algo que ignora sua abordagem subterrânea do seu corpo, dos corpos e até mesmo da sexualidade. h) não se pode ensinar performance. Ninguém sabe direito o que é. Em primeiro lugar não se trata de como se pode definir mas de “o que define”. O pressuposto, então, é que esta entidade – a performance – é definida por algo que lhe é externo, algo que lhe dá qualidade, lhe confere um atributo, pelo menos. Nesse caso, é importante reparar que um substantivo como “definição” quando vira adjetivo, evidencia seu lado mais “categórico” e inaceitável. Eu poderia começar dizendo que o contemporâneo é tudo menos “definido”. Mas pego um atalho: Nós estamos em um país no qual o sol é generoso. Isto é muitas vezes celebrado, embora nem sempre compreendido. Para os que nasceram e cresceram na privação deste privilégio, a abundância do sol brasileiro parece superar todas as possíveis, reais ou irreais dificuldades da vida nesse pedaço do planeta. Essa propriedade que nos singulariza, que nos caracteriza como uma cultura solar, é sempre posta na conta de um traço de nossa “identidade”. Essa, aliás, é uma das palavras mais citadas no contemporâneo. Identidade. Mas aplique-se o mesmo exercício de adjetivação e surgirá o incômodo idêntico. Somos idênticos? Certamente não. No nível reles das relações menos diplomáticas, quando os burocratas de fronteiras outras – sobretudo norteamericanas e européias – nos encaram, sua dificuldade reside precisamente nessa irrupção de diferenças que nos “constitui”. Somos diversos etnicamente em uma proporção infreqüente no mundo. Somos quase um patrimônio de biodiversidade humana se já não o fôssemos do ponto de vista natural.[11] Se conseguimos, pois, aceitar com relativa facilidade o postulado da “identidade”, sabemos que precisamos recusar, categoricamente, o do idêntico. Ninguém precisa mais de qualquer espécie de atitude xenófoba. Esses seriam, portanto, a meu ver, numa primeira mirada, ainda superficial, dois aspectos que poderiam caracterizar esta nuvem vaga – talvez passageira – à qual estamos chamando aqui de contemporâneo. É um tempo-espaço no qual certamente torna-se difícil sustentar argumentos a favor de uma possível definição. E de dúvida quanto às visões costumeiras de identidade, senão de dúvida em relação ao conceito em si mesmo. Posso adiantar que essa impossibilidade de definir – de tornar definitivo – é algo que está no cerne da performance. Curiosamente hoje, em vias de se institucionalizar em muitos dos lugares que antes sequer a reconheciam, a performance permanece sendo um saber – se o quiserem – imune às definições. Observam, com propriedade, Jonas e Hoffmann:


“A palavra “performance” anda por todos os discursos atualmente. É empregada em múltiplos setores da atividade da a economia, os negócios, a tecnologia, as ciências e a medicina até a arte, a cultura popular, a política e a universidade. Ainda que todos façam uso dessa palavra, parece difícil conceder-lhe um significado claro e preciso. Pois é justamente essa resistência às tentativas de classificação que fazem deste um domínio artístico particularmente interessante.” (HOFFMANN e JONAS, 2006: 11).

Nossa crônica “falta” de identidade rima com o nosso mui freqüente excesso de ambigüidade, o que nos torna especialmente aptos para abarcar múltiplas possibilidades sob o mesmo nome. Quase como desejaria o filósofo Felix Guattari, ao reivindicar, em seu livro Caosmose, a expansão de “subjetividades polifônicas”. (GUATTARI, 1998) Este deveria ser o propósito de uma educação artística no qual a mestiçagem, a constituição étnica em mosaico é um bem extraordinário. A “des-identificação” é um proveito na performance e na construção de uma outra noção de vida.

Bibliografia BENJAMIN, Walter (1985) Obras escolhidas vol. 1 - Magia e Técnica, Arte e política SP, Brasiliense. BORER, Alain (2001) Joseph Beuys SP, Cosac & Naify, trad. Betina Bischot e Nicolás Campanário. CORAZZA, Sandra (s/d) “O que Deleuze quer da educação?” e “Para pensar, pesquisar e artistar a educação: sem ensaio não há inspiração” in AQUINO, Julio A. e REGO, Thereza C. (coordenadores) Revista Educação Especial no. 6 – Deleuze pensa a educação SP, Ed. Segmento, Ano II, no. 6,. COHEN, Renato (1989) Performance como linguagem São Paulo, Perspectiva, col. Debates. COHEN, Renato (2004) “Performance e telepresença: comunicação interativa nas redes” in Concinnitas – Revista do Instituto de Artes da UERJ – ano 5, no. 6, Rio de Janeiro, Ed. UERJ/ 7 Letras. CIOTTI, Naira (1999) O híbrido professor-performer: uma prática - Dissertação de Mestrado em Comunicação e Semiótica, SP, PUC-SP,. FÉRAL, Josette (2008) “Por uma poética da performatividade: o teatro performativo” in revista Sala Preta SP, Eca-USP, n. 8.


GALLO, Sérgio Deleuze e a educação Belo Horizonte, Autêntica, 2003 col. Pensadores e educação. GÓMEZ-PEÑA, Guillermo (2005) “En defense del arte del performance” in Horizontes Antropológicos Porto Alegre, ano 11, n. 24, p. 199-226, jul./dez., tradução de Silvia Peláez. Também em http://www.pochanostra.com . GÓMEZ-PEÑA, Guillermo (2005) Ethno-techno – Writings on performance, activism and pedagogy NY, Routledge, edit. Elaine Peña.. GOLDBERG, Roselee (1996) Performance Art London, Thames & Hudson,. (ed. bras: (2006) A arte da performance do futurismo ao presente SP, Martins Fontes,, trad. de Jefferson Luiz Camargo. GOLDBERG, Roselee (2004) Performance – Live Art since the 60s London, Thames & Hudson. GLUSBERG, Jorge (1987) A arte da performance SP, Perspectiva. GUATTARI, Félix (1998) Caosmose – um novo paradigma estético São Paulo, Ed. 34, tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. HEATHFIELD, Adrian (ed.) (2004) Live- art and performance New York, Routledge,. HOFFMANN, Jens e JONAS, Joan (2006) “Da performance (e outras complicações)” in Questions d’art: Action Londres/Paris/NY, Thames & Hudson tradução: Lucio Agra JACQUES, Paola Berenstein (2003) Apologia da Deriva – Escritos situacionistas sobre a cidade Rio, Casa da Palavra,. SANTOS, Laymert Garcia (2003) Politizar as novas tecnologias SP, Ed. 34. LEHMAN, Hans-Thies (2007) Teatro pós-dramático SP, Cosac & Naify,, trad. Pedro Süssekind. MELIM, Regina (2008) Performance nas artes visuais Rio, Jorge Zahar,. MURRAY, Janet (2003) Hamlet no Holodeck SP, Ed. Unesp/Itaú Cultural, trad. Eliza Khouri Daher e Marcelo Fernandes Cuzziol. PHELAN, Peggy (1993) Unmarked: The Politics Of Performance. London And New York: Routledge,. RANCIÈRE, Jacques (2008) “Le spectateur émancipé” in Le spectateur emancipé Paris, Ed. La Fabrique,. RUSH M. (2006). Novas mídias na arte contemporânea.SP, Martins Fontes, trad.Cássia Maria Nasser. SCHECHNER, Richard (2006) Performance Studies – an introduction London/NewYork, Routledge (2a edição).


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* Texto elaborado originalmente para publicação no livro Territórios das Artes: ensinaraprender, organizado por Maria Rosa Duarte de Oliveira, Sandra Mraz, Vera C. Achatkin e publicado pela Editora da PUC de São Paulo, no âmbito de projeto credenciado na Rede Nacional de Formação Continuada de professores de educação básica (São Paulo, Artgraph, Educ, MEC, 2009) “Todos se servem da palavra performance, mas parece difícil conceder a esse termo uma definição clara e precisa” HOFFMANN e JONAS, op. cit., pg. 11. [1]

[2]

http://www.youtube.com/watch?v=4mf0MFLBAiQ

Texto produzido pelo Centro Nacional de Artes do Teatro Francês. Disponível em http://www.artsvivants.ca/en/thf/aujourdhui/compagniesdaujourdhui.html (acesso em julho de 2009) [3] [4]

Mais detalhes podem ser encontrados em www.pochanostra.com.

[5]

Ver nota 3

Um exemplo do que isso possa significar é o escândalo que Orson Welles produziu com seu Mercury Theater em um país de apartheid como eram os Estados Unidos dos anos 30 e 40, ao montar espetáculos com um elenco de atores negros do Harlem. [6]

Refere-se aqui, naturalmente, a um tipo específico de preparação e, simbolicamente, à obsessiva preocupação com o preparo que costuma caracterizar algumas áreas da arte (e não só a arte). [7]

Sabemos que essa preocupação remonta ao século XIX e aparece com particular ênfase entre as vanguardas históricas (Dadá, Surrealismo) e em particular com artistas como Antonin Artaud. Para mais detalhes, ver GOLDBERG, 2006. [8]

[9]

Para citar apenas um, sede da bienal Performa, organizada desde 2005 por Roselee

Goldberg. Uma leitura mais atenta dessa questão, no próprio livro de Cohen, revela que ele mesmo se baseou em grande medida nas idéias expressas em um artigo de Richard Schechner (“postmodern performance: two views”), o qual é citado diversas vezes. Na página mencionada, alude-se à idéia de self as a context, retomada muito depois, na página 136 (nota 39) como esclarecimento à frase “uma leitura do mundo a partir do ego do artista”. Segundo a nota, a expressão de Schechner aponta para um tipo de criação que “se dá a partir da vivência do ator”. Cohen cita os exemplos aos quais recorre Schechner: Spalding Gray, Stuart Sherman, Elizabeth LaCompte; e aponta, no Brasil, os nomes de Ivald Granato e Aguillar (COHEN, 1989:136). [10]

Para a mais interessante discussão entre os paradigmas da biodiversidade e da biotecnologia contemporâneos, ver SANTOS, Laymert G., 2003. [11]


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