INTRODUÇÃO: O QUE É VANGUARDA?
Richard Kostelanetz O termo vanguarda refere-se aqueles que estão no front, abrindo o caminho que outros tomarão. Inicialmente empregado para caracterizar as tropas de cheque de um exercito, o epíteto passou para o terreno da arte, em parte porque a disseminação desta assemelha-se, em certos aspectos, a progressão de um exercito. Usado com precisão, o termo vanguarda deve referir-se à obra que satisfaz três critérios de discriminação ({discriminatory criteria}: transcende as convenções correntes da arte, em varies aspectos, estabelecendo uma distancia discernível entre si mesmo e a massa das praticas mais usuais; segundo, o trabalho de vanguarda leva um tempo considerável ate encontrar sua audiência máxima; e, terceiro, provavelmente inspirará o futuro, através de esforços comparavelmente maiores em relação ao presente. E inevitável que somente uma pequena minoria possa ser vanguarda; desde que a maioria consegue assimilar algo novo, o que e vanguarda vai, por definição, situar-se em outro lugar. Sem levar em conta suas implicações, permanece uma categoria criticamente utilizável. Como termo temporal, vanguarda caracteriza a arte que parece estar "à frente do seu tempo" - arte que esta começando algo - enquanto arte decadente" 1, por contraste, situa-se no termino de um prospero desenvolvimento. "Arte acadêmica" refere-se aquela que e concebida de acordo com as regras que são aprendidas na sala de aula; esta e temporariamente pos-decadente. Enquanto a arte decadente e criada na expectativa de venda imediata, o artista acadêmico anseia pela aprovação de seus superiores. Ambas são essencialmente oportunistas, desejando benefícios imediatos, mesmo ao custo de desaparecer, num futuro próximo, no corpo da arte que sobrevive por ser sempre lembrada. A vanguarda tem sido definida como "ate onde os artistas podem ir com a mesma". Entretanto, isto somente e correto no tempo - apenas se a invenção contribui com a tendência perceptível em direção à frente ou desafia uma alternativa profissional já demasiado conhecida. A mesma novidade que pode parecer revolucionaria em uma época parecera irrelevante, senão decadente, em outra. A arte do passado pode ainda ser legitimamente chamada de vanguarda se sua estréia foi realmente inovadora - considerando-se os três critérios mencionados anteriormente. Tais trabalhos formam a historia da vanguarda nos tempos modernos. Uma característica secundaria da arte de vanguarda e que, no processo de entrada em um novo território, viola regras entrincheiradas, faz com que a "estética" tradicional pareça irrelevante. Às vezes da a impressão de provir de "falsas premissas" ou presunções
"heréticas". Por exemplo, a teoria do simbolismo de Suzanne Langer2, bastante proeminente nos anos 40, dificilmente seria relevante para a nova arte das duas ultimas décadas - a música de John Cage4 ou o caso de Milton Babbitt5; a pintura de Ad Reinhardt6, a coreografia de Merce Cunningham7. O que você ouve ou vê e muito mais do que ha ali. Este senso de irrelevância e menos uma critica as teorias de Langer, que são conceitualmente sofisticadas, do que uma medida de drástica diferença. Uma explicação do porque os trabalhos de vanguarda são, no principio, difíceis de compreender, não reside em que sejam inescrutáveis ou herméticos mas que desafiam os procedimentos de percepção das pessoas educadas artisticamente; e de sua natureza impedir a aceita?ao fácil, o fácil acesso. Uma audiência tradicional percebe-os como diferença, senão como revolucionários perigosos que devem ser proibidos. Não obstante, se a audiência aprende a aceitar um trabalho inovador, isto estendera sua capacidade de percepção, proporcionando-lhe tipos de experiência perceptual antes desconhecidos. lonisation (1934) de Edgar Varese, por exemplo, ensinou uma geração de ouvintes sobre a possibilidade de haver beleza e coerência em algo que antes percebiam apenas como "ruído" percussivo. O "passado" que a vanguarda procura vencer não e a tradição da arte mas as modas decadentes em curso. Como observa Harold Rosemberg^: "A arte de vanguarda e assombrada pela moda" o que significa dizer a moda costumeira ou recente na arte. A arte de vanguarda freqiientemente ofende as pessoas, principalmente artistas sérios, antes de persuadir. Mais precisamente, ofende não em termos do sujeito, mas da arte; a maior parte do publico não consegue acreditar que a arte possa ser feita daquela maneira ou reluta em aceitar a idéia de que, em alguma ocasião, possa vir a ser concebida de tal modo. Ela fere a maior parte de nós como "erro" antes que uns poucos a percebam como possivelmente "correta"; ela é "falha", mas ainda assim funciona. Os maiores antagonistas da vanguarda não são o publico em geral, pois este nem liga, mas os guardiões da cultura que a combatem, sejam eles burocratas culturais, artistas estabelecidos ou seus epígonos, porque se sentem, como às vezes admitem, "ameaçados". Tal verdade foi mais concisamente formulada por Leo Steinberg: "Não importa quando aparece uma arte nova e original, os homens que o denunciam e proclamam são artistas. Obviamente porque são os mais engajados. Nenhum critico, nenhum burguês ultrajado, pode antagonizar, a altura, a paixão de um artista pelo repudio. Estas obras que os veteranos desprezam e que os novos artistas debatem são, ferqiienternente, vanguarda.
Apesar de a vanguarda poder vir a dominar a discussão entre profissionais sofisticados, ela nunca, mas nunca mesmo, domina o fazer geral da arte. A maior parte da arte criada não importa em que época, em todas as formas, honra os modelos ultrapassados. Mesmo hoje, nos Estados Unidos, a maior parte da ficção escrita, publicada e analisada possui uma forma que pouco progrediu em relação ao começo do século vinte. A maior parte da poesia hoje e igualmente decadente. Em virtude das vanguardas serem encaradas, normalmente, como uma sucedendose a outra, são equiparadas ao mundo da moda, no qual estilos também se sucedem uns aos outros. Entretanto, tanto na origem como na função, as duas são bastante diferentes. A moda relaciona-se com a sociologia do gosto lucrativo; vanguarda com a historia da arte. Na pratica, a atividade artística de vanguarda tem uma relação dialética com a moda, pois as modas emergentes que dão lucro podem ser usualmente caracterizadas como uma síntese da arte avançada, o que seria antagônico aos propósitos da moda, considerando que esta lida com objetos mais familiares. Apesar da moda imitar o tom inovador e explorar o mito de seu valor, o propósito final e a estandardiza?ao; a meta de seus criadores e uma formula de sucesso. O artista de vanguarda, por contraste, está interessado na descoberta e na auto-transcendência. Quando uma invenção de vanguarda torna-se consumível, capaz de ser transformada em moda - como a colagem nas artes visuais ou a sintaxe associativa na poesia (através das letras do rock) - começa, então, a tomar a forma de decadente, e o genuíno artista de vanguarda sente em suas entranhas que esta nova moda e um marco que ele e obrigado a transcender. Quando o estado corrente de uma forma artística e, de modo geral, percebido como decadente ou esgotado, então uma nova vanguarda esta destinada a surgir. A vanguarda estética ("esquerda") não coincide com a vanguarda política (também "esquerda"). A primeira encara a segunda como culturalmente insensível e exploradora da humanidade e a ultima, olha a outra como individualista e politicamente inepta. Cada uma pensa que a outra e ingênua a respeito das transformações culturais. E, desnecessário dizer, talvez ambas estejam corretas. O termo vanguarda também pode referir-se a indivíduos criando novos caminhos em arte; mas, mesmo sob este critério - a obra em si, menos do que as intenções do artista (ou os reclames para sim mesmo), - e a medida da legitimação do epíteto. Portanto, um artista ou um escritor e vanguarda apenas nos pontos cruciais de sua carreira criativa, e somente seus trabalhos mais avançados serão considerados vanguarda. O termo pode também se referir a um grupo artístico, se e somente se a maior parte de seus membros esta contribuindo profundamente com uma atividade autenticamente exploradora.
O termo é, algumas vezes, equiparado a antagonismo cultural, em virtude do costume de se dizer que a "vanguarda" conduzira os artistas na sua guerra perene contra os Filisteus^. Entretanto, este antagonismo filisteu e uma característica secundaria; assim como as posições sociais e atitudes dos artistas derivam mais do destine de seus esforços artísticos do que do oposto. Alguns críticos conservadores têm asseverado que "a vanguarda não mais existe" porque, na visão deles, o publico suburbano traga toda e qualquer arte nova. Entretanto e igualmente falso e ignorante usar uma característica secundaria em lugar de uma definição básica. A resposta do publico em geral não tem nada a ver com qualquer definição precisa de vanguarda; ela e um termo da historia da arte, não uma categoria sociológica. Se um crítico de arte, em particular, falha na utilização do termo "vanguarda" como um nome basicamente pertencente ao universo da historia da arte, então esta explorando a autoridade de sua posição para espalhar confusão desnecessária. Além disso, o fato de que a vanguarda é fartamente discutida, como também muito se escreve sobre ela, dificilmente a torna suscetível à moda ou mesmo lucrativa. A carga conservadora e também factualmente errônea, considerando-se que quase todas as vanguardas na arte são ignoradas pelo publico de classe media (e por seus agentes na industria cultural), precisamente porque o trabalho inovador e comumente percebido como "peculiar", se não "inaceitável". Na realidade, o mais comum destas constatações e, claro, uma medida patente de que o trabalho esta artística e historicamente à frente de seu tempo. E também errôneo pensar que todas as correntes de vanguarda estão necessariamente dando continuidade ou elaborando previas vanguardas. É um equívoco, por exemplo, classificar o pintor Jasper Johns como um mero descendente do DAD A, pois ha, implícito em seus melhores trabalhos, um salto conceitual que reflete o DADA mas, ainda mais, move-se alem. Sem levar em consideração semelhanças parciais, o trabalho de Johns e feito por outras razoes, como conseqiiencia de outros interesses, provenientes de outras apropriações. Em verdade, o termo vanguarda e mais apropriado quando e aplicado ao trabalho que e tão diferente em intenção e experiência que torna as velhas classificações irrelevantes. Desde que a vanguarda almeja ser profética, o julgamento último de tais propósitos será o publico cultural futuro; um crítico sensível poderá apenas tentar estabelecer cálculos aproximados. Uma das razoes pelas quais as inovações artísticas do futuro não podem ser descritas hoje e que a vanguarda, por definição, transcende a predição. in: KOSTELANETZ, Richard (org.) The Avant-Garde Tradition in Literature NY, Prometheus, 1982. Tradução: Lucio Agra
NOTAS DA TRADUCAO 1. O termo "decadente" esta aqui sendo usado em um sentido diverso do que normalmente tem no português. Não se trata de algo com sentido pejorativo, mas apenas que se encontra em uma rota de declínio, crepuscular. 2.Susanne Langer, filosofa e ensaísta norte-americana, autora de Filosofia em nova chave (Perspectiva). 3. Kostelanetz refere-se às décadas de 60 e 70. O texto data dos anos 80. 4. John Cage (1912-92) Músico americano de vanguarda. Sua composição mais conhecida intitula-se 4'33" e constitui-se em absoluto silêncio no tempo de duração previsto no titulo. Alem do problema do silêncio, Cage ocupou-se da absorção de instrumentos elétricos e eletrônicos na música "erudita", rompendo a barreira desta com a música "pop". Cage também estudou o papel do acaso no processo de composição, tendo se servido por muitos anos do milenar oráculo chinês I-Ching. Também e de sua invenção a técnica do "piano preparado" que consiste em inserir objetos entre as cordas do instrumento, que alteram sonoridade e timbre das notas. Richard Kostelanetz foi amigo de John Cage. S.Milton Babbitt, escritor norte-americano, notabilizado nos anos 50. 6.Ad Reinhardt, pintor abstracionista norte-americano famoso nos anos 50 e falecido em 1967. Edward Lucie-Smith compara-o a Josef Albers, tendo em conta a grande influencia que este último exerceu sobre toda a geração do pós-guerra por ter sido emigrado da Alemanha dos áureos anos da Republica de Weimar. 7. Merce Cunningham, famoso coreógrafo e bailarino norte-americano responsável por uma profunda transformação na linguagem da dança. Trabalhou muitos anos em estreita colaboração com John Cage. S.Harold Rosemberg, eminente critico de arte norte-americano, autor de A tradição do novo (Perspectiva). 9. Filisteus - termo bastante empregado no contexto anglo-saxão da arte moderna, querendo referir-se aos reacionários. O termo vem de empréstimo a Bíblia, onde, na tradição cristã, os filisteus são vistos como "vendidos". 10. Jasper Johns, pintor norte-americano comumente identificado ao grupo da Pop Art. Seus trabalhos revelam um caminho bastante pessoal, mas com claros traços de outros artistas independentes, sobretudo Kurt Schwitters.
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