Tudo começou nos anos 60

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1 Tudo começou nos anos 60 ou as “Efemérides do Efêmero”* Lucio Agra

Com essa pequena pérola trocadilhesca, Haroldo de Campos se referiu ao cinema de Ivan Cardoso – e mais especificamente a um de seus filmes, com o qual colaborou. A minha intenção aqui não é comentar a obra de Haroldo ou Ivan mas simplesmente tomar essa bela idéia para tentarmos juntos nos entender sobre quais aspectos da abstrata noção de efêmero podem emergir do que também abstratamente temos chamado de contemporâneo. Para isso quero evocar mais um imagem. A primeira de algumas, não muitas, porque o tempo é curto e naturalmente o que importa é a discussão que possamos aqui suscitar. Essa imagem – um blog – caiu nas minhas mãos por esses dias, quando eu percorria a lista de links que um amigo meu me enviava dentro de um mail. Esse amigo esteve aqui há alguns dias, vive e trabalha em Cingapura mas viaja o mundo todo. Chama-se Lee Wen e fez uma performance que permanece na memória dos que não a registraram. Pergunto-me se ficou também nos registros que eventualmente foram feitos, mas deixo propositalmente essa pergunta no ar. O blog chama-se “Rooted in the Ephemeral Speak” (http://rootedintheephemeralspeak.wordpress.com/ ) 1, integralmente dedicado à performance. O título “Enraizado no falar efêmero” (poderíamos, talvez, sugerir plantado) é seguido pela frase “para o suporte e desenvolvimento de práticas, discursos, infraestrutura e plateias da arte da performance”. Não há dúvidas do que se trata. Dizer que a arte da performance tem que ver com o efêmero é hoje quase um clichê. Mas isto certamente revela alguma verdade “ancestral” por assim dizer. No intento de compreender o que se passava com um novo gênero de criação artística que surgia no momento mesmo de seu ensaio, Susan Sontag, num texto bastante famoso (SONTAG, [1962]), assinala: “Uma maneira pela qual os Happenings afirmam sua desvinculação do tempo é por sua impermanência deliberada. Um pintor ou escultor que realiza Happenings não faz algo que possa ser adquirido. Não se pode adquirir um Happening; pode-se apenas agüentá-lo. Ele é consumido nas premissas. Isto aparentemente tornaria o Happening uma forma teatral, pois se pode apenas assistir a uma performance teatral, não se pode levá-la para casa. No teatro, entretanto, existe um texto, um "roteiro" completo da encenação que está escrito, pode ser adquirido, lido, e que possui uma existência independente de qualquer encenação. Os Happenings tampouco são teatro, se por teatro entendermos peças. No entanto, não é verdade (como alguns espectadores supõem) que os Happenings sejam improvisados na hora. Eles são cuidadosamente ensaiados por uma semana ou por vários meses — embora o script ou roteiro seja mínimo, em geral não mais que uma página de orientações gerais para a movimentação e a descrição dos materiais. Grande parte do que ocorre na apresentação foi elaborada ou coreografada no ensaio pelos próprios *

Parte desse texto foi apresentado no Seminário “Outras utopias da arte contemporânea”, realizado de 21 a 23 de outubro de 2010 no Tuca (Teatro da PUC-SP) e na Bienal daquele ano. O título refere-se a uma passagem do texto “Glauberhélio Heliglauber” de Haroldo de Campos. A presente versão reúne um outro, anterior, que restava ainda inédito. 1 O site migrou para um novo endereço. Agora está localizado, sob o título Rooted in the Ephemeral Speak em http://www.rootedintheephemeralspeak.com/news.html.


2 participantes; e quando o Happening é realizado por várias noites consecutivas provavelmente mudará bastante de apresentação para apresentação, muito mais que no teatro. Mas embora o mesmo Happening possa ser apresentado várias noites em seguida, não entrará num repertório que possa ser repetido. Uma vez desmantelado após uma determinada apresentação ou uma série de apresentações, jamais será revivido, jamais voltará a ser apresentado. Em parte, isto tem a ver com os materiais deliberadamente ocasionais usados no Happening — papel, engradados de madeira, latas, sacos de aniagem, alimentos, paredes pintadas para a ocasião —, materiais que muitas vezes são literalmente consumidos, ou destruídos, no decorrer da performance.”. A citação poderia ser considerada longa se me interessasse agora chamar a atenção para diferenças e peculiaridades em relação ao teatro, à dança, à pintura, que a autora vai levantando ao longo do texto. Isso é algo que se pode discutir depois, mas agora importa apontar essa espécie de codificação genética da performancce no seu antecessor imediato que torna indispensável sua dimensão de evento único, irrepetível. As razões para esse aspecto se tornar tão notável a partir de determinado momento na História da Arte recente, poderiam ser buscadas, por exemplo, nos diagnósticos de autores que, mais adiante, tentaram descrever o fenômeno conhecido como pós-modernismo. Um deles é Gilles Lipovetsky, autor do famoso Império do Efêmero que conheceu sua versão entre nós em 1989 e que continha o subtítulo “a moda e seu destino nas sociedades modernas”. Este livro, como se sabe, estribava-se no conceito de uma “sociedade moda” de fervorosa aceleração, na qual a caducidade das mercadorias se produzia em velocidades exponenciais. O autor parece não ter mudado de ideia a esse respeito mas, como também se sabe, modificou sua visão do pós para o hipermoderno e a aprofundou, em livros recentes (o mais conhecido, A felicidade paradoxal) nos quais defende que é preciso compreendermos que estamos numa vertigem de consumo sem volta e que essa categoria – a do produto perecível, de prazo de validade curto – é mais do que simplesmente um dado desse mesmo consumo, respondendo, talvez, pela própria essência de seu funcionamento. Parece, por outro lado, que aqui o debate se coloca sob a inspiração de um dos mais recentes desdobramentos da discussão sobre o problema do efêmero e que, provavelmente, se articula com o renovado interesse por artistas como Hélio Oiticica ou Joseph Beuys, nos quais é marcante a questão da perecibilidade do objeto artístico, anunciando sua desimportância como coisa em si e sua abertura para devires outros que compõem, de formas diversas em um e outro (arte ambiental para Hélio ou escultura social para Beuys) a expectativa da construção de uma vivência integralmente artística. Estou me referindo às considerações apontadas pela filósofa e estudiosa da estética Christine Buci-Glucksman que publicou, um pouco antes do livro de Lipovetsky, o seu A razão barroca ( ao que eu saiba, ainda não traduzido por aqui). Devo confessar minha ignorância da maior parte das ideias da autora. Entretanto em entrevista recente, da qual transcrevo um pequeno trecho, ela faz observações sobre esse aspecto do contemporâneo que creio valer a pena assinalar. O entrevistador, após considerações sobre a planetarização dos circuitos artísticos, o crescimento incontido de museus e bienais nos mais diversos recantos do mundo, indaga sobre os deslocamentos que a noção de conhecimento acabou por sofrer, para o “confronto com os limites da cultura ocidental”. Diz ela: “Sim, estou cada vez mais convencida que, para além da concepção estritamente liberal e económica, ou mesmo guerreira, da mundialização, que se traduz


3 igualmente por um mercado da arte omnipresente, será necessário opor, numa linha que encontramos no pensamento pós-colonial de um Appadurai (3), aquilo que já aqui referi como a mundialidade. Quer isso dizer que, no fundo, todo o acesso ao mundial é feito através do local, o que deve ser motivo de reflexão. Nem todas as mundialidades são idênticas. Daí parecer-me que passámos de uma cultura da estabilidade, de uma cultura dos objectos, dos objectos que podem ser trocados, dos objectos captados pelo circuito do valor, para uma cultura dos fluidos, das instabilidades. Falei já de uma «estética do efémero», por exemplo. Temos aí a possibilidade de pensarmos novas formas de troca, de hibridação cultural, de encontro, na perspectiva inversa da do choque de civilizações.” (BUCI-GLUCKSMAN, 2009) A facilidade com que perecem os objetos que nos cercam – ou, se quisermos, a pouca durabilidade dos mesmos – deveria nos chamar a atenção para as implicações disso no terreno das tecnologias, sobretudo aquelas que avançam para cima dos lugares onde não se dá a produção hegemônica dessas mesmas tecnologias. Seria possível alongar a conversa por esse caminho também. Mas me permitam fazer um desvio histórico nesse momento e tentar buscar alguns dados que podem sugerir outras possibilidades.

Noise no Japão Gostaria de ilustrar esse desvio com um registro de uma performance realizada em 1994: o artista executa uma música que só aconteceu neste e somente neste momento. Só não foi totalmente extinta em virtude do documento que se pode encontrar no You Tube (http://www.youtube.com/watch?v=E-DXwxKlE2I). Cheguei a ele após uma dica do Felipe Ribeiro, amigo performer 24 h, músico, cantor e tecladista exímio. Isso se passou ao fim da visita de Lee Wen e Arai Ishii a São Paulo, numa série de encontros de dança que se promovem com certa regularidade, há alguns anos, no Tucarena, uma das salas do TUCA, Teatro da PUC-SP. Ambos vieram a convite do nosso colega Toshi Tanaka. Ishii havia trabalhado com Otomo Yoshihide, único membro de uma “banda” chamada Merzbow. Muito embora convidados para um evento que é normalmente dedicado à dança, Ishii e Wen, além de amigos, são nomes fundamentais da performance no Sudeste asiático2. A busca de Yoshihide no Google me conduziu ao verbete “noise” da Wikipédia. No Japão desenvolveu-se de forma bastante consistente um gênero musical que é via de regra denominado noise. Última fronteira da música, o ruído vem sendo incorporado ao espectro de sons aceitáveis musicalmente desde que os futuristas, no início do século 20, mais especificamente o pintor-músico Luigi Russolo, construiu seus entoadores de ruído. Os sons que Russolo emulou em suas máquinas viriam a fazer parte de nosso barulho cotidiano. O nome-guia dessa tendência musical é Akita . Insere-se dentro de uma cena complexa, cujas origens remontam a experimentos pioneiros, na segunda metade dos

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Com isso não quero desdenhar da possibilidade de trânsito entre linguagens mas, muito ao contrário, assinalar uma aproximação de que é testemunha o próprio Toshi, professor japonês que transita entre o teatro, a dança e a performance com desenvoltura. São conhecidas suas contribuições para as três linguagens e, no Comunicação das Artes do Corpo, ele é um dos artistas/pesquisadores/docentes que mais assinala o que possa significar a expressão que dá nome ao curso


4 anos 60 e início dos 70, levados adiante por grupos proto-punks como os Stooges e outros da cena kraut rock européia (leia-se “rock alemão” dos anos 70) como o Faust. Foi justamente este cenário aquele reportado pelo artista Arai Ishii, antes de iniciar sua performance no evento que mencionei anteriormente. Arai vinha do interior do Japão, interessado em rock progressivo alemão. Ao chegar em Tókio, no início dos anos 80, deparou-se com uma cena punk, na qual já pontificava a figura singular de Otomo Yoshihide. Efeito bumerangue Com o noise japonês produziu-se o conhecido fenômeno “bumerangue” que já foi comentado outras vezes a propósito de novidades produzidas em países periféricos – como o Brasil – e que se tornam influentes no exterior. Movidos por informações importadas, os japoneses acabaram por inverter o circuito e produzir uma música de exportação que os colocou na vanguarda do noise no mundo. Uma rápida olhada no quadro cronológico criado para situar a evolução do noise aponta o início de todo o processo nos anos 60.


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6 Desde 1965 – na verdade desde antes, no final dos anos 50 – é possível rastrear fontes para a música de ruído tanto quanto para a performance. Na realidade os dois fenômenos podem ser considerados co-emergentes pois o Untitled event de John Cage (1952!) é não só, para a história da performance, um dos primeiros happenings de que se tem notícia, como também poderia ser considerado, senão como um precursor do noise, ao menos de outras formas mais gerais de música contemporânea que, a partir daí, evoluíram com modos próprios. É bem verdade que não se deve dar crédito excessivo às cronologias lineares (ou diacronias) desse tipo, pois sempre será provável encontrar eventos anteriores que interessam. Se quisermos, é possível achar tanto noise como performance até mesmo nas sociedades mais arcaicas. Portanto não é isso que me interessa diretamente aqui. O que de fato me chama a atenção é essa recorrência dos anos 60 como início de formas novas das quais a performance é não apenas mais uma representante mas também o lugar de fluxo e transmissão de diversas outras práticas. É na performance que se exercitam novos procedimentos da pintura, da escultura, da música, do teatro, da dança, da poesia, enfim de todas as formas convencionais de criação, aí incluído o cinema. Grande parte das modificações produzidas no debate sobre arte na atualidade têm que ver com a compreensão, um tanto tardia, talvez, de que a década de 60 e as seguintes compõem o panorama no qual se desenvolveram diversas novas formas de expressão, das quais algumas se adensaram em linguagens – no sentido de terem desenvolvido vocabulário próprio – que hoje se tornam história. Isto é, institucionalizam-se no fluxo dos eventos, à medida em que a própria história dos anos 60 para cá se converte não mais em fonte de interrogações mas em um conjunto de fatos datados. Burroughs, o homem e a máquina Os anos 60 são a época em que se desenvolve a literatura de um William Burroughs que pertencia à família fabricante das máquinas de somar, ferramentas indispensáveis ao novo capitalismo de então e que serviriam de primeiro passo em direção aos computadores que hoje inundam o nosso cotidiano. A máquina que administrava a nave Apolo 11, que pousou na Lua, em 69 é hoje o que administra uma calculadora de bolso de 1 real, importada da China. Esta mesma máquina viria a ocupar, em versões mais alargadas, salas inteiras como as de controle da base espacial de Cabo Canaveral3 na Flórida ou o Centro de Processamento de Dados do Cesgranrio, no Rio de Janeiro, onde circulava a informação que estruturava o vestibular unificado. Eram ainda computadores mainframe que administravam as contas dos clientes do Banco Brasileiro de Descontos, o atual Bradesco, no início dos anos 70.

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Em um documentário recente, Cildo Meireles se disse fascinado pela circunstância solitária do homem da equipe que permanceu na nave quando estava na órbita da Lua, enquanto seus companheiros pisavam no solo do satélite


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imagem de um computador mainframe em um centro de processamento de dados

Nas décadas seguintes foi persistente o sonho de que essas máquinas ocupassem espaços menores e não faltaram previsões de que elas viriam a ser do tamanho de aparelhos de televisão – outra invenção, aliás, onipresente no mundo a partir dos anos 60. De fato, a confluência entre a melhor das máquinas de escrever, a elétrica/eletrônica, com o monitor de televisão, acabou por produzir a possível idéia de um computador “portátil”. Alguém poderia se dedicar, nesse contexto, a construir a história da portabilidade na segunda metade do século 20, do mesmo modo que já o fizeram com o controle remoto4. A onipresença do computador, sobretudo quando, a partir dos anos 80, ele se torna doméstico, dá o tom das últimas décadas do século e impulsiona as transformações que agora estamos a avaliar e que nos deixam confusos por representarem modificações profundas em nosso cotidiano, nos nossos modos de pensar, etc. Burroughs abandonou sua família mas não a máquina de escrever que, convertida em um amigável monstrinho, conversa com ele e lhe dá conselhos quando visita a Interzona, isto é, o Oriente Médio, na viagem (nos seus vários sentidos) que descreve em Almoço Nu. As viagens de Burroughs poderiam ser analisadas como textos performativos com plena justeza porque descrevem ações que se multiplicam diante dos olhos do leitor, sugerem situações que mais parecem happenings (situações mais ou menos semelhantes viriam a aparecer nos eventos do assim chamado Acionismo Vienense) e fazem com que o leitor mais atento perceba zonas de aproximação estética entre eventos temporalmente coerentes entre si. Estou propositalmente traçando caminhos de cruzamento entre ambiências artísticas diversas para que possamos pensar nas várias possibilidades que, como disse no início, emergem do esforço para entender, dentro de uma perspectiva histórica mais contemporânea, os eventos dos últimos 50 anos; e, com isso, perceber em que situação se encontra a performance. Teatro psicodélico – performance e rock'n'roll Ora bem, com alguns dos caóticos exercícios que tentei acima, vamos achando a emergência da literatura beat, das modalidades rítmico-musicais pop/populares – a começar pelo rock, em si mesmo uma derivação do rithm'n'blues – e continuando por todos os gêneros mundiais e regionais produzidos com maior ou menor incidência de instrumentos eletro-eletrônicos. Vemos emergirem os instrumentos em si (sintetizadores, guitarras elétricas, percussão eletrônica etc). De outra parte, surge o teatro ao vivo (living theatre) de participação intensa do público e o teatro de imagens (analógicas e digitais). De ambos derivará, num cruzamento curioso, essa espécie nova 4

JACOMY, 2004


8 que é o VJ, aperfeiçoamento do colagista que acabou por se tornar o DJ. Ele é resultado da migração do técnico de cenários que veio do teatro psicodélico para os shows de rock e desses novamente para uma forma autônoma, hoje também conhecida como live cinema. Mashups, circuit bending Primeiro vou me referir às práticas denominadas por esses dois designativos. São nomes difíceis de traduzir, mas refletem práticas que geralmente não são recomendadas pelos fabricantes de objetos vítimas delas. O que se adverte é que elas podem danificar o aparelho. Essa já foi uma ironia do início dos 60, quando Nam June Paik colocou um ímã sobre uma TV. No atual furor colagístico, expressões estranhas como mashup e circuit bending, de difícil definição, ingressam no vocabulário e nas práticas artísticas. Segundo a Wikipédia o mashup é “...um website ou uma aplicação web que usa conteúdo de mais de uma fonte para criar um novo serviço completo.O conteúdo usado em mashups é tipicamente código de terceiros através de uma interface pública ou de uma API. Outros métodos de codificação de conteúdo para mashups incluem Web feeds (exemplo: RSS ou Atom), Javascript e widgets que podem ser entendidas como mini aplicações web, disponíveis para serem incorporadas a outros sites.” o que significa que as comportas estão abertas para colagens as mais diversas, o que tem provocado efeitos até mesmo nas eleições deste ano quando a candidata de última hora ao governo de Brasília tentou impedir a divulgação de um vídeo no qual este recurso, combinado ao scratch, alegadamente prejudicava sua imagem e atentava contra sua integridade moral. Já o circuit bending faz outro tipo de intervenção, dessa vez no hardware: Circuit Bending é a produção propositalmente de curto-circuito em dispositivos eletrônicos, tais como baixa tensão, efeitos de guitarra com bateria, brinquedos para crianças pequenas e sintetizadores digitais para criar novos geradores de instrumentos musicais, visuais e sonoros. Enfatizando a espontaneidade e a aleatoriedade, as técnicas de circuit bending têm sido comumente associadas à música de ruído, apesar de muitos músicos contemporâneos mais convencionais e grupos musicais tenham se tornado conhecidos por experimentar "dobrar" instrumentos. Circuit bending geralmente envolve a desmontagem da máquina, adicionar componentes, como switches e potenciômetros que alteram o circuito. Aqui a colagem se liga à modificação, tópico que vou abordar mais adiante. De qualquer modo, estas formas de intervenção adulteram, profanam (para usar um termo que a filosofia de Agamben recolocou na moda) desviam finalidades e produzem ruído na estabilidade do sistema. Esse é o ambiente ideal de desenvolvimento da performance. Arte ao vivo A denominação inglesa “live art” consegue abarcar o tipo de produção artística que trabalha com um “tempo real”: ação ao vivo – ou performance – é o que mais frequentemente é designado por live art mas também é possível incluir nessa categoria


9 essa espécie de “cinema expandido” ou “extremidade do vídeo” (na feliz expressão de Christine Mello) de que falei acima, ou ainda certa música de improviso (improviso livre) que é um dos subgêneros arrolados no verbete que citei sobre o noise. Pode-se fazer, ao vivo, sem ensaio ou preparo, no encontro com as condições dadas no momento (por isso improviso): música, teatro, cinema, poesia, literatura, dança, pintura, escultura, enfim, qualquer das formas tradicionais. O que parece, portanto, constituir a grande “novidade” trazida pelos anos 60 é a reelaboração das formas tradicionais de arte no seu aspecto de execução, privilegiando o processo em detrimento do produto e gerando situações que se modificam ao sabor dos acontecimentos. Tudo isso foi dito diversas vezes. Revivendo a enciclopédia Mas além disso são também trazidas à tona formas de compreensão que parecem conflitar com esse estado das coisas. A enciclopédia, essa velha estratégia iluminista, é posta a serviço da cartografia dos movimentos contemporâneos, dificilmente compreensíveis pelo mesmo raciocínio classificatório. Parece que, paradoxalmente, na medida mesmo em que geramos novos híbridos de linguagem também produzimos novas chaves de classificação, como as árvores com subdivisões radiciadas presentes na lógica de produção dos softwares de computadores. Performance e palavra O cientista que, nos anos 60, dentre vários outros, colocou a palavra performance no sentido de uma ação desempenhada pelo usuário de uma língua, produziu um corpus teórico que foi vital para o desenvolvimento de futuras formas de linguagem computacional. Esse cientista, Noam Chomsky, um dos maiores ativistas da esquerda dos Estados Unidos, propôs a substituição do conceito Saussuriano de “parole” pelo de performance (cuja tradução costumeira é “desempenho”). Isso abriu caminho para que se pensasse o desempenho do usuário da língua, o que se transmitiu a outras áreas, como a antropologia (Victor Turner) ou os estudos da oralidade (Paul Zumthor). Todos esses autores são tributários da noção de Chomsky e a todos interessou o role play , o desempenho do papel social, a representação do indivíduo no “drama social” (Turner e também Goffman). Sendo discípulo de Turner, Richard Shechner acabou por compreender que o que o teatro tradicionalmente realizava era uma forma de meta-representação do estado de atuação já pressuposto na vida em sociedade. O que o levou a conceber a idéia de “comportamento restaurado” como um ponto do leque que vai do ritual à atuação programada de um teatro clássico e que introduz, na situação especial da performance, o elemento por vezes aparentemente corriqueiro, do cotidiano. Para explicar a situação daqueles artistas que pareciam sem vontade de realizar uma atuação “acabada” Michael Kirby sugeriu uma atuação menor e assim abriu caminho para que se entendesse a possível autonomia da linguagem da performance que depois seria reconhecida por Hans-Thies Lehman, quando diagnostica o teatro em crise no seu momento pós-dramático e concede à performance um lugar de destaque em seu livro. Outros teóricos da área teatral como Erika Fischer-Lichte ou Josette Féral resolveram deixar de ignorar a performance e trataram de incorporá-la como parte de uma nova espécie de teatro, o que também se produziu no cinema (ao incorporar o vídeo que, no entanto manteve-se autônomo até a chegado do digital).


10 O precário, o inacabado e o acaso Nesse ponto podemos notar, de passagem, o avanço de uma estética do precário (que vem, há algum tempo, sendo chamada também de “estética da gambiarra”), um desrecalque do aspecto negativo ligado à noção de despreparo, uma positivação dos aspectos tidos como negativos do improviso. A questão do improviso liga-se à abertura para a obra do acaso radical, isto é, a tendência a compreender como aceitáveis os erros possíveis decorrentes da opção decidida pelo confronto com o imprevisível. A lógica por acumulação, característica das formas de saber consagradas pela episteme ocidental produziu a idéia de uma desejável competência. Entretanto, já na linguística de Chomsky, este que era o outro par da antiga dicotomia langue/parole, o skill (tradução costumeira: “competência”), é precisamente o que passa a ser relativizado como fonte científica para a avaliação segura de um corpus de linguagem. O rigor obstinado – ou ostinato rigore, como gostava de dizer Haroldo de Campos, a partir da matriz italiana – desloca-se da esfera do preparo para a da ação adhoc, para o choque físico com a expectativa assustadora da ação. Isto tem muito que ver com um mundo em mudança tecnológica constante, no qual a previsibilidade do funcionamento das máquinas é muito questionável. Diante de sua iminente falibilidade, as máquinas (que hoje falham mais do que nunca e isso já é visto como parte integral de sua condição) passam a ser os passaportes para a entrada em um mundo de surpresas constantes, como se um potenciômetro mágico produzisse a máxima intensificação da excitante sensação de novidade que sempre nos assola no contemporâneo. Pode-se opor a essas considerações o argumento de que existe mais de um sentido para a palavra improviso. Coisas improvisadas, na acepção de gambiarra, são vistas, geralmente, com um sinal claramente negativo. Por outro lado, o que se chama improviso musical e até mesmo improviso nas artes de modo geral buscaria se colocar como algo diferente. Na base dessa diferença estaria o pressuposto de um conhecimento acumulado, como se disse acima, que resolveria o impasse entre a ação dotada de consciência e o puro ataque do acaso; a ação intencionada seria, somente na superfície, semelhante àquela produzida por qualquer “desavisado”. Suspendo a possibilidade de concordar ou discordar desse último ponto de vista, prosseguindo em outra direção, relativamente próxima. Para tanto, me valho de alguns modos de produção artística bem recentes, alguns até ainda em processo de definição na Wikipédia, esse empreendimento iluminista deslocado, imerso em tempos antiracionalistas. Cinema expandido,psicodelia, video-clipe, narrativas fragmentadas Nas áreas de cinema e vídeo hoje é mais frequente, se falar de áudio-visual, já que houve um embaralhamento das formas e a crise – isto ficou mais claro – se produziu na dramaturgia, derivada do antigo teatro e romance burgueses. O cinema “expandido”, implodido, que os Vjs e produtores de imagens contemporâneos realizam, não conta mais nenhuma história e trata de produzir um questionamento da sociedade por mecanismos diversos da narração tradicional. Esse processo vinha se anunciando de forma mais evidente nos filmes que assumiam um diálogo com a música pop como os de Richard Lester com os Beatles, Easy Rider e inúmeros outros dos anos 60 que não só documentaram as mudanças trazidas pelos hippies e pela psicodelia como abriram formas de narrativa quase sem nexos claros, o que aparece até em um filme chamado Performance, de Nicholas Roeg, o mesmo cineasta que viria a fazer, já nos 80, O homem que caiu na terra com David Bowie. A narrativa tradicional só se recobrou, durante um breve período, nos anos 80,


11 como paródia/homenagem à grande cinematografia hollywoodiana dos anos 30 e 40. O fenômeno passou a ser tratado como citação consciente nos anos 90 ( o remake de A pequena loja dos horrores , os pastiches de Quentin Tarantino, a releitura de Jovem Frankenstein de Mel Brooks ou as homenagens do tipo Ed Wood de Tim Burton ou Matiné de Joe Dante). A explosão do videoclipe contribiu enormemente para modificar o rumo do cinema a partir de então, conferindo ritmo frenético e lógica ao blockbuster de violência tradicional, além de recuperar inúmeros procedimentos da vanguarda cinematográfica dos anos 20. A narração, dessa forma, também sofreu revezes. Nos anos 60 e 70, a narrativa, como fenômeno isolado, ainda sem atingir grandes públicos, fragmentou-se em fórmulas como o nouveau roman (que produziu uma hipertrofia da descrição, esta forma cuja excelência se atingiu no século XIX) e o romance dito “mágico” (uma espécie de readaptação da sistemática surrealista em países lationoamericanos). São exemplos conhecidos destas práticas os romances de Alain Robbe-Grillet onde são gastas muitas páginas para descrever uma borracha ou um pedaço de corda. Ou de escritores como Cortázar, Octavio Paz, Lezama Lima e outros, em cujas “estórias” os absurdos e o non-sense não estão muito distantes da própria realidade vivida em seus países de origem, no caso a Argentina, o México ou Cuba. A emergência dessas novas narrativas deixou claro que havia uma forma tradicional de narrar que tinha que ver com a hegemonia cultural de feitio europeu. É nos anos 60 e 70 que ganham espaço as formas literárias do Japão, dos extremos orientes, da América Central e do Sul, da África (concomitantemente com a independência de vários países deste continente) . E não só a literatura, mas as artes, de modo geral. Novas sociabilidades Novas narrativas também emergiram nos comportamentos cotidianos, pois era natural que uma vez que tomássemos consciência do drama social, também ficassem evidentes os falsos papéis desempenhados. Os discursos que eram objeto de discriminação tais como os dos loucos, das crianças e das mulheres vinham sendo postos em evidência durante o século 20 (MOHOLY-NAGY, [1947]1982). O processo se adensou com a entrada em cena dos homossexuais, dos imigrantes (no caminho da recuperação da discussão sobre o colonialismo) e de outras formas de produção de ações no mundo. Um artista como Joseph Beuys, na sua defesa da democratização radical dos meios e modos da arte, de sua des-elitização radical, contribui para que se perceba um “fora” das formas consagradas, assim como um historiador e sociólogo como Michel Foucault, ao historiar a loucura, as sexualidades, as anormalidades, torna possível perceber como dignas outras presenças antes evitadas. Por não evitar e, ao contrário, agregar essas presenças (incluindo a dos drogados) Gilles Deleuze torna-se célebre por seus cursos em Vincennes num momento de eclosão de novas formas de pedagogia que, após o baque incial, vêm sendo sistematicamente desenvolvidas. O sentido que há hoje, por exemplo, de se falar de uma “pedagogia” da performance, liga-se ao fato de que a noção de disciplina no seu sentido tradicional entrou em completo colapso em grande medida porque as Instituições disciplinares como a Universidade não puderam mais conter o avanço de outras formas de existir e compreender o mundo trazidas principalmente pela produção artística. A expulsão de Beuys da Academia de Düsseldorf em meados dos anos 70 é um fato significativo nesse sentido. Mesmo porque, após um processo, o artista recuperaria sua posição, tornando


12 evidente que o que se passava ali era uma transformação que a Intituição não faria sem um “remexer” muito intenso de si mesma. Parece ao mesmo tempo, e por conta disso, ser muito significativo que haja a reproposição constante, nas artes, da questão do compromisso social. Se, por um lado, produzimos cada vez mais formas artísticas fora dos circuitos consagrados e consagramos novos circuitos, também por outro lado torna-se cada vez mais notável o fato de que não basta simplesmente aludir a uma questão social. A alusão é da categoria do dualismo representacional (eu falo de algo) e na realidade não só os fatos têm cada vez mais eloquência como também a representação dos mesmos está há muito tempo tomada pela voragem de recursos de mídia que temos hoje. Esse fenômeno autorizou até mesmo a substituição da antiga terminologia de “cultura de massas” pela de “cultura das mídias”, como sugeriu, no começo dos anos 90, Lucia Santaella (SANTAELLA, 1996). E, de fato, a midiatização de tudo, inclusive do próprio corpo (ele mesmo, em alguns casos, entendido como uma mídia preliminar, como querem Katz e Greiner) (KATZ e GREINER, 2005), indica uma inclusividade do ambiente atravessado pelas redes a tal ponto que a semântica e a sintaxe das mesmas perpassa tudo o que entendemos como pertencente à época atual. Redes de pensamento, sociedades do controle e camera players Não é mais possível pensar isoladamente, mas em rede. Não é possível mais comunicar sob forma exclusivamente unitária (um veículo) ou analógica. A digitalização se impôs como caminho para a manutenção de conteúdos. Museus, Universidades, escolas, prisões, todos os mecanismos de disciplinarização descritos por Foucault se valem das facilidades do digital o que conduziu Gilles Deleuze ao esforço de produção de um texto (“Post-scritptum sobre as sociedades de controle”) no qual propõe o trânsito da noção de sociedade disciplinar para esta nova denominação e discorre sobre as implicações dessa mudança. Dentro desta ambiência, a performance, como arte do tempo real, reconfigura seu papel. Desde manifestações para câmeras de vigilância – os surveillance camera players (http://www.notbored.org/the-scp.html) – até ações convocadas pela rede – os assim chamados flash mobs; desde as estratégias de rpg produzidas com aparelhos de gps em ruas de cidades até teleperformances, performances com câmeras ao vivo em chats, toda a discussão sobre programas de televisão cuja narrativa, aparentemente suportada pela vida real, é no entanto construída; até as formas mais complexas de reconfiguração do teatro tradicional por intermédio do uso de conexões dedicadas, como o que pesquisa o Global Art Group (GAG) Phila 7 (http://www.gag.art.br/cia_phila_7/) baseado em São Paulo mas, como diz seu próprio nome, com perspectiva transnacional, multiplicam-se as mais diversas formas de intervenção dentro do que um dia se passou a chamar ciberespaço.

Ciberespaço interestelar Esse ambiente foi aos poucos se insinuando no processo de desenvolvimento das telecomunicações, termo que passou a fazer sentido quando a ficção científica dos satélites se tornou realidade. No arco de tempo de cinquenta anos, passamos de um único satélite artificial em órbita da terra até os onze satélites brasileros em órbita hoje em dia, para não falar dos 1430 da Rússia, campeã desse tipo de recurso tecnológico (dados da Wikipédia, acessados em 14 de outubro de 2010 http://en.wikipedia.org/wiki/Satellite#cite_note-21 ). Segundo dados da Nasa, a agência


13 espacial norteamericana, há mais de oito mil objetos artificiais atualmente em órbita da terra, dos quais mais de 2500 são satélites (http://science.nasa.gov/realtime/) Essa instituição mantém um controle em tempo real de satélites que inclui os ativos e os obsoletos. Numa enquete produzida a partir de perguntas pela rede os astrofísicos Paul Butterworth e David Palmer estimaram em torno de 4000 lançamentos desde o início da era espacial e falam de várias centenas das quais a maior parte ainda está ativa. Segundo eles: Houve cerca de 4.000 lançamentos (algumas com várias cargas úteis) e meu palpite é que várias centenas dos satélites envolvidos ainda estão ativos. Nove países lançaram satélites (EUA, Rússia, Japão, China, França, Índia, Israel, Austrália, Reino Unido), bem como consórcios internacionais (ESA, Agência Espacial Europeia, sendo o mais importante deles). Um grande número de países tem bastante dinheiro e podem facilmente adquirir a tecnologia para lançar satélites, mas a escolha para a economia e conveniência para qualquer outro país tem sua carga de lançamento ou a participar nos projectos de espaço de outras nações. A citação acima foi retirada do site http://imagine.gsfc.nasa.gov/docs/ask_astro/answers/980202e.html , do Goddard Space Flight Center e traduzida integralmente pelo Google tradutor. Tele presença, memória, contracultura A pervasividade das telecomunicações impõe uma nova compreensão do que significa estar “ao vivo”. Conforme assinalou por mais de uma vez Renato Cohen em textos produzidos numa época próxima de seu desaparecimento, a presença, categoria que o teatro e a performance prezaram bastante ao longo do século vinte, vem sendo modificada, sofrendo uma expansão, também ela, de suas características tradicionais. Não há menos presença nos meios ditos tecnológicos mas uma outra espécie de presença, não menos impactante em alguns casos. O que também tem levado outros autores a buscar metáforas que expliquem essa nova configuração nas tradições mais ancestrais. Margareth Wertheim estudou os ciberespaços na sua semelhança com os espaços medievais e renascentistas (nesse sentido avançando a partir das pesquisas dos teatros da memória, dos inventos mnemônicos anteriormente descritos por Francis Yates). Beuys evocou tradições xamânicas que retornam na consideração de outros autores que trabalham com a discussão dos meios digitais. Artistas e críticos passam a entender o pensamento pioneiramente estabelecido por Timothy Leary e outros visionários da “contracultura”. A formulação radical do “drop out” reverteu, também por um efeito de bumerangue, ao território de onde tentava fugir. Como notam Deleuze e Guattari na hoje clássica formulação do rizoma, primeiro capítulo do monumental Mil Platôs, toda desterritorialização deve necessariamente supor a reterritorialização, de modo que podemos dizer que, de certa forma, a contracultura se converteu no paradigma central da cultura no contemporâneo. Se não fosse assim, não assistiríamos ao desenvolvimento de idéias como as do mais prestigiado teórico da arte de hoje, Nicolas Bourriaud, cujas noções de Estética Relacional e Pós-Produção são nítidas – e mesmo assumidas – reproposições das formas socio-integrativas da arte dos anos 60 e 70. Quando artistas antes “underground” como Hélio Oiticica e Lygia Clark passam a ter um papel de condução de novas percepções da arte, num contexto de amplificação


14 das geopolíticas artísticas passam a modificar-se também os valores pelos quais se avaliam os dados de legitimação da arte. Hipercapitalismo, consumo, culto da novidade Camadas sobrepostas dessas legitimações disputam entre si o privilégio de uma posição mais atenta ao que possa ser efetivamente revolucionário, numa espécie de recomposição da velha ansiedade pelo novo que continua a perpassar o que Lipovetsky tem chamado de hipercapitalismo. Suas considerações a respeito tem me parecido adequadas porque não escondem o fato de que permanecemos obcecados pela novidade, vivemos ainda no ciclo de necessidade de sua afirmação, da qual a moda é o parâmetro mais claro e cínico. Viemos de um certo desencantamento produzido no fim dos anos 70 e início dos 80, fruto da assimilação, por parte dos teóricos do então novo pós-modernismo, do niilismo em voga naquele momento. Era uma espécie de febre finissecular, o que sempre se repete. Com a queda do Muro de Berlim, o fim da União Soviética, a proliferação da computação no cotidiano, esta impressão se desfez. Produziu-se uma torsão nos discursos do pós, que acabaram se enredando em outras considerações que, para Lipovetsky, podem ser substituídas pelo prefixo hiper. Não sei se essa visão reúne condições para perdurar. Mas pelo menos por enquanto parece fazer sentido. A teimosa performance Pois no fundo a permanência teimosa de uma forma de arte como a performance, sustentada no esforço por produzir a experimentação permanente, o imprevisível fruto do acaso, a ação contínua em tempo real, propositalmente ignorando uma suposta evolução gradativa da sua produção em nome de uma lógica espiralada faz-nos pensar que o desejo de sempre repetir essa experiência do novo (mesmo que, contraditoriamente, seja uma repetição) corresponde a uma espécie de princípio fundamental da arte contemporânea. Não é difícil perceber idas e vindas nesta história de 50 anos da performance. Quando se imaginava que a body art dos anos 70 não seria mais praticada, conforme seus próprios protagonistas muitas vezes dizem, faz-se uma grandiosa retrospectiva de seu nome principal, Marina Abramovic, no MoMA. E por todo o lado artistas que inflingem dores, cortes e mutilações em seus corpos teimam em retornar e produzir instabilidades na cena. Sem contar o dado bastante importante do desenvolvimento, na esteira dos estudos culturais, da atenção ao discurso dos praticantes de modificação corporal. Mod, metamorfose O prefixo mod, aliás, deixou de ser apenas a abreviação de moderno e uma subcultura britânica dos anos 60, para se tornar designador da modificação. Metamorfose do corpo, dos livros, dos jogos. Modgames são uma modalidade artística em franco desenvolvimento, que envolve até mesmo a utilização – ou melhor a transformação, o hacking – de games comuns em formas artísticas interessantes. A questão ainda demanda filtros de precisão na Wikipédia em inglês (http://en.wikipedia.org/wiki/Video_game_art ) mas já há algum tempo se fixam formas como o Machinima (modificação de gráficos 3D e animações) até intervenções artísticas e performances in game. O Second Life vem sendo substancialmente modificado e mantido por iniciativas que se abrigam frequentemente no território das artes. Com a modificação por um lado e a incorporação do efêmero, daquilo que pode ser fruto de transformação permanente, o sonho de toda arte experimental por outro,


15 temos uma cena contemporânea muito favorável à reproposição das diversas formas que a história da performance vem consagrando. É uma espécie de relação com a história que parece simultaneamente prestar-lhe culto e desejar superá-la. É um loop de tempo em que passado e presente se confundem. Questões e hipótese final Será que poderíamos também sugerir que dos anos 60 para diante deu-se uma intensificação do tempo real? Uma incidência maior na questão do tempo presente (ao mesmo tempo em que simultaneamente o passado encontra sucessivos mecanismos de armazenamento) ? Um interesse renovado nos processos de metamorfose, de transformação dos corpos, no caminho de superar o que antes se considerava monstruoso, num desenvolvimento da noção de diferença? Um incremento da presença seja pela proliferação da figura do ídolo pop, cuja história pessoal é reinventada, seja pela virtualização da própria imagem através da comunicação em estados remotos? Uma também intensificação do problema político decorrente de situações como a que Paula Sibilia discute no seu livro O show do eu e que agora se multiplicam nas milhares de web cams a transmitir as bobagens mais diversas pelo mundo afora? Além da intensificação do consumo, outra questão política que, nos países ricos, significa um desenvolvimento voraz de velhas simbologias atadas a produtos que, em si mesmos, não têm qualquer apelo, na profusão de gadgets que inundam nosso cotidiano produzindo a angústia da novidade a cada instante? Ou ainda, dentro da mesma questão, o fato concreto das imensas parcelas de desconectados mundo afora, dos que não participam do banquete globalizante e que representam diferenças fundamentais (Canclini) e mesmo diferenças que apontam para a questão do biopoder (Agamben, Safatle, Pelbart) e para a questão da biodiversidade humana (Laymert G. dos Santos, Eduardo Viveiros de Castro)? O que significa, afinal, nesse contexto, a permanência de uma arte como a da performance, com sua característica de lidar com o acaso, o efêmero, o passageiro, o não-preparado, o metamórfico, a colagem, a justaposição, a estranheza, o esdrúxulo, o meramente factual (assim como também o comportamento raro), o repertório hollywoodiano e o contracultural? Naturalmente estou fazendo perguntas capciosas e que sugerem que desejo induzir uma espécie de resposta. Sim, é verdade. Mas não quero formular essa resposta, creio ser essa uma tarefa de quem há de ter a paciência dessa leitura. Quero apenas sugerir uma hipótese, a de que este arco de tempo no qual me incluo, pois nasci no começo da década de 60, e que busco entender para ver se eu mesmo me entenda nisso tudo, que esse suceder quase infindável de acontecimentos que modificaram o nosso cotidiano em saltos imprevisíveis, produziu uma grande quantidade de novas linguagens, de novas emissões de comunicação artística das quais a performance é mais uma, embora central em relação às demais. Se tudo for efêmero nesse panorama, certamente ela parece não ser.

Referências Bibliográficas BEUYS, Joseph, Cada homem um artista Porto, 7 nós, 2011; Tradução e introdução de Julio do Carmo Gomes. BUCI-GLUCKSMAN, Christine “Diálogo sobre as imagens cristalinas e o pensamento na arte” - entrevista a Jorge Leandro Rosa in revista Arte Capital (http://www.artecapital.net/entrevistas.php?entrevista=104 ) acesso em outubro de 2010.


16 BLAIS, Joline & IPPOLITO, Jon At the edge of art London, Thames & Hudson, 2006 DELEUZE, Gilles “Post-scriptum sobre as sociedades de controle” disponível em http://pt.scribd.com/Prometheoz/d/20571830-GILLES-DELEUZE-POST-SCRIPTUMSOBRE-AS-SOCIEDADES-DE-CONTROLE (último acesso em 16 de junho de 2012) JACOMY, Bruno A era do controle remoto Rio, Jorge Zahar, 2004, trad.: Lucy Magalhães. KATZ, Helena e GREINER, Cristine “Por uma teoria do corpomídia” in GREINER, C. O corpo – pista para estudos indisciplinares SP, Ed. Annablume, 2005. LIPOVETSKY, Gilles A felicidade paradoxal SP, Cia. das Letras, 2007, trad.: Maria Lucia Machado. MELLO, Christine Extremidades do vídeo SP, ed. Senac, 2009. MOHOLY-NAGY, Lázlo “Literature” [1947] in KOSTELANETZ, R. (ed) The avantgarde tradition in literature New York, Prometheus books, 1982 SANTAELLA, Lucia Cultura das Mídias SP, Ed. Experimento, 1996. SONTAG, Susan “Happenings: uma arte de justaposição radical” in Contra a interpretação Porto Alegre, L&PM, 1987. ZUMTHOR, Paul Performance, recepção, leitura SP, Cosac & Naify, 2008, trad de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. WERTHEIM, Margaret Uma história do Espaço de Dante à Internet Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,2001, tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. YATES Frances A. A arte da memória SP, Ed. Unicamp, 2007.Tradução: Flavia Bancher


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