Breve história da Celebridade

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FRED INGLIS

Quer despertem amor ou ódio, as celebridades são assunto incontornável para aqueles que pretendem estudar e entender a contemporaneidade. Por esse motivo, o renomado historiador inglês Fred Inglis decidiu dedicar-se a entender as origens desse conceito, bem como a compreender as mudanças pelas quais foi passando até que chegássemos ao tão falado “culto à celebridade” que vivemos hoje. Breve história da celebridade é um livro para estudiosos do assunto e também para leigos que se interessem em entender um pouco melhor a sociedade em que vivemos.

“Estimulante e enérgico, o livro de Fred Inglis nos mostra que a era das celebridades já vem se desenrolando há muito tempo.”

Celebridade

_Los Angeles Times

“Inglis é capaz de enxergar além do momento e de perguntar não apenas o que significa a cultura da celebridade hoje, mas de onde ela veio.” _Wall Street Journal

na Universidade de Sheffield (Inglaterra). Antes disso foi professor honorário de História da Cultura na Universidade de Warwick (Inglaterra), e fez parte do Departamento de Ciências Sociais no Instituto de Estudos Avançados de Princeton (EUA). Inglis já escreveu mais de 20 livros, dentre eles: The Cruel Peace: Everyday Life in the Cold War,

Breve história da

FRED INGLIS é professor emérito de Estudos Culturais

“De Lord Byron a Eric Clapton, o livro revela o envolvimento da população com o conceito de celebridade ao longo dos últimos séculos.” _New Yorker

People’s Witness: the journalist in modern politics e Culture:

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Celebridade FRED INGLIS

key concepts in the social sciences. Breve história da celebridade é o seu primeiro livro traduzido para o português.

O percurso de Inglis começa com uma história dos sentimentos, para que possamos entender o que desperta a paixão, para o bem ou para o mal, do indivíduo moderno, e como o conceito de notoriedade foi se transmutando no conceito de celebridade. Passamos então pela Londres de Lord Byron, pela Paris dos grandes boulevards e da flânerie, até chegarmos à Nova York das colunas sociais.

ISBN 978-85-89309-44-8

Na terceira parte de sua empreitada, Inglis dedica-se a compreender como o conceito de celebridade se aplica aos grandes ditadores de nossa época, narra o período de ouro das estrelas de Hollywood e chega finalmente ao amplo e conturbado cenário atual da celebridade, com suas estrelas da música, da televisão, dos esportes ou de aparentemente coisa nenhuma. Ao levantar a hipótese de que a celebridade é como um espelho que reflete aquilo que há de pior – e também um pouco do que há de melhor – na história da modernidade, Inglis nos mostra como a rotina dos ricos e famosos não serve apenas como entretenimento para as massas, mas também nos fornece um nexo histórico e, quem sabe, um exemplo do que devemos ou não fazer.

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Celebridade

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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE – SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ I38b Inglis, Fred, 1937

Uma breve história da celebridade / Fred Inglis ; tradução Eneida Vieira Santos, Simone Campos. - Rio de Janeiro :

Versal, 2012. il.

Tradução de: A short history of celebrity

ISBN 978-85-89309-44-8

1. Celebridades - História. 2. Celebridades - Biografia. 3. Fama - Aspectos sociais - História. 4. Fama - Aspectos

psicológicos - História. 5. Civilização moderna - História. I. Título. 12-4834.

CDD: 305.52 CDU: 316.344.32

10.07.12 17.07.12

037076

Copyright @2010 Fred Inglis Título original: A Short History of Celebrity

Coordenação editorial Luiza Vilela

Copidesque Antonio Fernando Borges

Capa, projeto gráfico e diagramação Luciana Gobbo

Impressão Prol Gráfica

Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida sob qualquer forma ou por quaisquer meios, quer eletrônicos ou mecânicos, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer outro sistema de armazenamento ou de recuperação de dados, sem a autorização por escrito da Editora.

Todos os direitos reservados, no Brasil, à Versal Editores Ltda. Rua Jardim Botânico, 674 – sala 315 – Jardim Botânico CEP: 22461-000 – Rio de Janeiro – RJ Tel: (21) 2239-4023 – E-mail: versal@versal.com.br www.versal.com.br

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Breve história da

Celebridade

FRED INGLIS

TRADUÇÃO

Eneida Vieira Santos Simone Campos

1a edição Rio de Janeiro, 2012

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Sumário 06

Apresentação

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PARTE I  FAMA E SENSIBILIDADE

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Capítulo 1

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Capítulo 2

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PARTE II  A ASCENSÃO DA CELEBRIDADE: UMA INVENÇÃO EM TRÊS PARTES

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Capítulo 3

91

Capítulo 4

129 Capítulo 5

A representação da celebridade Uma brevíssima história dos sentimentos

A estrada Londres-Brighton 1760-1920 Paris, alta costura e representação da vida moderna Nova York e Chicago

158 PARTE III  O PASSADO NO PRESENTE

A geografia do reconhecimento Os Grande Ditadores Capítulo 8  As estrelas olham para baixo Capítulo 9  A cada qual segundo sua capacidade Capítulo 10  Histórias que nos contamos sobre nós

161 Capítulo 6  187 Capítulo 7  221 253 287

315 Epílogo:

Valorizando os cidadãos

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AGRADECIMENTOS

Tive a ideia de escrever este livro quando era professor visitante no Institute for the Humanities da Universidade de Connecticut, e sou extremamente grato a seu diretor, Dick Brown, e a meu colega Ross Miller (sobrinho de Arthur Miller), tanto pelo estímulo quanto pelas críticas produtivas. Também quero agradecer especialmente à notável administradora do Institute, JoAnn Waid, por sua gentileza e atenção permanentes durante minha estada. Na época, deixei este livro de lado para trabalhar na minha biografia de R. G. Collingwood, History Man, período que passei venturosamente sob o zelo do meu atual editor na Princeton University Press, Ian Malcolm, que logo se deixou convencer e levou minha proposta a seus colegas, retornando com um contrato. Depois escrevi o livro do início ao fim. Passei uma parte desse período como professor visitante nas belas paisagens do Humanities Research Centre da Universidade Nacional Australiana em Canberra – a cuja diretora, Debjani Ganguly, devo inúmeros agradecimentos pela hospitalidade intelectual. Também debati uma parte destas ideias na Universidade de Massey, Nova Zelândia, a convite de meu velho e querido amigo Joe Grixti, bem como na Universidade de Warwick, graças a dois outros benfeitores, Joe Winston e Jonothan Neelands, cujas boas administrações resultaram no meu cargo de professor honorário em sua universidade. Mas a maior parte deste livro foi escrita em casa, em meu escritório de Somerset, e seu tema amplo, indistinto e multiforme ia e vinha no ritmo da vida doméstica e da extraordinária felicidade do recolhimento intelectual. Richard Howells logo me ofereceu sua ajuda, e mais tarde o 6

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manuscrito foi ao mesmo tempo bem-recebido e melhorado pelos comentários do Dr. Howells e da professora Tara Brabazon. Como de praxe, um original difícil e escrito à mão seguia com regularidade para Carol Marks e retornava pontualmente em perfeita formatação eletrônica. Por fim, a mão do meu falecido amigo e guia, o saudoso Clifford Geertz, é visível em todos os capítulos. Na essência, porém, este livro foi escrito em solidão, o que não deixa de ser um pouco estranho, levando-se em conta seu tema tão urbano. Apesar disso, quero crer que ele representa o esforço de um intelectual de idade avançada, cidadão inglês incorrigível e velho membro do Partido Trabalhista, marido, pai e avô devotado – só para dar nome a alguns terríveis “bois” de nossa sociedade. Mas claro que este também é um bom argumento pelo qual é possível resistir a ficar soltando impropérios sobre como o mundo “está indo para o brejo”, e uma busca em nossas narrativas públicas, da maneira como foram dramatizadas pela celebridade e contadas pela História, atrás de tudo que se deve realmente celebrar, pelo melhor que podemos fazer em nome da nossa aflita felicidade, e por todo tipo de coisa que esteja funcionando bem.

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PARTE I

FAMA E SENSIBILIDADE 9

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CAPÍTULO 1

A representação da celebridade Este é um livro de História. E, na medida em que oferece uma teoria sobre ele mesmo, pode-se dizer que se trata de uma teoria da sedimentação, transformação e recriação da História. Estou me referindo à teoria de que vivemos, de forma tanto voluntária quanto involuntária, as diversas versões de nossos eus e de nossa sociedade que a História depositou em nós. Não há muito o que dizer a esse respeito, a não ser que a História não é uma ampla força indiferenciada que nos assombra com seu H maiúsculo, e sim uma irresistível série de infiltrações semi-invisíveis que correm junto com nosso sangue e oscilam em nossos pensamentos e emoções. À medida que nos conscientizamos dessas invasões, vamos modelando-as na forma de narrativas, sejam elas grandiosas ou triviais. Mas até as narrativas mais grandiloquentes são inventadas e construídas a partir de pedaços de várias experiências desconjuntadas e fatos passados ininteligíveis, reorganizados e recriados com vistas a um presente diferenciado. Para os fins desta simples lição histórica, digamos que a fama é útil na medida em que o conceito serve para destacar as vidas e os estilos de vida que se transformaram com o objetivo de ingressar nas constelações mais expressivas do passado, oferecendo às pessoas muitas estrelas para observar. Quando a isso vem se somar o consenso acadêmico geral de que é possível considerar, para fins práticos, que a modernidade ganhou mais velocidade a partir de meados do século XVIII, então uma história do conceito relativamente novo de celebridade pode nos dizer muita coisa sobre o que deve ser valorizado e desenvolvido, em oposição àquilo que deve ser desprezado e até descartado, na invenção da sociedade moderna que se seguiu. 11

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PARTE I

Fama e Sensibilidade

Minha conclusão mais evidente é a de que o comércio da fama e da celebridade foi concebido ao longo de dois séculos e meio. Não foi inventado pelos iníquos publicitários de uns meros dez anos para cá. Consequentemente, se colocarmos a carga do tempo na discussão e avaliação deste assunto, talvez possamos dar alguma gravidade à fútil e violenta leviandade que hoje em dia se atribui à fama. As páginas seguintes contêm diversos exemplos históricos de trajetórias de vida individuais – que não constituem amostras nem modelos. São episódios, casos particulares. Exemplos instruem – mas eles não comprovam nada.

II A celebridade é reconhecida em todo canto, mas nunca chega a ser plenamente compreendida. Está na boca de todos, algumas vezes por semana. Constitui a pauta de inúmeras revistas nos dois lados do Atlântico, seja na forma lustrosa e reverente de revistas como Hello! e Glamour, seja com a descarada hipocrisia de conto de fadas do National Enquirer e do Sunday Sport. Preenche uma tirinha de quadrinhos no Private Eye (onde mais?) e fornece a todos os jornais diários – sejam eles tabloides ou tradicionais – o conteúdo para as notícias, editoriais, seção de mexericos e, muitas vezes, até artigos de colaboradores. A celebridade é também um daqueles adesivos que, num momento em que as esferas da política, da sociedade civil e da vida doméstica estão cada vez mais fraturadas e isoladas em seus respectivos guetos, servem para estimulá-las a uma reaproximação, ajudando a manter a coesão social e os valores comuns. Apesar disso, em sociedades como a inglesa, que se orgulha de ter reduzido a aura de deferência; de ter aberto seu elitismo aos talentos populares; de fazer conviver a alta arte tradicional com a baixa nova cultura popular segundo um fino igualitarismo, o fato é que é surpreendente constatar tanta gente em transe com o fascínio dessa mesma fama, e com aqueles que, involuntária ou voluntariamente, carregam-na consigo em suas vidas. Uma maneira de perceber essa transformação é prestar atenção na forma como a celebridade vem substituindo o conceito arcaico de renome. O renome, podemos dizer, já foi atribuído a homens de grandes conquistas em meia dúzia de funções proeminentes e claramente definidas. 12

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CAPÍTULO 1

A representação da celebridade

Um jurista, um clérigo, um mercenário aposentado ou um especialista, no século XVI, tinha renome por honrar o cargo que ocupava. Ele poderia ser aclamado nas ruas, mas tal reconhecimento era fruto de suas conquistas – seu aprendizado (no caso de John Donne, por exemplo), suas vitórias (como Otelo é aclamado na peça de teatro) ou seu poder implacável (no caso do Cardeal Wolsey). O renome tingia de honras o cargo, não o indivíduo, e o reconhecimento público não era tanto direcionado ao homem, mas à importância de seus atos para a sociedade. Essa diferença histórica pode ser facilmente estudada através da fama de uma das raríssimas mulheres de renome histórico no período anterior à transformação da celebridade em aspecto da individualização da fama. Dispomos de um registro detalhado das excursões reais de Elizabeth I, que deixam claro seu próprio sentido cerimonial em dedicar o monarca ao povo, e vice-versa. Aquilo que de um lado é afirmado publicamente através do vestuário, adornos e palavras da rainha, e do outro pelo testemunho do povo sobre ele mesmo e sobre suas manifestações pessoais (espetáculos mascarados, faixas, expressões de júbilo, crianças presenteando buquês à rainha), são as obrigações mútuas de um em relação ao outro. Este prólogo pitoresco serve para separar as ideias de honra e renome das de glamour e celebridade. A ascensão da democracia urbana, a expansão bicentenária de seus meios de comunicação e a individualização radical da sensibilidade moderna transformaram a fama numa recompensa muito mais fugaz, fazendo a aclamação pública passar de expressão de devoção para a de celebração.

III Essa diferenciação só pode ser feita em termos históricos. Conforme sugeri, as excursões reais oferecem um exemplo simples da forma como a fama e o poder se expressam e se confirmam através do espetáculo. O adjetivo “espetacular” só aparece associado a algo de encher os olhos, imponente, dramático e ambicioso, no Oxford English Dictionary, em 1901. Desde então, tem sido vagamente ampliado para compreender qualquer evento ou conquista de consequências ou exposição marcantes (“ela é uma pianista espetacular”), seja ele visível ou não. 13

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PARTE I

Fama e Sensibilidade

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CAPÍTULO 2 Uma brevíssima história dos sentimentos

PARTE II

A ASCENSÃO DA CELEBRIDADE Uma invenção em três partes 49

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CAPÍTULO 3

A estrada Londres-Brighton, 1760-1820 Em 1760, Londres era a primeira cidade do mundo conhecido. Com isso, estou querendo dizer que ela não era apenas a mais importante, mas também a primeira a se construir como uma cidade cujos contornos se tornariam identificáveis na modernidade. Londres perdeu a chance (que Paris concedeu a si mesma quando a revolução de 1848 terminou) de reconstruir-se como uma cidade de praças, parques e avenidas largas e arborizadas, após o grande incêndio que a devastou e de acordo com os projetos arquitetônicos de Wren[5]. Mas foi capaz de reconstruir um bom número de áreas abastadas, e tanto seu traçado – de espaços bastante amplos, cada qual com seu status e comércio característicos (carne, peixe, frutas e legumes, docas, dinheiro, roupas, transporte, imprensa, prisões) – quanto sua densa aglomeração e suas construções voltadas para o abarrotamento resultaram em um sucesso sem precedentes. [1] A política do século XVII havia afastado o monarca e a corte do centro da sociedade: a cidade tomou seu lugar, e se transformou em um vasto e formidável mercado, onde rios de dinheiro jorravam de novos empreendimentos imperiais, de guerras novas e bem-sucedidas, de novas tecnologias e de sua vocação industrial. A redução do monarca a chefe de estado constitucional, e as boas-vindas autocongratulatórias, e nada inexpressivas, dadas pelo novo país do Reino Unido à sua liberdade incomparável, tornaram possível a expansão extraordinária da atividade econômica e da capacidade imaginativa da sociedade, que seguiu à ruptura. Há muito [5]

Sir Christopher Wren (1632-1723), importante arquiteto inglês do período. Projetou a Catedral de São Paulo (N. da T.)

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PARTE II

A ascensão da celebridade: uma invenção em três partes

se discute onde situar historicamente o surgimento do capitalismo, mas não se pode questionar a rapidez de sua escalada na Londres da segunda metade do século XVIII. Superpovoada, suja, perigosa, pequena, mundana e modesta, como era de uma forma geral, Londres tornara-se o berço ideal para este início. Não exagero quando digo “perigosa”. Nessa época, a população que apinhava as ruas constituía-se em sua grande parte de salteadores, batedores de carteira, estupradores, prostitutas, loucos e bêbados, restando a uma Londres respeitável dividir com eles a mesma vizinhança. Mas, embora insurgências irrompessem com tanta frequência a ponto de se tornarem rotineiras – insurgências motivadas pelo preço do pão [11], pela construção de rodovias com pedágio, protestos contra o papismo (os motins de Gordon de 1780, quando as tropas mataram 290 pessoas e 25 saqueadores foram executados) [111], e menosprezo pelos ricos e impopulares, apesar do apoio irrestrito a heróis populares, como John Wilkes, o radical, e Charles James Fox, o membro libertário do Parlamento, capazes de convocar uma multidão nas ruas em minutos –, apesar disso a ordem social em si permaneceu estável, apenas tocada retoricamente pela revolução do outro lado do Canal. O perigo da cidade era inseparável de sua vitalidade, e um componente essencial de seu funcionamento. Os antigos proprietários de terra eram os que comandavam o regime em toda a parte, e tinham em Robert Walpole, primeiro-ministro por 21 anos (até 1742), seu sagaz representante no Partido Conservador Tóri, um protetor e, quando necessário, um disciplinador. O poder e a visibilidade desses latifundiários cresceram muito durante todo o século com o aumento vertiginoso do preço da terra e da renda proveniente de aluguéis, e com a legislação que criou hipotecas e lhes possibilitou construir e manter grandes mansões com vasta criadagem tanto na capital quanto no campo. Passaram, então, a comandar os condados locais como califas, recompensando ou subornando todos os que ocupavam cargos públicos nessas localidades, influenciando de maneira ilegal eleições e, no Parlamento, concedendo a si próprios todos os lucros da zona rural, fossem eles royalties provenientes do carvão ou receitas de estradas e canais; chegaram a ponto de legislar em favor de um monopólio dos animais de caça que povoavam suas imensas terras. [1v] 52

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CAPÍTULO 3

A estrada Londres-Brighton 1760-1920

No entanto, como vimos, tinham que seguir as regras do jogo. Muitos demonstravam uma benevolência paternal com seus inquilinos e todos reconheciam a realidade do “inglês livre”, na lei e no sentimento político que compartilhavam com o homem comum. Sua importância para nosso propósito, no entanto, é dupla: eles ditavam o gosto e ensinavam o sentimento correto pela simples conspicuidade de seu exemplo. Fossem quais fossem os novos empreendimentos – teatros, salas de concerto, pleasure gardens, publicações – surgidos na cultura da cidade, eles não poderiam prosperar sem o endosso e o dinheiro dos poderosos. Em segundo lugar, os grandes latifundiários eram por si mesmos eminentes. Para alguém ser reconhecido como digno de nota, era preciso portar-se como aristocrata, imitar o traje, os modos, a prodigalidade da aristocracia e, então, após a imitação, expandir e procurar suplantar seu modo de ser celebrado. Eu diria que só a partir da década de 1960 a classe dominante, tanto na Grã-Bretanha como nos Estados Unidos (nos Estados Unidos, após, 1865, “os 400”), deixaram de ser o espelho do gosto e o modelo dos costumes[6]. Não que à aristocracia (e aos muito ricos) faltassem críticos durante todo o período em discussão – até mesmo o velho tóri Samuel Johnson, perguntou: “Se todo homem que veste uma casaca com galões fosse extirpado, quem sentiria sua falta?” – mas mantiveram a proeminência e perderam a competitividade apenas muito gradualmente. No entanto, ao ser consagrado cavaleiro em 1768, Joshua Reynolds já havia se tornado mais ilustre e mais admirado do que muitos bandidos com título de nobreza, cobertos de dívidas e desprovidos de talento. Reynolds, cuja breve biografia ilustrada está para ser publicada, era uma versão principal de um novo tipo de empreendedor londrino que a mobilidade entre as classes havia tornado possível, por intermédio, de fato, do novo tipo de capital e de seu próprio novo capital. Muitos fizeram fortuna fora dos centros urbanos e trouxeram o dinheiro para a cidade. Os Whitbread começaram como pequenos fazendeiros de Bedfordshire e, três gerações mais tarde, sua descendência produziu 8.000 libras por ano. Os Cookson e os Liddell descobriram as jazidas de carvão [v] de Durham. George Culley, também procedente do norte da Inglaterra, começou trans[6]

Referência a Shakespeare, fala de Ofélia, ato 3, cena 1 de Hamlet (The glass of fashion and the mould of form); tradução de Millôr Fernandes in Shakespeare, William. Hamlet. Porto Alegre: L&PM, 1995. Col. Teatro Completo, vol.3. (N. da T.)

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PARTE III

O passado no presente

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CAPĂ?TULO 6

A geografia do reconhecimento

PARTE III

O PASSADO NO PRESENTE 159

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CAPÍTULO 6

A geografia do reconhecimento: celebridades em férias Como a história popular e os publicitários não se cansam de nos fazer lembrar, a primeira excursão organizada por Thomas Cook foi até um verdadeiro paraíso de comedimento frequentado por famílias respeitáveis. Ele fretou um trem no dia 5 de julho de 1841 que deveria conduzir um grupo heterogêneo de pessoas junto com seus filhos para passar o feriado longe da licenciosidade perigosa da cidade industrial de Leicester, em Loughborough – um pequeno vilarejo a pouco mais de 30 km de distância que não tinha sequer um bar. Em pouco tempo (isto é, por volta de 1869), o negócio havia deslanchado e Thomas Cook já organizava cruzeiros turísticos às pirâmides e era patrocinado pela aristocracia ainda poderosa e por um príncipe de Gales, indiscreto e rechonchudo, que iria se tornar o infeliz Eduardo VII em 1902, após uma espera excessivamente longa. As férias eram outro produto visível das mudanças já mencionadas em Paris, Londres e Nova York entre 1860 e a eclosão da Primeira Guerra Mundial. [1] A classe operária industrial da Grã-Bretanha havia lutado e, de forma muito gradual, conquistado extensões dos períodos de lazer. A chamada Wakes Week[43] acabou sendo exportada das cidades do norte para o restante do país. As férias nas cidades litorâneas de Blackpool, Scarbourough, Margate e Brighton tornaram-se então acessíveis para homens e mulheres que nunca tinham visto o mar. Enquanto isso, a classe média, em sua competição infindável e silenciosa, havia colonizado e reinventado os balneários franceses de [43]

Período em que as indústrias fechavam por uma semana no verão. (N. da T.)

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PARTE III

O passado no presente

Le Touquet e Deauville, de Bournemouth na Inglaterra e Atlantic City nos Estados Unidos para o passatempo venerável de se exibir em seu lazer. O capitalismo da loja de departamentos e o agente de viagens foram rápidos em detectar uma relação nova entre a estrutura de sentimentos da classe média, a margem de sua renda disponível para gastos, o uso de seu tempo livre, juntamente com a escolha de uma geografia acessível. As férias exigem que tempo e dinheiro sejam gastos na busca do local mais adequado para as melhores emoções. A adequação será a combinação do vigor com o luxo, do autodesenvolvimento com a autogratificação. As férias devem proporcionar viagens fáceis e emocionantes; devem ser pontuadas por um aprendizado artístico e histórico, sempre benéfico em doses moderadas, conforme estabelecido por poetas e pintores românticos; e devem também incentivar as pessoas a dispensar o uniforme urbano em favor de trajes mais apropriados para as férias: chapéu panamá, blazers, vestidos de organdi leve com fitas e trajes de marinheiro para as crianças. E, como era de se esperar, todo esse abandono e despreocupação deveriam também provocar algum arrebatamento e servir de incentivo ao sexo. Não é então nenhuma surpresa que que o local mais propício ao aparecimento dessa forma de lazer tenha sido o litoral norte do Mediterrâneo. Aqueles mares, rochas, bosques, colunas e areias, entre os quais ainda podiam ser ouvidos os ecos do classicismo, de Nausícaa, Ícaro, Andrômeda e Hércules, uniam-se para intensificar as imagens de lazer, luxo e liberdade. Foram justamente os poemas e a arquitetura das pequenas cidades-estado daquela região que, há dois milênios e meio atrás, deram origem aos primeiros conceitos de beleza, identidade e aprimoramento humano. Foram essas, segundo a lenda, as razões que atraíram os imperialistas das férias ao Mediterrâneo. Tudo aquilo que podia ser incluído no conceito de férias foi transformado pela alquimia do capitalismo, e por seus mágicos de plantão nas agências de publicidade, num mundo cujas raízes estavam nas Galerias Lafayette e na Selfridges, assim como nos parques e alamedas às margens dos rios nas capitais. Porém o universo do litoral mediterrâneo oferecia uma satisfação que chegava a enjoar, uma aspiração que sempre terminava por desembocar em desapontamento. Trata-se de um mundo materializado de forma imaterial pelo novo valor, o glamour – que podemos classificar, conforme já sugerimos, como a intocável proximidade da luxuosa qualidade de ser objeto de inveja. Depois de Hollywood ter dado início 162

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CAPÍTULO 6

A geografia do reconhecimento

a sua necromancia, a personagem glamorosa deslizava à nossa frente, como se fosse conhecida na intimidade, mas ainda assim inimitável, sem imperfeição física, suave, rápida e brilhante, além do alcance, do outro lado das barreiras, como um raio. A experiência de admirar as celebridades brilhando em seu glamour se adequa com perfeição às férias no Mediterrâneo; não foi por acidente que a Bienal veio a ser realizada em Veneza e o Festival de Cinema em Cannes. As férias são o mundo do espetáculo; o tempo é uma sequência de momentos fugidios registrados na câmera; o prazer é um índice (some-se uma catedral, um afresco, uma celebridade, uma taça de Brunello e o resultado é igual a um dia memorável); o lazer paga dividendos e o bronzeado é pago com as horas passadas ao sol.

II O território de lazer dos ricos que sempre temos conosco[44] se expandiu, como de costume bem antes disso acontecer com as outras classes – até se desdobrarem nos peculiares excessos do consumismo do final do século XX. A partir desse momento, por algum tempo, a combinação da avareza com a riqueza colossal não dará sossego a seus donos. A estranha nova elite internacional que combina glamour com excesso de trabalho e ganância com ascetismo vai figurar como presságio sinistro de uma irresponsabilidade do pós-milênio quando chegarmos às portas do futuro. Nesse meio tempo, a criação do lazer e a competição para comprá-lo e vendê-lo podem ser compreendidas melhor como a história de como sentir, como imaginar, como almejar e como ir a lugares e não fazer nada. Foi nos anos de 1760 que o grande incentivador das artes e da cultura, o alemão Winckelmann, reafirmou o papel da antiguidade como guia e mentora dos jovens e dos acadêmicos sibaritas de meia-idade do Grand Tour e lhes falou sobre da abundância e dos encantos da antiga Itália. Admiravam as pinturas de Claude e Poussin e bebiam copiosamente da fonte de Piería[45]. Nas visitas às escavações, tanto em Pompéia e Herculano quanto em Roma, redescobriam o poder dos poetas antigos, cujos versos [44]

Referencia à passagem bíblica, Mateus 26:11: Os pobres sempre os tendes convosco ... (N. da T.)

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Fonte mitológica do saber relacionado à arte e à ciência. (N. da T.)

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PARTE III

O passado no presente

haviam memorizado com esforço para analisar e interpretar como parte da árdua tarefa da educação das classes dominantes no século XVIII. Atrás deles, por sua vez, estava a solidez do saber do Renascimento construído com os materiais da redescoberta, quando as riquezas intelectuais do catolicismo foram divulgadas por italianos, alemães e, finalmente, pelos holandeses e ingleses – e o novo humanismo surgiu da união do classicismo com o cristianismo. Culturas novas surgem dos resíduos das anteriores. Boswell e Lady Mary Wortley Montagu sem dúvida haviam decorado quase todo o Virgílio, o mesmo não se dizer dos ricos turistas que solenemente visitavam o Lago Averno ao norte de Nápoles, local aonde Virgílio foi conduzido por Enéas para conhecer as sombras do submundo. No entanto, esse pequeno passeio, presságio de um grande piquenique, era um tributo pago àqueles que sabiam de memória os versos dos poetas antigos e seu momento breve de atenção indiferente ao lago escuro era uma forma de reconhecimento da importância do Mediterrâneo em sua formação. O Mediterrâneo significava, e sem dúvida ainda significa, muito mais do que o conjunto de imagens dos autores latinos. Mas foram os poetas que fixaram as primeiras imagens de sua geografia. Devemos a eles, tanto quanto devemos a Poussin, Claude & Cia. companhia, nossa familiaridade com as oliveiras, ciprestes, e vinhedos, mármores brancos e águas tranquilas. Devemos a eles a própria ideia de belvederes, de uma paisagem que se abre de maneira gradual além das ladeiras e bosques que a emolduram na amplitude da distância e nas curvas do horizonte. Devemos a eles até as plantas e perspectivas poéticas das casas de onde admiraremos essas paisagens. Foram os romanos da época de Augusto que inventaram a vila campestre e sua descendente direta, a casa de veraneio, e o tipo mais sofisticado de hotel à beira-mar com seus pátios, sacadas e estufas junto à piscina. Por volta de 1900, a modernidade atravessou o Estreito de Gibraltar e carregou também em sua onda irresistível os destroços de significados que compõem o outro lado do turismo. Até agora, falei (do fundo do coração) da influência nobre que a vida do Mediterrâneo teve sobre nossos sentimentos e valores. Mas logo vieram os outros, os impetuosos, os insaciáveis, os sociáveis, os lascivos, os arrojados e os livres. Como na descrição do narrador levemente pedante do Grande Gatsby, vinham “com a simplicidade de 164

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coração que equivalia ao próprio bilhete de entrada” e “depois se comportavam de acordo com as regras de um parque de diversões”. Até por volta dos anos 1890, a porção masculina da alta burguesia em férias não havia feito distinção entre os lugares onde seriam persistentes na busca da erudição e cultura, e aqueles onde se comportariam mal com as mulheres e o vinho, e mostrariam uma propensão natural para lançar e quebrar objetos. Tintoretto e Cícero, nadar ou cavalgar e apaixonar-se por mulheres casadas – eis uma boa combinação para Byron e Boswell. Mas a tensão resultante das complexas misturas dos valores dos turistas, que conduz nossos heróis a uma saborosa licenciosidade, encontrou, por volta do final do século XIX, um território propício para sua prática. A atração indubitável exercida pela diversão e pelos jogos se fez sentir quando os grandes turistas chegaram a Florença e Nápoles, pois não tinham procurado muito em sua jornada complacente através da Provença. Se tivessem procurado, pouco teriam encontrado para ver: estalagens miseráveis, deprimentes vilas de pescadores, um vislumbre dos romanos em Orange e Saint Remy; nada da magnificência com a qual associavam a Antiguidade e sua reafirmação no Renascimento e que encontrariam nas fontes de Roma. Notícias de suas proezas chegaram a suas casas, é claro, e pais furiosos saldaram as dívidas com as amantes traídas, assumiram os custos de promessas quebradas e suspenderam as mesadas dos filhos pródigos. Porém desvios como esses eram típicos do território – e o território em questão eram as grandes cidades no itinerário dos turistas; Paris em primeiro lugar, sem dúvida, mas principalmente a Itália. O capitalismo em geral, e as ferrovias em particular, trouxeram uma nova modulação ética ao turismo. A classe média respeitável se dirigia ao sul em busca do aprimoramento cultural através do contato criterioso com obras-primas edificantes. Sexo e álcool não eram os objetivos da viagem: se levarmos em conta o que os jovens da burguesia em férias escreveram, podemos concluir que, apesar de acharem que a aventura, no momento certo, podia ser uma experiência libertadora e estimulante, não era difícil satisfazê-los. E essa satisfação não parecia ter uma conotação sensual. As mulheres mais arrojadas – como Mary Kingsley, por exemplo – tinham se atirado à selva para ver (e entender) a vida dos nativos. [11] Porém, para suas contemporâneas que achavam essas viagens uma novidade, a excitação provocada pela arte era suficientemente emocionante. Em 1906, no 165

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romance de Forster Uma janela para o amor, apesar de sua profunda respeitabilidade e um temperamento capaz de, quando as coisas iam mal, “reunir o vasto exército dos incultos que marcham para seu destino através de palavras de ordem”, Lucy Honeychurch se sente atraída pelos apelos do jovem senhor Emerson à liberdade, à espontaneidade e à sábia despreocupação do coração. À medida que sua classe emergia da modesta pensão em Florença – cuja proprietária se expressa em um dialeto misto de italiano e londrino – dava origem, como aconteceu no Bois de Boulogne, a um novo grupo social, nítido produto da burguesia, porém obstinadamente unido contra ela. Com o objetivo de surpreender, começaram a inventar o uniforme do regimento boêmio e a sugerir que a vida é melhor compreendida e melhor vivida em um estado de férias permanentes. Baudelaire, poeta maldito, e seu amigo Gustave Courbet – o artista libertário, impetuoso, radical e nada respeitável – transformaram a rejeição a uma rotina diária de trabalho em um modo de vida. Esse grupo liderou a restauração da agradável licenciosidade de estar longe de casa e, como reação à visão dos respeitáveis vitorianos com relação ao sexo, seus integrantes fizeram um grande alarde da quebra de suas regras. Ser artista e dormir com pessoas com quem não se era casado combinavam muito bem. O contexto da ópera La Bohème, não ter dinheiro suficiente e por isso morar em uma mansarda misto de estúdio, tem origem no mesmo momento de fim de século que a ópera cômica Patience de Gilbert e Sullivan.[46] Mas sempre existem muitas pessoas ansiosas por participar de um pouco de permissividade e quebra de convenções sem a prévia qualificação do talento artístico. O entusiasmo da classe dominante por divertimentos e momentos de prazer quase não foi influenciado pela chegada da burguesia moralista e pode até ter sido reafirmado por ela. Nessa sociedade móvel e voltada para a criação de riqueza, os ricos estavam se tornando não apenas invejáveis como também passíveis de imitação. Muitos romances e histórias moralistas dos anos de 1880 traziam advertências sobre a devassidão dos jovens que desperdiçavam as recém-construídas fortunas dos pais. [46]

Essa ópera satiriza os artistas e poetas do Movimento Estético que defendia que a arte deve transmitir apenas prazer. (N. da T.)

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Portanto, havia uma atração mútua entre a aristocracia vulgar e os artistas. A divisão do trabalho, com suas devidas características, levava os artistas a buscar outros artistas com quem se relacionar. Nesse momento em que o patrono das artes havia desaparecido e o velho gênero imponente de pintura perdia espaço para o impressionismo, os artistas precisavam de marchands, compradores e mercados tanto quanto precisavam de boa luz e alojamentos baratos. Paris era uma cidade cara e chuvosa. O lugar ideal para encontrar a luz e as cores que buscavam, assim como a acomodação muito mais barata, era o sul. Van Gogh escreveu para o irmão Theo ao chegar a Arles: “Uma noite fui caminhar à beira mar ao longo da praia deserta. Não era alegre e nem era triste – era belo. O céu azul profundo estava salpicado de nuvens de um azul mais profundo do que o azul fundamental do cobalto intenso e outras de um azul mais claro, como o branco azulado da Via Láctea”.[111] Van Gogh pintou de amarelo brilhante as luzes do café e pintou os azuis incríveis da meia noite e do meio dia do céu da Provença. E pintou o sol e sua flor, o girassol... Tratava-se de um novo tipo de pintura, familiar e doméstica, que valorizava os pequenos detalhes da ensolarada vida do sul. Cézanne tinha estado ali por muito tempo fazendo a mesma coisa, é claro, e juntos eles estabeleceram um tema local: pinheiros, frutas, cadeiras e figuras humanas distraídas em seu lazer. Isso atraiu outros pintores, como Bonnard, Matisse e Picasso. De forma rápida e involuntária, o sul da França tornou-se o local ideal para a prática do novo jogo de avistar celebridades artísticas. Não foram os artistas que inventaram a Côte d’Azur. (A frase foi cunhada por um panfleto turístico de estilo literário publicado em 1887.) O dinheiro tinha que ser o responsável pela invenção. E efetivamente foi, acrescentando cores diferentes à paixão do Mediterrâneo. Esse foi o momento da invenção do litoral. Os detentores de dinheiro e poder político também se afastaram do gelado cinza parisiense e, da mesma forma que o primeiro ministro de Napoleão III, Ollivier, construíram vilas plinianas onde haveriam de escrever e tornar-se eruditos e sábios ociosos. Por muito tempo Nice havia sido uma anomalia geográfica situada na França, mas o fato é que pertencia à Itália (Garibaldi nasceu lá), e ali não se falava nenhuma das duas línguas. Os portos principais da costa sempre tinham sido Gênova e Marselha, e foi apenas em 1860 que Cavour e Napoleão III 167

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fecharam um acordo. A população votou “sim” no referendo e, depois de ter sido sempre provençal ou italiana, Nice tornou-se francesa. Mais importante nesse contexto é o fato de que, uma vez que a ferrovia chegou de Marselha a Nice em 1864, e um tal de François Blanc, muito bem sucedido proprietário de um cassino no spa alemão de Bad Homburg, azeitou de tal forma as engrenagens do desenvolvimento ferroviário com vultosos empréstimos ao tesouro francês, que os trens de Nice começaram a chegar a Monte Carlo em 1868. Em dois anos, os turistas que vinham a Mônaco já somavam 150 mil, e em 1875 os observadores de celebridades foram agraciados com a presença do príncipe de Gales, o que atraía grandes gastadores, grupos intrépidos e adúlteros refinados. [1v] O enorme sucesso do cassino de Monte Carlo e de sua cópia mais modesta em Nice significava que o dinheiro que jorrava no sul da França tinha um sabor agradavelmente arriscado, incerto e vulgar. O cassino acentuava aquela atmosfera de ousadia que separava a Côte d’Azur do itinerário do Grand Tour e fazia dela um local, não apenas para a prática de excessos, mas também para a prática de estripulias, de um abandono alegre, e de rejeição a qualquer autoridade ou controle – em suma, de todas aquelas expressões fora de moda que servem para nomear as deliciosas imprudências desprovidas de risco, típicas das férias e facilmente apagadas do currículo quando se volta ao trabalho. A mistura já estava bem fermentada por volta de 1890: Monte Carlo para o jogo e as celebridades; Saint-Tropez e Cannes para os artistas; Nice para os hotéis luxuosos e a Promenade des Anglais (a esplêndida beira-mar pontuada de palmeiras, avistada dos dispendiosos hotéis em estilo palaciano, dominada pelo Palais de la Mediterranée); e por último Menton para os hipocondríacos, convalescentes e para os pacientes terminais de tuberculose. Todos esses hotéis explodiram sólidos e gigantescos nas mesmas duas ou três décadas em outros lugares. Mas é claro que, na Côte d’Azur, eram cobertos de deslumbrante estuque branco semelhante a glacê, o que na época ainda era o símbolo definitivo do luxo mediterrâneo e vitoriano inspirado no Pavilhão de Brighton. A Promenade des Anglais é uma longa linha opulenta de bolos de casamento; um com um toque mourisco, outro de puro estilo gótico vitoriano, um pouco mais a leste o enorme cassino de ferro fundido e vidro com suas arcadas, pilares e o palácio propriamente dito que teve sua construção terminada em 1929 como se tivesse sido 168

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copiado de um livro de receitas de palácios, Odeon, Regal e Granada da época. O cassino de Monte Carlo, que o antecedeu em meio século, é um tipo diferente de monstro, com suas colunas, domos, ameias, minaretes, todos os tipos de ornamentos suntuosos em seu exterior e interior e cercado de elaborados jardins tropicais, mas que ainda guardava alguma sobriedade. Era o destino dos altos escalões da sociedade, do rei, de eleitores[47], de príncipes, de condes para deleitarem-se com o tipo de lazer que teriam chamado de “vicioso”. A estadia à beira-mar da nova classe de vida luxuosa, vestida nos novos trajes do glamour, foi bastante curta. Quando começou a Segunda Guerra Mundial e o Mediterrâneo fechou por uma estação, o glamour tinha se tornado a mercadoria clássica desse estranho novo Stand[48] (termo usado por Max Weber), cujos contornos podiam ser vistos em Nice, Monte Carlo, Saint Tropez e Bandol no final dos anos 30, e que hoje em dia ocupa uma parte grande do nosso imaginário. Stand é uma subclasse e seus membros eram o jet set, os semimundanos, os “jovens brilhantes”, “os ricos ociosos”,[49] os escritores da moda, artistas, diretores de cinema, aristocratas, principezinhos insignificantes, banqueiros, playboys, titãs milionários e seus inúmeros seguidores e vivandeiras[50] que se amontoavam na faixa de praia, na esplanada em frente ao mar, na rua principal, na atrofiada encosta que era a Riviera francesa. Scott Fitzgerald os transformou em personagens em Suave é a noite e percebeu, com amargo dissabor, como a classe de Beautiful People[51] estava se tornando fraca e louca, como os ingênuos de extrema boa aparência estavam se tornando insensíveis, e a pirotecnia brilhante ia se apagando rapidamente. Talvez o próprio Fitzgerald fosse bastante habilidoso para fazer prosperar suas metáforas – aquelas que, como fogos de artifício, cascateavam até desaparecer na escuridão. Por outro lado, é estimulante ouvir [47]

Também chamados príncipes eleitores, eram os membros do eleitorado do sagrado Império Romano. (N. da T.) Stand pode ser entendido como um grupo social cujos membros têm status, modo de vida e código de conduta semelhantes. (N. da T.) [48]

[49]

Referências aos títulos de um filme e de um livro conhecidos; respectivamente “Bright Young Things” e “Arcadian Adventures with the Idle Rich”. (N. da T.) [50]

Uso irônico do termo que designava mulheres que acompanhavam as tropas levando mantimentos. (N. da T.) [51]

Pessoas ricas, elegantes, bonitas e ociosas. (N. da T.)

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Martha Gellhorn relatar a Mary Blume sobre a ocasião em que foi até lá de carona para visitar uma colega de colégio em 1930 (quando ainda era um destino de estudantes): “Eu sabia que aquele lugar não prestava – um bando de escroques e malucos, exilados americanos de classe inferior e figuras de cinema como as Dolly Sisters. Fomos ao cassino uma noite e vi aquelas garras cobertas de anéis se aproximando e pensei: graças a deus sou jovem e pobre”. [v] Um relato digno de aplausos. Quando se olha para o vazio da riqueza, para a absurda insignificância da vida vivida na Riviera pelo duque e pela duquesa de Windsor, entre outros sobreviventes do absolutismo e dos antigos regimes, não se pode deixar de pensar que mereceram o que tiveram. Ainda assim, aquele modo de vida de autocelebração e sem objetivo legou algo duradouro – terrível em si, talvez, mas que ainda nos fascina: montou a cultura do glamour, desenhou seu uniforme, escreveu seu programa, planejou os procedimentos de manufatura e pesou seus lucros. Junto com Hollywood, a Côte d’Azur foi um mostruário para divulgar o que viria a ser chamado de show business. De fato, Nice e Cannes e as outras cidades, cálidas e grandiosas como as fachadas de suas mansões, tornaram-se as lentes através das quais era possível ver de perto as estrelas que ditam a moda e fazem girar as engrenagens de sua indústria. A mistura das celebridades de 1930 – a realeza “desempregada”, os diretores e estrelas de cinema, jogadores, artistas e gângsteres, a terrível mistura heterogênea dos ricos internacionais – preparou o terreno para que os grandes eventos do boom de desenvolvimento do pós-guerra fossem institucionalizados. Os principais festivais e shows de moda, as inúmeras mostras das indústrias relacionadas a ela, consagraram a Riviera francesa e italiana como o ponto central de funcionamento das indústrias culturais por volta de 1930. Como se diz hoje, eram a linha de frente do capitalismo e uma presença impossível de ser ignorada na política internacional. As metáforas para esse modo de vida estão à mão: “superficial” e talvez até “mesquinha”. Só nos resta olhar com desprezo para o efeito que todos esses desfiles, sessões de fotografia e multidões se aglomerando para uma rápida olhada na celebridade têm sobre as pessoas de ambos os lados da câmera. Quando Roger Vadim fez em 1975 seu filme absolutamente inócuo sobre a mulher mais linda que já havia visto, E Deus criou a mulher, Brigitte Bardot perdeu todas as chances de viver uma vida feliz, ou mesmo 170

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saudável, e Saint-Tropez perdeu todas as chances de continuar sendo a mais limpa e bem arrumada vila de pescadores da costa. Mas não se trata de ficar aqui ranhetando sobre a deturpação das coisas. Filmes são julgados de forma séria em Cannes, e pinturas em Veneza. De fato, a Côte d’Azur ainda exerce um magnetismo geográfico sobre pintores influenciados pela tradição ainda viva do impressionismo e do modernismo. Afinal, a montanha de Saint Victoire está exatamente como Cézanne a pintou tantas vezes. Matisse se estabeleceu lá na segunda metade de sua vida, prestou pouca atenção aos alemães após 1940, encontrou seu quarto vermelho e seu promontório, pintou os pinheiros que davam vista para o Cap d’Antibes e faleceu silenciosamente na casa simples com persianas descascadas por trás dos portões de ferro fechados. Seus quadros poderosos, enraizados naquela terra antiga, servem para nos lembrar que a arte verdadeira mantém seu poder, da mesma forma que um belo litoral, independente do que os ricos façam com essas duas coisas. Além do mais, as pessoas vão continuar descobrindo lugares novos para criar concepções novas. À medida que as férias, os feriados e o turismo explodiram na nova imensa indústria do lazer do mundo ocidental do pós-guerra, a Côte d’Azur se apresentou como o lugar ideal para experimentar a autoindulgência, o excesso, as proibições, a despreocupação, tudo isso em nome da almejada felicidade e excitação que esse novo tipo de lazer poderia proporcionar.

III Escondida nas duas obras-primas de Scott Fitzgerald, O Grande Gatsby e Suave é a noite, encontra-se – como em todo romance – uma teoria das emoções. Em 1925 Fitzgerald percebeu o que já era bastante conhecido ao norte do estuário de Long Island e nas praias da Baía dos Anjos: a formação de uma nova elite cujo objetivo de lazer era ser visível e exclusiva em sua beleza. Essa elite podia ser observada, mas não era possível juntar-se a ela. É bastante conhecido o fato de que os ricos exerciam sobre Fitzgerald um curioso magnetismo. Hemingway é sempre elogiado pelo famoso diálogo entre os dois: “Os ricos são diferentes de nós”, “Sim, eles têm mais dinheiro” – porém Fitzgerald estava decidido a encontrar e vivenciar a 171

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emocionante alquimia que (ele acreditava) corria nas veias dos imensamente ricos e brilhava com um fluxo radioativo nas mais simples ações do dia-a-dia: compras, jantares, coquetéis, sexo, sol, areia, mar e neve, tudo isso tingido de um pouco de arte. A Riviera no verão e Chamonix no inverno se tornaram os palcos onde os ricos se deixavam observar e reinar sobre os desejos alheios, e como a teoria dramatizada de Fitzgerald sobre o desenvolvimento histórico das emoções sugere, os anos 20 proporcionaram o momento em que as velhas formalidades inglesas deram lugar à nova agitação norte-americana. O poder já estabelecido, que somava classe social, propriedade e discurso, desintegrou-se com a explosão de fluidez, de libertação da velha política monótona, de encantamento público com a juventude, com o sexo e a boa condição física. Não resta dúvida quanto à cumplicidade de Fitzgerald nesse processo. Sua prosa musical disfarça a banalidade e o frescor exagerado de Rosemary Hoyt, a estrela de cinema de seu romance. Empresta à domesticidade prosaica de tomar sol na praia deserta ao longo da Promenade des Anglais e à trivialidade das mesas de jantar iluminadas nos terraços com vista para o Mediterrâneo uma qualidade mágica que serve para esconder a decepção futura e transforma uma experiência invejável em mercadoria. É essa a psicose da publicidade que vem à tona após 1918. Como todas as psicoses, essa é circular e sem trégua: move-se do desejo para a inveja, e desta para a compra, para a decepção, para a raiva ou resignação e de volta para o desejo. Fitzgerald recria o poder da psicose em sua prosa. Mas se escraviza a isso, e sua visão de felicidade e realização está ligada aos folhetos de viagem, aos anúncios semelhantes a pinturas dos cruzeiros Cunard e Pullman, e das etiquetas mágicas nas malas de couro marrom. Mas ele percebe que, daquele momento em diante, a celebridade passará a constituir a elite. Sua mistura heterogênea de artistas, escritores, norte-americanos ricos, estrelas de cinema, pilotos de corrida, mercenários violentos, realeza menor, principezinhos italianos, dinheiro sendo gerado por dinheiro já existente – ao invés de advir do trabalho, da carreira ou da produção – constituem um presságio da futura elite de poder dos dias de C. Wright Mills em 1956 e dos nossos próprios dias. Seus passatempos eram criados e ditados no litoral francês entre 1920 e 1939. O ideal de lazer era um verdadeiro festival de excitação. 172

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“Seja o pequeno Rebelde tordo-da-chuva que sempre foi O olho de furacão de uma poesia climática”

E amigos oportunamente não poéticos, Claire O’Reilly, Mick Joyce no paraíso, sua amada esposa “com o rabo para o alto feito uma gambá” pescando uma camisola na gaveta de baixo. Ele fala e fala: fala conosco em seus poemas, fala obedientemente e bem em toda entrevista, por mais exagerado que seja o número delas: em uma destas entrevistas, seu amigo de longa data, Dennis O’Driscoll, lhe perguntou: “O que a poesia lhe ensinou?” e Heaney, sempre o bom professor, o ideal, responde: “Que há algo como uma verdade e que ela pode ser dita – na cara; que a subjetividade não deve ser escorraçada pela teoria e que vale a pena defendê-la; que a poesia tem virtude por si mesma, no sentido primitivo de possuir uma qualidade de excelência moral e também no sentido de possuir força racional inerente simplesmente por inventá-la, por seu integratis, consonatia e claritas.[xv11]” Conforme você vai vivendo com e através dos poemas, vai surgindo a percepção – vagarosamente, como costuma acontecer tanto na arte quanto na vida – de que eles dramatizaram e compuseram uma biografia. De que estão vividamente populados com amigos (e inimigos) e poetas amigos; que têm um alcance geográfico prodigioso, da Califórnia a Harvard ao Lago Avernus e aos cemitérios onde repousam Czeslaw Milosz e Zbigniew Herbert, e que sempre voltam para a Irlanda, tanto a do norte quanto a do sul. Certa vez, enquanto escrevia Little Gidding, durante o ataque a Londres em 1941, T.S.Eliot falou com um amigo de como era difícil sentir que escrever poesia se justificava como atividade em meio “ao que está acontecendo agora”. Heaney o cita e vai além: “Eis o grande paradoxo da poesia e das artes da imaginação em geral. Face à brutalidade dos massacres históricos, elas são praticamente inúteis. No entanto, elas dão prova de nossa singularidade; garimpam e demarcam o minério do eu que mora na base de toda vida individuada. Em certo sentido, a eficácia da poesia é nula – nunca um verso fez tanques pararem. Em outro sentido, ela é ilimitada. É feito a escrita na areia em frente à qual acusadores e acusados ficam sem fala e renovados.[xv111]” 330

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Qualquer um pode se sentir assim quanto ao seu trabalho. Então, desde que tenham sorte, descobrem que “garimparam e demarcaram o minério do eu”, e se o minério acaba virando areia, não é pior por causa disso. Escrevemos nossas vidas na areia, a maré as apaga. Mas o que escrevemos, escrevemos. Chega de falar sobre celebridades agora. Os poetas e artistas – e, quando conseguimos entendê-los, também os cientistas e matemáticos – são os mais úteis para nós. A celebridade pode nos desencaminhar maciçamente, mas não vejo como podemos nos virar sem ela. Mas tais suportes só nos guiam desde que, em primeiro lugar, tenhamos alguma ideia de onde estamos. Ou seja, a celebridade não nos deve guiar por sua luz inclemente. Muitos dos que ostentam suas vestes luminosas são almas perdidas. Mas são alumiados pela fosforescência do sucesso, e as pessoas primeiro os seguem, depois os esfolam. E esfolam somente, deve-se acrescentar, as almas perdidas, muitas das quais merecem o esfolamento. O que estou querendo dizer é que existem estruturas em meio a todo este tumulto, assim como em todo comportamento humano. Certos tipos de celebridade contam como esfoláveis; os ricos internacionais não estão entre eles, e eles – conforme eu disse tantas vezes nestas páginas – são a pior ameaça que paira sobre o futuro humano (e da natureza), e as celebridades que aparecem em suas manchetes. Muitíssimos ricos, não só em consequência direta de sua monomania, mas também por causa da forma como o dinheiro é ganho atualmente – desconectado da agência de outros e do fabrico de afortunados objetos –, são indiferentes e insolentes para com os deveres e cortesias normais na vida social. A atividade de ganhar dinheiro os afasta das interações de classe, poder e domesticidade que as pessoas vivem. Há algumas páginas, mencionei George Soros como sendo um bom homem de fortuna estupenda. Ele é aquela exceção que etc, etc. Sem dúvida, existem alguns outros. Mas, embora a avareza e a ganância estejam há muito no cânone de pecados mortais, e um grande número de moralistas tenha vituperado contra os malditos ricos, ninguém pode duvidar de que, nas últimas quatro décadas ou coisa assim, eles têm tido as coisas feitas ao seu bel-prazer e sido celebrados por fazê-lo – como se estivessem na Paris de Haussmann e na Nova York dos Astors. Como em toda peroração, procurei ser equilibrado apesar de minha invectiva contra a riqueza irresponsável e a racionalidade separada e a auto331

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exculpação concebidas pela mesma. Ao final provocador de seu livro A Elite do Poder, que é como um subtexto destas páginas, C. Wright Mills declara: “Os homens dos altos círculos não são representativos; sua alta posição não resulta de virtudes morais; seu fabuloso sucesso não está firmemente conectado a aptidões meritórias. Quem ocupa os assentos dos ricos e poderosos é selecionado e formado por meio do poder, das fontes de riqueza, da mecânica da celebridade, que prevalecem em nossa sociedade. Não são homens selecionados e formados por um serviço civil que esteja vinculado ao mundo do conhecimento e da sensibilidade. Não se trata de homens formados por partidos nacionalmente responsáveis que debatem aberta e claramente as questões que esta nação tem confrontado com tão pouca inteligência. Não são homens mantidos responsavelmente sob controle por uma pluralidade de associações voluntárias que conectam públicos debatedores com os pináculos da decisão. Comandantes de poder inigualado durante a história humana, estas pessoas tiveram êxito dentro do sistema norte-americano de irresponsabilidade organizada. [x1x]”

Atualmente, há pouca chance de se travarem debates abertos desse gênero – assim como de que tais controles sobre o poder sejam criados. Igualmente, a ampla e variada diversidade de celebridades tem sua beleza, seus pontos abertos e edificantes, seus sóis brilhantes e clareiras aconchegantes. Não podemos deixar de nos lembrar constantemente que há diversos tipos de celebridades, todas produtos de nossa complicada história, nem de que boa parte delas defende e vive por um futuro habitável, um em que homens e mulheres possam viver vidas honestas, possam fazer as pazes com a natureza, possam conhecer e nomear pelo que são as excelentes e múltiplas expressões de esperança e virtude: confiança e igualdade, das quais pode até surgir o amor do tipo que dura a vida inteira, e talvez algum equivalente amigável, fora da ideia de Deus, da luz da face divina. Quando menino, ganhei de presente um livro que tem formato de álbum, com páginas agradavelmente espessas, intitulado The Boy’s Book of Heroes [O livro de heróis para meninos]. Ele me afetou profundamente: incluía Jack Hobbs e George Mallory, Cecil Rhodes, Michael Faraday, David Livingstone, e, além de todos, Garibaldi. Incluía até mesmo duas mulheres – duas enfermeiras, Edith Cavell e Florence Nightingale. Um livro para meninos britânicos, é claro, mas nada mau para 1946. 332

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Valorizando os cidadãos

Se alguém fosse compilar algo tão anacrônico hoje em dia, será que ele se destacaria com tanta cor, vida e inspiração? Há todos os motivos para se procurar esses tesouros em vidas célebres, e para desdenhar como fracas e imprestáveis, ou duras e cruéis, aquelas que são apenas célebres. Este é, portanto, um livro que procura tornar palpáveis visões e vidas breves, buscando naquelas que obtiveram consideração, aplausos, grandes honrarias, uma espécie de hino ou credo ao qual as pessoas, até mesmo um povo, poderiam aderir, dizendo a si próprias: enquanto tivermos vidas como estas, então haveremos de vencer. Então busquei sentido no passado, e foi assim que saiu este livro. ***

Notas [1]

As palavras de Geertz (1981), já citadas em Negara, p. 135.

[11]

Amelie Oksenberg Rorty, “A Literary Postscript”, na coleção que editou, The Identities of Persons (Berkeley: University of California Press, 1976), pp. 301-23.

[111] [1v]

Ibid., p. 317. Aqui atualizado por Alisdair MacIntyre, em seu After Virtue: A Study in Moral Theory (Londres: Duckworth, 1981).

[v]

Por exemplo, Lorde David Puttnam, Observer, 28 de setembro de 2008.

[v1]

Claude Levi-Strauss, Structural Anthropology (Londres: Allen Lane, 1968), cap. 1. Edição brasileira: Antropologia estrutural, Cosac & Naify, 2008.

[v11]

Harmondsworth: Penguin, 1971. Edição brasileira: Vozes, 1985.

[v111]

Tenho em mente a parábola de Iris Murdoch, The Nice and the Good (Londres: Chatto and Windus, 1969).

[1x]

Norman Mailer, Os exércitos da noite, Record, 1997.

[x]

Rorty, “A Literary Postscript”, p. 318.

[x1]

Estou com Herbert Hart ao fazer esta alegação, em seu paper “Are There Any Natural Rights?”, Philisophical Review 64 (1955), pp. 175 e seguintes.

[x11]

Detalhes de uma autobiografia não publicada que me foi emprestada pela sua filha.

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Impresso em julho de 2012, na Prol Gr谩fica. Os tipos utilizados foram FF Scala Serif e FF Scala Sans Pro. Capa em papel supremo 250g e miolo p贸len bold 70g.

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FRED INGLIS

Quer despertem amor ou ódio, as celebridades são assunto incontornável para aqueles que pretendem estudar e entender a contemporaneidade. Por esse motivo, o renomado historiador inglês Fred Inglis decidiu dedicar-se a entender as origens desse conceito, bem como a compreender as mudanças pelas quais foi passando até que chegássemos ao tão falado “culto à celebridade” que vivemos hoje. Breve história da celebridade é um livro para estudiosos do assunto e também para leigos que se interessem em entender um pouco melhor a sociedade em que vivemos.

“Estimulante e enérgico, o livro de Fred Inglis nos mostra que a era das celebridades já vem se desenrolando há muito tempo.”

Celebridade

_Los Angeles Times

“Inglis é capaz de enxergar além do momento e de perguntar não apenas o que significa a cultura da celebridade hoje, mas de onde ela veio.” _Wall Street Journal

na Universidade de Sheffield (Inglaterra). Antes disso foi professor honorário de História da Cultura na Universidade de Warwick (Inglaterra), e fez parte do Departamento de Ciências Sociais no Instituto de Estudos Avançados de Princeton (EUA). Inglis já escreveu mais de 20 livros, dentre eles: The Cruel Peace: Everyday Life in the Cold War,

Breve história da

FRED INGLIS é professor emérito de Estudos Culturais

“De Lord Byron a Eric Clapton, o livro revela o envolvimento da população com o conceito de celebridade ao longo dos últimos séculos.” _New Yorker

People’s Witness: the journalist in modern politics e Culture:

Breve história da

Celebridade FRED INGLIS

key concepts in the social sciences. Breve história da celebridade é o seu primeiro livro traduzido para o português.

O percurso de Inglis começa com uma história dos sentimentos, para que possamos entender o que desperta a paixão, para o bem ou para o mal, do indivíduo moderno, e como o conceito de notoriedade foi se transmutando no conceito de celebridade. Passamos então pela Londres de Lord Byron, pela Paris dos grandes boulevards e da flânerie, até chegarmos à Nova York das colunas sociais.

ISBN 978-85-89309-44-8

Na terceira parte de sua empreitada, Inglis dedica-se a compreender como o conceito de celebridade se aplica aos grandes ditadores de nossa época, narra o período de ouro das estrelas de Hollywood e chega finalmente ao amplo e conturbado cenário atual da celebridade, com suas estrelas da música, da televisão, dos esportes ou de aparentemente coisa nenhuma. Ao levantar a hipótese de que a celebridade é como um espelho que reflete aquilo que há de pior – e também um pouco do que há de melhor – na história da modernidade, Inglis nos mostra como a rotina dos ricos e famosos não serve apenas como entretenimento para as massas, mas também nos fornece um nexo histórico e, quem sabe, um exemplo do que devemos ou não fazer.

9 788589 309448

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