Edgard Santos e a reinvenção da Bahia

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ANTONIO RISÉRIO

“A obra de Edgard é uma das maiores coisas que a Bahia realizou.

ANTONIO RISÉRIO

Na década de 1950, esta província se viu plena de audácia e rigor. Hoje, hesitamos diante de qualquer projeto mais contemporâneo. Como se qualquer pensamento mais ousado tivesse de se conter Edgard, quem sabe, a Bahia volte a acordar. A arriscar. A fazer o que precisa ser feito. Edgard, com todos os seus erros e todos os seus acertos (muito mais acertos que erros), nunca teve medo da ousadia, nem da grandeza. Pelo contrário: dispôs-se a cultivá-las. E esta é uma lição de que muito precisamos hoje.”

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na conta do delirioso. É uma pena. Voltando a falar da época de

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Copyright © 2013 Antonio Risério Pesquisa iconográfica

Almir Bindilatti Juliana Leonelli Revisão

Vera Rollemberg Capa e projeto gráfico

Luciana Gobbo Assistentes Editoriais

Alice Galeffi Luiza Vilela Thereza Baumgarten

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ R473e Risério, Antônio, 1953Edgar Santos e a reinvenção da Bahia / Antonio Risério. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Versal, 2013. Inclui bibliografia ISBN 978-85-89309-48-6 1. Santos, Edgard. 2. Homens - Brasil - Biografia 3. Homens - Bahia - História 4. Educação - Bahia. I. Título. 13-1397.

CDD: 920.71 CDU: 929-055.1

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antonio risÉrio

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1a edição Rio de Janeiro, 2013

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Edgard Santos (à direita) e Anísio Teixeira: diálogo entre os dois principais educadores baianos do século XX.

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“Minds are like parachutes: they only function when they are open� John Dewar

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O reitor Edgard Santos (ao centro), em Coimbra, durante o evento em que recebeu o título de Doutor Honoris Causa daquela universidade, em 1957. À direita, com flores, sua esposa Carmen. 6

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v  A interrupção permanente  v Luiz Costa Lima

O título desta introdução repete o que eu dera à resenha de livro anterior de Antonio Risério — Avant-garde na Bahia, de 1995. Ela havia sido publicada no desaparecido suplemento do Jornal do Brasil, em 6 de janeiro de 1996. Fazê-lo seria prova de desleixo, se a designação não fosse incisivamente válida para os dois casos: para a recuperação do espírito vanguardista em Salvador de décadas passadas e, no presente livro, para a evocação da figura que então o possibilitara: Edgard Santos (1894-1962). Retorno ao mesmo título por uma razão mais grave: entre nós, a quebra da rotina satisfeita tem sido sempre excepcional. Sobretudo em se tratando de questão de cunho intelectual. Por isso o título adequado tanto poderia ser o que preferi quanto “A novidade intermitente”. Ora, um livro que aborda o que fez Edgard Santos não se confunde com uma biografia, pois, sem que ele alimentasse propósitos memorialistas, pouco ou nada referindo de sua mocidade, sua vida teve como ápice os quinze anos em que foi reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Sem que ele próprio pudesse então sabê-lo, sua reticência em relação a seu passado prenuncia que seu nome se confundiria com o período de 1946 a 1961. Como não escrevo para quem já tenha lido Edgard Santos e a reinvenção da Bahia, devo explicar o que venho de dizer. 9

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Estaria querendo afirmar que a figura evocada não caberia no mito de Narciso? Não, não é isso. Se Narciso morrera encantado com sua própria imagem, a propósito do retratado, Risério nos faz saber que era um homem vaidoso, e vaidoso com sua própria aparência. Por que, então, optamos por frases que se opõem? Se as mantemos não é para surpreender o leitor, senão para prepará-lo para entrar em contato com uma figura de muitas faces. Sinteticamente, as muitas faces de Edgard Santos cabem em frases curtas: eis alguém pertencente à elite socioeconômica baiana que se comporta como um agente contrário à tradição. Ou ainda: eis um inovador cujas raízes são conservadoras. Ou seja, suas muitas frentes não compõem uma harmonia, senão que, chocando-se entre si, encaminham para a dissonância. Por incrível que pareça, não há nada de arbitrário e contingente no fato de que, sem maiores ligações com a música, tenha protegido o compositor e regente Hans Joachim Koellreuter (1915-2005), aluno de Paul Hindemith e introdutor do atonalismo no Brasil. Antagônico ao folclorismo nacionalista do mitificado Mário de Andrade, Koellreuter foi convidado por Edgard Santos para dirigir os Seminários Livres de Música na Bahia e, depois, para dirigir a Escola de Música da UFBA. Ao dizermos que a decisão de Edgard Santos nada tinha de contingente, não estamos insinuando que houvesse uma relação entre suas contradições e seu favorecimento da música contemporânea. Se o fizéssemos, estaríamos dando um excelente exemplo do que se chama lógica a posteriori — depois que se apanhou a borboleta, é fácil explicar seu leve voo. Explicação de um início propositalmente abrupto, para não ficarmos nas designações convencionais — personalidade polifacética, figura contraditória, convencionalidade autoritária contudo favorecedora do inédito –, digamos mais diretamente: tal como Risério nos apresenta, Edgard Santos é alguém dotado de um perfil atonal, alguém cuja tessitura de vida não remete a um tom central e convergente. Após ter se preparado para continuar a tradição jurídica da família, resolve trocar o Direito pela Medicina — segundo o filho Roberto Santos, por ter assistido ao canhoneio do exército nacional contra o palácio do governo baiano em 1912. O episódio o teria feito compreender que “o Direito se tornara matéria degradada” (apud RISÉRIO, p.37). Formado, é o orador da turma da Faculdade de Medicina da Bahia de 1917 e será então como médico que se tornará um profissional de renome. 10

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Até aí não teríamos mais do que a súmula de alguém que conhecera o êxito, e que, como seu memorialista bem recorda, sem haver conhecido dificuldades financeiras, ganhara bastante por seu mérito profissional e, reconhecido por seus colegas, se tornara catedrático da Faculdade de Medicina. Alguém, portanto, que traria orgulho à sua família, sem que esse apreço fosse suficiente para que sobre ele se escrevesse. É a partir de seu êxito profissional que seu trajeto começará a tomar outra direção. Na verdade, ao assumir, em 1936, a direção da Faculdade de Medicina, ainda não havia indício evidente daquilo em que se tornará. Por certo, ser catedrático da Faculdade de Medicina era — e continua sendo — um fator importante para o reconhecimento de um cirurgião. Por certo ainda, sem este degrau teria sido mais difícil que Edgard Santos chegasse à posição de reitor. Na Bahia dos anos 1930, torna-se amigo do interventor Juracy Magalhães, designado por Vargas, e constrói relações políticas que serão decisivas para o seu êxito administrativo. Mas só em 1946 terá início o período áureo das iniciativas do retratado. Pode-se mesmo acrescentar que serão seus feitos durante os 15 anos em que dirigiu a UFBA (1946-1961) os responsáveis para que seu nome se inscreva na história acidentada, e raramente brilhante, da universidade no Brasil. Como não faria sentido distinguir seus feitos enquanto diretor da Faculdade de Medicina do que empreenderá a partir de 1946, diferenciemos suas iniciativas na área científica das que dirão respeito ao campo artístico-cultural. Destacam-se, na primeira, a implantação de dois grandes hospitais, o Hospital Getúlio Vargas e o das Clínicas, hoje chamado Hospital Universitário Professor Edgard Santos, que vieram responder à mais elementar das carências da população da cidade do Salvador. Já no âmbito da Universidade, cria as escolas de Nutrição e de Odontologia. São também de caráter técnico-científico as iniciativas que alcançam os campos da Administração, da Economia, da Geologia, da Física e da Matemática, sobre os quais ainda voltaremos. Antes de tratarmos do segundo setor, cumpre assinalar: a abertura do leque das áreas mencionadas deixa claro como a questão do ensino — e não me refiro somente ao ensino superior — não estivera entre as prioridades de nossos dirigentes políticos. (E, ao dizer que não estivera, não estou insinuando que tenha, desde então, passado a estar. Por isso mesmo, a figura de que tratamos cabe no que chamamos de “interrupção permanente”, ou 11

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seja, por mais que seu exemplo seja hoje unanimemente louvado, não deixa por isso de permanecer uma exceção). A pluralidade de cursos então aberta dependeu não só da vontade do reitor senão que de sua capacidade de articulação. Articulação, de imediato, com a Petrobrás, constituída em 1953, na esteira da descoberta do petróleo no Recôncavo baiano no final dos anos trinta. Mas a possibilidade de romper com a dependência econômica estrangeira no setor, sobretudo norte-americana, estava condicionada à formação de quadros técnicos. A essa necessidade corresponde, de imediato, o estabelecimento da Escola de Administração (1959). Acordo da Universidade com a Fundação Ford permitiu que os diplomados pela nova Escola dispusessem de bolsas para cursos de pós-graduação na Michigan State University e na University of Southern California. Mas, não pensando em termos de um pragmatismo imediatista, a administração de Edgard Santos tem ainda a ideia de fazer com que a Escola de Geologia passe a ser oferecida em nível de graduação. Curiosamente, por fator que o memorialista não tem como explicar, a iniciativa não conta com o apoio do Ministério da Educação, e a própria Petrobrás hesita em favorecê-la. O curso em pauta foi estabelecido à revelia do Ministério, que só previa a realização de curso semelhante em Ouro Preto, São Paulo, Recife e Rio Grande do Sul. O biógrafo não encontra elementos para explicar a exclusão do Estado em que precisamente se descobrira a primeira área petrolífera do país. Isso é tanto mais estranho porque a oposição do Ministério se dava na etapa dinâmica da vida política do país, ou seja, no período presidencial de Juscelino Kubistchek (1956-1961). Vale então repetir a fonte utilizada por Antonio Risério: “Com recursos próprios e aproveitando-se da estrutura criada pela Petrobrás e do interesse da empresa em capacitar o maior número possível de profissionais, [o reitor] bancou sozinho a criação e implantação da Escola de Geologia da UFBA” (apud RISÉRIO, p.268). Para encerrarmos o levantamento da ampliação técnico-científica, acrescente-se a criação do Instituto de Matemática e Física. A respeito, ainda vale uma reflexão particularizada: se mesmo um instituto que respondia a necessidades técnico-industriais imediatas encontrava dificuldades, até em plano federal, que poderia ser esperado de um instituto dedicado a ciências teóricas? (Não esqueçamos que a primazia concedida à ciência confunde-se com seu aspecto passível de desenvolvimento tecnológico, o quanto possível imediato). Daí que os obstáculos então enfrentados partissem das dire12

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ções das escolas tradicionais. Ora, nosso tripé tradicional, Direito, Medicina, Engenharia, tinha precisamente o alvo técnico imediato, contrariado pelo Instituto de Matemática e Física. Daí, como Risério não deixa de observar, o referido instituto tem de defender sua permanência, mesmo depois que os adversários da política inovadora de Edgard Santos conseguem, em 1961, que ele não seja reconduzido ao posto de reitor. Pois cabe reiterar: a força de expansão de que a UFBA estivera dotada, sobretudo durante os anos cinquenta, dependera do desempenho incomum de um certo agente, ao passo que a resistência que conheceu se iniciava com a força de inércia das escolas tradicionais. Se, durante a década referida, a carga inercial não conseguira vencer, fora por efeito da combinação de força de iniciativa e capacidade de aliança política de Edgard Santos. Até o momento, a exposição se ateve à área onde a atuação de uma Reitoria inovadora era mais esperável. Tratá-la, mesmo que tenhamos deixado por último, de um campo em que a ênfase no científico já se desligava de sua ponta imediatamente tecnológica, seria, no entanto, manter uma visão parcial e, portanto, deformadora, do que caracterizara este instante excepcional na história da UFBA. Cabe então, agora, apontar para o mais inesperado: as iniciativas de Edgard Santos no campo artístico-cultural. No início desta introdução, já havíamos referido à presença em Salvador do músico alemão Hans Joachim Koellreuter, que, exilado pelo nazismo, viria trazer para os trópicos os acentos da composição musical contemporânea. Será ele então acompanhado por dois outros músicos, o suíço Ernst Widmer e o tcheco Anton Walter Smetak, responsáveis pela permanência do ensino da música contemporânea, mesmo depois do afastamento de Edgard Santos. Se, como dizíamos no princípio deste texto, já era inesperado que a criação de uma Escola de Música, insuflada por um espírito de vanguarda, fosse feita por iniciativa de alguém sem contato algum com a música, que então dizer que fosse realizada dentro do ambiente de “modernização” que vigorava no país, desde a década de 1930? Deixemos a questão para ser tratada adiante, quando explicaremos o que se entendia (e entende!) por “modernização”. No momento, apenas se ressalte que a criação dos Seminários Livres de Música, em outubro de 1954, não foi menos surpreendente que o acolhimento do fotógrafo e etnólogo autodidata Pierre Verger (1902-1996). Nem é menos supreendente o acolhimento que oferece à arquiteta e designer italiana Lina Bo Bardi (1914-1992). 13

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Juntamente com seu marido, Pietro Maria Bardi (1900-1999), ensaísta e historiador da arte, criador e diretor do Museu de Arte de São Paulo, Bo Bardi emigrara para o Brasil em 1946. O papel que seu marido desempenhou em São Paulo foi semelhante ao que ela cumpriu em Salvador, onde dirigiu o Museu de Arte Moderna da Bahia e realizou o projeto de recuperação do Solar do Unhão. Sua presença em Salvador também se deveu à capacidade de reconhecimento e absorção de Edgard Santos. No mesmo sentido, foi criada a Escola de Dança, a primeira de formação universitária do Brasil, com a absorção da polonesa Yanka Rudzka, de formação alemã, assim como de um segundo nome que se associará àquela Escola, o alemão Rolf Gelewski. Assinale-se ainda a criação da Escola de Teatro, dirigida por Martim Gonçalves, o Museu de Arte Sacra e o Centro de Estudos Afro-Orientais, dirigido pelo filólogo e pensador português Agostinho da Silva, que escapava da perseguição salazarista. E, então, aponta a pergunta que roçava a ponta dos dedos, enquanto condensava as informações acima: como se explicaria a largueza de visão de um médico-cirurgião, sem outra formação além da especializada, que não só convertia uma Universidade rotineira em um centro acadêmico dinâmico e atento quer às necessidades técnico-científicas da região e do país, quer à conservação do que havia de mais precioso na história cultural de seu Estado — as obras do barroco reunidas no Museu de Are Sacra —, quer ao legado da cultura negra (os trabalhos de restauração e sistematização de Pierre Verger e Agostinho da Silva), quer ainda às diversas formas vanguardistas da arte? O próprio Risério recua diante da tentativa de explicá-lo. Chamá-lo, como já foi feito, de príncipe renascentista ou de déspota esclarecido são metáforas pobres. É a própria plasticidade intelectual de Edgard Santos que deve ser enfatizada. Fazê-lo, não significa explicá-lo. O maker é tautologicamente aquele que faz. Edgard Santos é simplesmente um maker. Mas, se renunciamos a explicar sua múltipla atuação, procuremos ao menos situá-lo em seu próprio tempo. Não será preciso insistir em que um homem de tal capacidade empreendedora havia de despertar ciúmes e rivalidades. Enquanto esses partem dos setores tradicionais da sociedade baiana, não há problema em entendê-lo. Um agente de tal envergadura provocaria reações equivalentes em qualquer 14

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outro lugar. Mas, para entender a resistência que Edgard Santos sofreu, será preciso saber do país que foi o seu e da geração a que pertenceu. Risério assinala que seu biografado trazia consigo o espírito da geração que se tornara dominante com a Revolução de 1930. Com efeito, tanto entre os conservadores como entre seus progressistas, havia uma palavra-chave para a juventude de então: modernização. Mas o que se entendia pelo termo tinha um sentido ambíguo, conquanto não se entendesse como tal: pôr-se em dia, isto é, acompanhar o desenvolvimento tecnológico que os países metropolitanos já conheciam, assim como se opor às áreas então consideradas secundárias e ornamentais. Mesmo sem a concordância de seus membros, o termo era ambíguo porque a própria ênfase no tecnológico era compreendida de modo literal: tecnológico era o útil, a atuação que respondia a um propósito estritamente pragmático. Em consequência, quer o aspecto teórico das ciências — veja-se a resistência ao Instituto de Matemática e Física —, quer o campo das artes eram igualmente vistos com desprezo e hostilidade. Ora, se a plasticidade de Edgard Santos se caracterizava por sua extrema amplitude, que podia ser esperado além da reação à sua conduta? O que de imediato não poderia ser inferido era que tal reação fosse além dos que tradicionalmente se lhe opunham. É aqui que se torna indispensável o conhecimento do que se passa no país. Recorde-se, então, o que declara uma das fontes utilizadas por Risério: “[…] sua predileção pelas novas escolas provocava ciúmes das antigas e protestos do alunado politizado, que cobrava uma Universidade mais instrumentadora e menos contemplativa” (apud RISÉRIO, p.210, grifo meu). Não é arbitrariamente que se diz que o ânimo que move os anos trinta tipificará o Brasil contemporâneo. No caso específico, é em nome da mesma modernização que se move tanto a direita que promoverá o golpe de 1964, quanto a esquerda, na Bahia referida, representada pela liderança estudantil. Mesmo por ser assim englobante, a palavra-chave para a geração de Edgard Santos estabelecia uma linha dura contra seu comportamento, que compreendia tanto os docentes contrariados, quanto os estudantes que, em breve, saberão os efeitos que sofrerão por conta de ideais equivocados. Conforme a vertente esquerdista do movimento estudantil, desde o núcleo ligado à Igreja progressista, origem do que será chamado de AP (Ação Progressista), até o braço do Partido Comunista, “Edgard desperdiçava dinheiro com coisas supérfluas ou secundárias — em vez de se concentrar na consolidação de uma Universidade de caráter mais técnico e científico” (RISÉRIO, p.359). 15

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Para quem o que se acaba de escrever possa parecer intrigante, acrescente-se que a aliança “modernizante” não era exclusividade baiana. É por conta de sua expansão pelo país que manifestação “vermelha” mais grave, sucedida na vizinha cidade do Recife, faria com que o presidente Jânio Quadros, ao receber, em 1961, a lista tríplice de nomes indicados para assumir o reitorado que então se renovava na Bahia, teme que a resistência ao nome de Edgard Santos provocasse um novo clima de insurreição. Por isso, contra o esperado e por ele próprio prometido, o pretere. Chegava ao fim a interrupção da rotina satisfeita. Ao chegar a notícia a Salvador, as lideranças estudantis se regozijam. Não podiam então saber que haviam contribuído para que o reitor escolhido, por eles preferido, estaria entre os primeiros a apoiar o golpe militar de 1964. A ambiguidade da “modernização” desejada tirava a máscara e mostrava seu verdadeiro sentido. Enquanto Edgard Santos volta para casa e sente que não tem mais o que fazer, a ditadura dá seus passos “modernizantes”. No campo da Universidade, seus efeitos são imediatos. O Ato Institucional nº 1, de outubro de 1964, oferece a primeira lista de cassados. A Universidade de Brasília, fundada há poucos anos, torna-se, como dela dirá um de seus historiadores, Roberto Salmeron, uma “universidade interrompida”. Em 1965, ante uma segunda limpeza dos docentes “subversivos”, 221 colegas se demitem. De um ponto de vista mais geral, o Conselho Federal de Educação intervém na própria composição do curso secundário e, em lugar dos rudimentos de ciências sociais, institui uma cadeira chamada “estudos sociais” e, contra o ensino da língua portuguesa autônomo do ensino de literatura, funde as duas em uma matéria chamada “expressão e comunicação”. Por mais decisivo que o golpe de 1964 tenha concluído por um rumo à direita a abertura que se iniciara em 1930, seria injusto declarar que só então a “modernização” mostrara seu verdadeiro perfil. Antes do golpe militar, a modernização já se manifestara pela retirada do estudo de filosofia, no secundário, e pela progressiva eliminação das línguas clássicas (o grego e o latim). De todo modo, a virada à direita, que do Brasil se estenderá a toda a América Latina, não se consolida senão a partir de 1964. Em suma, a sonhada “modernização” estava alcançada. E o “filho da oligarquia baiana [que] pretendeu transformá-la” (RISÉRIO, p.141) não tinha mais função. Morrerá no ano seguinte à sua não recondução (1962). E sua terra poderá voltar ao clima de sonolência que ele ousara interromper. Pois, 16

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se Edgard Santos fora, como se disse, ainda no começo, uma figura paradoxal — autoritário mas inovador, estimulante das manifestações de vanguarda mas sem ter constituído uma escola de cinema e que, ademais, acirrara os ânimos da juventude contra si por se opor à autonomização de uma Escola de Arquitetura, desagregada da de Belas Artes —, suas contradições nele assumiam proporções gigantescas, ou seja, que, ultrapassando as fronteiras de seu Estado e de sua região, englobavam todo o país. A que nos referimos? Ao fato de que o Brasil é um país em que praticamente tudo está para ser feito, ao mesmo tempo em que, como dizia Smetak, e seu amigo Risério cita, é a “terra das impossibilidades possíveis” (apud RISÉRIO, p.188). O exemplo de Edgard Santos nos faz entender o paradoxo do país de uma maneira de algum modo trágica: é certo que aqui o impossível umas tantas vezes se torna possível. Mas, para que assim suceda, é preciso que se dê de raro em raro, para que logo a mediocridade satisfeita volte a seu leito normal.

Rio de Janeiro, fevereiro de 2013

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  Edgard Santos com um grupo de bandeirantes

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Sumário  v

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Nota do autor  023 1. Sob o signo da cidade  031 2. O círculo do poder  049 3. Viagens múltiplas  067 4. A caminho da universidade  087 5. Cidade, universidade, cidade  111 6. O pensamento de Edgard Santos  135 7. Edgard e a educação  153 8. A aposta na cultura  175 9. A aposta na vanguarda  217 10. Um salto na saúde  233 11. A dimensão técnica e científica  255 12. Laços lusos  279 13. Em torno do CEAO  309 14. Com os estudantes  327 15. A oposição estudantil  351 16. Entre trevas e tiros  385 17. Os últimos dias  411 18. O legado de Edgard  429 Apêndices  459 Trajetória Referências iconográficas Alguma bibliografia

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v  Nota do autor  v

Não me lembro, agora, quem disse que um livro deve esclarecer, logo em seu ponto de partida, do que vai tratar e de como as coisas nele serão tratadas. Acho que foi John Summerson, um historiador inglês da arquitetura, mas pouco importa. Não creio que tal esclarecimento seja sempre necessário. Muitas vezes, nem sequer é possível. Guimarães Rosa, aliás, chegou mesmo a escrever: “Veja-se, vezes, prefácio como todos gratuito”. Mas como este é um livro modesto, de calibre curto, vou seguir o conselho de Summerson. Ainda que pelo avesso, dizendo o que o livro não é. Não se trata, aqui, de uma biografia do reitor Edgard Santos. Nem de uma história da Universidade da Bahia. Compõe-se o volume, na verdade, de uma série de escritos sobre Edgard e a sua obra. Escritos relativamente autônomos, mas que não deixam de formar um conjunto. Escritos que, de preferência, devem ser lidos na ordem em que estão aqui dispostos. De qualquer modo, todo livro tem sua própria história. A deste começou com um telefonema do editor José Enrique Barreiro, me perguntando se eu toparia escrever uma biografia de Edgard Santos, o criador da Universidade da Bahia. Respondi afirmativamente. Claro que toparia. Aquele período admirável, pioneiro, culturalmente denso e subversivo da Universidade baiana, celebrado por Gilberto Freyre, fora já tema de minha dissertação de 23

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mestrado em sociologia (com especialização em antropologia), publicada em livro, pelo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, com o título Avant-Garde na Bahia. Dissertação de que muito me servi (inclusive, com um considerável número de citações e paráfrases), por sinal, na composição, agora, deste livro. Afinal, como disse o velho Peter Hall, se não devemos perder tempo tentando reinventar a roda, muito menos devemos gastar energia tratando de reinventar a nossa própria roda. Alguns anos se passaram desde então (a dissertação foi defendida em inícios da década de 1990), e uma que outra coisa não deixou de se modificar na minha compreensão da história cultural da Bahia. Para melhor, espero. Mas logo vi que seria muito difícil escrever uma biografia de Edgard Santos. Por motivos simples mas decisivos. Em primeiro lugar, Edgard não teve uma “vida pessoal”, no sentido em que se costuma entender a expressão. Sua vida era o seu projeto — a sua obra universitária de caráter francamente inaugural, explodindo pedras interpostas no caminho de suas retinas quase sempre novas. Em segundo, não teríamos como compor um anedotário pessoal, por assim dizer, a partir de depoimentos de contemporâneos do reitor — quase todos eles já se retiraram do mundo que habitamos. Em terceiro, Edgard não era homem de correspondências subjetivas ou emotivas: suas cartas, até onde sei, dizem respeito à sua ação objetiva no mundo. Em quarto, a grande fonte de informações sobre o reitor seria seu filho Roberto Santos, que também dirigiu a Universidade baiana, foi ministro da Saúde e governador da Bahia. Mas Roberto é uma pessoa discretíssima. Aristocrático, elegante, não falaria sobre a vida íntima do seu pai, assim como não nos fala da sua. Disse, então, a José Enrique: não tenho meios para compor uma biografia de Edgard Santos — não há documentos suficientes, não haverá testemunhos de contemporâneos, doutor Roberto (é assim que o trato, quando nos vemos) não vai violar a intimidade do pai. Ou seja: ficaríamos sujeitos a relatos e anedotas, que teriam certamente a sua curiosidade, mas seriam, muitas vezes, de segunda mão e de autenticidade duvidosa. E a fazer uma coisa muito falha, correndo o risco, ainda, de disseminar boatos. Escolhemos, então, o caminho desta coletânea de escritos, examinando os mais diversos aspectos possíveis da trajetória de Edgard Santos, assim como de suas ricas repercussões na vida cultural da Bahia e do Brasil. E quero dizer, desde já, que, embora cite vários autores ao longo deste trabalho, Edgard Santos e a Reinvenção da Bahia não existiria se 24

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não fossem três outros livros. Vidas Paralelas, 1894-1962, de Roberto Santos. UFBA: Trajetória de uma Universidade (1946-1996), coletânea organizada por Edivaldo M. Boaventura. E UFBA: do Século XIX ao Século XXI, antologia organizada por Lídia Maria Brandão Toutain e Rubens Ribeiro Gonçalves da Silva. Roberto, Edivaldo, Lídia e Rubens me forneceram o balizamento e as informações básicas para que eu pudesse empreender a viagem. Sem eles, eu nada teria feito. Bem. Alguns temas atravessam este livro. O maior deles é o da originalidade da obra de Edgard Santos. Acredito que ninguém mais, hoje, vai colocar isso em dúvida. Entre os temas menores, desenvolvi, até onde me foi dado conhecer, a revolução que Edgard promoveu no setor da saúde, construindo e fazendo funcionar o Hospital das Clínicas e a Escola de Enfermagem. E, em sintonia com o pensamento da nova oligarquia regional, criando escolas e institutos como os de Geologia e Matemática. Edgard pode ter sido tudo, menos uma personalidade política e humanamente pobre. Outro tema é o do temperamento “centralizador” ou “autoritário” do reitor. Tendo a concordar, de um modo geral, com a historiadora Katia Mattoso, quando ela observa que “autoritária” era, em seu conjunto, a sociedade baiana — autoritária, mas flexível, como a define. Edgard, filho da elite local, personagem indestacável de sua oligarquia, conduziu-se segundo os princípios que a regiam. Mais que isso, foi criado entre o tenentismo e o Estado Novo, quando, da direita à esquerda, a opção democrática se apagou no horizonte das perspectivas políticas do país. Edgard, nascido ainda na Primeira República, poucos anos depois da derrubada do regime monárquico, era uma expressão da modernidade centralizadora que se firmou com a Revolução de 1930. Representava, aqui, o pensamento nacionalista autoritário. Fazia parte de uma elite modernizante que pretendia promover a Bahia. Potencializá-la ao máximo. Fazê-la retomar sua vocação inovadora, manifestada já no século XVII, com o manejo brilhante da linguagem internacional do Barroco. Mas essas e outras preocupações serão discutidas nas páginas que seguem. Adianto, de início, somente uma coisa: Edgard foi um grande maker. Antônio Vieira, no Sermão da Terceira Dominga do Advento, que nunca me canso de citar, faz um elogio do fazer. Parte da cena bíblica dos embaixadores de Jerusalém que, saindo à procura do Messias, encontram João Batista, a quem perguntam, em primeiro lugar, “quem és tu?” e, em seguida, “quem 25

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dizes que és?”. A razão da dupla pergunta, interpreta Vieira, é que nenhum homem (ou mulher) é tão reto juiz de si mesmo, que diga realmente o que é, ou seja realmente o que diz. João Batista respondeu: “Eu sou a voz que clama no deserto”. Vale dizer, quando perguntaram ao santo quem ele era, ele respondeu mostrando o que fazia. E daqui Vieira retira a lição fundamental: a pessoa é o que ela faz. “Cada um é as suas ações, e não é outra cousa”. Ou, ainda: “O que fazeis, isso sois, nada mais”. Assim, quando perguntarem a ti “quem és?”, só há uma coisa a fazer: “Ides ver a matrícula de vossas ações”. A pessoa é o que faz — isso serve à perfeição para definir a figura de Edgard. Ele sempre esteve inteiramente voltado para o fazer. Para a práxis transformadora da realidade que se estendia à sua frente. E é assim que será encarado nos escritos que compõem este livro, onde privilegiei, ao máximo, depoimentos, textos e visões de quem viveu aqueles dias baianos (sem qualquer economia nas citações; procurando, antes, fazer uma espécie qualquer de regência intertextual, onde se possa ouvir, ao máximo possível, vozes do período, como num coral, ainda que sem a afinação do Madrigal que Edgard tanto amava). Deve-se sublinhar, também, que, ao contrário do que muitos costumavam dizer, Edgard não foi, de modo algum, um reitor hipnotizado unilateralmente pelo mundo artístico-cultural. Ele sabia que o caminho da cultura era o atalho mais breve e brilhante para despertar energias e chegar à coletividade. E fez isso. Mas não descuidou de outros fazeres. Pelo contrário. Criou, entre outros, a Escola de Geologia e nossos institutos de ciências básicas. Ele tinha a mais clara compreensão da conjuntura que estávamos atravessando, sob os impactos da criação da Hidrelétrica de Paulo Afonso e da Petrobrás. Ele e sua geração. Quando penso em Edgard, Rômulo Almeida, Clemente Mariani e mais alguns, não deixo de me lembrar da geração do Visconde de Cayru, do Marquês de Barbacena, de Francisco Agostinho Gomes. A geração de Edgard reencetou, na década de 1950, o que a geração de Cayru tinha tentado nos primeiros decênios do século XIX: atualizar a Bahia. Fazer com que os seus relógios fossem ajustados pelos relógios do mundo. Mais: vejo a obra de Edgard como uma das maiores coisas que a Bahia realizou. Na década de 1950, essa província se viu plena de audácia e rigor. Hoje, hesitamos diante de qualquer projeto mais contemporâneo. Como se qualquer pensamento mais ousado tivesse de se conter na conta do delirioso. É uma pena. Voltando a falar da época de Edgard, quem sabe, a Bahia volte 26

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a acordar. A arriscar. A fazer o que precisa ser feito. Edgard, com todos os seus erros e todos os seus acertos (muito mais acertos que erros), nunca teve medo da ousadia nem da grandeza. Pelo contrário: dispôs-se a cultivá-las. E esta é uma lição de que muito precisamos hoje. Por fim, me sinto na boa obrigação de fazer alguns agradecimentos. Um deles vai para a minha querida e bonita amiga Juliana Leonelli, com quem eu já tinha trabalhado na campanha vitoriosa de Dilma Rousseff à Presidência da República. Juliana assumiu a parte da pesquisa, percorrendo arquivos e trabalhando comigo na gravação de depoimentos. Colheu coisas preciosas, que vão citadas adiante. Agradeço, também, a meu amigo Pedro Novis, discutindo o livro desde o início, fazendo leitura rigorosa dos originais, oferecendo correções e sugestões. Mais um agradecimento vai para os que deram depoimentos a nós, com empenhos de memória e clareza. No caso, repito agradecimentos a Roberto Santos, mas destacando, também, os nomes de Yeda Pessoa de Castro, Roberto Pinho e Tom Zé. Tenho de agradecer, ainda, à professora Maria de Fátima Ribeiro, que nos franqueou a correspondência entre Edgard e Hélio Simões. Aos arquitetos Antonio Heliodorio Sampaio (estudioso do período) e José Guilherme da Cunha, autor de Revoltas Estudantis na Bahia (1959-1964). E à professora Vera Rollemberg, que, com sua paixão erudita pela língua portuguesa, empenhou-se com zelo na revisão do que escrevi (mesmo que se irritando, aqui e ali, com minhas idiossincrasias), além de ter acrescentado informações valiosas ao livro, já que viveu intensamente aquele período de nossa história cultural, quando foi aluna de Nelson Rossi e participou de manifestações estudantis contra o reitor, que hoje admira profundamente. Mas sublinhando, finalmente, o cuidado e a beleza sempre inteligente de minha mulher, a artista plástica Sara Victoria, que faz tudo para facilitar o que faço, com a sua luminosidade contagiante. Cidade da Bahia, janeiro de 2013

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Para Anton Walter Smetak e Ernst Widmer – figuras de luz — in memoriam.

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v  1  v Sob o signo da cidade

I 1912. Quase meados do mês de janeiro. Ainda não eram duas horas da tarde. O sol enfaiscava nas pedras do centro da cidade. Rebrilhava nas beiradas dos prédios. Retinia nas esquinas claras. Chuva, naquele dia, se houvesse, não seria leve, nem de verão. Mas o tempo estava prestes a fechar. De repente, do meio do mar, o velho Forte de São Marcelo disparou dois tiros de pólvora seca. Era só um aviso. Poucos minutos depois, começou o canhoneio. Pesado. A Cidade da Bahia estava sendo bombardeada. Projéteis subiam do mar em direção às encostas. Vinham rasgando o ar, com destinos precisos. A artilharia do forte, comandada pelo tenente José Bina Fonyat, sabia o que queria. Procurava alvejar a base do Palácio do Governo, em sua face voltada para a Ladeira da Montanha. Mas tentava, também, atingir fachada e salas. Era um tiro por minuto. Vinte minutos, vinte tiros. Canhonaços. Uma das balas, ao cair dentro do palácio, espalhou chamas. Incêndio. As línguas de fogo saíram devorando o que encontraram pela frente na velha Casa dos Governadores. Não tiveram piedade alguma com aqueles mais de trezentos anos de história. E chegaram à Biblioteca Pública da Bahia, criada em 1811, no governo do Conde dos Arcos. Havia, ali, mais de trinta mil volumes. Mas o fogo chegou. Páginas de livros e jornais, páginas de cartas e documentos iam virando fumaça à progressão das labaredas, o fogo consumindo coisas raras. 33

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Outros tiros, ainda subindo incandescentes do meio do mar, acertaram o Teatro São João e antigos sobrados da Rua Chile. Meio da tarde. E já não era somente o Forte do Mar que fuzilava o centro da cidade. Disparos vinham, também, do Forte do Barbalho. O centro de Salvador se achava sob fogo cruzado. Balas subiam do mar, balas desciam do morro. Explodiam aqui e ali. No relógio da Câmara Municipal, na esquina da Igreja da Sé. Para aumentar a confusão, baterias do Forte de São Pedro abriram fogo contra o quartel da Polícia Militar, no bairro dos Barris. As pessoas estavam perdidas, sem saber o que fazer. Balas zuniam, queimando a pele do ar. Deixavam rastros de fumaça e fogo. Quem se preocuparia, no meio de tudo isso, com os livros raros de Francisco Agostinho Gomes, primeiro acervo da Biblioteca Pública da Bahia?

II Em sua História da Bahia, Luís Henrique Dias Tavares escreveu: “O canhoneio durou quatro horas. Quando terminou, tropas do Exército alcançaram o centro da cidade e entraram em luta com soldados da Polícia Militar e policiais civis armados na Praça Castro Alves e na Praça Municipal, do que resultaram feridos e mortos. O Exército ocupou o prédio da Câmara. Na mesma hora, soldados do 50º Batalhão de Caçadores do Exército lutavam com soldados do 2º Corpo da Polícia Militar na frente do Ginásio da Bahia. Novos mortos e feridos. Outro ponto de conflito se instalou na praça do Comércio. Soldados do 6º Batalhão de Artilharia da PM foram atacados por soldados do Exército nas posições que ocupavam no prédio da Diretoria de Rendas do Estado, no posto policial do bairro comercial e no Banco de Crédito da Lavoura. Morreram soldados do Exército e da PM e civis armados. Alguns soldados e civis feridos caíram no mar e seus corpos foram recolhidos dias depois nas praias da Barra e do Rio Vermelho”. Mais: “Mal cessou o bombardeio, o Palácio do Governo foi ocupado por soldados do Exército e da Marinha. Desconhecidos o invadiram e o saquearam. Todos os prédios em que funcionavam repartições públicas federais foram ocupados pelo Exército. Cem presos fugiram da Penitenciária do Estado”. 34

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Sob o signo da cidade

Não foi este, com certeza, o dia, nem foi esta a noite, de maior violência, nem de mais extensa destruição da história da Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos. Vivemos cenas e coisas bem mais pesadas na primeira metade do século XIX, com a rebelião dos negros malês e a revolta federalista que passou à nossa história com o nome de Sabinada — nome retirado de Francisco Sabino Vieira, que era como se chamava o mulato bissexual de olhos azuis, leitor de Rousseau, que comandou a rebelião. No caso dos malês, como eram chamados os negros que tinham abraçado a fé islâmica, Salvador presenciou uma expressão da jihad, a guerra santa muçulmana. Em 1835, aqueles negros promoveram os ataques mais ousados, ferozes e desesperados de nossa história escravista. Tudo resultando num banho de sangue. Com os “sabinos”, tivemos a noite de 14 de março de 1837 — “a noite mais triste da história de Salvador”, no dizer de Paulo César de Souza, em A Sabinada: “Incêndios clareavam vários pontos da cidade. O fogo consumia cerca de 70 sobrados, a maioria na Conceição da Praia — provocado pelos vencidos, em desespero e embriaguez, e pelos vencedores, para desentocar inimigos. Soldados rebeldes foram atirados às chamas, e também simples moradores”, entre saques, estupros e assassínios. Mas aquele 10 de janeiro de 1912 também não deixa de impressionar quem observa a vida baiana em sua duração temporal. No entanto, nada houve ali que se aproximasse, nem de longe, da ordem de grandeza da luta dos malês contra a sua escravização — ou do movimento armado da província contra a centralização do poder nacional no Rio de Janeiro, no “aurissedento” Rio de Janeiro, que caracterizou a Sabinada. Longe disso. O que tivemos, em 1912, foi bem mais prosaico e mesquinho, inerente ao âmbito da política com “p” minúsculo: o desfecho violento, socialmente insignificativo, das lutas internas menores de um poder oligárquico dividido. Naquela época, a política baiana, na esfera da classe dirigente local, estava fragmentada em quatro facções, cada qual com o seu chefe: severinistas (Severino dos Santos Vieira), marcelinistas (José Marcelino de Sousa), vianistas (Luiz Viana) e seabristas (José Joaquim Seabra). Seabra, ministro da Viação e Obras Públicas do governo do presidente Hermes da Fonseca, preparava-se, em aliança com Luiz Viana, para se sentar na cadeira de governador da Bahia. Em campo oposto, a situação, comandada pela dupla José Marcelino e Severino Vieira, resolveu empurrar com a barriga, até onde fosse possível, o dia da eleição do governador. Armaram, então, uma jogada 35

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algo esdrúxula: João Ferreira de Araújo Pinho, governador em exercício, renunciaria, deixando em seu posto o presidente da Câmara Estadual — e a capital da Bahia seria transferida para Jequié. A manobra começou a ser executada, inclusive com o decreto de transferência da capital. Tropas ocuparam o prédio da Câmara Municipal (onde funcionava a Assembleia Legislativa). Ruas do centro da cidade foram interditadas. Mas os oposicionistas entraram na Justiça contra o que estava acontecendo — e ganharam. O Governo Estadual, no entanto, resolveu não tomar conhecimento do assunto. Veio então uma ordem do marechal Hermes da Fonseca. E a 6ª Região Militar entrou em cena: ou a decisão da Justiça Federal seria acatada, ou haveria emprego de força militar para que fosse obedecida. O Governo não recuou — e os militares partiram para a ação. Era o dia 10 de janeiro. A 6ª Região informou aos cônsules estrangeiros creditados na Bahia que iria empregar a força. No início da tarde, um boletim circulou, com a mesma informação, pelo centro da Cidade Alta e pelas principais ruas da Cidade Baixa. Avisava que a intervenção da força militar teria início dentro de uma hora. “O comércio da Cidade Baixa fechou. Repartições públicas, lojas, escritórios de advocacia e consultórios médicos também fecharam nas ruas Chile e da Misericórdia, das quais saíram as famílias que ainda permaneciam em suas casas, o mesmo se sucedendo com as que residiam na Praça Castro Alves e nas ruas da Ajuda e dos Capitães (atual Ruy Barbosa). O comércio fechou até na Baixa dos Sapateiros. Dezenas de pessoas lotaram os bondes da Cidade Alta e da Cidade Baixa. Comerciantes fretaram saveiros e canoas para conduzi-los à península de Itapagipe”, escreve o mesmo Luís Henrique. E foi aí, a partir dos tiros de pólvora seca da fortaleza do mar, que o bombardeio começou. No meio disso tudo, Edgard Santos, adolescente entre os 17 e os 18 anos de idade, preparando-se então para ingressar na Faculdade de Direito da Bahia, chegou à conclusão de que não queria mais ser advogado. E, sim, médico. Uma guinada súbita e surpreendente, para quem tinha nascido numa família de advogados ilustres. Seu próprio pai era advogado. E um tio seu, Pedro Joaquim dos Santos, chegara ao posto de ministro do Supremo Tribunal Federal, ponto mais alto da carreira de magistrado. O canhoneio da Cidade do Salvador, que acabara de presenciar — morando, inclusive, não muito longe do palácio do governador —, tinha alguma coisa a ver com tal alteração repentina de projeto e perspectiva, passagem do mundo da advocacia ao 36

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mundo da medicina? Sim. Tinha tudo a ver. Com o desrespeito do Governo por uma decisão judicial e o consequente bombardeio da cidade, Edgard se desencantou, concluindo que o Direito se tornara matéria degradada, sem mais força para se impor por si mesmo na vida social. É o que nos conta seu filho, o ex-governador Roberto Santos, em seu livro Vidas Paralelas. “Houve... um episódio que ele [Edgard] e meu avô frequentemente relembravam: ao aproximar-se a hora da escolha do curso superior que lhe asseguraria a carreira profissional, era sua opção inicial o curso de Direito. Influenciavam-no as carreiras do pai, do tio Pedro Joaquim e de um tio materno, o dr. Manuel Luiz do Rego, um dos advogados mais solicitados e melhor remunerados de Salvador. Por que se decidiu, afinal, pela Medicina? “No começo de 1912, quando deveria inscrever-se como candidato ao exame vestibular, foi sua intenção abalada pela extrema confusão que prevalecia na política estadual e que resultou no famigerado bombardeio de Salvador por tropas federais. [...]. Não admira, pois, ter parecido ao jovem estudante Edgard Santos que a força do Direito estivesse desmoralizada no Estado e no País, e que o estudo das leis já não oferecesse os atrativos que o haviam impressionado, anteriormente. Depois de alguma hesitação, preferiu a Medicina. Tinha presente, nesta decisão, outro exemplo familiar, na pessoa do tio Antonio Luiz do Rego, cirurgião de grande sucesso na cidade de São Paulo, com quem viria a trabalhar por vários anos, logo depois de formado”, escreve Roberto Santos. Só não há referência sobre se a necessidade fundamental de serviços médicos, para atender aos militares e civis feridos naquele conflito armado, chegou de algum modo a tocar sua sensibilidade, pesando na decisão de embarcar na viagem da Medicina. Mas quem era mesmo aquele adolescente, que, a partir da criação da Universidade da Bahia, militaria na vanguarda de um movimento de modernização regional — e viria a estar no centro e no comando de um processo que transformou, intensa e extensamente, a vida cultural baiana, com repercussões poderosas no campo geral da cultura brasileira? É difícil responder de imediato. Edgard, de alguma forma, é uma entidade a ser deduzida. De qualquer sorte, antes de enveredar por uma tentativa de reconstituição, ainda que muito fragmentária e lacunar, de sua história pessoal e de família, cabe uma observação de relevo sociológico. Qualquer leitura da trajetória de Edgard Santos, indo desde o dia do seu nascimento ao fim do seu longo e brilhante reitorado, nunca deve perder de vista o seguinte fato: Edgard foi 37

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uma pessoa que, em momento algum de sua vida, precisou se preocupar com a questão da sobrevivência material. Nunca teve o menor problema com dinheiro. Era ele um filho da elite baiana, muitíssimo bem casado, esbanjando prestígio social. Mas um homem que, em vez de meramente borboletear na roda-viva do mundo mundano, concentrou as suas melhores energias na transformação da realidade baiana, visando a reposicionar a Bahia na linha de frente dos avanços nacionais brasileiros. Esta é a questão principal.

III Edgard Santos nasceu na Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos no dia 8 de janeiro de 1894, na casa dos avós maternos, na Rua do Rosário, que depois seria integrada à Avenida Sete de Setembro. Seus pais ainda não tinham casa própria na capital. João Pedro Santos, formando-se em Direito pela Faculdade do Recife, logo se tornou promotor público da comarca de Nazaré das Farinhas — e ainda morava por lá, quando a criança nasceu. Em seguida ao nascimento de Edgard, porém, João Pedro Santos e Dona Amélia se transferiram para Salvador. A família passou a morar, então, numa casa do Largo do Pelourinho, praticamente fronteira à bonita Igreja do Rosário dos Pretos — ou Capela da Irmandade Terceira de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, para lembrar o seu nome por extenso —, com suas torres, seus azuis, seu pequeno adro gradeado. Naquela casa, Edgard viveu até chegar à adolescência. “São terrivelmente escassas as notícias que ficaram sobre a infância de meu pai. Acerca do seu desempenho como aluno, das suas preferências ou rejeições em matéria de estudos, seu comportamento no convívio com os quatro irmãos [...], e com os colegas e vizinhos de bairro, não ficou, praticamente, nenhum registro. Ele próprio não costumava referir-se ao assunto, e as pessoas que poderiam dar seu testemunho já não estão entre nós”, observa Roberto Santos. O máximo que se pode fazer é tentar imaginar essa infância, no quadro da vida infantil no Distrito da Sé, ao apagar das velas do século XIX e ao acender dos candeeiros do nosso século XX. Mas isso não adiantaria muita coisa. Seria genérico demais. 38

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Sob o signo da cidade

Os pais de Edgard Santos, AmĂŠlia e JoĂŁo Pedro Santos (com o neto Eduardo, filho de Edgard, no colo).

Edgard Santos com seu filho Eduardo e sua sobrinha Stella.

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Edgard Santos e a reinvenção da Bahia

Mesmo o senador Ruy Santos, amigo e biógrafo do reitor, não conseguiu extrair dele maiores informações sobre o assunto. “Edgard sempre me falou pouco das coisas de sua infância. Apenas uma vez, referiu-me brincadeira em que derrubara jarra antiga sobre a cabeça da irmã [de uma delas, Amelinha], ferindo-a, e desapontando o velho João Santos, pelo prejuízo... não tanto o prejuízo material, o valor da estimação”, registra o senador, em seu O Reitor Magnífico: Edgar Santos. O que ele conseguiu saber, sobre esse tempo da vida de Edgard, foi-lhe passado por Amelinha (o nome feminino mais característico da família, ao longo de décadas e décadas, com Amélia, Maria Amélia, Ana Amélia, etc., passando de uma a outra moça, geração após geração), “a irmã a ele mais ligada, pela proximidade dos anos”. E o que se pode colocar em tela não passa de uns poucos divertimentos infantis. Amelinha conta, por exemplo, que o menino Edgard adorava empinar arraias. À temporada das arraias, reconta Ruy Santos, “lá estava Edgard trepado nos velhos telhados do Pelourinho, ou através as águas-furtadas a empiná-las”. Arraias feitas em casa: “O papel de cor combinada, a talisca própria, o fio bem temperado a vidro moído e goma, um caco maior no rabo escondido um pouco por algodão, para que não brilhasse ao sol”. Mas, principalmente, o pequeno Edgard se esquecia de tudo quando chegava o mês da festa de São João, prossegue Ruy Santos, referindo-se, de passagem, a um acidente junino sofrido pela criança, no jogo dos fogos de artifício. “Meninice interessada no trabalho de fazer balão. Balão cortado e armado em casa. Todo mundo mobilizado para um serviço que começava em meio às trezenas de Santo Antonio. O papel espichado pelo chão, ou cortado sobre as mesas enormes de gomado e de janta... E depois de fazê-los, vê-los subir. E catá-los pelo céu... Acompanhá-los com a vista até vê-los se perderem, lá do outro lado de Itaparica, ou além de Madre de Deus. Ou o soltar de fogos. Os traques e as rodinhas. Aqueles fogos que uma noite lhe queimaram as pernas e os braços, numa das facilidades próprias da idade. O tirar de sortes, estaladas. Edgard gostava, porém, era dos balões. De vê-los subir. Acompanhá-los pelo céu — aquela luzinha colorida tangida pela brisa”. Passada a infância, continuamos sem saber da vida de Edgard. Não há notícias de sua conduta doméstica, de relações de amizade, de namoros e, muito menos, de aventuras sexuais. Enfim, o que se tem, sobre tudo, é um mínimo de informações. Ainda Roberto: “Durante o curso primário, Edgard frequentou o Colégio Americano, na Ladeira do Aljube, entre a Ladeira da 40

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Sob o signo da cidade

Praça e o Terreiro de Jesus. Com muita simpatia, lembrava ele, vez por outra, o Ginásio São Salvador, onde realizou os estudos preparatórios (nível secundário), e para onde caminhava, diariamente, durante vários anos, atravessando boa parte da Baixa dos Sapateiros até o Largo da Barroquinha”. Mais tarde, ao ingressar na Faculdade de Medicina, o jovem Edgard permaneceria nesse mesmo circuito urbano, agora em extensão ainda mais circunscrita, deslocando-se a pé entre o Largo do Pelourinho e o Terreiro de Jesus. Mais Roberto: “Na condição de estudante de Medicina dos anos pré-clínicos, Edgard continuou percorrendo a pé a pequeníssima distância entre a residência na Ladeira do Pelourinho e a Faculdade de Medicina. Era o que já fazia ao cursar os níveis primário e secundário de educação. A vida revolvia, portanto, ainda e sempre, em torno do mesmo bairro”.

IV Ou seja: estamos — sempre — no segmento urbano que hoje é chamado o “centro histórico” de Salvador. Ali se encontra a mancha matriz da cidade, buscando uma regularidade renascentista, que não conseguiria se impor nos novos espaços por onde a capital do Brasil Colônia se iria expandindo. Sim: o plano original da cidade, estabelecido por Miguel d’Arruda, arquiteto-mor do reino, nos tempos de dom João III, apresentava uma disposição claramente simétrica. Em A Fortaleza do Salvador na Baía de Todos os Santos, Walter Coelho Filho sublinha o fato: “Ela era uma cidade irregular, apesar do seu traçado geométrico. [...]. A geometria foi bem utilizada na obtenção da poligonal e do traçado. Nesse ponto, ela é um bom exemplo do saber renascentista: explorar ao máximo a geometria a partir da topografia”. Mais: “A matemática e a arquitetura se combinaram em mentes abertas ao saber permitindo a criação da Fortaleza do Salvador. O traçado da nova cidade é um exercício de geometria e simetria... A geometria está expressa nas linhas retas das suas ruas e quarteirões”. Bem antes de Coelho Filho, aliás, em Cidade Brasileira, Murillo Marx já comentava: “Salvador... situou-se da maneira tradicional sobre escarpada elevação. Porém, teve e guarda um centro reticulado, que luta por se adaptar a um relevo rebelde. Dentro do perímetro original da capital baiana, o tabu41

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dois lugares decisivos na vida de edgard santos, ambos no centro Histórico de salvador: acima, a Praça Municipal (Praça do Palácio), onde mudou o rumo de sua vida ao assistir aos sangrentos confrontos de 1912, e o prédio da faculdade de Medicina, pela qual se formou, foi o orador da turma e foi seu professor e diretor de 1936 a 1946.

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leiro curioso ainda pode ser apreciado”. Mas a grelha, o centro reticulado, não resistiu ao crescimento citadino. Ficou circunscrita ao platô bem alto, à mancha matriz. Uma vontade de racionalidade que ainda se expressava nos primeiros passos da cidade para fora do seu perímetro inaugural, como se vê no Terreiro de Jesus. Mas Salvador não se deteve aí. Avançou em diversas direções, entre vales e cumeadas. Nesse crescimento em terreno acidentado, a racionalidade geométrica foi por água abaixo. Os portugueses aqui residentes, antes que se preocupar em manter a regularidade formal delineada pelo poder, trataram de ir construindo segundo os padrões de suas cidades natais. Segundo o modelo de Lisboa e de outros núcleos urbanos lusitanos, como Coimbra, o Porto e Viana do Castelo. O que eles queriam era ter, nos trópicos, uma cidade como as que tinham deixado em Portugal. A cidade junto ao mar, dividida em alta e baixa, numa profusão de ladeiras e ruas irregulares, numa desordem de becos, esquinas, pracinhas e vielas. Com isso, Salvador, embora com um centro marcado pela intencionalidade renascentista, cresceu assumindo uma fisionomia de cidade lusitana. De cidade filiada ao modelo urbano mediterrânico, de raiz muçulmana. É assim que vemos o espaço que vem de Santo Antônio Além do Carmo ao Pelourinho, com a graça sinuosa de seu traçado luso, de base islâmico-medieval, como o do bairro da Alfama, em Lisboa. Era por aquelas vias e entre aquelas edificações — basicamente, setecentistas e oitocentistas — que Edgard Santos andava diariamente, em sua juventude. Mas a verdade é que, quando ele nasceu, a caminho do final do século XIX, a cidade tinha já passado por um processo modernizador, muito bem examinado por Consuelo Novais Sampaio, em 50 Anos de Urbanização: Salvador da Bahia no Século XIX. O ponto central, aqui, foi que Salvador conheceu, na segunda metade do século XIX, um movimento de dupla articulação urbanística, em função até do seu próprio crescimento populacional. Apesar de todas as enormes dificuldades econômicas que marcaram o período, “pode-se dizer que transformações jamais havidas na Cidade do Salvador ocorreram ao longo dos 50 anos que se estendem de 1850 a 1900... a cidade foi submetida a um processo de expansão, e de articulação entre os novos espaços criados e o centro do poder. Comerciantes enriquecidos, estrangeiros e nacionais, competiram com a Igreja na ocupação das melhores áreas urbanas. Um ritmo acelerado substituiu a letargia das décadas precedentes. Inicialmente tímidas, as mudanças cresceram, promovendo rupturas 43

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Edgard Santos (terceiro a partir Edgard Santos e a reinvenção da Bahia da esquerda, sentado) com o corpo médico da Assistência Pública de Saúde do Estado da Bahia, da qual foi diretor.

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Viagens mĂşltiplas

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Edgard Santos e a reinvenção da Bahia

Espetáculo no jardim da Reitoria da UFBA: a criação da Escola de Dança pelo reitor Edgard Santos, tendo à frente a polonesa Yanka Rudzka e o alemão Rolf Gelewski, 192 revolucionou a dança na Bahia.

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A aposta na cultura

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