Stefan & Lotte Zweig - Cartas da América

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miliares, escritas durante a estadia do casal na América do Sul (Brasil e Darién J. Davis é professor de História do Middlebury College, no estado de Vermont, Estados Unidos. Publicou livros sobre raça, migração e história intelectual e cultural do século XX.

Argentina) e em Nova York. É a única série de cartas de Lotte de que se tem

em Londres, Inglaterra. Publicou livros sobre a história da América do Sul e das migrações internacionais. Foi pesquisador associado do Centro de Estudos Brasileiros e do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Oxford.

A natureza íntima da correspondência acrescenta muito ao nosso conheperado de ambos para obter refúgio para amigos e colegas intelectuais que tentavam fugir da Europa, as frustrações e os vazios do exílio, a ansiedade de ter de lidar com as incertezas, e os desafios de viajar, escrever e trabalhar juntos. Vinte e sete anos mais jovem que o marido, Lotte, diferentemente do que se pensava até a publicação destas cartas, tem presença marcante na vida do casal, e sua escrita oferece insights importantes para o entendimento

Às vezes otimistas, cada vez mais melancólicas, mas também muito es-

Maria das Graças de Santana Salgado é professora

Stefan Zweig, um dos pensadores mais respeitados do século XX, foi vivida nas Américas, mais

Cartas da América Rio, Buenos Aires e Nova York, 1940-42

pirituosas, revelando um senso de humor sarcástico, as cartas de Stefan e Lotte Zweig fazem a crônica minuciosa dos últimos anos do casal, até o seu duplo suicídio, em Petrópolis, que consternou o mundo.

adjunta de Língua Inglesa da Universidade Federal Rural

precisamente em Nova York, Buenos Aires e na pacata Petrópolis, onde Stefan e sua segunda esposa, Lotte, cometeram suicídio em 1942. Para lançar nova luz sobre a biografia e a obra do autor, os pesquisadores Darién J. Davis e Oliver Marshall

que morou no continente americano.

do que ocorreu com eles no período 1940-1942.

os tradutores

Uma parte importante da história do austríaco

notícia e a maior série de cartas escritas por Stefan durante o tempo em

cimento sobre o célebre escritor e sua esposa – inclusive o esforço desesOliver Marshall é historiador independente estabelecido

Darién J. Davis Oliver Marshall

Este livro apresenta cartas inéditas de Stefan e Lotte Zweig para seus fa-

apresentam – com a organização das cartas ORGANIZAÇÃO E INTRODUÇÃO

Stefan & Lotte Zweig Cartas da América: Rio, Buenos Aires e Nova York, 1940-42

sobre os autores

Stefan & Lotte Zweig

Darién J. Davis Oliver Marshall

pessoais escritas por Lotte e Stefan no período em que viajaram pelos EUA e América do Sul, entre 1940 e 1942 – uma visão acurada da vida e dos conflitos do casal que, mesmo distante da guerra na Europa, não se acomodou. Em pronunciamentos públicos e através de articulações pessoais, eles procuraram sensibilizar a população americana a se engajar na luta contra o domínio hitlerista no continente europeu. Acompanhadas de notas e comentários, pela primeira vez reproduzidas em livro, as cartas também iluminam a figura da esposa de Stefan, Lotte, que em seus relatos oferece detalhes ao mesmo tempo sutis e significativos para a compreensão da experiência de ambos

do Rio de Janeiro, UFRRJ.

como expatriados. Em sua parte final, esta edição Eduardo Silva é pesquisador da Fundação Casa de Rui

traz ainda os testemunhos emocionados da poeta

Barbosa e do CNPq. ISBN 978-85-89309-45-5

9 788589 309455

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Gabriela Mistral e de Ernst Feder, amigos do casal TRADUÇÃO

Eduardo Silva Graça Salgado

em sua estadia em Petrópolis.

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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ S853

Stefan & Lotte Zweig : cartas da América : Rio, Buenos Aires e Nova York, 1940-42 / organização e introdução Darién J. Davis e Oliver Marshall ; tradução Eduardo Silva e Maria das Graças de S. Salgado. - Rio de Janeiro : Versal, 2012.

il.

Inclui índice ISBN 978-85-89309-45-5 1. Zweig, Stefan, 1881-1942 - Correspondência. 2. Zweig, Lotte - Correspondência. 3. Escritores austriacos Correspondência. I. Davis, Darién J., 1964-. II. Marshall, Oliver, 1957-. 12-4748.

CDD: 836

06.07.12 09.07.12

CDU: 821.112.2-6 036777

©Darién J. Davis e Oliver Marshall, 2010 Título da edição original: Stefan and Lotte Zweig’s South American letters New York, Argentina and Brazil 1940–42

Preparação de texto

Maria Beatriz Albernaz

Revisão

Ana Grillo

Projeto Gráfico e Diagramação

Luciana Gobbo

Produção Gráfica

Luiza Vilela

Direitos desta edição reservados à

VERSAL EDITORES LTDA. Rua Jardim Botânico, 674, sala 315 Rio de Janeiro – RJ – Brasil 22461-000 www.versal.com.br

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Stefan & Lotte Zweig Cartas da América Rio, Buenos Aires e Nova York, 1940-42 Organização e Introdução

Darién J. Davis Oliver Marshall

TRADUÇÃO

1a. edição Rio de Janeiro, 2012

Eduardo Silva Graça Salgado

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romancista, ensaísta, biógrafo, dramaturgo e pacifista, nasceu em Viena, em 1881, no seio de uma rica família austro-judaica. Nas décadas de 1920 e 1930, Zweig desfrutou de grande renome literário e foi um dos autores mais traduzidos em todo o mundo. Com a ascensão do nazismo, mudou-se para a Inglaterra e ali se tornou súdito britânico em 1940. Depois de uma turnê de conferências pela América do Sul e de um período em Nova York, mudou-se para o Brasil, onde, em 1942, desesperançado com o futuro da Europa, ele e sua mulher cometeram duplo suicídio. Stefan Zweig,

Lotte Zweig (née Altmann) nasceu em 1908 em uma família de comerciantes de

classe média da cidade prussiana de Kattowitz. Logo depois que Hitler assumiu o poder na Alemanha, Lotte mudou-se para Londres. Em 1934, foi contratada por Stefan Zweig como secretária multilíngue e assistente de pesquisa. Os dois se casaram em 1939 e, no ano seguinte, deixaram sua casa na elegante cidade de Bath, na Inglaterra, e partiram para as Américas.

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Sumário

Agradecimentos

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Nota dos tradutores  Abreviaturas  Introdução

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Parte I  Cartas do Brasil e da Argentina  72 14 de agosto de 1940 a 22 de janeiro de 1941 Parte II  Interlúdio

em Nova York  24 de janeiro a 15 de agosto de 1941

154

Cartas do Brasil  176 24 de agosto de 1941 a 22 de fevereiro de 1942 Parte III:

Pós-escrito  246 Carta de Gabriela Mistral, 3 de março de 1942 Carta de Ernst Feder, 5 de março de 1942 Parte IV:

Dramatis personae  Índice remissivo

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Agradecimentos

Muitas pessoas nos ajudaram a realizar este trabalho. Primeiramente, agradecemos a Eva Alberman (née Altmann), sobrinha de Lotte Zweig e filha de Hannah e Manfred Altmann. Além de nos dar acesso amplo à correspondência de Lotte e Stefan Zweig, e permitir a reprodução das cartas de Lotte, Eva foi muito generosa conosco, dedicou tempo e respondeu pacientemente a nossas perguntas e questionamentos, além de ter feito comentários sobre os originais de todo o livro. Agradecemos também a Sonja Dobbins e Williams Verlag, pela permissão para reproduzir as cartas de Stefan Zweig, e a Michael Simonson, do Leo Baeck Institute Archives de Nova York, pelas informações sobre o espólio de Ernst Feder. Muitos arquivistas e bibliotecários nos ajudaram a encontrar informações que possibilitaram contextualizar as cartas. Agradecemos aos funcionários da Österreichische Exilbibliothek (Viena), da British Library (Londres), do National Archives (Londres), da Senate House Library da Universidade de Londres, da Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro), da Fundação Getulio Vargas (Rio de Janeiro), da Biblioteca Central Municipal Gabriela Mistral (Petrópolis), da New York Public Library, da University of Miami Library e da Daniel A. Reed Library da State University of New York/Fredonia. Agradecemos também às inúmeras pessoas que nos deram sugestões e encorajamento, e que responderam às nossas perguntas. O interesse e os conselhos dessas pessoas nos convenceram da importância de prosseguir com este projeto. Agradecemos em particular a Jeffrey B. Berlin, Leslie Bethell, Alberto Dines, Michael Hall, Zuleika Henry, Majorie Lamberti, Peter e Liselotte Marshall, Oliver Matuschek, Klemens Renoldner, Carol Rifel e Ursula Trafford (née Mayer), e aos dois leitores anônimos do manuscrito. John McCarthy e Mario Higa nos forneceram valiosas sugestões. Ashley Kerr, com especial habilidade, nos ajudou a digitar e organizar as cartas. Jo Marcus e Dr. Virgínio Cordeiro de Mello foram guias agradabilíssimos de Petrópolis, repartindo conosco vívidas lembranças da cidade nos anos 1940, com o último provendo valiosos insights sobre o problema da asma na região. Darién Davis gostaria também de agradecer ao Middlebury College pelo apoio financeiro para suas viagens a Londres, Viena e Rio de Janeiro. 9

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Foi um prazer trabalhar com Haaris Naqvi, nosso editor da Continuum Books. Ao longo do processo de publicação, Haaris foi uma constante fonte de encorajamento e sempre mostrou grande entusiasmo com nosso livro. Finalmente, agradecemos o apoio de Karin Hanta e Margaret Doyle. Desde o começo do projeto, Karin contribuiu com comentários sobre os originais e forneceu traduções do alemão para o inglês, incluindo explicações sobre o emprego do alemão vienense. Margaret ofereceu sugestões valiosas, particularmente por meio de sua cuidadosa leitura da Introdução. Sem o apoio de Karin e Margaret teria sido bem mais difícil completar este livro.

Agradecimentos à edição brasileira

Em 2012, a casa de Stefan e Lotte Zweig em Petrópolis será aberta ao público como “Casa Stefan Zweig” – memorial dedicado aos refugiados da Europa nazista durante os anos 1930 e 1940. Ficamos felizes que o lançamento deste livro no Brasil se realize neste exato momento, e extremamente agradecidos a José Enrique Barreiro, da Versal Editores, por tornar este empreendimento possível. A Maria Beatriz Albernaz também devemos agradecimentos por conduzir eficientemente a etapa de produção do livro. Algumas mudanças foram feitas especialmente para esta edição em língua portuguesa. A ordem de apresentação de algumas cartas sem data foi modificada e algumas palavras especialmente difíceis de ler no original foram decifradas. Graças ao biógrafo de Stefan Zweig, Oliver Matuschek, que generosamente dividiu conosco alguns documentos importantes, conseguimos incluir nesta versão em português mais informações sobre a educação formal de Lotte Zweig na Alemanha, antes de seus estudos terem sido abruptamente interrompidos pela ascensão dos nazistas ao poder em 1933. Também tivemos a oportunidade de incorporar nova documentação sobre a viagem de Stefan e Lotte Zweig à Argentina e ao Uruguai em 1940, e nos beneficiamos de algumas discussões com Andrew Graham-Yooll. Acima de tudo, entretanto, tem sido um imenso prazer trabalhar com Maria das Graças de S. Salgado e Eduardo Silva. Aos dois, nossos agradecimentos pelo trabalho de tradução.

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NOTA DOS TRADUTORES

Parte do drama descrito neste livro se refere à perda da própria língua. Stefan Zweig escrevia em alemão e era traduzido, por assim dizer, no mundo todo. Cultos e poliglotas, os Zweigs podiam se expressar em diversas línguas. A conjuntura da guerra, contudo, os obrigou a abandonar a comodidade do alemão nativo e a enfrentar o desafio de se expressar em diferentes idiomas, inclusive o nosso bom português. O contexto histórico da linguagem que tínhamos a traduzir era, no plano internacional, o desenrolar vivo e crescente da Segunda Guerra Mundial e, no Brasil, o domínio ainda tranquilo do chamado Estado Novo, ou seja, o período ditatorial de Getúlio Vargas. A mesma guerra que induziu o grande escritor e sua jovem esposa a vagar pelo mundo estranho (e, sem dúvida, pitoresco) da América do Sul, também os obrigou a escrever estas cartas em inglês, certamente para facilitar o trabalho de censura na Inglaterra. Não se trata, portanto, de traduzir Stefan e Lotte Zweig em seu alemão nativo, que ambos dominavam; Stefan, em particular, com extrema finura e maestria. Não se trata, tampouco, de traduzi-los em seu cotidiano “normal” em Viena, Frankfurt ou Bath. Trata-se, aqui, do desafio de traduzir as últimas cartas de Stefan e Lotte Zweig escritas num contexto extremamente mutante e emocional de guerra em expansão, de perseguição aos judeus e de insegurança generalizada. O casal escreve, muitas vezes, às pressas. Pensamentos e emoções parecem brotar no papel sem maiores preocupações, sem obstáculos de qualquer tipo, sem vírgulas limitadoras e, às vezes, quase sem pontuação alguma, obedecendo a um fluxo contínuo, despojado e verdadeiro de uma honesta correspondência íntima. Embora cultos e poliglotas, os Zweigs, muitas vezes, escrevem um inglês “de estrangeiro”, fortemente temperado, no calor dos trópicos, por uma gramática da emoção imposta pela experiência extrema da guerra, do isolamento, da perda da pátria, da família e da própria língua. O desafio de traduzir esse inglês de emoções tão fortes e historicamente determinadas acabou levando, muito naturalmente, ao nosso interesse mútuo por este conjunto de documentos históricos e linguísticos de valor extraordinário, e, daí, ao trabalho de colaboração do historiador com a linguista. 11

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O desafio era converter um inglês rico em imagens poéticas e expressividade, mas algumas vezes também sintaticamente impreciso e canhestro, em um português claro, fluente e adequado, sem perder a força, a espontaneidade e a verdade histórica do original. Ao fim desse processo, dessa utopia verdadeiramente inatingível, esperamos ao menos que o leitor de língua portuguesa possa saborear sem grandes problemas estas páginas que percebemos tão belas, sinceras e reveladoras. Reveladoras não apenas da vida privada do grande escritor e sua amada esposa, mas reveladoras também da própria história do povo brasileiro. Rio de Janeiro, 26 de março de 2012.

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Abreviaturas

HA

Hannah Altmann

LA

Lotte Altmann

MA Manfred Altmann HA&MA Hannah Altmann e Manfred Altmann FZ Friderike Zweig LZ

Lotte Zweig

SZ

Stefan Zweig

[–?] indecifrável. [...] Substitui seções especificamente relacionadas a Eva Altmann.

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No mar tanta tormenta, e tanto dano, Tantas vezes a morte apercebida, Na terra, tanta guerra, tanto engano, Tanta necessidade aborrecida: Onde pode acolher-se um fraco humano, Onde terá segura a curta vida? Que não se arme e se indigne o Céu sereno, Contra um bicho da terra tão pequeno. Luís de Camões

Weh, wieviel Not und Fährnis auf dem Meere Wie nah der Tod in tausendfalt Gestalten! Auf Erden wieviel Krieg! Wieviel der Ehre Verhasst Geschäft! Ach dass nur eine Falte Des Weltballs für den Menschen sucher wäre, Sein bischen Dasein friedlich durchzuhalten, Indes die Himmel wetteifern im Sturm. Und gegen wen? Den schwachen Erdenwurm!

No Ano Novo de 1941, Stefan Zweig enviou para amigos e familiares um cartão-postal reproduzindo o Canto Primeiro, estrofe 106, do poema épico de Luís de Camões, Os Lusíadas (1572), no original em português e em tradução de sua autoria para o alemão.

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Introdução

O suicídio de Stefan Zweig, escritor internacionalmente aclamado, na aprazível cidade serrana de Petrópolis, em 22 de fevereiro de 1942, chocou e intrigou seus amigos, familiares e admiradores em todo o mundo. “Ele, que tanto amava a vida...”, lamentou Klaus Mann, filho do escritor alemão Thomas Mann. “Ele parecia tão forte e seguro...”, repetiu o dramaturgo francês Romain Rolland. O poeta Jules Romains recebeu a notícia no exílio, no México, com profundo pesar e tristeza. Outros escritores – como Emil Ludwig, Paul Stefan, Heinrich Mann, Berthold Viertel e Thomas Mann – explodiram de raiva e decepção.1 Tentando entender o suicídio, o pintor belga Frans Masereel destacou que, apesar de sua morte, o trabalho de Stefan Zweig permaneceria, e nele “encontraríamos razões para amar a vida”.2 As notícias e os comentários referiram-se quase que exclusivamente ao escritor de 61 anos de idade. Na melhor das hipóteses, mencionava-se somente de passagem que a grande figura literária não havia morrido sozinho: ao seu lado, envolvendo-o com o braço esquerdo, estava sua esposa de 34 anos, Charlotte Elisabeth Altmann – ou “Lotte”, como era conhecida.3 Embora Lotte tenha vivido e viajado com Stefan pela Europa, América do Norte e América do Sul, muito pouco tem sido revelado sobre ela ou sobre a vida e a relação do casal no exílio. Pesquisadores, biógrafos e jornalistas tendem a ignorar Lotte, tratando-a como uma jovem esposa tímida e submissa ao grande marido, muito fraca para ter qualquer impacto real sobre suas atitudes, ações ou trabalho. Alguns biógrafos, inclusive a ex-mulher de Stefan Zweig, Friderike Zweig, 17

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chegam a sugerir que o suposto silêncio de Lotte pode ter contribuído para a morte de Stefan. O escritor alemão Thomas Mann demonstrou sua frustração com a atitude de Stefan Zweig e criticou Lotte Zweig: […] quanto a Stefan Zweig, ele não pode ter se matado por desgosto, menos ainda por desespero. Sua carta de suicídio é muito inadequada. Afinal de contas, o que ele quer dizer com dificuldades de reconstrução da vida? O sexo frágil deve ter alguma coisa a ver com isso. Quem sabe um escândalo a caminho? [...]4

Compreensivelmente, mas ainda assim digno de nota, a historiografia tem se mostrado inconsistente.5 Quase todos os biógrafos de Stefan Zweig têm erroneamente caracterizado Lotte Zweig como uma “mulher silenciosa”, em grande parte devido à escassez de material escrito disponível sobre ela.6 Oliver Matuschek publicou informações, ainda que breves, que podem ajudar a entender o background cultural da família de Lotte em geral e dela em particular. A vida de Lotte Zweig foi prejudicada por uma interpretação tradicional do papel da mulher: na ausência de outras fontes, os biógrafos a reduziram ao papel de secretária obediente e passiva, em vez de vê-la como participante ativa no casamento, e ignoraram ou minimizaram sua contribuição profissional. Como mostram suas cartas, publicadas neste livro, Lotte estava longe de ser uma mulher silenciosa e não tinha medo de expressar suas opiniões. Embora seus pontos de vista sobre a vida fossem quase sempre semelhantes aos de Stefan Zweig, sua visão de mundo não deve ser desconsiderada ou confundida como se fosse uma mera cópia daquela do marido. Apesar de ser muito mais jovem do que ele, e pertencer a uma família menos rica, Lotte vinha de um meio social próspero e com valores culturais semelhantes aos dele. Como o marido, ela também era multilíngue, sabia escrever e falar em inglês, francês e alemão, entendia iídiche e, durante sua estadia na América do Sul, aprendeu português e espanhol. Parece também que Lotte aprendeu esperanto, provavelmente antes de conhecer Stefan, o que sugere que ela já nutria ideais internacionalistas independentemente dele.7 Mas o que suas cartas revelam, fundamentalmente, é uma voz feminina forte e pessoal, que possibilita um entendimento mais completo de sua própria saúde física e mental e permite uma nova visão sobre o casal Stefan e Lotte Zweig. Para melhor entender os Zweigs é importante ver Lotte e Stefan como companheiros de exílio e viajantes, apartados da terra natal e da lealdade 18

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Introdução

nacional. Eles ocuparam um espaço físico e mental ambíguo que os transformou em um “casal liminar”, categoria descrita pelo antropólogo Victor Turner como “nem aqui nem lá; eles ocupam um espaço intermediário, entre as posições que são atribuídas ou ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e protocolos”.8 Esse espaço, construído em um tempo de guerra e caos, era, contudo, relativamente privilegiado: ele permitia aos Zweigs escolher seu lugar de exílio e continuar viajando, graças à segurança oferecida pela receita de Stefan com seus substanciais direitos autorais e com a remuneração de suas palestras. E graças ainda à relativa liberdade de ter um passaporte austríaco e, depois, um outro britânico.

Zweig e sua reputação literária

Stefan Zweig nasceu em Viena no dia 28 de novembro de 1881 em uma família austro-judaica rica, cosmopolita e secular. Além do alemão nativo, aprendeu desde cedo italiano, francês e inglês, e recebeu uma educação privilegiada em Viena, apesar do evidente sentimento antissemítico já existente na capital austro-húngara. Ele decidiu não participar dos negócios da família no ramo de manufatura têxtil, preferindo se concentrar na carreira de escritor. Durante a Primeira Guerra Mundial adotou uma atitude pacifista, mudou-se para a Suíça e exortou os companheiros intelectuais europeus a também se oporem ao conflito. Em tempos normais, porém, ele evitava os grupos organizados porque acreditava que a verdadeira liberdade era um impulso espiritual que requeria informalidade. Em sua escrita, em vez de abordar questões políticas, Zweig estava mais interessado em explorar as propensões e sensibilidades psicológicas da condição humana, objetivo em grande parte influenciado pelo amigo e compatriota Sigmund Freud, e que ajuda a explicar por que seus escritos conseguiam angariar apelo universal. Durante as décadas de 1920 e 1930, Stefan Zweig se estabeleceu como o escritor de língua alemã mais traduzido e uma das figuras literárias mais respeitadas do período, recebendo o reconhecimento de seus contemporâneos da Europa e das Américas. Elegantes e magistralmente bem escritos, os trabalhos de Zweig – ficção, biografias e outros textos – inspirados na nova corrente psicanalítica, foram traduzidos para o inglês, francês, português, espanhol, chinês e outras línguas. Dentre suas novelas mais famosas encontra-se Brief 19

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einer Unbekannten [Carta de uma desconhecida], publicada pela primeira vez em 1922, a obsedante história de uma mulher destruída pelo amor. No período entreguerras, Zweig publicou muitas novelas, excelentes e ainda atuais, como Amok (1922), uma história de obsessão que termina em suicídio, e Vinte e Quatro Horas na Vida de uma Mulher [Vierundzwanzig Stunden aus dem Leben einer Frau] (1927), descrita por Sigmund Freud como “uma pequena obra-prima”, enquanto seu romance Coração Inquieto [Ungeduld des Herzens] (1938) explora o tema da culpa e da chantagem emocional. A reputação de Zweig no exterior, contudo, apoiava-se principalmente em suas biografias de grandes figuras históricas e literárias, tendo o The New York Evening Post afirmado que “o estilo de Zweig, limpo e vívido, todo músculo e nervo”,9 mudaria a percepção dos americanos de que os escritores alemães eram difíceis de ler. Em uma resenha publicada em 1935 sobre a nova biografia de Zweig, Mary, Queen of Scots [Maria, Rainha da Escócia], a revista literária Books escreveu que a imparcialidade do autor era “tão incomum que era praticamente única”, enquanto a revista Atlantic Bookshelf observava que a escrita de Zweig tinha “qualidade poética”, um “tom vital, vibrante e inspirador”.10 Tais elogios poderiam ter sido aplicados também a seus livros sobre personagens tão variados como Balzac, Dickens e Dostoievski (1920), Nietzsche (1925), Casanova, Stendhal e Tolstoi (1928), Freud (1932), Maria Antonieta (1932) e Fernão de Magalhães (1938), entre outros.11

Ambivalência política

Prevendo a dominação da Alemanha nazista na Europa, Stefan Zweig deixou a Áustria em outubro de 1933, cinco anos antes do Anschluss, a anexação da Áustria à Grande Alemanha pelo regime de Hitler. Zweig escolheu a Inglaterra como seu lugar de exílio autoimposto precisamente porque esse país lhe oferecia um nível de anonimato que ele não poderia ter em nenhuma outra parte da Europa, onde era uma celebridade. Em Londres, como escreveu o biógrafo Donald Prater, ele iria realmente aproveitar “a indiferença e o isolamento”.12 A recusa de Zweig, na Áustria ou outro lugar qualquer, de se afiliar às organizações políticas contrárias aos nazistas, ou mesmo de assinar petições, sofreu crítica intensa tanto durante o exílio como depois de sua morte. 20

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Introdução

As acusações mais frequentes levantadas contra Zweig eram de que sua posição pacifista era ingênua e que ele não sabia usar sua condição de celebridade para fazer publicidade de causas antinazistas. Alguns críticos foram bem além. Em sua resenha, publicada em 1943, sobre o livro de memórias de Zweig, The World of Yesterday, a cientista política de origem judaico-alemã Hannah Arendt fez uma análise devastadora da personalidade de Zweig, acusando-o de estar completamente desinformado sobre a vida dos judeus comuns, e referindo-se a ele como um “judeu burguês, homem de letras que nunca se preocupou com os problemas de seu próprio povo”. Para Hannah Arendt, Stefan Zweig merecia ser desprezado por estar deliberadamente distante das lutas que aconteciam a sua volta.13 A crença de Zweig naquilo que chamou de “unificação intelectual da Europa”14 pode ter sido prematura, mas esse ideal, expresso durante um período tão sombrio, foi um precursor do movimento que finalmente veio a criar a União Europeia. E com relação ao envolvimento político, não podemos dizer que Stefan Zweig tenha sido totalmente desvinculado de tudo. Ele era havia muito tempo membro do PEN Clube, organização internacional de escritores, instituição cada vez mais politizada no decorrer dos anos 1930, e, em 1938, em Londres, tornou-se um dos fundadores da Freier Deutscher Kulturbund [Liga de Cultura da Alemanha Livre], instituição que agregava pessoas das mais variadas correntes políticas. Embora Zweig detestasse frequentar reuniões políticas, no exílio ele concordou algumas vezes em participar de campanhas de apoio a colegas escritores. Em uma mensagem enviada a seu amigo H. G. Wells, em 1939, Zweig fala da esperança de que seu pedido de naturalização britânica – e portanto de um passaporte britânico – seria atendido em breve, e explica que se sentia no dever de se manifestar publicamente contra o fascismo: Espero não parecer presunçoso ao afirmar o dado puramente estatístico de que dentre os escritores de língua alemã nenhum tem hoje maior público em todas as línguas do que eu, e que apenas alguns poucos poderiam exercer tal influência em países neutros nos dois lados do oceano. Nestas críticas semanas recebi convites muito importantes para fazer palestras e programas radiofônicos nos Estados Unidos e em diferentes países da Europa [que] poderiam servir à causa da Democracia. Mas me sinto paralisado, uma vez que sou rotulado de “Estrangeiro Inimigo”, e nada é mais doloroso do que ficar ocioso num momento em que a colaboração de todos é um dever moral.15

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Duas vidas se cruzam em Londres

Foi em Londres, em 1934, que Stefan Zweig e Lotte Altmann se encontraram pela primeira vez. Apesar da diferença de idade e de reputação profissional, a origem social de ambos não era tão contrastante quanto alguns biógrafos têm às vezes presumido. E se, por um lado, é verdade que Stefan Zweig apresentou Lotte a muitos escritores e artistas famosos, por outro, Lotte introduziu Stefan a um animado círculo de profissionais e intelectuais ligados à sua família. Lotte Altmann nasceu no dia 5 de maio de 1908, em uma família de comerciantes de classe média, na cidade industrial de Kattowitz, na província prussiana da Silésia. Assim como seus três irmãos mais velhos, Lotte não era religiosa praticante, embora sua mãe o fosse, e seu avô tenha sido rabino em Frankfurt. Em 1922, quatro anos depois do fim da Primeira Guerra Mundial, a Alta Silésia foi transferida para a recém-criada República Polonesa. Os habitantes dessa região, marcada pela diversidade étnica – inclusive Katowice (antiga Kattowitz) – puderam optar por permanecer em sua terra natal com a nova cidadania polonesa, ou manter a nacionalidade alemã e mudar-se para aquilo que havia restado da Alemanha. Por causa disso, os Altmanns, como muitas outras famílias, foram separados: os irmãos de Lotte, Hans e Richard, permaneceram em Katowice para cuidar dos prósperos negócios da família, dedicados ao comércio de produtos elétricos e outros bens industrializados; Lotte, seu irmão Manfred e os pais escolheram se mudar para Frankfurt. Manfred Altmann foi estudar medicina, em Frankfurt e em Berlim. Nesse meio-tempo, Lotte frequentou a Musterschule, um prestigioso colégio [gymnasium] em Frankfurt reconhecido pelo ensino de línguas e ciências, embora sua formatura tenha sido adiada devido aos transtornos causados pela mudança de Kattowice e aos problemas de saúde. Em 1922, ela se matriculou na Universidade de Frankfurt, aparentemente com a intenção de se tornar bibliotecária. Em Frankfurt, mas também por um curto período em Berlim e Kiel, Lotte estudou inglês, francês e economia.16 Em janeiro de 1933, os nazistas tomaram o poder na Alemanha, o que marcou o início das restrições oficiais aos judeus. Em abril, o novo governo aprovou a Lei para a Restauração do Serviço Público Profissional, que excluiu os judeus dos empregos públicos, inclusive na administração 22

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Introdução

pública, nas escolas, universidades e hospitais.17 Um mês depois, Manfred Altmann deixou a Alemanha por causa das restrições impostas aos médicos judeus que trabalhavam no serviço público e por causa de ameaças anônimas que passou a receber por tratar uma paciente que havia sido espancada por agentes da Gestapo, a polícia secreta alemã. A Inglaterra era um destino natural para Manfred, que, como sua irmã e irmãos, falava inglês e já havia visitado Londres, onde tinha parentes próximos e bem estabelecidos. Mais tarde, naquele mesmo ano, a esposa de Manfred, Hannah, e sua pequena filha Eva, se juntaram a ele em Londres, onde ele havia aberto um consultório médico. Como parte do expurgo dos funcionários e estudantes judeus em toda a Alemanha nazista, no dia 16 de maio Lotte Altmann entregou às autoridades da Universidade de Frankfurt um questionário declarando sua situação de “não-ariana”. Quatro semanas depois Lotte foi oficialmente expulsa da universidade.18 A seguir, Lotte viajou para a Inglaterra, onde passou um curto período aprimorando seu inglês no Whittingham College, em Sussex, antes de se mudar de vez para a casa do irmão, que vivia com a família em Londres. Embora Lotte tenha mais tarde entrado e saído inúmeras vezes da Grã-Bretanha, ela usou a casa do irmão como seu endereço até 1935.19 Outros membros da família Altmann, entre os quais a mãe de Manfred e Lotte, Therese, uma tia e o irmão Hans, se juntariam a eles mais tarde.20 A história das experiências profissionais de Lotte é mais difícil de estabelecer. Sua condição inicial como imigrante não lhe permitia trabalhar legalmente na Grã-Bretanha. Quando, no dia 14 de maio de 1934, chegou em Dover, vinda de Calais, o funcionário da alfândega concluiu que ela estava “muito indecisa no tocante à provável duração de sua estadia”, mas mesmo assim permitiu que ela entrasse e permanecesse no país por até três meses, sob a condição de não aceitar “qualquer trabalho, remunerado ou não”.21 Durante o tempo em que esteve em Londres, Lotte recebeu várias extensões de prazo para permanecer na Grã-Bretanha.22 Em 1934, Stefan Zweig a contratou para trabalhar como sua secretária e assistente de pesquisa, embora, oficialmente, ela constasse como empregada apenas durante o período em que trabalhassem juntos no exterior. No dia 20 de fevereiro de 1936, depois de fixar residência em Londres, Zweig recebeu finalmente permissão do Ministério do Trabalho para contratar os serviços de Lotte Altmann mesmo enquanto estivessem na Grã-Bretanha.23 23

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PARTE I Cartas do Brasil e da Argentina

14 de agosto de 1940 a 22 de janeiro de 1941

VIA AIR MAIL ON-BOARD S.S. Argentina

[c. 14 de agosto de 1940]

Querida Hannah, Começamos esta carta a bordo do navio,1 o restante seguirá do Rio, onde esperamos encontrar notícias de vocês. Sinto dizer, mas estamos sendo terrivelmente mimados aqui no navio. Esta é a viagem mais maravilhosa que se pode imaginar. – Quem dera vocês pudessem estar aqui conosco pelo menos um desses doze dias. A temperatura agradável e uma brisa maravilhosa o dia inteiro, banhos de sol e de água, pessoas gentis, brasileiros, argentinos, suíços, holandeses, todos bons e velhos leitores de meus livros. – A partir de amanhã (depois de Barbados) devo conseguir uma cabine de luxo para trabalhar. Isso foi realmente necessário e um descanso depois dos dias quentes de Novayork, onde a pobre da Lotte quase teve um colapso.2 – Trabalhei duro lá para fazer algum dinheiro, trabalho menor mas divertido e tivemos que ver muita gente. Lamentáveis mesmo só os últimos dois dias; quando vocês telefonaram para falar sobre Heiner,3 foram os piores. Tive que consultar um médico por conta de um ataque do ciático e outras coisas mais. Lotte perdeu uma restauração 75

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Stefan e Lotte Zweig  Cartas da América: Rio, Buenos Aires e Nova York

e teve que correr para um dentista, depois tivemos que ir para a Alfândega e quando nosso navio partiu Lotte estava tão exausta que ficou o dia seguinte inteiro na cama. Mas que esplêndido descanso nós estamos tendo, e acho que o Brasil não ficará abaixo de nossas expectativas. Nossos amigos nos esperam lá com o maior carinho e eu tenho convites para fazer palestras no Uruguai, Argentina, Chile, Venezuela. Acho que todos estamos muito bem, mas ficaríamos perfeitamente felizes, como dificilmente conseguiríamos numa viagem de navio, se não fosse a ideia da guerra destruir muito dos nossos sentimentos. No navio não recebemos quase notícia alguma, apenas umas poucas linhas – os americanos estão indiferentes demais com tudo que acontece, eles ajudam mas não têm a compaixão certa nem a devida visão de futuro – ficamos felizes de deixar Nova York porque não aguentávamos mais aquelas “jolly news” em tempos tão difíceis. Há pessoas encantadoras a bordo, todos os embaixadores da conferência de Havana4 são meus parceiros de xadrez. Lotte vai escrever mais para vocês. Afetuosas lembranças Stefan

1

O SS Argentina pertencia à Republics Line, uma subsidiária da Moore-McCormack Line, fundada durante a Política da Boa Vizinhança do Presidente Franklin D. Roosevelt. O Argentina servia na rota Estados Unidos–Caribe–América do Sul e transportava até quinhentos passageiros.

2

Uma referência às crises de asma de Lotte.

3

Heiner Mayer, ver p. 270.

4

Na II Reunião de Consulta de Ministros de Relações Exteriores (conhecida como “Conferência de Havana”) de 21 a 30 de julho de 1940, os Estados Unidos concordaram em compartilhar com seus vizinhos a responsabilidade de proteger as Américas contra a agressão externa, uma mudança importante nas interpretações anteriores da Doutrina Monroe.

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PARTE I  Cartas do Brasil e da Argentina: 14 de agosto de 1940 a 22 de janeiro de 1941

VIA AIR MAIL ON BOARD S.S. Argentina

[14.8.40]

Queridos Hanna e Manfred, Enquanto estive em Nova York recebi uma única carta de vocês, uma carta das crianças e uma de Mama,1 e agora estamos novamente um longo tempo sem notícias – mas espero que tudo esteja bem com vocês, que Eva chegue com segurança e em boa companhia e que se sinta feliz em seu novo lar. Receio que minhas últimas cartas de Novayork tenham sido muito confusas e incoerentes, porque foi uma correria terrível aqueles últimos dias que trabalhamos com Viertel2 todas as tardes e às vezes à noite [...] Quanto a Heiner3 escrevi para o Sr. Berner, cunhado de Rose e pedi para ele um affidavit. Infelizmente seu cabograma chegou em um momento em que os últimos americanos que conhecíamos já tinham deixado Nova York e assim nós não conseguimos arranjar coisa alguma para ele. Também o Sr. Berner está fora até o final do mês, mas tenho certeza que ele fará isso se tiver oportunidade, eu pedi para ele me responder para o Rio por via aérea e eu então passaria um cabograma para vocês para informá-lo sobre as datas e nomes de modo que ele possa preencher o affidavit. De todas as pessoas que conhecemos o Sr. Berner pareceu o mais provável de fazer isso. Com relação a Ursel4 eu não tentei nada porque no caso dela a permissão de re-entrada britânica seria exigida se ela não viesse dentro da cota. E eu já soube de pessoas que tentaram coisas semelhantes sem sucesso. Espero encontrar longas cartas no Rio – você não falou nada sobre você mesma e sobre e o trabalho de Manfred. Alice5 ainda está com os Horngrads?6 Eu entendi direito que Marta poderia ficar; o que vocês vão fazer com Ursel quando Eva for embora, vocês podem deixá-la em Bath com as pessoas que se mudaram para lá e, se isso acontecer, vocês vão voltar para Londres? Façam exatamente do jeito que acharem melhor para vocês, não se preocupem com nossa casa, o mais importante é que a combinação seja conveniente para vocês. [O final desta carta – escrita por Lotte Zweig mas não assinada – foi perdido.]

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Stefan e Lotte Zweig  Cartas da América: Rio, Buenos Aires e Nova York

Querida Hannah, um pós-escrito. Nós almoçamos com o Sr S.7 e vou dizer francamente nossa impressão – eles são pessoas boas, ela não muito inteligente mas certamente de boa índole; eles parecem ter uma boa renda, talvez sejam “novos ricos” que gostam de ser ricas mas não “protzig”8 e de muito bom coração. Eu tenho impressão que Eva será muito feliz lá – é claro que o fato de estar longe de vocês vai estragar um pouco a felicidade dela e se você for sincera não desejaria que fosse de outra maneira. Minha cunhada também vai ficar atenta e Anita Cahn9 está também pronta para esperá-la no cais. Então não se preocupe demais: ela verá um novo mundo e tal conexão com a América pode ser valiosa para seu futuro. Quanto a Heiner,10 farei o melhor que puder. Infelizmente todas as pessoas que conheço aqui estão fora – talvez a gente consiga alguma coisa de última hora e então pediríamos que vocês nos enviassem um cabograma com todas as datas (data de nascimento etc.) necessárias para preencher os formulários. Seu Stefan

1

Therese Altmann, mãe de Lotte, ver p. 262

2

Berthold Viertel, diretor e roteirista de cinema (ver p. 274 ).

3

Heiner Mayer, irmão de Lotte, ver p. 270.

4

Ursel (Ursula), filha de Alice e Heiner Mayer, ver p. 270.

5

Alice Mayer, esposa de Heiner Mayer, ver p. 270.

6

Os Horngrads fabricavam espartilhos e Alice havia trabalhado para eles no passado.

7

Primeiros hospedeiros de Eva Altmann em Nova York. Os membros da família hospedeira são referidos aqui pela letra inicial “S”.

8

Exibida, orgulhosa.

9

Anita Cahn, amiga de Lotte Zweig em Nova York; possivelmente Anita Cahn Block (1882–1967), conhecida crítica de teatro, colunista de jornal e socialista americana .

10

Heiner Mayer, ver p. 270.

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PARTE I  Cartas do Brasil e da Argentina: 14 de agosto de 1940 a 22 de janeiro de 1941

[Sem data – a bordo do S.S. Argentina]

Querida Hanna, está tudo muito bem preparado agora para Eva como você soube por nosso cabograma – eles são pessoas ricas em uma casa grande num elegante subúrbio de Novayork e estão realmente dispostos a ter uma criança boa e educada. Nós os vimos hoje no almoço. Tudo foi mais difícil do que esperávamos porque todo mundo está fora de Novayork e isso é também a maior dificuldade para o affidavit de Heiner1 – não posso pedir a Huebsch2 porque ele já deu muitos e eu não sei se podemos encontrar alguém nesses dois últimos dias supercheios. Até agora eu não pude fazer nada por minha ex-esposa, estou tentando agora conseguir vistos mexicanos para toda a sua família. Mil agradecimentos por você ter resolvido tudo sobre a casa em Bath, espero que vocês possam de vez em quando ter lá um bom descanso dos dias agitados de Londres. As coisas estão difíceis aqui, porque eu tenho trabalhado muito apenas em coisas pequenas, mas vamos ter oportunidade de ler muito durante os doze dias no navio. Tenho convites para palestras na Argentina, Uruguai, Chile, Venezuela, mais do que provavelmente poderei fazer e você não precisa se preocupar conosco. Não sejam econômicos demais e nos mandem cabogramas para o Rio (de onde mandaremos imediatamente o endereço de nosso Hotel) – eu não confio em correio aéreo. Com grande amor e pressa seu Stefan Chegamos no Rio dia 21 de agosto.

1

Heiner Mayer, ver p. 270.

2

Benjamin W. Huebsch, editor americano de Zweig, ver p. 267.

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Stefan e Lotte Zweig  Cartas da América: Rio, Buenos Aires e Nova York

[Rio 23. Aout 1940]

Querida Hannah, ficamos muito felizes de receber sua carta de 8 de agosto tão rapidamente, as outras não chegaram, exceto a primeira. O Rio continua maravilhoso como sempre, nada no mundo se compara. Lamentavelmente receio que Lotte perderá a modéstia aqui, porque ela está sempre com embaixadores, ministros e fotografada em todos os jornais. Mas temos bastante tempo para nós, fazemos aula de espanhol três vezes por semana porque tenho palestras nos outros países que serão dadas em espanhol – eu não sei o que aceitar, no Chile sou convidado oficialmente com a visita obrigatória ao Presidente, no Uruguai tenho apenas duas palestras e cerca de três em Buenos Aires, desde que eu aceite fazer tudo isso. Por mim eu gostaria de ficar aqui, moramos em um hotelzinho delicioso1 com todo o conforto, em um apartamento bom e muito barato – que contraste com Nova York, onde a gente tem sempre a sensação de ser um “Hochstapler”2 e onde tenho um bom pretexto para não fazer barba todo dia para fazer jus aos olhares de desaprovação. No navio foi delicioso, 12 dias de tempo perfeito com banhos de piscina e uma seleção das pessoas mais interessantes e cultas. Você não pode imaginar como as classes altas aqui são refinadas e cultas – uma elite pequena porém maravilhosa: cultura nas casas, nas maneiras e são de uma polidez que até ofusca a minha própria. O quarto de Lotte está cheio de flores maravilhosas, nós temos automóveis para passear e ao mesmo tempo as pessoas não são insistentes. A única coisa que me impede de morar aqui é o calor – chegamos em pleno inverno mas está mais quente do que Bath em julho e a gente se arrepia só de pensar como deve ser quando a primavera chegar (em outubro) e o verão (em dezembro). O mais estranho é que eu fique tão indiferente com o que acontece com meus livros, que não me importe de não receber cartas sobre eles. Consegui para minha ex-esposa um visto de visitante para os Estados Unidos e possivelmente para Portugal mas não sei se ela partirá sem suas filhas.3 Qualquer correspondência com a França está quase impossível e não posso enviar cabogramas – a propósito, cabogramas daqui são assustadoramente caros, mas não hesite em nos enviar cabogramas sempre que puder. Devemos ficar aqui de qualquer modo até as primeiras semanas de outubro e possivelmente até mais tempo, já que temos que ir depois para os outros países americanos que são de alguma maneira mais frescos no verão (inverno para vocês). Aqui 80

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PARTE I  Cartas do Brasil e da Argentina: 14 de agosto de 1940 a 22 de janeiro de 1941

podemos acompanhar os acontecimentos bem melhor e estamos muito mais confiantes; a solidariedade na América do Sul pela Inglaterra é muito grande e as pessoas se identificam muito mais com a Europa do que com os Estados Unidos. Esperamos que vocês estejam bem e, na medida do possível, se divirtam em Bath e que saibam que nossos melhores votos estão com vocês. Stefan. [23.8.40]

Queridos Hanna e Manfred, Ontem nós recebemos sua carta de 8 de ago. e quando chegamos hoje encontramos sua carta de 12 de julho, ambas enviadas via aérea, e isso é tudo que recebemos de vocês até agora, exceto por aquela carta Clipper4 de Londres. Será melhor se no futuro vocês numerarem suas cartas e eu confirmar qual carta recebemos. É um acontecimento para mim receber notícias de vocês, e quanto mais frequentes e longas forem as cartas, melhor. Por exemplo, eu não sei bem se afinal de contas Marta pode ficar com Manfred e se Rosa ainda está com ele – também não sei o que você vai fazer quando Eva for embora, voltar para Londres? Faça inteiramente o que lhe der prazer e não pense muito na casa, a não ser como um lugar de descanso e divertimento para você e Manfred. Eu sei que vai ser difícil para vocês ficarem sem Eva, mas espero que não seja por muito tempo e que ela seja feliz com a família S. Eles são pessoas boas e simpáticas e não tão ricos quanto pensei inicialmente, apenas bem de vida, ganhando bem e, como todos os americanos, gastando à vontade. Sobre o affidavit de Heiner, enviei daqui um cabograma dizendo que ele seria enviado em breve, dos Estados Unidos, por Jacob Landau.5 Jacob Landau viajou conosco de Nova York. Ele é diretor da Agência Telegráfica Judaica – Jewish Telegraphic Agency6 –, em Nova York e enviou daqui um cabograma para sua esposa pedindo que ela mesma enviasse o affidavit ou mandasse através do seu escritório. É um pouco mais complicado conseguir isso daqui, mas o Sr. Landau está confiante que o affidavit possa ser enviado em sua ausência. Ele é um homem muito bom e certamente cuidará – embora só por correspondência – para que o assunto não seja esquecido. Eu aprendi muito com a história do affidavit de Eva. Vamos torcer para que isso ajude Heiner7 a obter o dele e se Alice8 estiver disposta a trabalhar em 81

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Stefan e Lotte Zweig  Cartas da América: Rio, Buenos Aires e Nova York

uma casa de família ela encontrará trabalho facilmente e depois ela pode aos poucos construir um negócio próprio. Quanto a nós: fizemos uma bela travessia na companhia de sul-americanos muito agradáveis e estamos sendo mimados aqui. Devo admitir que a despeito de todos os acontecimentos e apesar de sempre me sentir um pouco saudoso por causa de vocês, da nossa antiga família-de-Bath e da própria cidade de Bath, nós realmente gostamos daqui. O Rio é tão bonito quanto Stefan havia prometido, as pessoas tão boas quanto ele falou e o inverno suave, você se sente perfeito com apenas um vestido leve de verão e eu não precisava ter trazido minhas coisas de inverno para este inverno brasileiro. Ficamos felizes em receber seu cabograma no navio e saber que Manfred passou o fim –de semana do aniversário de Eva com vocês. Quem dera pudéssemos estar aí com vocês. Espero que estejam todos bem. Por favor mande meu carinho para Mama e fale para ela de minha carta. Devo escrever para ela em breve e talvez inclua umas fotos tiradas quando nós chegamos aqui. Afetuosas lembranças para todos, especialmente para Lizzie9 que parece ter se transformado em sua caseira, Lotte Mande também um cabograma quando Eva tiver embarcado no navio para que nós possamos informar nossa cunhada em Nova York.

1

Paysandú, um elegante porém discreto hotel em estilo art déco localizado na Praia do Flamengo.

2

Trapaceiro, vigarista.

3

Friderike Zweig (ver p. 270) e suas filhas Alexia Elizabeth e Susanne Benedictine von Winternitz.

4

Carta aérea; no contexto, “clipper” significa um hidroavião da Pan American World Airlines.

5

Ver p. 271.

6

A Agência Telegráfica Judaica (Jewish Telegraphic Agency), fundada por Jacob Landau em 1917, coletava e distribuía notícias relacionadas às comunidades judaicas em todo o mundo.

7

Heiner Mayer, ver p. 270.

8

Alice Mayer, esposa de Heiner Mayer, ver p. 270.

9

Litzie Philby, ver p. 271.

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PARTE I  Cartas do Brasil e da Argentina: 14 de agosto de 1940 a 22 de janeiro de 1941

Hotel PAYSANDÚ

6.9.40

Querida Hanna, querido Manfred, Acabei de escrever uma longa carta para Mama e não me sinto com força suficiente para escrever para vocês da mesma maneira, especialmente porque escrevi uma longa carta para vocês há poucos dias. Só uma coisinha sobre Mama: ela me escreveu dizendo que ia se mudar para o quarto pequeno de solteiro e eu pedi em minha carta para ela ficar no dela. Vocês têm pleno pouvoir1 para pagar a dívida de um pound e até mais se necessário retirando de nossa conta. – Espero que vocês ainda estejam todos bem e tão contentes quanto indicava sua última carta de Bath. Estou esperando notícia de Eva. Manfred tem que trabalhar muito e tem que sair o tempo todo? – Estamos bem e felizes e nos preparamos para o verão que teremos aqui e nos outros países até dezembro. Continuamos a trabalhar pela manhã, saímos à tarde, aprendemos espanhol,2 conhecemos muitas pessoas. Estou me concentrando muito nos nomes e rostos e me sinto orgulhosa de reconhecer a maioria das pessoas, mesmo em ambientes diferentes. Estou lendo as notícias da guerra todos os dias e aprendo muito português dessa forma. Embora essas reportagens sejam muito longas, não acho que elas digam nada a mais – ou talvez não tanto quanto o que vocês leem nos jornais ingleses. – Por intermédio de amigos em comum conhecemos os Huyn.3 Eles se sentem muito bem aqui mas ele ainda não conseguiu nada.– Ficaremos aqui até meados de outubro e depois enviaremos um cabograma. Mas o endereço postal continuará Editora Guanabara.4 As mais afetuosas lembranças a todos, carinho e beijos para vocês, Lotte

1

Plenos poderes.

2

Lotte estava estudando espanhol para acompanhar Stefan em sua viagem para palestras na Argentina. Apesar do grande amor pelo Brasil, Stefan e Lotte não pareciam gostar da língua portuguesa.

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Stefan e Lotte Zweig  Cartas da América: Rio, Buenos Aires e Nova York

3

Conde e Condessa Huyn. Até o Anschluss, o Conde Huyn serviu como adido de imprensa na Embaixada Austríaca em Londres. Em 1939, ele se tornou locutor do serviço de transmissão em alemão da rádio BBC.

4

A editora de Stefan Zweig no Brasil.

Sua carta de 26 de ago. chegou esta manhã.

Até meados de outubro

FLIGHT POST

Hotel PAYSANDÚ, Rio depois dessa data a/c Editora Guanabara 132 Rua Ouvidor, Rio que encaminhará as cartas

Rio, 10.9.40

Queridos Manfred e Hanna, Obrigada pelo cabograma de vocês avisando que Eva viajou. Espero que ela faça ótima viagem e seja feliz em seu novo ambiente. Pedi a S. para me enviar um cabograma comunicando sua chegada e espero que vocês façam o mesmo. É claro que estamos muito ansiosos para receber notícias de vocês. Por favor, escrevam com mais frequência. Fiquei surpresa [quando soube] que nossas cartas não tinham chegado ainda porque escrevemos pelo menos uma vez por semana. Nós só escrevemos daqui via aérea. Suponho que vocês vão receber algumas cartas de uma só vez. Nós as enviamos para o endereço de vocês de Londres. Espero que estejam todos bem quando esta carta chegar. E se vocês acharem melhor que a Mama se mude, fale para ela não se preocupar com o custo e eu espero que ela consiga autorização para sair e ir para onde ela quiser porque não acho que ela deva ir para Bath. – Nós estamos perfeitamente bem neste lugar maravilhoso e vamos sentir deixá-lo em meados de outubro. Mas o Rio fica muito quente em novembro, e por isso Stefan dará umas palestras no Uruguai, Argentina e Chile. Existe uma possibilidade de viajarmos de 84

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PARTE I  Cartas do Brasil e da Argentina: 14 de agosto de 1940 a 22 de janeiro de 1941

Buenos Aires para o Chile através do estreito de Magalhães, mas isso ainda não está certo. Esperamos ir para o Chile em dezembro e, em janeiro, para Nova York – hoje nós pegamos os nossos vistos de visitante para palestras. – Aqui no Brasil Stefan irá a Sao Paulo por um dia para uma palestra, depois nós fomos convidados pelo governador de Minas Geraes para conhecer sua Província onde existem cidades antigas interessantes, como Ouro Preto e Mariana, uma mina de ouro etc. Como iremos de avião, ficaremos longe do Rio não mais que 2 ou 3 dias. As mais afetuosas lembranças e carinho, Lotte

Se não fosse por vocês, estaríamos perfeitamente felizes. Lotte se comporta aqui como uma grande dama e preside reuniões, é fotografada e pode ser vista em todos os jornais em toda a sua beleza. À noite ficamos sempre completamente confusos por falarmos em rápidos intervalos inglês, francês, espanhol, alemão, iídiche, português; você vai ver em nossas cartas que não somos mais capazes de escrever corretamente em nenhuma língua. Na próxima semana tenho uma programação cheia e nós confundimos todas as pessoas por causa de seus nomes intermináveis (todo mundo têm pelo menos três nomes) e cada nome com pelo menos três línguas. É difícil reter um único nome se você encontra todos os dias uma dúzia deles. Eu pedi a S. para deixar Eva enviar cabogramas com mais frequência por nossa conta porque eu entendo que vocês ficarão muito ansiosos por notícias dela. Seu Stefan Zweig

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Stefan e Lotte Zweig  Cartas da América: Rio, Buenos Aires e Nova York

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PARTE II Interlúdio em Nova York: 24 de janeiro a 15 de agosto de 1941

PARTE II Interlúdio em Nova York 24 de janeiro a 15 de agosto de 1941 155

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PARTE II Interlúdio em Nova York

24 de janeiro a 15 de agosto de 1941

Depois da agitada viagem de cinco meses pelo Brasil e pela Argentina, o casal retornou a Nova York, chegando em 24 de janeiro de1941. Com exceção de algumas poucas semanas que passaram em New Haven, no condado de Connecticut, eles permaneceram sete meses em Nova York, imersos na redação de seus projetos, o que incluía completar a edição alemã dos livros Brasil: País do Futuro (e revisar sua tradução para o inglês e para o francês) e Amerigo: A Comedy of Errors in History; compor o primeiro rascunho de The World of Yesterday; e retomar a interrompida biografia de Balzac. Como antes, os Zweigs continuaram a escrever com regularidade para Hannah e Manfred, mas suas cartas agora focavam problemas práticos e questões financeiras. A casa em Bath continuou a ser um tópico relevante porque era utilizada para organizar a ajuda prática aos amigos e familiares na Inglaterra (requerimentos de vistos, affidavits, trabalho, remessas de alimento e dinheiro). A maioria das cartas, contudo, tinha como foco principal os cuidados com Eva, a filha de 12 anos de Hannah e Manfred que havia sido evacuada da Inglaterra para Nova York. *** Depois do que foi para eles um opressivo verão brasileiro, a novidade do frio e da neve de um severo inverno nova-iorquino durou pouco. Abrigados provisoriamente no discreto e elegante Hotel Wyndham, na Rua 58 West, a menos de um quarteirão do Central Park, os Zweigs desde o início fizeram tudo que podiam para permanecer tão anônimos quanto possível, buscando tempo para eles mesmos. Em Nova York, com exceção de Alfred Zweig (irmão de Stefan), Benjamin W. Huebsch (editor de Stefan da Viking Press) e mais uns poucos amigos, como Thomas Mann, Jules Romains e a primeira mulher de Stefan, Friderike, os Zweigs fizeram questão de evitar companhia, procurando relaxar e se recuperar.1 “Estamos contentes de parar com os voos 157

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Stefan e Lotte Zweig  Cartas da América: Rio, Buenos Aires e Nova York

e visitas turísticas”, escreveu Lotte para Hannah e Manfred. “O fato de que nossos quartos deem para um grande muro de pedra é quase um contraste bem-vindo, depois de todas as coisas e paisagens lindas que vimos. Nós nos aclimatamos muito facilmente ao frio, mas achamos mais difícil nos acostumar com a calefação central!!”2 Stefan, no entanto, considera que o clima está “o pior possível”,3 um contraste total com o tempo bom do Brasil. Na altura do mês de março suas queixas em relação ao frio e ao vento constante tornaram-se cada vez mais fortes.4 Lotte chega a dizer que “já estamos totalmente cansados do inverno”5 e, no final do mês, decepcionado, Stefan comenta que “o inverno estava duro e interminável, e nós não conseguimos fazer uma única caminhada em mais de seis semanas”.6 *** Quando não estava ajudando Stefan em seu trabalho, a principal preocupação de Lotte era certificar-se de que sua sobrinha estava sendo bem educada e bem cuidada. “Hoje encontrei a proprietária aqui em Novayork”, informa Lotte no início de suas buscas por uma escola e um lar adequados para Eva, “um tipo que lembra os judeus galicianos mas muito civilizada e inteligente.”7 Embora menos envolvido com o dia a dia e bem-estar de Eva, Stefan também tinha opiniões fortes sobre o ambiente que seria adequado para sua sobrinha, refletindo estereótipos europeus semelhantes aos de sua mulher e revelando uma certa tendência para a arrogância intelectual. Ao comentar sobre Amity Hall, o lar para crianças em Croton-on-Hudson dirigido por Olga Schaeffer e seu marido, o poeta Albrecht Schaeffer, para onde Eva tinha sido levada, Stefan mostrou-se impressionado pela atmosfera “filosófica e abstrata” que era cultivada lá. A contragosto, ele reconheceu que era necessário para Eva frequentar uma escola americana (“sou cético no que tange à forma puramente americana de educação, que é superficial e só cria arrogantes malformados”), mas pelo menos os Schaeffers podiam oferecer o contraponto de uma boa formação moral. A prova disso, para Stefan, era o fato de que, embora fossem protestantes e não judeus, eles haviam escolhido sair da Alemanha por “repugnância e sentimento de liberdade, sem razões raciais ou políticas”. “Eles são pessoas corretas”, escreveu Stefan, “sem o ressentimento [...] dos refugiados de Novayork.”8 Estar em um ambiente como esse era o mais importante, já que Stefan tinha uma visão negativa sobre a sociedade americana (“ficamos 158

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PARTE II  Interlúdio em Nova York: 24 de janeiro a 15 de agosto de 1941

revoltados com a falta de polidez, a grosseria, o jeito arrogante das crianças americanas”.)9 e desconfiava dos refugiados em geral. *** Em contraste com o amor que sentia pelo Rio de Janeiro, Stefan Zweig não conseguia encontrar quase nada de positivo para dizer sobre Nova York. Cansado de quartos de hotel, de restaurantes, de fazer e desfazer malas, e da falta de espaço para trabalhar, Stefan aceitou uma oferta para passar dois meses como convidado da Yale University, em New Haven, a uma hora e meia de trem de Nova York.10 Embora os Zweigs não tenham conseguido encontrar um apartamento por lá, e se instalado em dois quartos de hotel11 (como outros hotéis americanos, na opinião de Stefan, um hotel que “lembrava uma estação de trem, sem nenhum toque ou interesse pessoal”),12 por alguns momentos eles pareciam satisfeitos. “Estou aproveitando essa vidinha sossegada para descansar”, escreveu Stefan, “você não pode imaginar como eu agora odeio Novayork com suas lojas de luxo, seu ‘glamour’ e esplendor – nós, europeus, lembramos sempre de nossos países e de toda a miséria do mundo inteiro. Vivemos aqui como em Bath, no meio de pessoas provincianas, e eu gosto da facilidade oferecida pela Yale University de poder levar para casa tantos livros quanto eu queira. – Estou com uma verdadeira fome de ler e estudar de novo.”13 Mas como estavam a uma curta distância da cidade de Nova York, o casal também podia ver amigos e conhecidos quando quisesse, além de poder se concentrar no trabalho e pensar no futuro: Newhaven é um lugar pequeno e não refinado e, sem carro, a gente fica perdido em uma cidade pequena americana. Se somos convidados, alguém tem que nos trazer de volta porque não há ônibus suficientes – pressupõe-se que mesmo um homem pobre tenha seu carro nos Estados Unidos (exceto em Nova York, onde paradoxalmente isso seria impraticável). As vantagens são 1) a biblioteca da Universidade. Posso levar para casa tantos livros quanto queira e posso eu mesmo pegar nas estantes. E isso é para mim um deleite porque fiquei sem livros por quase um ano. 2) Não sou incomodado por toda essa gente que agora se amontoa em Nova York – Viena inteira, Berlim, Paris, Frankfurt e todas as cidades possíveis. Com isso eu tenho tempo para trabalhar e até para pensar. 3) Temos possibilidade de rapidamente ver aqueles que são os verdadeiros

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bons amigos. Estiveram aqui Sholem Asch,14 Joachin Maass,15 Jules Romains,16 Bertold Viertel.17 Sexta-feira virá van Loon.18 Como você pode ver, uma seleção muito boa. 4) Contando tudo, viver aqui é mais barato: não o Hotel, de que eu não gosto muito, mas todas as despesas diárias e os schnorrers.19 Faço aqui alguns trabalhos menores e me preparo para um maior que escreverei no Rio se nós voltarmos para lá.20

Depois de dois meses, e tendo terminado seu pequeno livro sobre o navegador Américo Vespúcio, os Zweigs estavam novamente prontos para seguir em frente. “Estamos felizes por estar de volta a Novayork”, escreveu Lotte logo depois que eles retornaram à cidade em abril, “Newhaven teve pelo menos esse efeito positivo: me fazer gostar de Novayork de novo.”21 *** Em Nova York, os Zweigs mais uma vez tentaram manter o isolamento, mas Stefan frequentemente lamentava-se que a maioria de seus amigos de língua alemã estivesse na Califórnia. Sendo assim, eles estabeleceram relações com um círculo pequeno “porém interessante” de escritores britânicos, tais como Somerset Maugham, A. J. Cronin, Bertrand Russell e W. H. Auden, todos vivendo, permanente ou temporariamente, em Nova York ou nas cercanias.22 Provavelmente persuadido por seu amigo Jules Romains, presidente da secretaria internacional do Pen Clube, Stefan, de forma bastante relutante, concordou em falar em um evento com o objetivo de arrecadar fundos – “um desses jantares enormes com 1.000 pessoas que eu tenho evitado durante toda a minha vida”23 – para a abertura de uma filial europeia do Pen Clube em Nova York. Sendo essa uma das poucas organizações que apoiava publicamente, ele sentiu que não podia recusar o convite, porque “todos têm que cumprir seu dever”, apesar de ter sido muito crítico em relação ao que entendeu como natureza egocêntrica, na conferência do Pen Clube de 1936, em Buenos Aires.24 Mesmo assim, cauteloso, ele “pelo menos tentaria evitar toda a fraseologia de democracia que será derramada essa noite por uma meia dúzia de outros oradores”.25 Dada a importância dos nomes que constavam da lista de oradores, a ausência de Stefan Zweig teria certamente parecido estranha para qualquer pessoa que soubesse que ele estava vivendo em Nova York: “Somerset Maugham26 falará pelos ingleses – todo mundo dez minutos cravados –, Sigrid Undset27 pelos escandinavos, Jules Romains28 pelos franceses e eu pelos escritores de língua 160

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alemã, os outros oradores têm 1 minuto cada um; eu tenho que falar uma metade em alemão, a outra em inglês. Tudo isso será transmitido por ondas curtas para o mundo inteiro”.29 Para Stefan, o encontro trouxe à luz a “insignificância que os autores revelam em tais ocasiões”, acrescentando que “às vezes a gente se pergunta se essas são as mesmas pessoas que realmente escreveram lindos versos e mostram sabedoria e psicologia em seus livros”.30 De acordo com Lotte, o evento foi um sucesso – na verdade ela parece até mesmo ter aproveitado a noite, talvez relembrando grandes ocasiões semelhantes das quais participou na Argentina e no Brasil: Para mim foi muito interessante e divertido porque era meu primeiro grande jantar público, sentei à mesa das celebridades entre Somerset Maugham (que foi muito simpático e nem um pouco frio como eu imaginava que ele fosse) e o Conde Sforza.31 A maioria dos escritores europeus que nós sempre lemos estava presente e eu espero que não tenha sido decepcionante para os milhares de pessoas que pagaram 3 dólares cada para ter o privilégio de constatar que os escritores não parecem realmente diferentes das outras pessoas. Houve muitos discursos e felizmente, por causa do rádio, os oradores tinham o tempo estritamente limitado – Stefan – Jules Romains, Maugham, Dorothy Thompson,32 Sigrid Undset, entre 6 e 10 minutos, os outros falaram em suas línguas maternas e tiveram no máximo dois minutos cada. Em seguida houve o inevitável leilão para levantar fundos para os refugiados e ficamos surpresos que muitas pessoas tenham doado publicamente 300 ou 400 dólares cada. Foi levantado cerca de 5.000 dólares, suficiente apenas para pagar as despesas de viagem de 10 pessoas da Europa, porque elas só podem sair pelas rotas mais extravagantes – via Rússia e Japão ou via África e Martinique, e somente uns poucos sortudos via Lisboa direto para os EUA.33

*** Desde o início, Stefan mal podia suportar Nova York. “Fico deprimido só de ver as lojas luxuosas, a irreflexão de toda essa gente, a estupidez dos refugiados e a falta de compaixão verdadeira”,34 escreveu ele logo depois que chegou do Brasil. Por volta de abril, depois do relativo isolamento de New Haven, Stefan estava caindo em um tipo de autopiedade narcisista: Nós não visitamos quase ninguém. Estou cansado da monotonia da guerra – os judeus – e a conversa sobre affidavit que, com suas mil variações, permanece estéril.

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Não vou nem mesmo ao teatro. Não tenho ânimo para nenhuma diversão enquanto a Europa sucumbe sob o domínio da besta e enquanto vocês e todos os nossos amigos na Inglaterra estão em perigo diário.35

Em contraste marcante com os conselhos, ajuda financeira e outros tipos de ajuda prática que ele oferecia para os amigos – seus e de Lotte – exilados na Inglaterra e em toda parte, Stefan também podia ser extremamente intolerante. Como grupo, Stefan via os refugiados com um misto de desconfiança e irritação, ressentindo-se do tempo que era obrigado a gastar com pessoas pedindo favores devido a sua imaginada riqueza e influência. Uma pessoa que ele destacou pelo ridículo foi o escritor vienense Paul Frischauer,36 um conhecido que Stefan esperava que chegasse em breve a Nova York “para encontrar todos os outros Frischauers”37 – uma referência aos refugiados já instalados na cidade. “Existe um tipo de gênio nele”, Stefan costumava repetir sobre Frischauer, “capaz de superar todas as dificuldades e, quanto mais suja a água, melhor ele nada. Eu queria ter a sua tenacidade e coragem. Com nossa consciência moral ‘alérgica’, não estamos suficientemente preparados para tempos como estes.”38 Poucos dias depois de chegar em Nova York, Stefan visitou o consulado britânico para verificar suas possibilidades de voltar para a Inglaterra, mas foi informado de que essa ideia era, para todos os efeitos e propósitos, impossível, estando os voos totalmente reservados por meses.39 Diante disso, seus pensamentos cada vez mais se voltavam para o Brasil. “Mas”, ponderava ele, “quem pode fazer planos!? Quem pode dizer ‘eu vou’ ‘eu pretendo’? – A gente tem que se dar por satisfeito simplesmente por estar vivo e eu quero, com toda a minha força de vontade, continuar trabalhando em meio a esse turbilhão.”40 Para Stefan, a vida estava em compasso de espera: “Vivemos e esperamos e esperamos e vivemos.”41 Ele pesava obsessivamente os prós e os contras de suas possíveis ações, mas sentia não ter poder para influir sobre qualquer decisão que viesse a tomar: Nada está garantido e nós não podemos fazer planos. Os Estados Unidos têm suas vantagens – bibliotecas, possibilidades de renda etc – Mas o Brasil – beleza, vida tranquila e barata. Nossa decisão depende de muitas coisas, especialmente da evolução dos acontecimentos no mundo. A vida de qualquer um não passa de um micróbio no corpo desse monstro que chamamos: A Guerra. Será que algum dia ainda veremos uma humanidade mais sensata?42

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Stefan continuava a ser consumido pela sensação de estar preso na armadilha da guerra e da burocracia: a grande dificuldade agora é assegurar com antecedência a volta [para Nova York] quando o verão começar [no Brasil], porque os vistos de visitantes não estarão mais disponíveis (especialmente no caso de uma declaração de guerra global). Por outro lado, se tirarmos um visto de imigrante isso pode ser facilmente mal interpretado como se eu quisesse trocar minha cidadania. Vocês não podem imaginar quantas dessas questões faço diariamente e, ao mesmo tempo, quantas cartas e cabogramas aparecem todos os dias solicitando affidavits e vistos. Mas continuo trabalhando. Meu livro sobre o Brasil (que talvez seja útil para estreitar as relações culturais entre o mundo de língua inglesa e latina) será publicado em inglês no outono (o tradutor43 é terrivelmente lento) e eu ainda tenho algum trabalho novo à mão, portanto não temos preocupações materiais, mas as preocupações morais são grandes o suficiente. Os Estados Unidos darão toda a ajuda possível à Inglaterra, o país inteiro transformou-se em uma enorme fábrica. O que nós pessoalmente tememos é ficarmos sem comunicação durante toda a duração da guerra e também por Eva. Não gostaríamos disso, porque ninguém pode prever quanto tempo isso vai levar...44

O sentimento de frustração também dominava seus pensamentos: “Nós perdemos muito tempo aqui pensando no que vamos fazer depois.”45 Stefan aceitava que muitos de seus amigos europeus parecessem satisfeitos com as novas vidas que estavam construindo na Califórnia, mas essa opção – que certamente estava aberta para os Zweigs – não era a que ele estava interessado em perseguir: Enquanto outros se estabeleceram em casas modestas e começaram uma nova vida, nós não temos certeza sobre quanto tempo devemos ficar e o que decidir – ainda será possível voltar para o Brasil? Ainda vão existir navios e aviões? (...) Portanto nós temos que esperar e esperar não é muito adequado para um trabalho de concentração, mas estou desocupado e tenho à mão diferentes ofertas e escolhas.46

Expressando opiniões semelhantes às do marido, Lotte também sofria sem conseguir decidir se ela e Stefan deveriam permanecer nos Estados Unidos, ir para o Brasil ou, a despeito de todas as dificuldades práticas envolvidas, retornar para a Inglaterra: 163

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PARTE III Cartas do Brasil

24 de agosto a 22 de fevereiro de 1942

VIA AIR MAIL 24 ago., 41

ON-BOARD S.S. Uruguay

Queridos Hanna & Manfred, Em breve chegaremos no Rio. Estou feliz por termos vindo de navio, o que foi muito repousante, enquanto a viagem de avião teria sido muito cansativa. Eva deve ter escrito para vocês contando que a Sra. Sch. a trouxe até o navio para se despedir de nós, o que foi uma maneira emocionante de comemorar o aniversário dela – pegou o trem para NY muito depois da hora de ir para cama e retornou por volta das 2 da manhã.[...] – Nós fizemos uma viagem agradável e descansamos bem, eu me recusei a trabalhar e Stefan também não fez muita coisa. No Rio procurarei imediatamente um apartamento ou uma pequena casa para que possamos nos instalar pelo menos por alguns meses. Espero que não demore muito para receber notícias de vocês e que sejam somente notícias boas. Marta já esteve em Bath? E como ela se sentiu como hóspede? E o Sr. Honig, que voltou para a Inglaterra há um mês, já esteve com vocês? Dissemos a ele que procurasse vocês em Bath, em caso de necessidade. Nós o víamos com muita frequência e gostávamos muito dele.1 – Temo que minha carta não esteja muito coerente, mas estou escrevendo no convés do navio, ouvindo a BBC News e o noticiário americano e lendo, tudo ao mesmo tempo, para não falar das pessoas que passam etc. De qualquer maneira, vocês sabem que meus pensamentos estarão sempre com vocês. Já faz quase dois anos que a guerra começou e eu me lembro ainda hoje muito vividamente daqueles dias. Nesses dias a bordo do navio, descansando nas cadeiras 179

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do convés o dia inteiro, sempre me pego sonhando acordada, desejando o impossível e imaginando como eu aproveitaria muito mais a viagem se vocês pudessem estar ao meu lado, sentados em uma dessas cadeiras. Como isso não pode acontecer exatamente agora, nós precisamos manter contato por carta, e, portanto, por favor, escrevam com frequência. Com o maior carinho e beijos Lotte

Queridos H. & M., agora nós temos que economizar papel porque o correio aéreo só aceita cartas do Rio com apenas 5 gramas. Fizemos uma viagem de navio extremamente tranquila e estamos os dois novamente restaurados depois do grande desgaste de Nova York – eu nunca estive tão deprimido como nas últimas semanas e Lotte também não tem estado muito animada. Queremos passar alguns meses em um lugar tranquilo e não uma vida de Hotel, e esperamos encontrar isso perto do Rio. Nos Estados Unidos você já sente a guerra na atmosfera, os preparativos são tremendos e nossa vida ficou ainda mais cara do que era. – Acredito que nós vimos o esplendor e o luxo lá pela última vez, porque esta guerra infelizmente será uma guerra muito longa e os gastos serão simplesmente inacreditáveis. Estivemos aqui com a irmã de Morgentau, que tem toda estrutura financeira à mão, seu marido é de Viena e há muitos anos trabalha como arquiteto em Nova York. Eu já comecei a aprender português porque devo ficar aqui pelo menos seis meses – nós não sabemos quando será possível ir para os Estados Unidos e se isso será uma coisa boa para nós, que estamos querendo descansar de viagem. Foi difícil para nós deixar Eva para trás, mas sentimos que ela está melhor lá com sua “titia” do que conosco, que não sabemos nem para onde vamos; talvez eu tenha que dar palestras novamente na Argentina. Acho que estava certo em vir para o Brasil, onde tenho direito de residência permanente, enquanto nos Estados Unidos, ao contrário, eu era apenas um visitante e, em caso de guerra, teria todos os pequenos aborrecimentos que recaem sobre os estrangeiros (embora, nesse caso, um estrangeiro amigo). Espero que vocês tenham recebido minha carta falando sobre a casa, para mim é importante que vocês disponham da casa de tal maneira que possam assumi-la completamente. – Não pensem em mim, eu escrevi tudo que eu tinha na chaminé2 (como a gente 180

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dizia na escola) e fico feliz que vocês possam usar tudo que tenho – minhas roupas, sapatos, móveis e tudo o mais; soube que na Inglaterra roupas, ternos etc. estão difíceis de conseguir e portanto você, Hanna, pode pegar algumas das minhas roupas para Manfred, e algumas das de Lotte para você. Nós não queremos nada disso aqui e sinto que jamais voltarei a usá-las de novo. Por favor, me deem o prazer de usar tudo, e tudo como se fosse de vocês. Assim que nós tivermos um endereço definitivo vamos telegrafar imediatamente para vocês. Afetuosas lembranças para todos. Seu Stefan Zweig Nós escrevemos isto ainda no navio e em breve vocês deverão ter notícias nossas. Meu livro será enviado diretamente para vocês pelo editor e espero acabar o outro livro em breve, aquele que eu escrevi em Ossining.

1

Camille Honig, ver p. 198. Lotte Zweig ficou impressionada com o fato de Honig “ter conseguido abrir seu próprio caminho e conhecer muito sobre arte e literatura”. LZ para HA&MA, Ossining, 27 de julho de 1941.

2

Da expressão idiomática alemã etwas in den Rauchfang schreiben, que significa “Eu me desapeguei de todas as coisas”. (Rauchfang é a palavra austríaca para “chaminé”.)

HOTEL CENTRAL

a/c EDITORA GUANABARA

RIO DE JANEIRO

132 RUA OUVIDOR

BRASIL

31.8.41

Queridos Hanna u Manfred, Chegamos sem problemas na quarta-feira e estamos felizes de estar aqui em uma atmosfera um pouco mais calma. Nada mudou durante esse tempo em que estivemos fora, nós pegamos o mesmo quarto no mesmo hotel, o mesmo varandão com esplêndida vista da baía de Guanabara em que Stefan passa a maior parte do tempo trabalhando, e até a comida continua a mesma. Dois dias depois da chegada nós fomos a Petrópolis de carro – um pouco mais de 1 hora e ½ em uma estrada bonita e bem conservada – e procuramos por uma 181

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casinha. Isso é muito mais difícil do que pensávamos, porque todas as famílias tradicionais e ricas têm suas próprias casas e sobram muito poucas para alugar. Terça-feira voltaremos lá e há esperança de que possamos achar alguma coisa. Nesse caso nos mudaríamos para Petrópolis em cerca de duas semanas e desceríamos para o Rio uma ou duas vezes por semana. Há muitos ônibus entre as duas cidades e também uma estrada de ferro de idade já venerável. Ir direto para Petrop. e se instalar de vez por lá tem a grande vantagem de não precisarmos nos mudar novamente quando o verão começar em dezembro. Petrop. é a cidade de veraneio para todos que querem ficar perto do Rio, mais ainda do que Brighton e Eastbourne eram para Londres. Enquanto estivermos no Rio veremos gradualmente nossos amigos de novo e também pretendemos ter aulas de Português. Nós lemos fluentemente a língua e já a entendemos relativamente bem, mas agora também temos que começar a falar o idioma. – Depois da longa viagem de navio de12 dias, Nova York já parece muito distante, e, além de sentir saudades de Eva (e de Amity Hall também um pouco) eu não me arrependo de ter deixado os Estados Unidos outra vez. É estranho: quase todos os europeus aqui na Amer. do Sul sonham em ir para os Estados Unidos, enquanto muitos que estão lá acham o processo de adaptação muito difícil e gostariam de poder partir e viver na Am. Do Sul. – Quando chegamos no Rio já encontramos sua carta de 8 de ago., encaminhada de Novayork. Espero que em breve tenhamos notícias suas de novo e saibamos mais sobre você e sobre o trabalho de Manfred. Com o maior carinho e beijo Lotte

Agora nós já estamos há quatro dias aqui e nos sentimos muito bem – feliz não digo porque não posso me adaptar a essa vida nômade sem uma casa e sem livros, nós seremos europeus para sempre e nos sentiremos estrangeiros em qualquer parte. Eu não tenho pep [“energia”], como dizem os norte-americanos, e será difícil escrever depois da autobiografia – o que eu tenho a dizer é muito diferente do que os Estados Unidos gostam de ler e ouvir. Lotte está um pouco melhor, mas nós sempre sonhamos em nos renovar e partir para novos empreendimentos, mas não conseguimos encontrar o élan – a guerra é longa demais para mim e ainda está longe do fim. Nossa vida em Petrópolis 182

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(ou melhor, aqui) será uma vida solitária, porque nós não gostamos mais da vida em sociedade e eu recusei comparecer a um evento público que acontecerá em breve – vamos estudar português para nos sentirmos mais seguros e espero continuar meu trabalho. Em Nova York tínhamos gente demais e aqui não temos o suficiente de [Carta incompleta de Stefan Zweig]

Sexta-feira, 4 Set, 41

HOTEL CENTRAL RIO DE JANEIRO BRASIL

Caríssima Hanna, Por favor pare de se preocupar conosco, nós ficaremos bem, e mesmo que as coisas nem sempre aconteçam como gostaríamos e que nos queixemos de vez em quando, não leve isso tão a sério. Aquelas últimas semanas nos EUA, com toda a indecisão que sentíamos, foram difíceis, mas agora que estamos aqui, vamos nos assentar novamente. Já encontramos uma casa em Petrópolis que atende aos nossos propósitos muito bem. Ela é pequena – estilo bangalô – tem um ampla varanda com uma bela vista para as montanhas. Sobe-se até ela, vindo da rua, por uma série de degraus. Ela tem um pequeno jardim e está razoavelmente mobiliada. Estamos satisfeitos de tê-la encontrado porque não foi de forma alguma fácil e a maioria das casas ou são terrivelmente feias ou terrivelmente caras. A questão de empregados, segundo fui informada, também é difícil, mas promete ser resolvida temporariamente para nós porque é provável que o casal que cuida da casa no momento fique até eu encontrar o que preciso. Ficar sem empregados tem sido até agora muito desagradável, porque aqui em Petrópolis os fogões de cozinha são exatamente como os fogões de brinquedo de criança e têm que ser vigiados o tempo todo. Esperamos poder subir para Petrópolis no próximo fim de semana, mas pretendemos vir ao Rio com relativa frequência. Ainda está muito tranquilo em 183

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Petr. E a atmosfera chega mesmo a nos lembrar uma primavera europeia. Nós enviaremos cabograma com o endereço assim que nos mudarmos definitivamente para lá, mas eu o repito aqui 34 Rua GONÇALVEZ DIAS Petrópolis, Brasil mas, por favor, observe que esse endereço é apenas para cabogramas. As cartas, por favor, devem continuar sendo endereçadas para Editora GUANABARA, elas serão imediatamente encaminhadas para nós por um mensageiro profissional, o que é mais seguro do que confiá-las ao transporte da pequena estrada de ferro e ao serviço de entrega em Petrópolis. [...] – Tenho que terminar agora, primeiro de tudo, nossa professora de português acabou de chegar; e segundo, o correio para o clíper de amanhã vai fechar em alguns minutos. – Nós recebemos hoje sua carta de 20 de ago, e a de Mama de 22 de ago. Realmente nada mal, apenas duas semanas. Carinho para todos, com os melhores votos de solução para a questão do serviço1 em Bath, Lotte

Queridos Hannah & Manfred, somente hoje, 4 de set., recebemos sua carta de 20 de agosto. Sinto muito que a casa em Bath lhes dê tanto problema – principalmente porque eu duvido cada vez mais que voltemos a vê-la algum dia. Por favor se poupem e não façam trabalho demais, os tempos que se aproximam exigirão de nós toda a nossa força. Quanto ao chefe de Wilmots2 eu já escrevi que vocês não devem se preocupar demais; estou convencido de que terei sérias discussões com ele e não quero que vocês sejam envolvidos em meus problemas pessoais. Muito obrigado por ter entregado o manuscrito do meu Balzac3 para Cassells;4 seria maravilhoso se eu pudesse tê-lo de volta um dia e rapidamente dar continuidade ao meu trabalho. Lotte escreverá para vocês sobre nossa intenção de morar em Petrópolis; definitivamente eu quero alguns meses de descanso e de nenhum modo darei qualquer palestra antes da primavera. Não podemos mais ver baús e malas, estamos cansados de hotéis e de mudanças. – Eu adoraria poder dizer para vocês que Lotte está muito bem. 184

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Infelizmente ela quase não tem uma noite tranquila e eu só espero que o tratamento venha finalmente lhe dar completa recuperação. Isso talvez se deva também à vida nômade, com seus perigos de clima e de ambiente, que não tem sido favorável a nenhum de nós dois. – Finalizei a autobiografia na maior pressão para terminá-la antes de deixar Nova York e agora vou trabalhar nela com calma. Pelo menos seis meses nós esperamos ficar em Petrópolis – vocês sabem o quanto eu gosto de viajar, mas agora nós sentimos que exageramos. Será uma vida de retiro absoluto sem vida em sociedade, teatros e (a única coisa de que sinto falta) sem livros e nós nem começamos a pensar sobre o que faremos depois. Aqui no Rio a primeira notícia que recebemos foi que o pobre Conde Huyn5 faleceu em consequência de uma angina (envenenamento por estreptococos) – Frischauers já telefonou, mas nós ainda não o vimos. Ele escreveu um livro sobre o presidente e vai ganhar muito dinheiro com os financiamentos: vocês bem sabem como admiro sua capacidade. Vi tanta gente talentosa em Nova York incapaz de ganhar um único centavo, que acho admirável como ele sempre inventa novas possibilidades de viver à larga. Dê minhas mais afetuosas lembranças a Eisemann. Minha indiferença com relação aos livros etc. vem do fato de que eu não os voltarei a ver jamais. Eu gostaria que vocês ficassem com todos ou com os que achassem melhor. Estamos todos muito confiantes na vitória final, mais muito mais do que antes, porém não há dúvida que isso levará algum tempo – talvez alguns anos – porque o enorme esforço de preparação dos Estados Unidos estará a todo vapor de agora em diante. Aqui todos estão a favor da Grã-Bretanha, mas vocês na Inglaterra ainda terão muito fardo para carregar. Afetuosas lembranças, Stefan

1

Questão dos empregados.

2

Procurador de Stefan Zweig em Londres.

3

Biografia de Stefan Zweig sobre Honoré de Balzac (1799-1850), escritor e intelectual francês.

4 5

Editor britânico de Stefan Zweig. O Conde Huyn serviu como adido de imprensa da embaixada austríaca em Londres até o Anschluss. Em1939 trabalhou como locutor de notícias do Serviço Alemão da rádio BBC.

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EDITORA GUANABARA

Rio, 13 de set., 41.

WAISEMAN KOOGAN LTDA. LIVREIROS E EDITORES RUA DO OUVIDOR, 132 TELEPH. 22–7231 RIO DE JANEIRO END. TELEG.: EDIGUA – BRASIL

Queridos Hanna & Manfred, Ainda não tive notícias de vocês esta semana, mas até agora já recebi duas cartas de Eva. Eles estão na nova casa e ela escreveu muito animada. [...] – Sobre nós não há muito o que contar. Eu peguei um resfriado e quase não saí a semana passada, e Stefan passa de quatro a seis horas por dia no consultório do dentista. Nosso único “trabalho” regular foram as aulas de português todos os dias, um negócio muito chato porque nós não gostamos dessa língua e isso nos amargura muito – espanhol teria sido tão mais prático e fácil, porque temos certeza de que jamais dominaremos a pronúncia do português. De qualquer modo, isso tem que ser feito porque, com o passar do tempo, os brasileiros naturalmente preferem falar sua língua a falar francês, e para manter uma casa é absolutamente necessário o português. Sobre a casa em Petrópolis eu escrevi com mais detalhes na carta que segue junto com a de Mama, e você saberá mais sobre minhas experiências quando nós estivermos morando lá. – Eu tenho pensado sobre o que você escreveu sobre mamãe ir a Bath para uma pequena visita. Na minha opinião, não há a menor razão para ela visitar Bath enquanto vocês estiverem com problemas na casa e nos serviços domésticos. Posso compreender que ela queira voltar para Londres e que, mesmo pondo em risco sua segurança pessoal, prefira ficar perto de Manfred, de você e dos amigos. Cheguei a pensar que não valia a pena tanto problema e tanto isolamento. Por outro lado eu teria agido como você fez, recusando toda responsabilidade e, em vez disso, aconselhando-a a permanecer onde ela está. Mas não vejo nenhuma razão para ela ir para Bath agora, e estou certa de que ela nem quer isso de verdade. Ela já teve vida de campo o suficiente por um tempo, ela não precisa de descanso, e o que mais Bath e Rosemount têm a oferecer agora que nem nós nem Eva estamos lá? Então não se preocupem com isso agora. Se mamãe1 realmente retornar para Londres – ela não mencionou essa 186

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intenção e eu não escrevi falando sobre isso – e mais uma vez tiver passado um inverno por lá, esse problema poderá surgir, mas até lá, quanta coisa terá acontecido?! – Espero que vocês estejam bem e que Manfred encontre em breve o trabalho que ele deseja. Não se preocupem demais conosco e com nossos problemas, todo europeu hoje em dia está inclinado a ter suas preocupações de uma maneira ou de outra, e se pelo menos a guerra acabar bem, tudo terá valido a pena. Portanto, não se preocupem se Rosemount tiver que ser negligenciada por um tempo, e não deixem que outros problemas nossos ocupem demais seu tempo e pensamento. Sabemos que vocês administram tudo tão bem ou melhor do que poderíamos fazê-lo. Só lamentamos que sobrecarregamos vocês com nossos problemas. Vocês já têm problemas de sobra. As mais calorosas saudações para todos e carinho para vocês. Lotte

1

Therese Altmann, ver p. 194.

Rio, 13 de set., 41

EDITORA GUANABARA WAISEMAN KOOGAN LTDA. LIVREIROS E EDITORES RUA DO OUVIDOR, 132 TELEPH. 22–7231 RIO DE JANEIRO END. TELEG.: EDIGUA – BRASIL

Caríssima mãe, Recebi suas duas cartas de 19 de ago. (endereçadas para NY) e de 22 de ago. e espero ter boas notícias de vocês de novo em breve e ser informada que a senhora pode continuar na mesma casa de que parece gostar tanto. Nós conseguimos uma casa em Petrópolis e vamos nos mudar para lá a qualquer 187

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momento na próxima semana. Ela é muito pequena, na verdade só um bangalô e alojamentos separados para os empregados, como todas as casas são organizadas por lá – suponho que ainda são vestígios dos dias da escravidão – mas nós gostamos da casa. Ela é construída na encosta de um morro e tem uma bela vista para as montanhas de uma grande varanda coberta onde eu penso que Stefan passará os dias trabalhando. Sobe-se até lá por alguns degraus que atravessam um belo jardinzinho, que, segundo a proprietária, ficará cheio de hortênsias no verão. Imediatamente atrás da casa fica o morro, mas a poucos passos acima do jardim está sendo preparado um platô, e a proprietária prometeu também construir uma pequena casa de verão – então essa deverá ser minha residência durante o dia, e talvez mais tarde, quando a estação de veraneio começar, eu possa trocar de lugar com Stefan para poder escondê-lo de visitas inesperadas. Tive muita sorte porque a proprietária resolveu o problema dos empregados para mim. O jardineiro e sua esposa continuarão a morar nas dependências de empregados e ele cuidará do jardim, atuará como um faz-tudo e fará pequenas tarefas quando necessário. Ele trabalha em uma fábrica e faz tudo para nós depois de seu trabalho e, além do fato de morarem em minha casa, eu não terei nada a ver com eles – eles preparam sua própria comida etc. Durante o dia uma cozinheira-arrumadeira virá e fará todo o serviço da casa, arrumando e cozinhando. Todos os nossos amigos, certamente com boas intenções, têm me avisado como é difícil lidar com empregados em Petrópolis. Os empregados do Rio não querem ir para lá porque acham que é muito primitivo – a comida é feita em fogões antiquados que funcionam à lenha, os alojamentos de empregados são muito rudimentares etc. – e os empregados de Petr. mesmo são tidos como preguiçosos e ineficientes. Mas não estou assustada. Como o jardineiro mora na casa, não ficarei sozinha com todo o trabalho, e depois da Inglaterra e dos E.U.A. não espero muito de empregados. De qualquer maneira nós estamos querendo muito parar por alguns meses pelo menos e viver uma vida de retiro sossegada. No momento não temos a menor vontade de ver as pessoas ou de sair muito. Mesmo aqui no Rio, que nós amamos tanto, saímos muito pouco e ficamos satisfeitos com a vista da nossa varanda, que compensa todos os defeitos do hotel, que é limpo e tem bom serviço mas funciona muito com base nos princípios da Haushaltungschule,1 especialmente com relação a comida e a todas as possíveis questões administrativas. – Ainda estamos muito cansados e eu fiquei em casa com um resfriado desagradável por alguns 188

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dias. Então recusamos todos os convites para recepções, cocktails etc. e vimos apenas alguns poucos amigos privadamente. Temos aulas de português todo dia e podemos, embora com muitos erros, falar quase tudo que é necessário e até estabelecer uma conversação em português se não houver outra saída. Mas é uma língua muito feia e é uma grande pena que exatamente esse país não pertença ao grupo espanhol. O espanhol é muito mais fácil para nós e muito mais bonito como língua. O endereço acima permanece válido mesmo quando estivermos em Petr.2 Carinho e beijos

Lotte

HOTEL CENTRAL RIO DE JANEIRO BRASIL

Queridos H & M. Estamos indo para Petrópolis dentro de dois dias e esperamos viver lá sossegadamente por algum tempo. Pensei muito no que vocês já tiveram que sofrer com seu dentista, porque tive que colocar nada menos que duas próteses – agora sou um verdadeiro inglês e tenho minha dentadura artificial para tirar todas as noites. Foi um excelente dentista vienense que realmente fez maravilhas ao construir, com seu artesão especializado, aquelas duas grandes próteses em apenas seis dias quando deveriam levar seis semanas e sem nenhuma dor para mim. Agora tudo isso acabou e se Lotte se livrasse de sua asma nós poderíamos viver e trabalhar tranquilamente depois desses longos meses de pressão e problemas. Encontrei aqui o cunhado de Manfred.3 Ele chegou há um ano, passou um tempo nos Estados Unidos antes de vir para cá, e tem intenção de ficar aqui pelos próximos meses, pelo menos seis meses. O ano passado ele ainda tinha todas as suas obrigações com o antigo patrão, mas ele espera que, uma vez estabelecido no Brasil, e tendo já sua “estadia permanente” concedida desde novembro de 1940, possa ficar livre de suas antigas obrigações no ano que vem. Vocês não imaginam como a situação dele se complica por ficar ao mesmo tempo ligado à nova firma, a empresa americana, e à antiga. Ele espera que um dia possa resolver sua situação com a antiga. Ele gostaria de alugar um apartamento em definitivo – nós mesmos alugamos a casinha em Petrópolis por apenas sete meses, mas 189

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7/14/12 12:17 PM


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